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Olhares aparentemente dispersos para a história da educação corporal: Sentidos e sensibilidades

Stares apparently scattered toward to the history of body education: Senses and sensibilities

Miradas aparentemente dispersas hacia la historia de la educación corporal: Sentidos y sensibilidades

Taborda de Oliveira, M.. Sentidos e sensibilidades: sua educação na história. Curitiba: Editora da UFPR, 2012

Sentidos e sensibilidades: sua educação na história é uma coletânea composta por nove capítulos que analisam a formação histórica da percepção humana que se dá "pela via dos nossos sentidos primevos" (p. 8). O livro tem textos redigidos por pesquisadores de Brasil, Argentina, Uruguai e Colômbia, que uniram esforços em torno da "indagação fundamental" sobre "como foram educados os sentidos e as sensibilidades em determinados tempos e lugares" (p. 13).

A introdução à obra é redigida por Marcus Taborda de Oliveira, organizador da coletânea e professor da Faculdade de Educação da UFMG. Nela tomamos contato com as balizas conceituais e a relevância do empreendimento intelectual levado a cabo na sucessão dos capítulos. Assumindo o corpo como objeto de estudo, sobretudo a partir dos referenciais da história, as análises problematizam os moventes, porosos e incertos limites entre o que é natural e o que é cultural no tocante a esse objeto das estruturas, das instituições, das ideias e das práticas formativas. Nesse ínterim, Taborda de Oliveira (2012) afirma que se trata de leituras oriundas de um "projeto multidisciplinar" cujo objetivo é "compreender o que permanece de arcaico na nossa humanização e aquilo que a mudança histórica permite vislumbrar como superação do estado de natureza" (p. 9). O organizador, assim, assume a existência dessa delimitação entre o dado e o construído a partir de uma crítica às "ênfases naturalistas ou cientificistas" (p. 9) que olvidam a historicidade daquilo que é chamado de "segunda natureza' do homem" (Taborda de Oliveira, 2012, p. 9).

Embora essa consideração permita a possibilidade de se enxergar a problemática em diferentes tempos, o recorte temporal privilegiado é o período que cobre as décadas finais do século XIX e as iniciais do século XX. Escolha, sabidamente, consagrada pela historiografia educacional que existe a partir do campo da Educação Física. Agora, porém, essa opção é abraçada com um renovado fôlego, trazido pela especificidade e a unidade temática em torno das "novas sensibilidades" (p. 10) que surgiram no período e que compõe os diferentes alvos das atenções dos autores de cada um dos capítulos.

No capítulo 1, Kazumi Munakata aborda o apelo educacional de "abandonar os livros e olhar as coisas para conhecê-las" (p. 21), pensa a "noção de 'coisa"' (p. 22) em manuais espanhóis dedicados ao método intuitivo na virada do século XIX para o XX. Nesse apelo, visto como característico de toda a modernidade, ele verifica que essa "ida às coisas" esteve marcada pelo imperativo da utilidade. Afinal, nos livros estudados, "o mundo que se dá aos sentidos é, portanto, um mundo que deve cancelar, paradoxalmente, os sabores, os cheiros e o9s sons..." (p. 25). Interessantemente, o autor conclui seu texto com uma pergunta cuja resposta é plena em implicações para pensarmos a sensibilidade humana na história: "... por que não pensar nas condições de subjetividade que só pode conceber a relação homem/coisa como relação de utilidade?" (p. 25)

O capítulo 2 é uma análise sobre as transformações dos sentidos humanos no processo de ampliação da vida urbana, a partir de crônicas redigidas por Machado de Assis e Alfredo Camarate. Olhar (p. 31), tocar (p. 42), ouvir (p. 43), comer (p. 48), cheirar (p. 51) são focalizados por Andrea Moreno e Verona Campos Segantini. Elas notam que no mundo urbano do fim do século XIX construiu-se um "novo estado sensorial" (p. 55), "inauguram-se novas sensibilidades" (p. 55), sustentadas em uma "tensão" (p. 54) entre a grande solicitação dos sentidos que se experimentava (experimenta-se) nas cidades, conjuntamente com "o risco do embotamento" (p. 54) que era (é) gerado na vida dos grandes centros.

Raumar R. Giménez é o autor do capítulo 3, voltado para a atuação de José Pedro Varela na educação uruguaia no fim do século XIX. A "reforma vareliana" (p. 61) é mostrada em sua "matriz positivista' (p. 61) e como um "programa civilizador" (p. 61). Nela, a educação dos sentidos é assumida como uma "afectación psicologista y escuelanuevista" (p. 66), é inferido que na passagem para o século XX a sociedade uruguaia construiu uma "nueva sensibilidad" (p. 69) fortemente mediada pelas transformações no mundo escolar.

As lutas entre uma "estética civilizada" e uma "estética bárbara" (p. 74) na educação argentina é o alvo de Pablo Pineau. Ele é o responsável pelo capítulo 4 e o redigiu a partir do olhar de analistas estrangeiros que estiveram na Argentina e que publicaram seus relatos em 1865 (Amadeo Jacques) e 1931 (Jennie E. Howard). As décadas que separam os relatos são importantes para evidenciar que "La sensibilidad bárbara presente en Rio de La Plata en el siglo XIX habla sido derrotada por la sensibilidad civilizada" (p. 82). Pedagogicamente, a mudança materializou-se no novo uso do tempo escolar, na modernidade da arquitetura das escolas e na condenação aos castigos corporais, mudanças avaliadas como proporcionadoras de "saberes útiles" (p. 83), "indispensables para el progreso de la educación del pais" (p. 75).

Lançando mão de fontes primárias oriundas do Brasil e da Espanha, Taborda de Oliveira assina o capítulo 5 e investiga a educação dos sentidos nos marcos de um "retorno à natureza". Mostra-se que os debates educacionais tiveram uma de suas sustentações na reflexão sobre as relações homem/natureza. A busca da "condição natural do homem" (p. 94), como "mistério a ser contemplado" (p. 102), encetou uma nova educação dos sentidos, vistos como meios privilegiados para explorar "a coisa, a natureza, a realidade" (p. 94). Apoiado em Fernando de Azevedo, o autor pondera que a natureza tem "seu duplo" (p. 99): ela é redenção, harmonia; mas também é miséria (p. 99), barbárie, "brutalidade indomada" (p. 100), o que demandou "novos marcos prescritivos para a educação" (p. 93).

Focalizando a realidade colombiana também na virada do século XIX para o XX, Claudia X. H. Beltrán estuda representações circulantes na história educacional daquele país sobre inquietações relativas aos hábitos alimentares da população. Nas análises do sexto capítulo, evidenciam-se "forças discursivas" (p. 110) que procuraram tornar o corpo "um receptáculo adecuado para una alma buena" (p. 110), a partir da passagem da consideração do ato de comer como um pecado a um ato conveniente à saúde e ao desenvolvimento de forças biológicas e morais. Os esforços envidados por políticos e educadores colombianos no período em tela visavam a "favorecer la regeneración del pueblo colombiano" (p. 120), visto como "atrasado y em vias de extinción" (p. 120). Para tanto, proibições de alimentos, congressos educacionais e médicos, recomendações higiênicas de toda ordem, entre outras estratégias, foram usadas para "regular la estimulación de los sentidos" (p. 122).

No capítulo 7 Victor A. de Melo constata que a expansão do automóvel no Brasil das primeiras décadas do século XX gerou "dimensões simbólicas" ligadas ao "desejo de ser moderno" (p. 129). Por isso, ele estuda a chegada do "novo artefato tecnológico" (p. 128) no Brasil, o desenvolvimento do automobilismo e a forma como o aumento no fluxo de veículos alterou o ritmo das ruas, nas quais, antes, os "transeuntes passavam sem grande preocupação, a passos lentos" (p. 134). Afinal, a "ideia de modernidade desembacara no país, a toda velocidade" (p. 145), naquilo que se tornou "novo rei, causando susto com seu barulho e seu poder" (p. 134).

No capítulo seguinte, Alexandre F. Vaz e Caroline M. Momm também voltam seus olhares para a cidade, vista como "expressão da experiência" (p. 149), a partir dos escritos de Walter Benjamin. Se na vida urbana Benjamin vê uma "pedagogia dos gestos" (p. 151) em que os "sentidos do corpo são educados" (p. 150), as reflexões do filósofo possibilitam a proposição de uma "pauta para o estudo da educação dos sentidos na cidade" (p. 160) baseada em três pontos: 1) a cidade como "lugar da sexualidade" e da educação sensorial como biopolítica; 2) a rememoração em que se sustenta a sensibilidade infantil e seu alheamento ao "trem do progresso" (p. 161) que dá vida aos grandes centros; 3) e a escolarização, fenômeno originariamente urbano, como espaço, também, de resistência dos "sentidos, frente às tentativas de anulação do desejo" (p. 161).

Fechando a obra, Belén Mercado se debruça sobre a história da educação artística na Argentina, em que "La constructión del buen gusto" (p. 170) foi uma problemática de grande valor. Afinal, a educação estética compôs a "función escolar de distribución de lós princípios de la modernidade" (p. 174), o que impactou a "creación de la nacionalidad como imaginário" de uma novo cidadão: "culto y civilizado" (p. 174).

A valia da coletânea, para além da riqueza de cada capítulo que a forma, ganha ainda mais evidência na estruturação do material feita na introdução redigida por Taborda de Oliveira. O organizador manifesta alguma inquietação quanto à possibilidade de as análises serem apenas "um agregado de textos desconexos entre si" (p. 13). Ainda inquieto, ele argumenta que a "aparente dispersão" estrutura-se "pela indagação fundamental de como foram educados os sentidos e as sensibilidades em determinados tempos e lugares" (p. 13). Essas inquietações e advertências são justas e necessárias, principalmente considerando os problemas (mas, também, o potencial) gerados por uma tradição de divulgação acadêmica que encontra na coletânea um de seus principais veículos.

A relevância da preocupação teve suas consequências. É importante explicar que nesta resenha a opção de se apresentar cada um dos nove capítulos deu-se, justamente, para sublinhar a presença de duas qualidades no livro como um todo: 1) a riqueza documental e temática existente que poderá encetar ricas possibilidades de se pensar o corpo e sua educação história a partir de variados pontos de vista; e 2) a organicidade das discussões, voltadas para um único objetivo: mostrar que "a sensibilidade e a sua educação podem ser percorridas pelo historiador" (p. 9).

Por fim, também na introdução, abre-se mão de pensar o dimensionamento entre "história das sensibilidades" e "história das mentalidades", um desafio já proposto por Alain Corbin (p. 8) e apenas mencionado por Taborda de Oliveira. Opção justificável por ser a multiplicidade de fontes, tempos e espaços um dos distintivos da obra. Todavia, a já mencionada unidade das reflexões deverá levar a uma reflexão mais detida sobre a questão no futuro. Os termos dessa necessidade analítica poderão ser definidos não apenas pelos desdobramentos da obra em tela, mas pelo diálogo que ela poderá estabelecer com outras coletâneas dedicadas a temas relacionados e que, de igual modo, foram publicadas recentemente e reuniram pesquisadores de vários países (Tesche, 2011Tesche L. (Org.) Turnen: transformações de uma cultura corporal europeia na América. Ijuí-RS: Editora Unijuí, 2011.; Scharagrosdsky, 2011Scharagrodsky P. (Org.) La inventión del "homo gymnasticus": fragmentos históricos sobre la educación de los cuerpos en movimiento en Occidente. Buenos Aires: Prometeo Livros, 2011.). Reside nesse possível diálogo um campo teórico de aprofundamento para as reflexões sobre a história da educação corporal, a ser estimulado por reflexões tão coesas na sua rica e desejada "dispersão". Com efeito, essa potencialidade é mais um endosso da importância de Sentidos e sensibilidades: sua educação na história.

Referências

  • Scharagrodsky P. (Org.) La inventión del "homo gymnasticus": fragmentos históricos sobre la educación de los cuerpos en movimiento en Occidente. Buenos Aires: Prometeo Livros, 2011.
  • Tesche L. (Org.) Turnen: transformações de uma cultura corporal europeia na América. Ijuí-RS: Editora Unijuí, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016
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