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Estratégias de valorização simbólica dos propósitos organizacionais: o caso do programa Crediamigo

SEÇÕES ESPECIAIS

SMALL BUSINESS ATRAVÉS DO PANÓPTICO

Estratégias de valorização simbólica dos propósitos organizacionais: o caso do programa Crediamigo

Raphael de Jesus Campos de AndradeI; Rosa Cristina Ribeiro LimaII; Ana Sílvia Rocha IpirangaIII

IMestrando. Gerente de projetos do Instituto de Prevenção à Desnutrição e à Excepcionalidade (Iprede). Endereço: Rua Prof. Carlos Lobo, 15 - Cidade dos Funcionários - CEP 60821-740, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: contato@raphaelcampos.com

IIMestre em administração. Gerente executiva do Banco do Nordeste do Brasil. Endereço: Av. Pedro Ramalho, 5700 - Passaré - CEP 60743-902, Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: rosacrisribeiro@uol.com.br

IIIDoutora em psicologia do trabalho e da organização. Professora do Programa de Mestrado Acadêmico em Administração da Universidade Estadual do Ceará. Endereço: Av. Pedro Ramalho, 1700 - Pici - CEP 60714-502, Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: anasilviaipi@uol.com.br

A partir da ideia de "observação total" de Jeremy Bentham (1748-1832), esta seção é um espaço dedicado à divulgação de estudos e pesquisas relacionados ao conceito de small business e sustentabilidade, que engloba, entre outras, as seguintes temáticas: micro, pequenas e médias empresas (MPMEs); empreendedorismo; jovens empresários; acesso ao crédito; microfinanças; meios de pagamento; incubadoras; desenvolvimento local; responsabilidade socioambiental.

Coordenação: Deborah Moraes Zouain* * Coordenadores do Programa de Estudos Avançados em Pequenos Negócios, Empreendedorismo, Acesso ao Crédito e Meios de Pagamento (Small Business), da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Endereço: Praia de Botafogo, 190, sala 541 - Botafogo - CEP 22250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: small@fgv.br. Francisco Marcelo Barone* * Coordenadores do Programa de Estudos Avançados em Pequenos Negócios, Empreendedorismo, Acesso ao Crédito e Meios de Pagamento (Small Business), da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Endereço: Praia de Botafogo, 190, sala 541 - Botafogo - CEP 22250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: small@fgv.br.

1. Introdução

Os sistemas de fatos e de representações comumente recobertos pelo conceito mais abrangente de cultura podem ser classificados, sobretudo, em duas posturas principais. De um lado, o interacionismo simbólico, que considera a cultura - e por extensão todos os sistemas simbólicos, como a arte, o mito, a linguagem etc. - em sua qualidade de instrumento de comunicação e conhecimento responsável pela forma nodal de consenso, qual seja o acordo quanto ao significado dos signos e quanto ao significado do mundo. De outro, tende-se a compreender a cultura e os sistemas simbólicos em geral como um instrumento de poder, isto é, de legitimação da ordem vigente (Miceli, 2005).

Uma limitação do interacionismo simbólico pode ser ressaltada na minimização das funções econômicas e políticas dos sistemas simbólicos em favor da análise interna dos bens e mensagens de natureza simbólica, como se os agentes sociais fossem "senhores" dos significados que eles mesmos produzem e mobilizam no processo de interação. Entretanto, levando-se em conta que a cultura só existe efetivamente sob a forma de símbolos, de um conjunto de significados, de onde provém sua eficácia própria, a percepção dessa realidade segunda, propriamente simbólica, que a cultura produz e inculca, parece indissociável de sua função política. Assim, como não existem "puras" relações de força, também não há relações de sentido que não estejam referidas e determinadas por um sistema de dominação (Bourdieu, 2005).

Thompson (2001) acrescenta que os fenômenos culturais estão implicados em relações de poder e conflito; isto é, as ações e manifestações verbais do dia a dia, assim como fenômenos mais elaborados, tais como rituais, festivais e obras de arte, são produzidos ou realizados em circunstâncias sócio-históricas particulares, por indivíduos específicos providos de certos recursos e possuidores de diferentes graus de poder e autoridade.

Este artigo lança mão das contribuições de Bourdieu e Thompson sobre a concepção política de cultura para elucidar os significados subjacentes às estratégias utilizadas por colaboradores para atribuir valor à missão e aos objetivos de uma determinada organização sob estudo. Trata-se do caso do Crediamigo do Banco do Nordeste do Brasil, que atualmente é o maior programa de microcrédito produtivo e orientado em operação do país.

Essa preocupação com o valor atribuído à missão e aos objetivos organizacionais se deve ao fato de que muitos pesquisadores e executivos consideram que o envolvimento das pessoas em torno de um propósito comum é fundamental para orientar o comportamento e o desempenho das organizações (Lustri et al., 2007). Se existe relação entre o desempenho de uma organização e a sua cultura, a compreensão dos significados atribuídos pelos colaboradores aos propósitos organizacionais se torna um ponto crucial no gerenciamento das organizações.

Em vista de realizar essa compreensão dos sistemas simbólicos organizacionais, adota-se aqui uma abordagem metodológica de natureza qualitativa e nível descritivo-explicativo. Quanto à coleta dos dados, utiliza-se a técnica da entrevista semiestruturada, amparada por uma gravação de áudio, pelo uso do diário de campo e da observação participante, visto que um dos autores do artigo também faz parte do caso sob estudo; ou seja, é colaborador do programa Crediamigo. Os dados são analisados por meio da técnica de mapas cognitivos, que possibilita revelar as estruturas cognitivas que guiam as ações de indivíduos ou de grupos (Vergara, 2006).

Este artigo está dividido em cinco seções: primeiro, trata-se da concepção política de cultura e dos processos de valorização simbólica que ocorrem nos espaços sociais; em seguida, articula-se um quadro de categorias teórico-analíticas relevantes para a compreensão dos sistemas simbólicos no contexto organizacional; na terceira seção, apresenta-se uma discussão sobre estratégia, a missão e os objetivos organizacionais; na quarta seção são tratados os aspectos metodológicos utilizados na pesquisa; e, por fim, na última seção analisa-se o caso do programa Crediamigo e algumas ideias conclusivas do trabalho.

2. A contextualização social dos sistemas simbólicos

A utilização de símbolos é um traço distintivo da natureza humana. Somente os seres humanos desenvolveram com precisão linguagens em virtude das quais expressões significativas podem ser construídas e trocadas (ECO, 2003). Essas construções e trocas de formas simbólicas estão sujeitas a múltiplas, divergentes e conflitantes interpretações dos indivíduos que as recebem e as percebem no curso de suas vidas cotidianas. As formas simbólicas estão inseridas em contextos e processos sócio-históricos específicos, dentro dos quais e por meio dos quais, são produzidas, transmitidas e recebidas. Esses contextos e processos estão caracterizados por relações assimétricas de poder e por acesso diferenciado a recursos e oportunidades (Thompson, 2001).

Bourdieu (2005) privilegia as funções sociais cumpridas pelos sistemas simbólicos, as quais tendem, no limite, a se transformarem em funções políticas. Assim, o autor procura salientar o caráter alegórico dos sistemas simbólicos numa tentativa de apreender as suas características intrínsecas em função das determinações que sofre por parte das condições de existência econômica e política. Dessa forma, o autor tenta compreender a combinação singular que tais sistemas trazem para a reprodução e a transformação da estrutura social. O que Bourdieu pretende é retificar a teoria do consenso dos interacionistas simbólicos - cuja eficácia reside na possibilidade de ordenar o mundo natural e social por meio de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais - por uma concepção teórica capaz de revelar as condições materiais que presidem a criação e a transformação de aparelhos de produção simbólica, cujos bens deixam de ser vistos como meros instrumentos de comunicação e de conhecimento.

De fato, nada mais falso do que acreditar que as ações simbólicas (ou o aspecto simbólico das ações) nada significam além delas mesmas: na verdade, elas exprimem sempre a posição social segundo uma lógica que é a mesma da estrutura social, a lógica da distinção. Os signos como tais "não são definidos positivamente por seu conteúdo, mas sim negativamente através de sua relação com os demais termos do sistema" e, por serem apenas o que os outros não são, derivam seu "valor" da estrutura do sistema simbólico; e, por isso, estão predispostos por uma espécie de harmonia preestabelecida a exprimir o "nível" estatutário que, como a própria palavra indica, deve o essencial de seu "valor" à sua posição em uma estrutura social definida como sistema de posições e oposições.

(Bourdieu, 2005:17)

Em vista disso, pode-se afirmar que um dos temas centrais da cultura tem a ver com a subordinação dos sistemas simbólicos ao sistema de grupos de status, com a estrutura de poder daí resultante. O processo de simbolização cumpre sua função especial de legitimar e justificar a unidade do sistema de poder, fornecendo-lhe o estoque de símbolos necessário à sua expressão. As significações constituem mensagens de todo tipo, que delimitam o espaço arbitrário em que se movem os diversos grupos que integram uma dada estrutura social. O trajeto de Bourdieu visa justamente submeter o conhecimento da constituição interna do campo simbólico a uma percepção de sua função política e também legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente (Saraiva, 2007).

Nota-se que a seleção de significações, que define objetivamente a cultura de um grupo como estrutura simbólica, é arbitrária na medida em que as funções desta cultura não podem ser deduzidas de qualquer princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna com a natureza das coisas ou com a natureza humana. Entretanto, a noção de arbítrio não deve ser confundida com a ideia de gratuidade, uma vez que um determinado sistema simbólico é sociologicamente necessário, porque deriva sua existência das condições sociais de que é produto, das funções políticas (Miceli, 2005).

Tais funções são um conjunto de ações sobre ações possíveis; elas operam sobre o campo de possibilidade em que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; elas incitam, induzem, desviam, facilitam ou tornam mais difícil, ampliam ou limitam, tornam mais ou menos prováveis; no limite, elas coagem ou impedem absolutamente. Em última análise, o que está em jogo no campo simbólico é o poder propriamente político, até porque as relações de força são mediadas por sistemas simbólicos que, ao mesmo tempo, tornam essas relações visíveis e irreconhecíveis, pois lhes conferem uma existência através de linguagens especiais, encobrindo as condições objetivas e as bases materiais em que se fundam (Rabinow e Dreyfus, 1995).

Em virtude de uma postura que privilegia a análise política do campo simbólico, procura-se explorar ao máximo os nexos entre os grupos de status e os sistemas simbólicos de que são portadores. Assim, a cultura de uma sociedade é resultado da hegemonia de um grupo e dos conflitos entre as forças mestras no curso de seu desenvolvimento histórico. Emerge daí uma concepção geral da sociedade que implica ênfase da dimensão política.

Bourdieu (2007) leva às últimas consequências a imagem da sociedade como um campo de batalha operando com base na força e no sentido, ou melhor, dando ênfase à força do sentido. Para além dos conflitos que sucedem no plano material, a luta que se desenvolve entre os diversos grupos sociais assume o caráter de uma disputa entre valores que se materializam por meio de um estilo de vida baseado na usurpação do prestígio e na dominação que se exerce por intermédio das instituições que dividem entre si o trabalho de dominação simbólica. De acordo com Bourdieu (2007:233):

o espaço dos estilos de vida, ou seja, o universo das propriedades pelas quais se diferenciam, com ou sem intenção de distinção, os ocupantes das diferentes posições no espaço social não passam em si mesmos de um balanço, em determinado momento, das lutas simbólicas cujo pretexto é a imposição do estilo de vida legítimo e que encontram uma realização exemplar nas lutas pelo monopólio dos emblemas da "classe", ou seja, bens de luxo, bens de cultura legítima ou modo de apropriação legítima desses bens. A dinâmica do campo no qual os bens culturais se produzem, se reproduzem e circulam, proporcionando ganhos de distinção encontra seu princípio nas estratégias em que se engendram sua raridade e a crença em seu valor, além de contribuírem para a realização desses efeitos objetivos pela própria concorrência que os opõe entre si: a "distinção" ou, melhor ainda, a "classe" - manifestação legítima, ou seja, transfigurada e irreconhecível, da classe social - existe apenas através das lutas pela apropriação exclusiva dos sinais distintivos que fazem a "distinção natural".

Por essa via, a intenção de Bourdieu (2007) não é elaborar uma teoria "culturalista" da sociedade, mas mostrar a matriz das significações dominantes que compõem um arbítrio cultural, que mascara tanto o caráter arbitrário de tais significações quanto o caráter arbitrário da dominação, ou seja, explicar o processo histórico das lutas entre classes e grupos sociais, responsável pela imposição de uma cultura particular.

Tal processo de imposição de uma cultura de classe permite sempre, de alguma forma, o surgimento e a manifestação de sistemas simbólicos a serviço da expressão política dos grupos dominados, desde que não ponha em risco o sistema prevalecente de dominação. Bourdieu (2005:24) afirma ainda que "as classes inferiores se referem, sobretudo, ao dinheiro, as classes médias ao dinheiro e à moralidade, enquanto as classes superiores acentuam o nascimento e o estilo de vida".

Por conta disso, parece urgente a necessidade de se encontrar uma perspectiva de análise aplicável às diversas linguagens simbólicas - desde a própria ação social entendida como uma sequência significante até o discurso científico - e um quadro teórico suficientemente fecundo a ponto de ser possível mapear os vínculos que prendem os sistemas simbólicos à estrutura social.

Essa perspectiva de análise e esse quadro teórico podem ser encontrados nos estudos de Thompson (2001) que, partindo das contribuições de Bourdieu, estabelece as estratégias de valorização simbólica utilizadas pelos indivíduos de acordo com o espaço social que ocupam. Essas estratégias são discutidas detalhadamente a seguir.

3. Estratégias de valorização simbólica

Uma consequência da contextualização dos sistemas simbólicos, conforme foi apresentado no item anterior é a de que eles são, frequentemente, submetidos a complexos processos de valorização, avaliação e conflito. Acrescenta-se a isso o fato de que as formas simbólicas podem ser distinguidas entre dois principais tipos de valorização. O primeiro tipo é a valorização simbólica: o processo pelo qual é atribuído às formas simbólicas um determinado valor simbólico pelos indivíduos que as produzem e recebem. Valor simbólico é aquele que os objetos têm em virtude dos modos pelos quais, e na extensão em que, são estimados pelos indivíduos que os produzem e recebem, isto é, por eles aprovados ou condenados, apreciados ou desprezados. A atribuição de valor simbólico pode ser distinguida da valorização econômica, como o processo por meio do qual é atribuído às formas simbólicas um determinado valor econômico, isto é, um valor pelo qual elas podem ser trocadas em um mercado. Através do processo de valorização econômica, as formas simbólicas são constituídas como mercadorias, tornam-se objetos que podem ser comprados ou vendidos por um dado preço em um mercado (Thompson, 2001).

Ambos os tipos de valorização são comumente acompanhados de distintas formas de conflito. De um lado, diferentes graus de valor simbólico podem ser atribuídos às formas simbólicas pelos indivíduos que as produzem e recebem, de tal modo que um objeto que é apreciado por alguns pode ser condenado ou desprezado por outros. Tais conflitos sempre têm lugar dentro de um contexto social que se caracteriza por assimetrias e diferenças de vários tipos. Assim, as valorizações simbólicas realizadas por diferentes indivíduos, que estão diferentemente situados, são, raras vezes, de mesmo status. Alguns indivíduos estão em uma melhor posição do que outros para realizar valorizações e, se for o caso, impô-las.

De outro lado, o processo de valorização econômica é, também, comumente acompanhado por conflito. Bens simbólicos podem ser economicamente valorizados em diferentes graus por diferentes indivíduos, no sentido de que alguns indivíduos podem entendê-los como de maior ou menor valor do que outros lhes atribuem. Tais conflitos sempre têm lugar em contextos sociais nos quais alguns indivíduos podem ser capazes de pagar mais do que outros para adquirir ou controlar bens simbólicos.

Embora seja possível distinguir, analiticamente, entre valorização simbólica e econômica, e entre as formas de conflito tipicamente associadas a elas, nas circunstâncias reais essas formas de valorização e conflito frequentemente se sobrepõem de maneiras complexas. Em alguns casos, a aquisição de valor simbólico, quando atribuído por outros ou quando derivado do prestígio acumulado por algum indivíduo, pode aumentar o valor econômico de um bem simbólico. Em outros casos, entretanto, a aquisição de valor simbólico pode não aumentar significativamente o valor econômico de um bem simbólico e pode mesmo diminuir seu valor econômico. Em certos campos de produção e troca simbólica, o valor simbólico de um bem pode estar inversamente relacionado com seu valor econômico, uma vez que pode ser visto como cada vez menos submetido aos interesses comerciais (Saraiva, 2007).

Os indivíduos envolvidos na produção e recepção de formas simbólicas estão, geralmente, conscientes do fato de que elas podem ser submetidas a processos de valorização e que podem empregar estratégias voltadas para o aumento ou a diminuição do valor simbólico ou do econômico.

As estratégias empregadas pelos indivíduos estão ligadas às posições que ocupam dentro de campos de interação particulares. Os tipos de estratégias tipicamente empregados pelos indivíduos e sua capacidade para terem sucesso com elas dependem dos recursos de que dispõem e de sua relação com outros indivíduos no campo. Thompson (2001) ilustra esse ponto enfocando algumas das estratégias que os indivíduos tipicamente empregam na atribuição de valor simbólico. O autor distingue algumas estratégias típicas de valorização simbólica e demonstra como estão ligadas a diferentes posições em um campo. Ao distinguir essas estratégias típicas, ele não quer sugerir que sejam os únicos procedimentos possíveis aos indivíduos, nem que sejam os únicos procedimentos por eles empregados. Ao contrário, os indivíduos estão constantemente envolvidos na criação de novas estratégias, na descoberta de novas maneiras de alcançar seus objetivos ou de evitar que outros alcancem os seus. Destaca-se que essas estratégias só podem ser plenamente analisadas quando se considera os casos específicos. O quadro 1 resume algumas dessas estratégias típicas e suas ligações com diferentes posições em campo.


Os indivíduos que ocupam posições dominantes dentro de um campo de interação são aqueles positivamente dotados de recursos ou capital de vários tipos. Ao produzir e apreciar formas simbólicas, os indivíduos em posição dominante, tipicamente, empregam a estratégia de distinção, pois procuram distinguir-se dos indivíduos ou dos grupos que ocupam posições subordinadas a eles. Assim, eles podem atribuir alto valor simbólico a bens que sejam escassos ou caros (ou ambos) e que são, por isso, bastante inacessíveis a indivíduos menos dotados de capital econômico.

Nos espaços organizacionais, esse tipo de estratégia pode ocorrer quando, por exemplo, os dirigentes se consideram mais capazes que qualquer outro para determinar os rumos dos negócios e justificam essa capacidade com a experiência e a formação que possuem, com pesquisas que realizam sobre demandas de mercados, planejamento e desenvolvimento de produtos etc., e com relatórios de resultados da empresa.

Os indivíduos em posições dominantes podem, também, procurar distinguir-se empregando a estratégia de menosprezo, isto é, considerando as formas simbólicas produzidas por quem está abaixo deles como defeituosas, desajeitadas, imaturas ou grosseiras. Uma variante mais sutil desse tipo de estratégia é a condescendência. Elogiando formas simbólicas de seus produtores, contudo lembrando-os de sua posição subordinada, a condescendência possibilita aos indivíduos em posição dominante reafirmar sua dominação sem declará-la abertamente.

Os dirigentes das organizações adotam a estratégia de menosprezo quando julgam que seus subordinados são incapazes de tomar qualquer tipo de decisão estratégica e, por isso, ficam responsáveis apenas pelas questões táticas e operacionais da organização. Por outro lado, os dirigentes que adotam estratégias de condescendência se consideram capazes de dirigir adequadamente uma determinada organização, justamente pelo fato de ouvirem atentamente os pontos de vista de seus subordinados quanto aos rumos dos negócios.

As posições intermediárias dentro de um campo são as que oferecem acesso a um tipo de capital, porém não a outro ou que oferecem acesso a diferentes tipos de capital, mas em quantidades que são mais limitadas do que as disponíveis para os indivíduos ou grupos dominantes. Uma posição intermediária pode ser caracterizada por uma grande quantidade de capital econômico, mas uma baixa quantidade de capital cultural ou, inversamente, por uma pequena quantidade de capital econômico e uma grande quantidade de capital cultural ou ainda por quantidades moderadas de ambos.

As estratégias de valorização simbólica empregadas pelos indivíduos situados em posições intermediárias são, frequentemente, caracterizadas por moderação: os indivíduos valorizam positivamente os bens que sabem estar ao seu alcance e, como indivíduos cujo futuro pode não estar inteiramente seguro, podem valorizar mais aquelas formas simbólicas que os possibilitam empregar seu capital cultural enquanto preservam seus limitados recursos econômicos.

As pessoas que adotam estratégias de moderação dentro de uma organização geralmente são gerentes preocupados em realizar corretamente as suas funções, aceitando facilmente as ordens de seus superiores, procurando oferecer condições de trabalho adequadas aos seus subordinados.

Mas os indivíduos em posições intermediárias podem, também, estar orientados para as posições dominantes, produzindo formas simbólicas como se elas fossem produtos de indivíduos ou de grupos dominantes ou valorizando-as como se estivessem sendo valorizadas por esses últimos. Os indivíduos situados em posições intermediárias podem empregar a estratégia de pretensão, fingindo ser o que não são e buscando, dessa forma, assimilar-se a posições superiores às suas. Indivíduos situados em posições intermediárias podem adotar o sotaque, o vocabulário e os maneirismos discursivos dos indivíduos ou dos grupos dominantes, produzindo formas simbólicas que exibem características dominantes e que atestam sua ambição, sua insegurança ou ambas.

Os gerentes que adotam estratégias de pretensão muitas vezes almejam ocupar a posição dos dirigentes, pois acham que têm mais competência para decidir sobre o rumo dos negócios. Esse tipo de gerente, possivelmente, não está ocupando uma posição hierárquica adequada a sua experiência ou a sua formação e, por isso, sente-se insatisfeito por estar realizando atividades que estão aquém dos desafios que deseja enfrentar.

Em algumas circunstâncias, contudo, indivíduos situados em posições intermediárias podem empregar uma estratégia bastante diferente em relação aos indivíduos ou grupos dominantes, procurando desvalorizar ou depreciar as formas simbólicas produzidas pelos dominantes. Ao invés de reproduzirem as valorizações dos indivíduos ou grupos dominantes para se assimilar às posições dominantes, podem condenar as formas simbólicas produzidas por tais indivíduos dominantes numa tentativa de ficar acima dessas posições.

As estratégias de desvalorização costumam ser empregadas nas organizações quando os gerentes discordam totalmente das decisões dos superiores, julgando-os despreparados e irresponsáveis. Isso ocorre, por exemplo, quando um dirigente sem qualquer formação teórica ou mesmo prática, como o jovem herdeiro de uma empresa familiar, entra em conflito com um gerente experiente e capacitado.

As posições subordinadas dentro de um campo são aquelas que oferecem acesso a mínimas quantidades de capital de diferentes tipos. Os indivíduos situados nessas posições são aqueles menos dotados de recursos ou cujas oportunidades são mais restritas. As estratégias de valorização simbólica empregadas por indivíduos situados em posições subordinadas são, tipicamente, caracterizadas pela praticidade, pois esses indivíduos estão mais preocupados que outros com as necessidades de sobrevivência e, por isso, podem atribuir mais valor do que fazem outros a objetos práticos em sua constituição e funcionais na vida cotidiana.

As estratégias de praticidade são bastante comuns entre os operários de uma determinada linha de produção, que estão preocupados especialmente com as metas de produção mensal e muitas vezes desconhecem os objetivos de longo prazo da organização.

A valorização positiva de objetos práticos pode andar lado a lado com a resignação respeitosa em relação às formas simbólicas produzidas por indivíduos que ocupam posições superiores em um campo. Essa é uma estratégia de respeito no sentido de que as formas produzidas por indivíduos situados em posições superiores são vistas como superiores, isto é, como merecedoras de respeito, mas é uma estratégia de resignação na medida em que a superioridade dessas formas e, consequentemente, a inferioridade de seus próprios produtos são aceitas como inevitáveis.

Os operários utilizam as estratégias de resignação respeitosa quando têm algum conhecimento sobre os objetivos de longo prazo de uma determinada organização, mas mesmo assim atribuem maior valor às suas metas mensais de produção.

Em contraste com essa forma de resignação respeitosa, os indivíduos situados em posições subordinadas podem empregar variadas estratégias de rejeição. Podem rejeitar ou ridicularizar as formas simbólicas produzidas por indivíduos situados em posições superiores. Ao fazer isso, os indivíduos situados em posições subordinadas não necessariamente podem estar procurando elevar-se acima das posições de seus superiores (como aqueles que empregam a estratégia da desvalorização tipicamente tentam fazer). Dada sua posição dentro do campo, tentar elevar-se dessa forma pode não ser um objetivo realista. Mas, rejeitando as formas simbólicas produzidas por seus superiores, os indivíduos situados em posições subordinadas podem encontrar uma maneira de afirmar o valor de seus próprios produtos e atividades sem romper fundamentalmente com a distribuição desigual de recursos característicos do campo.

As estratégias de rejeição ocorrem geralmente quando os dirigentes impõem tarefas muito desgastantes aos seus subordinados em troca de uma remuneração abaixo dos padrões aceitos pelo mercado. Esse tipo de situação pode, inclusive, produzir reivindicações e contestações das ordens dos dirigentes por parte dos subordinados.

Em vista disso, essas estratégias de valorização simbólica representam categorias analíticas que serão utilizadas para verificar os valores atribuídos por colaboradores à missão e aos objetivos estratégicos de uma determinada organização. Por outro lado, essas proposições sobre o uso dessas estratégias no espaço organizacional constituem algumas pressuposições deste artigo. Os aspectos conceituais da missão e dos objetivos organizacionais serão discutidos a seguir.

4. Debate sobre missão e objetivos organizacionais

A missão de uma organização é a razão de ser da sua existência. Ela estabelece o que a empresa está oferecendo à sociedade. Uma declaração de missão bem concebida define o propósito fundamental e único que destaca uma empresa de outras e identifica o escopo das operações da empresa em termos de produtos e serviços oferecidos e em termos de mercados atendidos. A missão coloca em palavras não apenas o que a empresa é agora, mas o que ela quer se tornar, isto é, a visão estratégica da gerência quanto ao futuro. Para os colaboradores, a missão transmite um consenso de expectativas e, para as demais partes interessadas, demonstra a imagem pública que a empresa tem em seu ambiente (Hunger e Wheelen, 2002).

Uma missão pode ser definida de modo estreito ou de maneira ampla. Uma declaração de missão ampla é uma declaração vaga e geral do que a empresa está propensa a fazer. Uma declaração de missão definida dessa forma evita que a empresa se restrinja a um campo ou linha de produtos, mas falha em identificar claramente o que ela faz ou que produto ou mercado deseja enfatizar. Em contraste, uma declaração de missão estreita define claramente os principais produtos e mercados da organização, mas pode limitar o escopo das atividades da empresa em relação aos produtos ou aos serviços oferecidos, da tecnologia utilizada e do mercado atendido.

Uma declaração de missão imprópria, muito restrita ou ampla demais pode originar problemas de desempenho. Se a missão não oferecer uma linha de pensamento comum, um tema unificador, para os negócios de uma organização, os gestores podem não saber claramente para onde a empresa está caminhando. Às vezes, as divisões passam a concorrer umas com as outras em vez de enfrentar a concorrência externa, em detrimento dos interesses maiores da organização (Wright, Kroll e Parnell, 2007).

Por outro lado, os objetivos são os resultados pretendidos com uma atividade planejada. Eles definem o que deve ser conquistado e quando, além do que deve ser quantificado, se possível. A conquista dos objetivos organizacionais deve resultar no cumprimento da missão da empresa (Hunger e Wheelen, 2002).

Os objetivos de uma empresa também podem ser mal definidos quando focalizados apenas em metas operacionais de curto prazo, podendo ainda ser tão gerais que oferecem pouca orientação efetiva. É possível que exista um hiato entre os objetivos estabelecidos e os objetivos alcançados. Quando isso ocorre, as estratégias têm que ser modificadas para melhorar o desempenho ou os objetivos precisam ser reavaliados mais realisticamente. Inclusive, uma revisão constante dos objetivos é fundamental para se garantir a utilidade deles (Wright, Kroll e Parnell, 2007).

5. Metodologia

No sentido de elucidar os significados que estão subjacentes dos valores atribuídos pelos colaboradores aos propósitos de uma determinada organização, adota-se aqui uma abordagem metodológica de natureza qualitativa. Para Oliveira (2007), a abordagem qualitativa é adequada para descrever a complexidade de determinado problema, compreender e classificar processos dinâmicos vividos por grupos sociais e possibilitar, com profundidade, o entendimento das particularidades do comportamento dos indivíduos.

Além disso, o nível aqui pode ser considerado descritivo-explicativo, visto que, por um lado, trata-se de uma descrição da forma como se apresentam os fatos e fenômenos e, por outro, procura-se esclarecer de que modo esses fatos e fenômenos são produzidos (Cruz e Ribeiro, 2004).

Quanto à coleta dos dados, utiliza-se a técnica da entrevista semiestruturada, que está amparada por gravações de áudio integralmente transcritas pelos pesquisadores e pelo uso do diário de campo e da observação participante, visto que um dos autores do artigo também faz parte do caso sob estudo, ou seja, é colaborador da organização pesquisada.

De acordo com Oliveira (2007), a entrevista é um instrumento adequado para maximizar a interação entre pesquisador e entrevistado e obter descrições detalhadas sobre o que está sendo pesquisado; e a gravação é importante para se ter com precisão o registro de tudo o que foi dito na entrevista. A observação participante, por sua vez, é definida por Bulgacov e Vizeu (2006) como o processo de observação de uma comunidade ou grupo social, em que o pesquisador assume alguma atividade dentro do grupo investigado no intuito de compartilhar experiências com os sujeitos observados. As entrevistas foram realizadas com dois gerentes executivos, um coordenador de posto e um assessor de crédito do programa.

O tratamento dos dados transcritos pelos pesquisadores é realizado primeiramente por meio da análise do discurso, que constitui um requisito fundamental para a construção de mapas cognitivos. A análise do discurso é um método que visa não só apreender como uma mensagem é transmitida, mas também explorar o seu sentido; já os mapas cognitivos permitem revelar as estruturas cognitivas que guiam as ações de indivíduos ou de grupos. Tais mapas são representações construídas a partir das interações que os indivíduos estabelecem em domínios específicos do seu ambiente para lidar com os problemas e desafios que a realidade lhes apresenta (Vergara, 2006).

Considerando que as estratégias de valorização simbólica são empregadas em função da posição que os indivíduos ocupam dentro de um determinado campo de interação, os mapas cognitivos são utilizados para situar os colaboradores entrevistados, envolvidos no estudo de caso deste artigo, no espaço da estrutura organizacional e também para representar as estratégias utilizadas por eles para valorizar os propósitos organizacionais.

A análise dos dados por meio das técnicas de análise do discurso e mapas cognitivos, assim como os resultados da pesquisa, é apresentada no item a seguir.

6. O caso do programa Crediamigo

Tendo em vista o tema central deste artigo, optou-se por investigar o caso do programa Crediamigo que, conforme a descrição apresentada em seguida, possui uma estrutura organizacional bem definida, uma quantidade significativa de colaboradores, uma declaração formal da missão e dos objetivos e um volume expressivo de negócios.

O Crediamigo é um programa de microcrédito urbano do Banco do Nordeste do Brasil (BNB). Atualmente, é o maior programa de microcrédito produtivo e orientado em operação no Brasil. Em dezembro de 2007 possuía 299,9 mil clientes ativos e R$ 234,7 milhões de carteira ativa. Ao longo de sua trajetória, iniciada em 1998, o programa já desembolsou recursos da ordem de R$ 3,5 bilhões, através da realização de mais de 4 milhões de operações de valor entre R$ 100 e R$ 10 mil junto a 766,6 mil empreendedores.

O programa é gerido pelo ambiente de microfinanças do BNB, cuja estrutura é composta por 25 colaboradores, responsáveis pelas definições estratégicas acerca de produtos, políticas de crédito e mercados, pelo gerenciamento financeiro e pela coordenação geral das equipes operacionais.

A operacionalização é conduzida por meio de uma parceria com uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip), o Instituto Nordeste Cidadania. Em dezembro de 2007, o instituto contava com 1.517 colaboradores envolvidos nas atividades do Crediamigo em 170 unidades de negócio. Cada uma das unidades conta com equipes formadas por coordenadores, assessores administrativos e de crédito, responsáveis por atividades de promoção, por captação de clientes e pelo gerenciamento das carteiras de crédito. A quantidade de assessores e coordenadores varia em função do porte da unidade. A figura 1 apresenta a estrutura do programa.

Tanto o ambiente de microfinanças quanto as unidades de negócios são orientados por uma declaração formal de missão, que é contribuir para o desenvolvimento dos empresários do setor informal, mediante a oferta de serviços financeiros e de assessoria empresarial, de forma sustentável, oportuna e de fácil acesso, assegurando novas oportunidades de ocupação e renda. Os objetivos do Crediamigo também estão declarados formalmente: atingir a marca de 1 milhão de clientes até 2011, contribuir para que o maior número de pessoas possível consiga superar a linha de pobreza e fortalecer o setor informal por meio do crédito produtivo e orientado.

Por tudo isso, acredita-se que o Crediamigo é um espaço social que opera consistentemente com base em relações de forças manifestadas dentro da área de significação, constituindo, assim, um caso instigante para a análise de sistemas simbólicos organizacionais.

Conforme descrito na metodologia, a análise dos sistemas simbólicos do programa Crediamigo teve como base o diálogo entendido à luz de categorias e informações contextuais variadas, fazendo emergir a interpretação como elemento intrínseco ao processo de pesquisa. Dessa forma, iniciando com as categorias teórico-analíticas articuladas ao longo do item 2 a partir das contribuições de Thompson e Bourdieu, este processo levou, em um segundo momento, à descrição das categorias empírico-analíticas apresentadas na figura a seguir.


Um dos gestores da célula de gestão estratégica do Crediamigo, doravante respondente 1 (R1), é o primeiro entrevistado. A princípio, pode-se afirmar que ele ocupa uma posição dominante dentro do espaço de interação organizacional, já que a célula de gestão estratégica é responsável pelo processo de formulação estratégica do programa. De antemão, acredita-se que quem ocupa uma função dessa natureza possua, em relação aos demais colaboradores, acesso privilegiado a recursos financeiros, por meio da remuneração do cargo, e a recursos culturais, por meio da formação e da experiência, que dão os subsídios necessários para a tomada de decisões. Entretanto, constata-se, durante as entrevistas, que R1 utiliza a estratégia de valorização simbólica de "pretensão", que tipicamente é usada por aqueles que ocupam posições intermediárias dentro do campo de interação. Pode-se perceber isso quando ele afirma, primeiramente, que tem acesso a informações estratégicas da organização, mas não tem poder de decisão sobre a definição da missão e dos objetivos do Crediamigo. Além disso, a análise de seu discurso sugere que, se tivesse maior poder de decisão, mudaria em parte os rumos do programa, estendendo o microcrédito, que é ofertado a empreendedores para a população de baixa renda em geral. Destaca-se também que, embora esteja satisfeito com a sua função no Crediamigo, R1 gostaria de estar trabalhando nas atividades do BNB mais voltadas para a pesquisa, pois assim poderia se dedicar mais aos estudos em gestão. Por conseguinte, infere-se que R1 procura por uma posição dentro do campo que lhe permita utilizar de modo mais consistente, que o atual, os seus recursos culturais.

O segundo respondente da pesquisa (R2) é um dos gerentes que coordena o processo de implementação estratégica do Crediamigo. Ele possui recursos econômicos privilegiados por conta de sua posição organizacional e também é dotado positivamente de recursos culturais em função das atividades que realiza. Destaca-se que as suas tarefas na organização não estão direcionadas para o "planejar" ou o "refletir", e sim para o "fazer", o "realizar" e, por isso, os seus recursos culturais estão mais voltados para a sua experiência e suas habilidades em formar e motivar equipes do que propriamente para a sua formação acadêmica. Pode-se perceber isso a partir de suas próprias afirmações, que estão transcritas literalmente abaixo.

Eu penso que o que contribui muito pro meu trabalho, primeiro é saber trabalhar com as pessoas. Eu, desde jovem, adolescente, trabalhava com pessoas, eu era de grupo jovem, participei de grupo de jovens, eu era evangelizador de crianças, adolescentes. Então, trabalhava com eles, motivava. Então, isso é uma coisa que eu conquistei ao longo desses anos de dentro da Igreja mesmo. Depois o estudo me ajudou: a economia, a faculdade, o próprio banco; a minha grande escola é o banco. Na verdade, na economia, na faculdade, a gente ganha um certificado, mas o grande aprendizado é o próprio banco.

Portanto, pode-se afirmar que R2 ocupa uma posição dominante dentro do espaço organizacional. Aliás, ele é um sujeito fundamental do Crediamigo, pois consegue transformar as formulações estratégicas do programa em ações concretas, convencendo os colaboradores das unidades de negócios de que as metas estabelecidas são importantes e possíveis de ser alcançadas. O R2 exerce na organização uma função de liderança, utilizando uma estratégia de valorização simbólica de "condescendência", visto que leva em conta todo e qualquer tipo de descontentamento ou sugestão que os seus colaboradores apresentam em relação às suas próprias decisões, promovendo, assim, uma visão compartilhada quanto ao futuro da organização, obtendo, inclusive, a admiração e o respeito de superiores e colaboradores.

O terceiro entrevistado (R3) é um coordenador de posto, e o quarto (R4) é um assessor de crédito de uma das unidades de negócios de Fortaleza. O coordenador de posto coordena as atividades dos assessores de crédito, que vão à rua para atender os atuais clientes e também para conquistar novos consumidores de crédito. A partir das entrevistas realizadas com o R3 e o R4, pode-se inferir que eles ocupam - da mesma forma - uma posição subordinada no espaço organizacional, pois possuem poucos recursos econômicos em relação aos seus superiores e desenvolvem os seus recursos culturais basicamente a partir de suas práticas no âmbito do Crediamigo, das habilidades que adquirem e da experiência que obtêm a partir do dia a dia de seus trabalhos, conforme R4 afirma a seguir:

Você ter formação acadêmica, você ser formado e tal, alguma coisa assim, estágio é muito bom, mas o que realmente vai lhe ajudar; o que vai dar embasamento pra você ir pra rua trabalhar e fazer um trabalho benfeito é o próprio Crediamigo. A instituição lhe dá a formação mais sólida. Se você vier de fora, preparado para entrar no Crediamigo, chegando aqui, você tem que esquecer quase tudo que aprendeu e aprender tudo de novo, porque é uma metodologia totalmente diferenciada, tudo que a gente pega, que vem de fora, que acha que a gente sabe lá fora e traz pra cá, geralmente aqui é diferente, quase tudo é diferente.

A partir dessa afirmação, percebe-se que o entrevistado utiliza, assim como R3, uma estratégia de valorização simbólica de "praticidade", já que valoriza a prática em detrimento da teoria, isto é, valoriza o trabalho que realiza no cotidiano em detrimento de qualquer tipo de educação formal. Além disso, eles também utilizam uma estratégia de "resignação respeitosa", pois não participam do processo de determinação da missão e dos objetivos estratégicos do Crediamigo, mas confiam nas decisões de seus superiores. Entretanto, eles têm liberdade para questionar as metas operacionais do programa, sugerir mudanças relativas às práticas das unidades de negócios e fornecer informações sobre a satisfação dos clientes etc.

Por fim, categoriza-se as afirmações da gerente de negócios do Crediamigo (R5), cuja função é promover a interlocução entre as células de gestão estratégica e de microfinanças do programa, aproximando o "pensar" do "fazer", o planejamento da implementação e, especialmente, R1 de R2. Destaca-se que R5 é também autora deste artigo, facilitando, assim, a realização de uma observação participante, que está destacada no item metodologia. Tendo em vista que os processos de autoavaliação são sempre mais complexos que os processos de avaliação, R5 não categoriza as suas próprias afirmações, mas elas foram analisadas pelos demais autores do artigo. Pode-se então afirmar que R5 ocupa uma posição dominante dentro do espaço organizacional, uma vez que possui acesso privilegiado a recursos econômicos e culturais, e ainda utiliza uma estratégia de valorização simbólica de "condescendência", pois promove um estilo de gestão democrática inspirado no perfil de liderança de R2.

O quadro 2 apresenta os posicionamentos no espaço organizacional ocupados por cada um dos respondentes, assim como as estratégias de valorização simbólica que eles utilizam em relação aos propósitos do Crediamigo.


Nota-se que os gestores principais do Crediamigo não são entrevistados por conta de ausências que aconteceram durante a realização deste artigo. Entretanto, por meio da leitura dos dados do diário de campo e da observação participante e considerando o seu posicionamento no campo, infere-se como dominante, pois possuem cargos de grande importância dentro da estrutura organizacional do Crediamigo. Em relação à valorização dos propósitos organizacionais, também utilizam a estratégia de "condescendência", visto que permitem que os seus colaboradores participem do processo de decisão estratégica. De acordo com R5, eles "são como praticamente todos os colaboradores do Crediamigo, apaixonados pelo programa. A posição que ocupam, representando o maior programa de microcrédito produtivo em operação no país, os qualifica para participar de eventos e fóruns nacionais e internacionais".

A partir dessas categorizações, é possível construir um mapa cognitivo (figura 2) que facilita a compreensão desse caso abordado aqui, localizando os respondentes no espaço organizacional de acordo com o valor que atribuem, de modo intersubjetivo, aos propósitos organizacionais.


Esse mapa cognitivo é uma ferramenta que ajuda na visualização do objeto de estudo deste artigo. A partir dele é possível perceber não apenas as posições no campo e as estratégias de valorização de cada respondente, mas também as relações que se estabelecem entre eles e as consequências dessas relações para a organização. Logo, o Crediamigo é um espaço de significação caracterizado por visões compartilhadas quanto ao futuro da organização. Por conta disso, os conflitos que ocorrem entre os respondentes e entre os demais colaboradores são bastante sutis e eventuais. Isso acontece porque as lideranças do programa, especialmente os principais gestores, adotam estratégias de "condescendência", dando liberdade para os colaboradores mostrarem suas opiniões, criando um clima organizacional democrático e promovendo uma cultura voltada para a realização da missão e dos objetivos organizacionais.

Nota-se que as categorizações das posições dos respondentes no campo não são assinaladas apenas a partir dos cargos ocupados na estrutura organizacional. É possível perceber esses pequenos desacordos porque as categorizações levam em conta justamente as relações entre os respondentes e os demais colaboradores dentro de suas ações cotidianas e não procuram aplicar forçosamente a teoria sobre a prática. Aliás, as distâncias entre cada uma das categorias são dinâmicas e flexíveis de modo que R3 e R4 utilizam ao mesmo tempo duas estratégias de valorização simbólica diferentes. O próprio R2 demonstra utilizar, em determinadas situações, estratégias de "distinção" e até mesmo de "menosprezo", especialmente quando percebe que alguma unidade de negócios não consegue atingir determinadas metas por falta de comprometimento de seus colaboradores.

7. Considerações finais

Tendo em vista a realização da análise do programa Crediamigo, pode-se afirmar que é possível elucidar os significados subjacentes às estratégias utilizadas por colaboradores para atribuir valor aos propósitos de uma determinada organização a partir das contribuições de Bourdieu e Thompson sobre a cultura como um campo de relações de força manifestadas dentro da área da significação.

Embora a análise do programa Crediamigo não tenha revelado maiores conflitos entre os seus colaboradores, foi possível esclarecer, por meio deste artigo, algumas dimensões relacionadas aos sistemas simbólicos do programa, como, por exemplo, a existência de uma linha de pensamento comum quanto à realização dos negócios.

Em termos gerais, foi possível perceber que no caso do programa do Crediamigo prevalece, de fato, o compromisso com os propósitos organizacionais, o trabalho em equipe, a negociação das metas operacionais, a preocupação de oferecer ao cliente a orientação necessária para o uso do crédito e, consequentemente, resultados econômicos e sociais satisfatórios. Entretanto, destaca-se que, embora possua atualmente quase 300 mil clientes, o Crediamigo não realiza nenhum trabalho no sentido de integrar as ações empreendedoras desses clientes em redes, em arranjos produtivos locais (APLs) ou quaisquer atividades coletivas que possam maximizar o impacto do crédito sobre o desenvolvimento socioterritorial dos espaços geográficos em que atua. Esse destaque representa, por fim, uma proposição de redirecionamento estratégico proposta pelos autores deste artigo ao Crediamigo.

O método utilizado foi bastante eficiente para o cumprimento do seu objetivo central, isto é, para a compreensão da dinâmica dos sistemas simbólicos do programa Crediamigo.

Em termo de sugestão, recomenda-se a realização de outros estudos empíricos e também o desenvolvimento de práticas de gestão que utilizem as categorias teórico-analíticas propostas por Thompson, especialmente em organizações que estejam passando por processos de mudanças ou que sejam caracterizadas por conflitos internos. Essas categorias podem ainda ser aplicadas em serviços de consultoria relacionados à cultura e ao clima organizacional.

Por fim, sugere-se um estudo mais voltado para as práticas de valorização simbólica em detrimento das proposições teóricas. Um estudo desse tipo pode procurar estabelecer as categorias teórico-analíticas por meio dos próprios dados coletados em campo e a partir daí estabelecer proposições que constituam uma teoria (grounded theory). Esse tipo de metodologia é adequado para casos que não podem ser facilmente solucionados através dos conhecimentos acumulados pela literatura especializada.

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    Coordenadores do Programa de Estudos Avançados em Pequenos Negócios, Empreendedorismo, Acesso ao Crédito e Meios de Pagamento (Small Business), da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas (FGV). Endereço: Praia de Botafogo, 190, sala 541 - Botafogo - CEP 22250-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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