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A formação e a ideologia do administrador de empresa

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Prof. do Departamento de Ciências da Educação da Unesp (Campus de Araraquara)

Manzini Covre, Maria de Lourdes. A Formação e a ideologia do administrador de empresa. Petrópolis, Vozes, 1981. 191 p. Cr$ 350,00.

Os administradores servem à acumulação do capital? Qual a formação, posicionamento e função do administrador na sociedade brasileira? Por que surgiram escolas de administração em número crescente após 1968? Em que contexto histórico-econômico-social surgiu o administrador no Brasil? São estas, entre outras, algumas das indagações a que o trabalho de Maria de Lourdes Manzini Covre procura responder.

Segundo a autora, o presente livro é o resultado de "... reflexões teóricas e de uma pesquisa de natureza empírica, realizada em 1976, em torno da formação, posicionamento e função do administrador na sociedade brasileira contemporânea...", concluído em abril de 1978 (p. 11). De acordo com sua interpretação, o número crescente de administradores (e também de economistas) despejados pelas escolas no mercado de trabalho nos últimos 10 ou 15 anos, deve ser diretamente relacionado às necessidades do processo econômico brasileiro, que vem-se caracterizando pela concentração econômica - mais acentuada após 1964 - evidenciando um desenvolvimento voltado para a grande empresa. Esta, por sua vez, utiliza-se de tecnologia avançada, dispensando a mão-de-obra não-qualificada e absorvendo a qualificada para as funções de análise, controle e planejamento das atividades empresariais que, pelo nível de tecnologia, tornaram-se mais complexas. Assim, as grandes empresas acabam exigindo mão-de-obra qualificada, em grande parte de nível superior, onde se destaca a necessidade do administrador (ao lado do economista).

Dessa maneira, "o administrador expressa o expoente que bem incorpora a ideologia neocapitalista, e cujos conhecimentos de marketing, finanças, planejamento empresarial, etc. são imprescindíveis à operação do empreendimento capitalista, em sua fase monopolista" (p. 182). Daí a autora procura demonstrar, em primeiro lugar, como o tipo de formação administrativa, relativa a uma escola que serve de paradigma - a Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP), da Fundação Getúlio Vargas - está intimamente ligada aos interesses do capital. E mais: a análise da formação deste administrador encontra na EAESP um tipo de ensino de administração de caráter de vanguarda em relação ao interesse do capital, refletindo aspectos da ideologia desenvolvimentista, "forma transfigurada da ideologia neocapitalista na periferia do sistema capitalista".

Em segundo lugar, vai captar os traços ideológicos desses alunos/administradores, examinando a posição e função social que possuem na empresa, em relação às suas próprias atitudes e valores. Finalmente, procura compor o modelo de desenvolvimento veiculado por estes alunos/administradores, que denota o seu comprometimento perante o contexto sócio-econômico atual.

A elaboração do trabalho apóia-se numa pesquisa empírica, cujo levantamento de dados foi realizado a partir da aplicação de questionários em 224 alunos da EAESP, compreendendo alunos do curso de graduação dos períodos diurno e noturno, incluindo também alunos do CEAG (Curso de Especialização em Administração para Graduados), além de outras informações obtidas por intermédio de entrevistas com alunos e professores, bem como do manuseio de algumas outras fontes, tais como: currículos da EAESP; livros informativos publicados pela Escola; leis e decretos relativos às Escolas de Administração; dados coligidos de três pesquisas inéditas da própria Fundação.

Maria de Lourdes Manzini Covre indica a brutal expansão do número de alunos matriculados nas escolas de Administração que se observou no Estado de São Paulo. Em 1969, havia cerca de 12 mil alunos matriculados, ao passo que em 1974 as matrículas atingem a casa dos 46 mil. As escolas de Economia, Administração e ciências afins, em São Paulo, passam de 3, em 1940, para 28 após 1970 perfazendo um total de 66 escolas, de acordo com um levantamento realizado pelo MEC. E entre 1951 e 1968, enquanto as matrículas totais nos cursos de Medicina e Engenharia aumentaram, respectivamente, de 174% e 483%, na área de Economia e Administração essa taxa alcançou 1.118%, continuando a aumentar nos primeiros anos da década de 70 (veja tais informações a p. 80-2).

Para a autora, esse processo tinha por finalidade atender às empresas que sofreram o processo de concentração econômica, maior burocratização e conseqüente crescimento das exigências de administradores profissionais.

Analisando os dados de sua pesquisa chegou à conclusão de que as escolas de Administração - e em especial a EAESP - recrutam alunos que possuem excelente capital cultural, manifestado através do curso colegial regular (e, provavelmente, em escolas secundárias da rede particular - colégios de elite); têm seus domicílios em zonas que possuem todos os equipamentos urbanos; pertencem ao menos às classes média ou média alta da sociedade; possuem grande capital de relações sociais que lhes possibilita, após formados, serem convidados para administrar empresas, sem terem de submeter-se a exaustivas e humilhantes baterias de testes de conhecimento ou aptidão.

Maurício Tragtemberg, em Ideologia e currículo de administração (material mimeografado, de uso interno da EAESP), pondera que o currículo é um meio que serve a fins, e a característica recorrente nas escolas de Administração "... é o predomínio da óptica patronal que se dá através da existência de inúmeras disciplinas que são ensinadas, sem consideração da existência da óptica da mão-de-obra. Urge viabilizar no currículo escolar, entendido como reflexo do social, em nível de disciplinas, temas como o sindicalismo, a co-gestão na empresa, a história do movimento operário organizado. Isso possibilitaria a existência de um currículo adequado à conjuntura social onde a mão-de-obra organizada procura criar seu espaço de atuação e reflexão. Desta forma, a estrutura curricular seria fiel às contradições do social" (p. 5, grifado no original).

Maria de Lourdes Manzini Covre, analisando os currículos da EAESP no período compreendido entre 1957-1976, fez as seguintes constatações:

• em 1957, o Departamento de Administração Geral e Relações Industriais (DAGRI), que detinha 24,5% do número total das disciplinas, passa a deter apenas 14,0 em 1976;

• o Departamento de Ciências Sociais, que detinha 22,4% das disciplinas em 1957, detém 30,2 das mesmas em 1976;

• o Departamento de Mercadologia, no mesmo período, aumentou de 8,2% para 9,3 o percentual de disciplinas que detinha;

• o Departamento de Contabilidade e Finanças baixou, no mesmo período, de 16,3 para 9,3%;

• o Departamento de Economia, entre 1957-1976, passou de 8,2%, das disciplinas que detinha, para 11,6 (veja tabela e comentários acerca das modificações no currículo obrigatório dos cursos da EAESP a p. 103-4, do livro).

Tais variações no peso dos departamentos na estrutura curricular da Escola visam a responder, basicamente, às necessidades econômicas que orientam tal estrutura. Assim é que a predominância inicial do Departamento de Administração Geral, no currículo da EAESP, tinha por finalidade responder às exigências iniciais do arranco industrial - estava-se em pleno desenvolvimento, com JK à frente da Nação - que demandava diretrizes administrativas básicas, "... o que se levou a converter a Teoria da Burocracia em principal tema dos cursos" (Cf. Tragtemberg, op. cit. p. 6). Por outro lado, o predomínio progressivo das ciências sociais, mercadologia e economia visa a atender a "... um modelo associado de crescimento econômico onde a multinacional é privilegiada, (pois) necessita de um administrador generalista que possua condições de compreender conjunturas econômico-políticas e sociais para melhor agir" (idem, p. 6, grifado no original).

A autora conclui que a grande maioria das disciplinas de ciências sociais (sociologia, política, direito, psicologia, economia, metodologia da pesquisa) veiculadas aos alunos da EAESP acaba por se revestir de um caráter "técnico", tendo uma importância capital na formação de profissionais, transformando seus alunos em candidatos "... com fácil acesso às cúpulas administrativas, cujo conhecimento obtido pelas ciências humanas é imprescindível, desde que o homem de cúpula é um 'homem político', no sentido de ser capaz de tomar decisões criativas que envolvem a relação com o governo, com sindicatos, outras empresas, etc." (p. 106). Ou, nas palavras de M. Tragtemberg, "o crescimento de matérias não-técnicas em termos relativos no currículo escolar não significou 'humanização' curricular, mas sim a conversão das ciências humanas em um saber instrumental, como a transformação da metodologia científica em mera técnica de pesquisa (...). O produto final do currículo do ensino de administração é a conversão da sociologia em técnica de manipulação e controle social; da psicologia em técnica manipulativa de subalternos, (aparecendo) o neopositivismo (...) como a ideologia subjacente às várias disciplinas que compõem o currículo nos cursos de Administração, combinado com a ideologia neocapitalista expressa por Berle, Burnham & Weber" (op. cit. p. 6-7; grifos do original).

Acrescentaria ainda que o livro de Maria de Lourdes Manzini Covre apresenta muitos outros méritos e conclusões pertinentes, além daqueles que foram aqui expostos e resumidos. Entretanto, antes de concluir, gostaria de realizar algumas considerações relativas a uma tese que até agora pouco destaque recebeu na literatura crítica da área de educação - e que contraria em grande medida o pressuposto básico no qual está alicerçado A formação e a ideologia do administrador de empresa - qual seja, a de que o capital não precisa da escola, ao menos para formar sua mão-de-obra. Esta tese, é importante frisar, recebeu guarida no excelente trabalho de Cláudio Leopoldo Salm (Escola e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 1980) e em artigos publicados na Folha de São Paulo por Paul Singer (Escola e capital, em 13 e 19 de novembro de 1980) e José Carlos Garcia Durand (Empresas e escola, em 18 de dezembro de 1980),

Segundo Cláudio Leopoldo Salm, a escola é vista como instituição que serve às empresas - no que, aliás, os críticos da educação estão todos de acordo. Entretanto, destaca um aspecto decisivo que, em meu entender, é praticamente irrebatível: o de que o capital não cria obstáculos à sua valorização. "A suposta dependência das empresas face a um sistema educacional que se expande sem cessar vai contra toda a lógica de evolução capitalista. A história do mercado de trabalho é outra. É a história de como o capital vai-se libertando dos entraves que o trabalho lhe possa trazer. Se é tão lido e repetido que "a produção capitalista é produção e reprodução das relações de produção especificamente capitalistas" (Marx, Karl. O Capital. São Paulo, Ciências Humanas, 1978. livro I, cap. VI inédito, p. 90), por que a insistência em procurar no sistema educacional o locus onde o capital vai buscar a reprodução de sua força de trabalho? Essa visão é de fato intrigante. O capital, que se libertou das limitações impostas pelo tamanho da população, que internalizou suas fontes de financiamento resolvendo também os problemas da mobilidade desses recursos, que controla seus mercados, que regula e orienta o fluxo de inovações tecnológicas, enfim, o capital que vai dominando (e destruindo) a própria natureza, dependeria dessa instituição pesada chamada escola para resolver seus problemas com a força de trabalho! Se a finalidade da produção capitalista é a reprodução e ampliação das relações capitalistas de produção, é no seio da produção mesma que devemos buscar a formação das qualificações requeridas e não em uma instituição à margem como é a escola" (p. 25).

Por essa óptica a escola, ao invés de ser uma fábrica de mão-de-obra qualificada, chega mesmo a desservir ao capital, "... na medida que forma pessoas mais exigentes e menos dispostas a aceitar a rotina da fábrica e do escritório" (cf. artigo de José C. G. Durand). Mas então, se o capital não precisa da escola para formar sua mão-de-obra, onde é que ele adestrará seus quadros? A resposta pode ser obtida no primeiro dos artigos de Paul Singer, quando afirma que "isso as firmas mesmas fazem, principalmente por meio do treinamento no trabalho e subsidiariamente mediante escolas profissionais por elas controladas, como as do Senai, no Brasil, O aparelho educacional geral, "mesmo quando se pretende profissionalizante, proporciona aos alunos habilidades de pouco ou nenhum uso no exercício profissional. Na melhor das hipóteses, a escola proporciona certos conhecimentos gerais de códigos (lingüísticos, matemáticos, gráficos) que facilitam o aprendizado no trabalho. Mas estes conhecimentos não constituem mais que uma fração pequena do conjunto cada vez mais extenso de coisas que as pessoas são obrigadas a saber para fazer jus a um diploma".

A análise de Cláudio Leopoldo Salm mostra que escola e capital percorrem trajetórias opostas quanto à qualificação da força de trabalho. "Enquanto a primeira amplia seus currículos e eleva incessantemente o tempo de preparação profissional, o segundo utiliza o progresso técnico para sistematicamente eliminar da produção o trabalhador dotado de conhecimento ou habilidades especiais." O autor ilustra essa afirmação apresentando dados sobre o emprego na indústria paulista, que se expandiu 56% entre 1951 e 1963, sendo que neste período o número de trabalhadores braçais aumentou 64%, o de trabalhadores semiqualificados, 83%, mas o de trabalhadores qualificados, apenas 5%. No mesmo período o número de técnicos e engenheiros cresceu 199%, ou seja, muito mais que qualquer outra categoria, sendo que essa força de trabalho também exerce tarefas rotineiras, aprendidas apenas na prática - e esse é um tipo de conhecimento que a escola não pode transmitir. Salm pondera ainda que "a grande empresa irá internalizar toda uma gama de processos, inclusive o de tentar moldar o comportamento dos trabalhadores. Não irá confiar na escola nem para isso" (p. 26).

Entretanto, a empresa leva cada vez mais em conta a diplomação dos pretendentes a emprego. Por quê? "Se assim o faz, é porque se vale da instituição educacional como fornecedora de credenciais, simplificando o processo de recrutamento pela exclusão sumária e prévia dos postulantes não diplomados. Aliás, à empresa não sai caro tal expediente, uma vez que não é ela que arca com os custos do sistema de ensino" (cf. artigo de José C. G. Durand). Ou, em outras palavras, o que a escola fornece às empresas são critérios simbólicos para o preenchimento dos cargos em sua hierarquia ocupacional.

Estas últimas considerações realizadas com base no livro de Salm e nos artigos de Singer e Durand não se encontram incorporadas no trabalho de Maria de Lourdes Manzini Covre. Entretanto, não seria exigir demais de uma dissertação de mestrado que, sob muitos aspectos, já apresenta interpretações e conclusões inegavelmente originais?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1981
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