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Em busca da deliberação: mecanismos de inserção das vozes subalternas no espaço público

Seeking deliberation: including subaltern voices in public space

Resumos

O artigo - embasado em pesquisa teórica - propõe uma agenda de pesquisas orientada à comparação entre as práticas ativistas e as ações ocorrentes em fóruns estatais abertos à participação cidadã nos processos públicos decisórios. Enfatiza-se a relevância de se medirem tais condutas sob o critério do respectivo potencial quanto à suscitação de debates em esferas públicas temáticas e quanto à promoção de interlocuções condizentes com o ideal normativo da democracia deliberativa. Pretende-se, especificamente: i) sumarizar o debate quanto à relação entre ativismo e participação, na esteira da teoria de Iris Young e; ii) apresentar um conjunto exemplificativo de problemas de pesquisa e de alternativas metodológicas (como o uso do DQI, comparações de visibilidade midiática, etc.) para uma agenda de pesquisas que integre a dimensão do ativismo aos estudos empíricos sobre deliberação no Brasil.

democracia deliberativa; ativismo; esfera pública; inclusão política


The article - based upon a theoretical research - proposes a research agenda aimed at comparing activist practices to the actions that take place in state-based forums where citizens are allowed to take part in public decisions. It emphasizes the relevance of measuring such practices under the criteria of its potential to establish new debates in thematic public spheres, and also to promote interlocutions that reach compatibility with deliberative democracy´s normative ideal. The article specific goal is: i) summarize the debate about the relationship between activism and deliberative democracy, following Iris Young´s theory, and; ii) present an exemplificative set of researching problems and methodological alternatives (such as the use of DQI, comparisons of media visibility, etc.) that could engender a researching agenda able to integrate the activism´s dimension to the empirical studies about deliberation in Brazil.

deliberative democracy; activism; public sphere; political inclusion


Em busca da deliberação: mecanismos de inserção das vozes subalternas no espaço público

Francisco Mata Machado Tavares

É professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (Goiânia, GO). E-mail: francktavares@hotmail.com

RESUMO

O artigo – embasado em pesquisa teórica – propõe uma agenda de pesquisas orientada à comparação entre as práticas ativistas e as ações ocorrentes em fóruns estatais abertos à participação cidadã nos processos públicos decisórios. Enfatiza-se a relevância de se medirem tais condutas sob o critério do respectivo potencial quanto à suscitação de debates em esferas públicas temáticas e quanto à promoção de interlocuções condizentes com o ideal normativo da democracia deliberativa. Pretende-se, especificamente: i) sumarizar o debate quanto à relação entre ativismo e participação, na esteira da teoria de Iris Young e; ii) apresentar um conjunto exemplificativo de problemas de pesquisa e de alternativas metodológicas (como o uso do DQI, comparações de visibilidade midiática, etc.) para uma agenda de pesquisas que integre a dimensão do ativismo aos estudos empíricos sobre deliberação no Brasil.

Palavras-chave: democracia deliberativa; ativismo; esfera pública; inclusão política

ABSTRACT

The article – based upon a theoretical research – proposes a research agenda aimed at comparing activist practices to the actions that take place in state-based forums where citizens are allowed to take part in public decisions. It emphasizes the relevance of measuring such practices under the criteria of its potential to establish new debates in thematic public spheres, and also to promote interlocutions that reach compatibility with deliberative democracy´s normative ideal. The article specific goal is: i) summarize the debate about the relationship between activism and deliberative democracy, following Iris Young´s theory, and; ii) present an exemplificative set of researching problems and methodological alternatives (such as the use of DQI, comparisons of media visibility, etc.) that could engender a researching agenda able to integrate the activism´s dimension to the empirical studies about deliberation in Brazil.

Keywords: deliberative democracy; activism; public sphere; political inclusion

Os estudos albergados sob o marco teórico da democracia deliberativa têm crescido, se institucionalizado e adquirido ímpar relevância na ciência política brasileira desde a redemocratização do país1 1 Agradeço aos pareceristas anônimos da RBCP pelas contribuições oferecidas. Agradeço, ainda, aos professores com quem discuti o assunto deste artigo, em especial Cláudia Feres Faria, Luis Felipe Miguel, Pedro Mundim e Debora Rezende de Almeida. Naturalmente, a responsabilidade pelo conteúdo do texto é exclusivamente do autor. . Em especial, nota-se uma profusão de trabalhos concentrados nos fóruns participativos estatais abertos à sociedade civil. Não se percebe, todavia, a mesma prodigalidade quanto às pesquisas – efetivadas sob o referencial do modelo democrático pensado de modo pioneiro por autores como Habermas e Cohen nos anos 1980 – dedicadas às práticas de ativismo e, em especial, à comparação entre os resultados dessas e a participação social, sob os critérios da emergência de temas na esfera pública e da conquista de direitos pleiteados por grupos sociais subalternos. O presente artigo se insere nesse contexto e pretende apresentar uma contribuição ao campo da democracia deliberativa brasileira, concernente à justificação teórica, decorrente de uma breve revisão bibliográfica, para a inclusão das lutas sociais antirregime ou adeptas de ações diretas nas preocupações acadêmicas do deliberacionismo democrático no Brasil.

A emergência de espaços públicos decisórios abertos aos cidadãos que não exercem necessariamente funções na administração pública – tais como conselhos, orçamentos participativos e conferências – é uma dentre as mais perceptíveis novidades do processo transicional experimentado pelo Brasil entre a ditadura militar e a Nova República. Esse cenário despertou a atenção da teoria política de matriz democrático-radical no país2 2 Para uma retomada desse debate desde a sua gênese, a obra coletiva – que já completa um decênio – Sociedade civil e espaços públicos no Brasil é um recomendável ponto de partida (cf. Dagnino, 2002). Para uma apresentação do caminho seguido por esses estudos desde o seu início até a atualidade, confira-se Avritzer, (2010b). , que se comportou tanto como estudiosa e observadora crítica dos novos mecanismos de inclusão política quanto, eventualmente, como parte constitutiva de sua concepção ou gestão3 3 São particularmente comuns os programas de formação ou qualificação de conselheiros e agentes afins mantidos por pesquisadores e estudiosos da questão. Apenas como exemplo, confira-se o seguinte: http://www.ufmg.br/conselheirossaude/index.php?option=com_content&view=article&id=3&Itemid=3. . Como acima se antecipou, estudos identificados com um tronco específico da democracia radical4 4 Assume-se, neste trabalho, uma classificação inspirada no trabalho de Axel Honneth quanto à democracia radical no pensamento político contemporâneo, identificando-se a tricotomia republicanismo, deliberacionismo e cooperacionismo reflexivo (cf. Honneth, 2001). , a corrente deliberacionista, foram e, de certo modo, ainda são especialmente frequentes no que tange à investigação empírica e à elaboração teórica concentrada no que Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer (2003, p. 24) sintetizaram como "práticas democráticas animadas pela possibilidade da democracia de alta intensidade".

A associação entre democracia deliberativa e participação da sociedade civil nos espaços públicos de debate ou decisão no Brasil engendrou descobertas e novas formulações atinentes tanto ao âmbito estritamente teórico quanto à produção e interpretação de dados empíricos cuja obtenção, aliás, demandou a criativa mobilização de um sofisticado arsenal metodológico.

Quanto à teoria política, contribuições genuínas sobre o debate contemporâneo da democracia deliberativa encontraram lugar em estudos nitidamente inspirados pela experiência participativa no Brasil. Um exemplo, dentre inúmeros que poderiam ser mencionados, é a categoria "públicos participativos", elaborada por Wampler e Avritzer (2004) no contexto de estudos sobre os novos arranjos participativos brasileiros. O objetivo dos autores foi aproximar o conceito de deliberação pública da atuação cidadã dentro do sistema estatal (para além de mera relação de influência), sem que, necessariamente, suceda-se uma colonização da informalidade do mundo da vida pelos imperativos da burocracia. Um segundo exemplo de contribuição que a ciência política brasileira acrescentou ao debate da teoria democrática contemporânea, a partir de pesquisas centradas nas novas formas de participação social no pós-1988, é a categoria "confluência perversa", por meio da qual Evelina Dagnino (2004) amarra crítica e dialeticamente as ambivalências do aprofundamento democrático concomitante ao processo que levou à hegemonia neoliberal na América Latina da atualidade.

No que se refere à produção e interpretação de dados empíricos com vistas ao entendimento científico dos novos espaços decisórios sob o referencial deliberacionista, destacam-se trabalhos que se propuseram a "uma análise sobre os elementos deliberativos contidos nestas instituições através da qual a participação é associada a mecanismos de deliberação pública no interior dos conselhos de políticas públicas e dos orçamentos participativos" (Avritzer, 2010b, p. 8). Além desses elementos, são dignos de nota, dentre inúmeros outros, estudos que oscilam, em um amplo e rico espectro temático, desde os efeitos distributivos de arranjos como o orçamento participativo (Marquetti e Pires, 2008), até a existência ou não de relações entre a participação nesses espaços e a possibilidade de seus integrantes obterem maior compreensão sobre questões políticas de um modo geral (Rennó, 2006)5 5 Nem todos esses autores se identificam com o campo deliberacionista, o qual, como qualquer referencial teórico, não pode ser compreendido como um clube fechado, composto de uma lista estática de adeptos. O fato é que o diálogo estabelecido nesses trabalhos é, sempre, um diálogo com a literatura associada à democracia deliberativa e com o conceito de deliberação. .

Enfim, quanto às técnicas de pesquisa mobilizadas com o ânimo de se medirem os padrões de deliberação pública nos espaços participativos brasileiros, é de se notar a maneira como os estudos deliberacionistas, cuja gênese estaria na teoria crítica, se apropriaram de procedimentos metodológicos usualmente associados a referenciais rivais. Agregaram, assim, saber ao campo, sem procederem a revisões no seio do ideal normativo da democracia deliberativa ou do olhar contra-hegemônico sobre os objetos investigados. Desde a utilização de indicadores que transpõem para a linguagem numérica o projeto democrático habermasiano (Sampaio et al., 2010) até a elaboração de índices próprios (Avritzer, 2010a), os espaços estatais abertos à participação social no Brasil contemporâneo se revelaram um privilegiado espaço de encontro entre empiria e teoria na ciência política brasileira.

Há, todavia, como se afirmou acima, uma questão que ainda merece maior atenção da ciência política brasileira de inspiração deliberacionista dedicada aos novos espaços participativos na democracia do pós-1988. Trata-se da realização de estudos comparativos capazes de medir o impacto, junto à esfera pública6 6 Uma formulação sintética do conceito de esfera pública geral na obra habermasiana pode assim se expressar: "A esfera pública é uma 'estrutura intermediária' que faz a mediação entre o Estado e o sistema político e os setores privados do mundo da vida. Uma 'estrutura comunicativa', um centro potencial de comunicação pública, que revela um raciocínio de natureza pública, de formação da opinião e da vontade política, enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. A esfera pública tem a ver com o 'espaço social' do qual pode emergir uma formação discursiva da opinião e da vontade política. No seu bojo colidem os conflitos em torno do controle dos fluxos comunicativos que percorrem o limiar entre o mundo da vida e a sociedade civil e o sistema político e administrativo. A esfera pública constitui uma 'caixa de ressonância', dotada de um sistema de sensores sensíveis ao âmbito de toda sociedade, e tem a função de filtrar e sintetizar temas, argumentos e contribuições, e transportá-los para o nível dos processos institucionalizados de resolução e decisão, de introduzir no sistema político os conflitos existentes na sociedade civil, a fim de exercer influência e direcionar os processos de regulação e circulação do poder do sistema político através de uma abertura estrutural, sensível e porosa, ancorada no mundo da vida" (Lubenow, 2010). , dos fóruns estatais abertos à sociedade civil vis a vis práticas ativistas, em especial ações diretas de inspiração antirregime. Este texto não tem a ambição de iniciar o trabalho de preenchimento dessa relativa lacuna. A ideia é apenas somar-se ao esforço teórico, já observado em estudos recentes no Brasil (com destaque para Faria, 2010), de atenção para a discussão do ativismo no campo deliberacionista. Ao final, sugere-se um exemplificativo rol de problemas que poderiam orientar a constituição de uma agenda de investigações concebida de forma a ampliar a compreensão dos orçamentos participativos, conselhos e congêneres não apenas a partir do seu significado intrínseco mas em relação e em contraposição à prática societal do ativismo, em especial aquele que se propõe estrategicamente como antirregime e taticamente como adepto de ações diretas. Assim, a pergunta que aqui se pretende responder assim se condensa: há plausibilidade e fundamentação teóricas para que os estudos brasileiros de referencial deliberacionista sobre participação civil nos espaços públicos lidem com o tema do ativismo e das ações diretas?

O artigo se ancora sobre uma breve apreciação crítica da literatura dedicada ao ideal normativo da democracia deliberativa e à relação entre deliberação e ativismo. A partir de uma sucinta leitura – sob inspiração reconstrutiva7 7 É certo que, neste limitado texto, não se pretende reconstruir a teoria da democracia deliberativa. O resgate do seu ideal normativo, contudo, para posterior contraste com as práticas ativistas e, enfim, para descortinar uma gama de problemas científicos ainda não explorados, tem clara inspiração no método de investigação teórica reconstrutivo, na forma assim condensada por Habermas: "Reconstrução significa, em nosso contexto, que uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se fixou: esse é o modo normal (...) de se comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar" (Habermas, 1983, p. 11). – da bibliografia deliberacionista concentrada sobre esses dois temas, poderão emergir fundamentos teóricos que justifiquem a extensão dos estudos deliberacionistas brasileiros sobre a participação social para o campo do ativismo, na forma embrionariamente sugerida a partir dos problemas estipulados na seção final.

Na esteira da linha argumentativa acima proposta, o esclarecimento da pergunta que anima este artigo trilha o seguinte itinerário: i) na primeira seção, expõe-se o ideal normativo inscrito no modelo deliberativo de democracia e, em seguida, apresenta-se sua relação com práticas não orientadas à obtenção de consensos, cumprindo-se o objetivo específico de indicar a plausibilidade do tema proposto, uma vez que a comparação entre os efeitos do ativismo antirregime e dos espaços públicos abertos à participação social, sob o referencial da democracia deliberativa, tem como precondição a compatibilidade, ao menos em tese, de ambas as práticas com os requisitos normativos dessa linha teórica; ii) na segunda seção, faz-se uma digressão, acompanhada de diálogo com a bibliografia referente ao tema, sobre a relação entre ativismo e deliberação pública, alcançando-se, assim, o escopo de justificar como esta é favorecida por ações diretas e protestos, o que respalda a relevância teórica da (iii) agenda de pesquisas que se propõe na terceira e conclusiva seção.

A hipótese que se pretende discutir é a de que, se (i´) a democracia deliberativa não pressupõe apenas ações desinteressadas e orientadas ao consenso e, (ii´) se as condutas de ativistas podem trazer à esfera pública fluxos comunicacionais que não emergiriam de outro modo, além de contribuírem para a conquista de direitos pretendidos por grupos subalternos que, não fossem ações diretas e protestos, estariam excluídos do jogo democrático, então (iii´) há um conjunto de problemas relacionados ao ativismo que deve complementar os estudos deliberacionistas sobre participação social. Todavia, no estado da arte de nossa ciência política, esses trabalhos encontram-se insuficientemente desenvolvidos, ou mesmo omitidos.

Para além do agir comunicativo: uma preliminar sobre a compatibilidade entre o tipo de ação do ativista e o ideal normativo da democracia deliberativa

Em geral, quando se pensa em democracia deliberativa, noções como consenso, situação ideal de fala, intercâmbio comunicativo alheio ao autointeresse, inadequação do agir teleológico e negação da definição weberiana de poder tendem a conformar, ainda que tacitamente, o enquadramento que se confere à ideia. Consideradas todas as reduções necessárias quando se trata de interpretar a realidade a partir de abstrações normativas, é razoável e até intuitivo associarem-se esses elementos a assembleias em que cidadãos argumentam sobre prioridades orçamentárias, a reuniões de conselhos públicos ou a conferências nacionais temáticas. O mesmo não ocorre, no entanto, quando se imaginam cenas de greves, bloqueios de estradas com pneus em chamas, ocupações de prédios públicos e de imóveis descumpridores da função social, protestos de rua ou boicotes. Estas práticas são, em geral, entendidas como manifestações do autointeresse pretendido por grupos ou indivíduos que, ainda ou porque marginalizados, não se dispõem a deliberar, ao menos no sentido procedimental desse verbo8 8 Como afirma Manin: "Seguindo um uso que remete a Aristóteles, para a tradição filosófica deliberação significa o processo de formação da vontade, o momento particular que precede a escolha, e no qual o indivíduo pondera diferentes soluções antes de se filiar a uma delas. Rousseau usa o termo deliberação num sentido diferente, que é aceito no uso da linguagem comum, significando 'decisão'. Podemos ver a diferença que separa as duas definições: no vocabulário da filosofia, deliberação descreve o processo que precede a decisão; nos escritos de Rousseau, ela significa a própria decisão" (2007, p. 23-24). O sentido adotado pela democracia deliberativa é aquele que Manin classifica como aristotélico. .

A plausibilidade teórica da agenda de pesquisas aqui proposta demanda, portanto, um prévio esclarecimento quanto ao papel do chamado agir racional-com-respeito-a-fins na democracia deliberativa, bem como um enquadramento adequado do significado de noções como consenso e interlocução desinteressada neste marco. Em resumo, só faz sentido uma comparação entre espaços públicos participativos e ativismo antirregime, sob o marco teórico da democracia deliberativa, se houver, ao menos potencialmente, compatibilidade entre o tipo de ação exercido pelo ativista e o ideal normativo deliberacionista. Examinar essa questão é o propósito da presente seção.

Na clássica formulação de Joshua Cohen, posteriormente revista criticamente por Habermas, a deliberação ideal é integrada pelo atendimento às quatro condições abaixo esclarecidas:

i1) A deliberação ideal deve ser livre, de modo que os participantes do processo decisório sejam limitados apenas pelos resultados e pelas precondições da deliberação e nenhuma outra espécie de norma ou de autoridade os vincule. Ademais, a ideia de liberdade em questão exige que os resultados das decisões públicas decorram apenas da deliberação, do que se conclui que esta, além de um padrão de justificação, é uma fonte de legitimidade. Do mesmo modo, a circunstância de ser produzida em um processo deliberativo é entendida como lastro suficiente para que os cidadãos cumpram determinada norma (Cohen, 1989);

i2) A deliberação ideal deve se fundamentar em razões. Como os cidadãos se consideram iguais, mas ostentam perspectivas ou interesses distintos e não raramente rivais quanto às matérias sobre as quais deliberam, conclui-se que apenas as razões, antes da força, da barganha ou de instrumentos congêneres, devem prevalecer em um processo deliberativo idealmente concebido (Cohen, 1989);

i3) Na deliberação ideal as partes devem ser formal e substantivamente iguais entre si. A distribuição dos poderes e dos recursos decisórios deve assegurar que ninguém se encontre em situação de subjugação no processo deliberativo ideal (Cohen, 1989);

i4) Finalmente, a deliberação ideal se orienta para a obtenção de um consenso entre os participantes, ainda que, mesmo idealmente, este se defina estritamente como horizonte regulativo, de maneira que, uma vez não alcançado, até mesmo o mais puro e abstrato procedimento deliberativo ideal pode se resolver em uma votação, caso tenha perseguido – sinceramente, mas sem êxito – o consenso (Cohen, 1989).

Os elementos da deliberação ideal na versão habermasiana se expressam de outro modo e condensam-se nos princípios do discurso e da universalização. Habermas formula o princípio d (princípio do discurso) como aquele que entrega validade às normas de ação "que poderiam encontrar o assentimento de todos os potencialmente atingidos, na medida em que estes participam de discursos racionais" (Habermas, 2003, p. 164). Já o princípio u (princípio de universalização, ou de generalização) "obriga os participantes do discurso a examinar normas controversas, servindo-se de casos particulares previsivelmente típicos, para refletir se elas poderiam encontrar o assentimento refletido de todos os atingidos" (Habermas, 2003, p. 203).

Das duas formulações ideais quanto à deliberação pública ressai um problema comum, inobstante as nuances ocorrentes entre as visões de Habermas e de Cohen. A questão pode ser assim proposta: a ação política válida segundo a teoria da democracia deliberativa é, estritamente, a que se orienta para a obtenção do consenso, em um intercâmbio mediado pela linguagem que se estabelece por uma comunidade composta por jurisconsortes a priori livres, racionais e iguais? Caso a resposta a essa indagação se revele positiva, o estudo das práticas pautadas pelo método das ações diretas, como meios de promoção da deliberação pública, será bem mais difícil. É essa a discussão que se conduz abaixo.

Como uma interpretação possível do ideal normativo acima apresentado, algumas reconstruções históricas da democracia deliberativa trazem até os dias atuais uma associação entre desinteresse e consenso com a democracia deliberativa. Confira-se, a esse propósito, o seguinte excerto:

Os democratas deliberativos de primeira geração, como Jürgen Habermas e John Rawls, debateram as justificações normativas da democracia deliberativa, as interpretações e os componentes necessários da teoria, mas falharam ao não levar em conta a absoluta complexidade das sociedades contemporâneas. Os democratas deliberativos de primeira geração entendiam a troca de razões como a única forma aplicável de comunicação, a qual iria resultar em mudança de preferência uniforme, finalizando em consenso (Elstub, 2010).

Conforme o trecho acima transcrito sugere, em setembro de 2010, após mais de dois decênios de amplo e fecundo debate sobre a democracia deliberativa, ainda ressoava a linha interpretativa para a qual o deliberacionismo de Habermas e dos pioneiros desse campo teórico (admitindo-se que Rawls assim se classifica, o que seria, por si só, objeto de controvérsia) ater-se-ia a processos decisórios puramente comunicativos e orientados ao consenso. Tal maneira de se conceber a democracia deliberativa faz sentido e repousa em razões teóricas plausíveis. Não se trata, todavia, do modo mais ajustado à integralidade e à sistematicidade da obra dos pioneiros desse modelo normativo, como Jürgen Habermas e Joshua Cohen.

Primeiramente, quanto a Habermas, no que se refere ao poder e à política, não parece exata a atribuição ao autor do entendimento de que não deveria haver ação estranha ao intercâmbio de razões orientado ao consenso. O pensamento do filósofo frankfurtiano é, por vezes, diametral e inequivocamente oposto a essa linha interpretativa:

... [n]ão podemos excluir do conceito do político o elemento da ação estratégica. Definiremos a violência exercida por meio da ação estratégica como a capacidade de impedir outros indivíduos ou grupos de defender os seus próprios interesses.

Nesse sentido, a violência sempre foi parte integrante dos meios para a aquisição e preservação do poder. Essa luta pelo poder político foi mesmo institucionalizada no Estado moderno, tornando-se, portanto, um elemento normal do sistema político (Habermas, 1980, p. 112).

O leitor que tomar a transcrição do artigo publicado por Elstub ou o excerto da obra de Habermas, acima, de modo isolado, tenderá a imaginar que os pioneiros da democracia deliberativa foram contraditórios em seus escritos, ou radicalmente mal interpretados ao se referirem ao objetivo de consenso nos processos deliberativos. Abaixo se justifica a opção aqui assumida de que, ao menos neste aspecto, não há que imputar contradições ou antinomias nos estudos iniciais de democracia deliberativa publicados por Habermas.

É possível objetar à ideia de composição entre funcionalismo e pragmática universal, enredados em um conceito marxiano de emancipação – tal como ocorrente na obra de Habermas – como um empreendimento de sincretismo filosófico que não se amarra em uma síntese coerente. O que, entretanto, não se pode ignorar, é que Habermas considera a complexidade social de maneira central em seus estudos e, quase obstinadamente, tenta conciliar a lógica dos sistemas no seio dos quais prevalece a ação teleológica com um campo não sistêmico da vida humana (relativo à sociedade sob a perspectiva dos respectivos participantes) em que tem lugar o agir comunicativo.

Assim, uma premissa necessária ao prosseguimento desta argumentação teórica é a de que a teoria habermasiana não nega, em definitivo, a ocorrência de ações humanas consubstanciadas na escolha racional orientada por finalidades predeterminadas. O que Habermas sustenta, de fato, é que a racionalidade teleológica não esgota o espectro da razão, como acreditavam seus predecessores em Frankfurt, de tal arte que a prática comunicativa desinteressada pode oferecer uma saída emancipatória para o potencial reificante inscrito na totalização da experiência humana sob a lógica de sistemas conduzidos por meios, como é o caso do Estado.

Com efeito, no que se refere à política, Habermas não afasta, no cotidiano da prática estatal, a ocorrência da ação estratégica como meio de reprodução do poder e de processamento da potencialmente infinita complexidade que as demandas e os problemas políticos podem suscitar em sociedade compostas por diversas variantes étnicas, culturais, de gênero, de religião e de critérios éticos quanto à definição da boa vida9 9 Se a prática política preconizada pelo autor concebesse apenas o agir comunicativo e as ações orientadas ao consenso, tratar-se-ia de um caso de pensador irremediavelmente contraditório, uma vez que, como se sabe, esse é o mesmo filósofo que escreveu o artigo "Bestiality and humanity", em que se defende o ataque perpetrado pelas potências ocidentais, sem aval da ONU, contra alvos civis e militares em Kosovo (cf. Habermas, 1999). É certo que a posição ali sustentada pelo autor pode ser refutada sob a perspectiva de uma leitura interna da respectiva obra. Mas é igualmente certo que, para defender ataques militares sem respaldo jurídico-normativo, Habermas jamais seria um teórico político ingenuamente contrário a qualquer espécie de agir racional-com-respeito-a-fins. . Mas, por outro lado, o autor constata, pavimentando o solo teórico sobre o qual se erige a democracia deliberativa, que o poder legítimo "só se origina entre aqueles que formam convicções comuns num processo de comunicação não coercitiva" (Habermas, 1980, p. 112); vale dizer, a partir das redes comunicativas do mundo da vida.

A deliberação pública, em Habermas, tem lugar nas associações, fóruns, espaços públicos e suportes de comunicação que permitem aos cidadãos debaterem acerca de normas e políticas, de tal modo que as comportas do seu acúmulo discursivo – gerado em conformidade com o agir comunicativo – se abrem para o sistema estatal, que deve ser poroso e sensível à influência dos fluxos comunicacionais advindos das deliberações públicas ocorrentes no mundo da vida.

Para o Habermas de Direito e democracia: entre facticidade e validade, não são o Estado e seus processos decisórios formais que se orientam para o consenso ou que pretendem institucionalizar procedimentos nos quais só seriam válidas as práticas de desinteressada troca argumentativa, como sugerem os que entendem que a democracia deliberativa habermasiana olvida a complexidade social e estaria atada a um compromisso moral empiricamente irrealizável.

O que, precisamente, é proposto na versão da democracia deliberativa propugnada na obra habermasiana citada é um sistema de direitos que preserva a integridade das pessoas, de modo que todos possam contribuir na esfera pública geral. Esta, por definição, é mais anárquica e aberta à deliberação de qualquer tema, forjando, inclusive, em seu interior, problemas e questões que não são captados pela agenda do poder administrativo, para o qual são conduzidas apenas após sua densificação, seu equacionamento e sua circulação de modo informativo e coletador de razões e argumentos na livre e informal deliberação em seu interior (cf. Habermas, 2003)10 10 Para uma apresentação detalhada e consistente acerca do modo como Habermas propõe um modelo dual, amparado no binômio centro (Estado, instituições)/periferia (esfera pública, opinião) da legitimação democrática que flui desta para aquele, confira-se Faria (2000). Veja-se, ainda, no mesmo trabalho, uma aprofundada exposição acerca da relação entre democracia deliberativa e complexidade social, acompanhada por uma definitiva sistematização das variações ocorrentes entre as apreensões de Habermas, Cohen e Bohman quanto à questão. .

Conclui-se que a versão ortodoxamente habermasiana11 11 Recorre-se aqui ao advérbio ortodoxamente porque, em alguma medida, mesmo que seja quanto ao conceito de deliberação e à centralidade do discurso, toda a democracia deliberativa é tributária da obra de Habermas. Um forte indício da gênese habermasiana de toda a democracia deliberativa é que mesmo os autores, como Bächtiger et al., que se referem a uma versão extra-habermasiana do modelo, se apressam em filiar a essa corrente, em sua fase madura, ninguém menos do que... Jürgen Habermas (cf. Bächtiger et al., 2010). da democracia deliberativa, uma das mais exigentes variantes dessa corrente teórica sob o prisma normativo, não entende que a política é apenas um intercâmbio desinteressado entre os melhores argumentos, como tampouco propõe que o único fim válido dos processos decisórios é o consenso. A orientação para o consenso e o agir comunicativo têm espaço, fundamentalmente, na esfera pública, de onde surgem as formulações que, posteriormente, ganham o mundo do poder administrativo.

Destaque-se, ademais, que em Joshua Cohen, para quem a "deliberação ideal" não obedece ao modelo dual habermasiano12 12 Para uma abordagem crítica de democracia deliberativa de Joshua Cohen segundo Habermas, confira Habermas, (2003, p. 28-33) e, ainda, Faria (2000). Em brevíssimo resumo, constata-se que Habermas objeta em Cohen a não previsão de um elo entre a opinião pública informal e os processos decisórios do sistema político, conduzindo o modelo do estadunidense a uma incompletude. Por outro lado, para uma crítica cunhada por Cohen à democracia deliberativa habermasiana – assunto sobre o qual voltaremos com maior profundidade ao longo deste estudo – confira-se Cohen (1999) e, novamente, Faria (2000). , tampouco faz sentido sugerir que tudo é uma questão de consenso e de desinteresse, como bem lembra o próprio autor ao asseverar que "em geral, nem mesmo um procedimento deliberativo ideal produzirá um consenso" (2007, p. 123) e que "[a] democracia deliberativa também não se caracteriza pelo pressuposto de que a discussão pública pretende mudar as preferências dos outros cidadãos" (Cohen, 2007, p. 122). O próprio requisito i3 da democracia deliberativa de Cohen é, como a história indica, fruto de lutas e práticas não raramente violentas por parte dos excluídos, antes de um dado natural, estático, que pode ser concebido a priori. Não há, a rigor, igualdade política ou de qualquer outra ordem sem que, antes, tenham lugar encarniçadas lutas em favor do reconhecimento dos subalternos e do afastamento de iniquidades.

Uma versão pragmático-transcedental, proposta por Karl-Otto Apel13 13 Trata-se de uma das principais influências sobre a obra de Habermas, cujos estudos em filosofia da linguagem, teoria dos atos de fala e ética do discurso foram decisivos sobre os seus passos teóricos e filosóficos, como expressamente reconhece o autor (Habermas, 2007). , antes de pragmático-linguística, da ética do discurso que ancora a política deliberativa habermasiana, também é enfática ao não reduzir a política ao discurso desinteressado conduzido entre seres racionais, livres e iguais, movidos estritamente pela força dos melhores argumentos e orientados unicamente em direção à busca de consensos. O autor procura dividir a ética do discurso – ou seja, a atitude ética subjacente à ação comunicativa, esperada na prática de deliberação – em uma "parte A" e uma "parte B"14 14 Como afirma o próprio Habermas: "Quando fala sobre a aplicação – a "parte B" da ética do discurso –, o que Apel tem em mente é "( ...) [o] tipo de praxe que visa à promoção daquelas condições cuja realização já está pressuposta no discurso prático regular: em primeiro lugar, as condições econômicas, sociais e culturais que garantam uma participação abrangente e competente de todos os que podem ter algum interesse no discurso prático; e, em segundo lugar, a condição de que cada parte disposta a aceitar as normas intersubjetivamente reconhecidas possa contar com que todas as demais partes interessadas se comportem da mesma maneira" (Habermas, 2007, p. 25). , sendo aquela atinente à justificação e esta concentrada na aplicação. Para o autor, no contexto de aplicação das decisões produzidas em conformidade com os exigentes critérios do princípio U, acima apresentado, pode se fazer necessária a imposição de práticas associadas à ação estratégica, que, contudo, logram garantir as condições de igualdade e de mútuo respeito que se espera da "parte A".

Tratar-se-ia, assim, da ideia de ação-estratégica-contra-estratégica, desenvolvida por Apel como a prática necessária à imposição de um ambiente fático-institucional que assegure a ocorrência de procedimentos condizentes com as rígidas exigências da ética do discurso que se espera nos contextos de justificação associados à "parte A". O autor entende que, na ação estratégica-contra-estratégica, práticas como mentir ou matar podem se revelar necessárias, desde que orientadas à abertura de espaços discursivos amplamente inclusivos que se encontrem bloqueados, como se dá com os interesses e argumentos de povos do terceiro mundo nos diálogos e negociações sobre políticas globais/internacionais (cf. Apel, 2000). Na ação-estratégica-contra-estratégica medidas de força e de coerção se justificam à luz da ética do discurso, quando orientadas à superação de crises, mas, de modo complementar e necessário, também à formatação de condições institucionais que garantam a incolumidade da "parte A" da ética do discurso. No exemplo oferecido pelo autor, isso poderia ocorrer mediante o estabelecimento de uma ordem jurídico-política global, por meio de sanções que garantam igualdades de condições entre povos e Estados (cf. Apel, 2000). Uma vez mais, o exemplo do ideal normativo i3, de Joshua Cohen, parece corresponder ao que Apel entende como a definição estratégica e até mesmo violenta das condições necessárias para a "parte A" da deliberação pública. A igualdade, reitere-se, não é um dado que se possa creditar como precedente à política e à deliberação em nossas sociedades. A luta por igualdade, com efeito, pode se enquadrar, não importa o grau de combatividade em que se processe, como uma luta pela deliberação, antes de uma prática antideliberativa.

Os exemplos acima indicam, se não atestam, que o modelo normativo deliberativo de democracia – e, igualmente, seu pavimento filosófico na ética do discurso e na ação comunicativa – jamais pretendeu expurgar de modo absoluto a ação teleológica do âmbito da política, como tampouco se propôs a eliminar peremptoriamente as preferências subjetivas em favor da produção de consensos.

Estabelecidas as ressalvas acima, fica delimitado o terreno analítico para que se introduza o debate referente ao papel que a prática ativista não orientada à obtenção de consensos, e nem sempre pautada apenas pela força dos melhores argumentos, pode obter em estudos referenciados teoricamente no modelo normativo deliberativo de democracia. Se as ações teleológicas têm lugar nas mais rígidas acepções normativas do marco teórico aqui em questão15 15 Variantes contemporâneas da democracia deliberativa são ainda mais condescendentes com as ações teleológicas. Para um aprofundamento desse debate, confira-se Mansbridge et al. (2010). , então é plausível e potencialmente coerente o enfrentamento do tema da participação civil em espaços públicos no Brasil da Nova República, sob inspiração deliberacionista, em grau de relação e de comparação com as ações conduzidas por movimentos adeptos do ativismo. Superada essa preliminar teorética, abre-se a via para a discussão da específica questão da relação entre ativismo e deliberação pública, o que se efetiva na seção seguinte.

Ativismo, deliberação e esfera pública: quando a ação direta vocaliza as súplicas dos públicos sem voz

Não há, na farta literatura sobre os processos atinentes a conquistas de direitos civis e sociais no constitucionalismo moderno16 16 Por todos, confira-se o abrangente estudo de Geoff Eley (2002), não acidentalmente denominado "Forjando a democracia", em que se reconstrói a trajetória da esquerda europeia entre 1850 e 2000, de maneira que se oferecem inúmeros exemplos e referências que fundamentam a tese da estreita relação entre lutas sociais (antecedentes) e direitos constitucionais (consequentes). , significativa objeção acerca da intensa correlação entre o ativismo anti-institucional ou extrainstitucional e a consolidação do binômio democracia/direitos humanos, definidor das ordens políticas prevalecentes em nossos dias17 17 Como afirma Costas Douzinas: "O voto, o voto feminimo, direitos básicos para a proteção do trabalho e cessação da discriminação, além de muitas outras garantias, hoje dadas como certas, foram o resultado de protestos de rua, violência e distúrbios. A denúncia abstrata dos protestos por serem violentos combina defesa do status quo com ignorância histórica" (Douzinas, 2012, p. 47). . A jornada de trabalho definida em lei, o sufrágio universal, a vedação ao tratamento normativo que desfavorecia os negros, a liberdade de expressão e os direitos sexuais e reprodutivos são apenas alguns exemplos de atributos constitucionais dos Estados ocidentais contemporâneos que não podem ser suficientemente compreendidos senão mediante uma intensa e estreita associação a termos como greves, barricadas, boicotes, marchas, manifestos e bloqueios. Sem ativismo e, de um modo dramático, sem perdas humanas e radicalizações efetivadas por ativistas, dificilmente as noções de direitos humanos e de liberdades civis, hoje quase naturalizadas no Ocidente, fariam parte do nosso repertório jurídico-político. Em resumo, a democracia e o constitucionalismo devem muito à prática de ativistas que agem às margens das instituições e que, frequentemente, não concebem seus adversários como interlocutores ou pares com quem devem se engajar em processos movidos apenas pela força do melhor argumento.

Os espaços públicos participativos no contexto dos quais é promovida e orquestrada a deliberação política parecem ainda não ostentar o cartão de visitas acima18 18 É certo, todavia, que já há estudos empíricos que têm lastreado conclusões como a seguinte: "Há uma forte correlação entre participação e desempenho administrativo, em particular na área de políticas sociais (...), instituições participativas de alta intensidade têm um efeito positivo sobre as políticas públicas (...), uma maior intensidade de participação está associada a uma melhor organização do governo" (Avritzer, 2010b, p. 48). Esses exemplos, como se vê, ainda estão todos circunscritos ao que Burawoy define como uma "sociologia para as políticas públicas" (cf. Burawoy, 2010), o que entra em clara rota de colisão metodológica com os pilares alicerçados na teoria crítica, próprios à democracia deliberativa. . Pálidos parecem ser os resultados, em termos de direitos conquistados ou de transformações estruturais19 19 Refere-se, aqui, a direitos e transformações estruturais por se tratarem de elementos perceptíveis de modo agregado em períodos mais longos (como duas décadas), o que isenta da apresentação de minuciosos elementos empíricos. Por exemplo, há poucas controvérsias sobre a forte relação entre as marchas em favor das Diretas Já e o restabelecimento das eleições livres, em que pese a derrota da Emenda Dante de Oliveira em abril de 1984 (apenas cinco anos depois, todos já votavam para presidente). Até aqui, não se tem notícia da conquista de direitos fundamentais ou de grandes mudanças decorrentes ou mesmo sutilmente correlacionadas com as discussões ocorrentes em conselhos, conferências, assembleias de orçamentos participativos ou congêneres. , susceptíveis de ser creditados na conta das práticas deliberativas no interior de fóruns estatais abertos aos cidadãos, ao longo dos mais de vinte anos decorridos desde que os chamados arranjos participativo-deliberativos passaram a compor mais sistematicamente a paisagem institucional do Brasil.

Alguns exemplos referentes à realidade brasileira ajudam a justificar a – reconhecidamente polêmica – tese acima sustentada. Transcorridos quase vinte e cinco anos desde as primeiras experiências de orçamento participativo no Brasil, nenhum efeito distributivo significativo pode ser detectado em tais práticas, mas, pelo contrário, a maioria dos municípios continua a dedicar parcelas apenas simbólicas dos seus recursos para tais programas, enquanto seguem engajados em políticas de guerra fiscal que, no atacado, perpetuam as iniquidades orçamentárias que a deliberação deveria superar (cf. Tavares, 2008b)20 20 Contrariamente, confira-se: "A democracia participativa transformou a política brasileira em três importantes aspectos: ela criou um processo político que incluiu os pobres no campo da política; ela criou um processo de inversão de prioridades que deu aos pobres brasileiros acesso aos bens públicos; e ela permitiu a um novo grupo político vir à política desde baixo" (Avritzer, 2010c, p. 183, tradução nossa). Proponho que uma leitura dos padrões orçamentários da União, dos estados e de municípios nos últimos vinte anos, associada a uma aprofundada análise das mudanças regressivas ocorrentes no sistema tributário e a uma avaliação do impacto da lei geral de direito financeiro, promulgada em 2001 (Lei de Responsabilidade Fiscal), é suficiente para atestar que não há qualquer inclusão, senão simbólica, dos pobres e de suas demandas no âmbito político, muito menos que se possa correlacionar com fóruns participativos. Ocorre, de fato, o inverso (cf. Tavares, 2008b). .

Também no que se refere às formas nacionais de participação social, vê-se que, inobstante seja empiricamente detectável uma forte correlação entre a produção legislativa21 21 O número de leis promulgadas em determinado período - parâmetro preferido no estudo em questão - encerra problemas metodológicos que uma avaliação sobre a distribuição orçamentária pode contornar. Por exemplo: tome-se uma lei com três artigos, em comparação com três leis de um artigo cada uma e que reproduzem o mesmo teor normativo daquela. Seguindo o critério do estudo que vê correlação positiva entre conferências e normas, este caso seria três vezes mais "impactante" do que aquele, quando, de fato, se trata de uma normatividade idêntica. Sob a unidade "uma lei" se equiparam desde as centenas de dispositivos do Código Civil até uma simples definição, em um artigo, de um feriado nacional. e os resultados das deliberações ocorrentes em conferências nacionais (cf. Pogrebinschi e Santos, 2011), o mesmo não se pode dizer quanto à associação entre uma inversão de prioridades governamentais, em especial sob o prisma orçamentário, e o acúmulo discursivo e decisório das conferências. Ou seja, os padrões de arrecadação fiscal e de gastos públicos experimentados pela União não têm sofrido significativas oscilações em favor de assuntos debatidos nas conferências temáticas (como meio ambiente, assistência social, saúde e reforma agrária). A premissa – aqui adotada – de que todos os direitos são positivos (Holmes e Sunstein, 1999) tem como corolário a ideia de que toda ação governamental efetiva encerra uma expressão em termos fiscais22 22 Para a compreensão do Estado capitalista e das relações políticas que lhe dizem respeito, a constatação de J. Schumpeter segundo a qual "tudo o que acontece tem um reflexo fiscal" permanece válida e atual. Confira-se: "As finanças públicas são um dos melhores pontos de partida para uma investigação sobre a sociedade, em especial, mas não exclusivamente, de sua vida política. A plena aptidão para produção de bons resultados dessa perspectiva é vista particularmente naqueles pontos de virada, ou melhor, épocas, durante as quais as formas existentes começam a perecer e a se transformar em algo novo, o que sempre envolve uma crise dos velhos métodos fiscais. Isso é verdade tanto em relação à importância causal da política fiscal (na medida em que os acontecimentos fiscais são um importante elemento causador de mudança) quanto de sua significância sintomática (na medida em que tudo o que acontece possui seu reflexo fiscal." (Schumpeter, 1991, p. 101, tradução nossa). Não é em número de leis (indicador desprovido de materialidade e próprio a todo tipo de aleatoriedade – como a equivalência normativo-deontológica de uma lei com trinta artigos em relação aos mesmos comandos prescritivos em dez leis com três artigos), mas em impacto orçamentário (medida da atuação estatal quanto a políticas públicas e normas atinentes a quaisquer direitos, sejam sociais, sejam os assim chamados simbólicos) que se mede a extensão e o significado de um novo mecanismo decisório. . Há, pois, que investigar de modo mais detalhado e profundo a razão pela qual a inclusão de minorias em espaços discursivos e a consequente produção legislativa como resultante destes fóruns não significou, igualmente, uma alteração ainda que sutil nos padrões de tributação preponderantemente sobre o trabalho e de afetação de recursos preponderantemente ao capital com que opera a União no Brasil (Tavares, 2008b). Em suma, idosos, negros, homossexuais, ambientalistas, radiativistas e toda uma legião de atores sociais foram aos espaços públicos decisórios, discutiram, chegaram a conclusões, influenciaram a promulgação de leis e... Dez anos depois o Estado permanece com semelhantes padrões financeiros, tributando trabalho e financiando o capital, por meio de sua grande prioridade orçamentária (os juros da dívida pública), sem recursos para aumentar significativamente a viabilização material dos direitos pleiteados pelos supracitados grupos sociais.

O âmago deste breve estudo teórico, de qualquer modo, é outro: a própria emergência de temas na esfera pública, seguida de um debate em que os participantes intercambiam impressões sobre distintas questões, de modo a deliberarem segundo os parâmetros da ética do discurso, é uma matéria em que a balança nem sempre pende a favor da participação em espaços estatais abertos à sociedade, mas tende a recomendar o ativismo anti-institucional como ação mais adequada. Nesse sentido, sem quaisquer pretensões de generalização por lógica indutiva, menciona-se um caso concreto, apenas para que se perceba a plausibilidade da ideia de que a argumentação e mútua justificação na esfera pública demanda, recorrentemente, práticas não diretamente deliberativas consistentes em ações diretas, protestos, greves23 23 No Brasil, a Constituição tutela o direito de greve, razão pela qual esse não seria, a princípio, um bom exemplo de prática anti-institucional. Ocorre, entretanto, que a origem histórica dessa tática de luta, associada ao colossal volume de greves ainda hoje declaradas ilegais, permite seu enquadramento sob esse filtro taxonômico. ou condutas congêneres. Veja-se o caso abaixo narrado.

Na cidade de Belo Horizonte, importante capital brasileira, há um déficit habitacional equivalente a 53.201 (cinquenta e três mil, duzentos e um) domicílios. Há, por outro lado, 83.148 (oitenta e três mil, cento e quarenta e oito) unidades domiciliares vazias, sem nenhuma destinação habitacional ou econômica (cf. Tavares, 2008a). É nesse espaço urbano que a administração pública implementa, desde 1996, um programa de cunho participativo-deliberativo denominado Orçamento Participativo da Habitação. Ao longo de 12 anos, a política pública em questão logrou construir 3.211 (três mil, duzentas e onze) unidades domiciliares (PBH, 2011). Seguindo-se tal ritmo e descartando-se o crescimento vegetativo da demanda habitacional da cidade, em 198 (cento e noventa e oito) anos a política pública em questão alcançará o seu objetivo e dever funcional de assegurar aos cidadãos o direito à moradia garantido na Constituição brasileira. Ainda que ao OP sejam somadas outras políticas mantidas pela Prefeitura, o resultado não é mais alentador: em 76 anos, sem crescimento vegetativo, o déficit estaria suprido (cf. Tavares, 2008a).

Por óbvio, não há argumento em favor da sensatez discursiva, dos méritos intrínsecos à democracia participativa ou dos efeitos pedagógicos da livre discussão que justifique manter trabalhadores sem casa pacientemente em uma fila que, como a frieza dos dados demonstra, não encontrará termo durante o tempo de vida dos participantes da deliberação público-institucional. Foi assim que, desde 2005, inúmeras ocupações urbanas tiveram lugar na cidade, em atendimento à simples lógica geométrica, de resto albergada constitucionalmente pelo princípio da função social da propriedade: se há espaço abandonado e pessoas sem lugar para morar, a mais sábia decisão é ocupar-se aquilo que não tem destinação social nem econômica. Quando as primeiras ocupações eclodiram, remetia-se o tema ao âmbito criminal e a presença do Estado diante dos ativistas se fazia por meio do seu aparato coercitivo militar, expresso na Guarda Municipal e na Polícia Militar. Ao longo dos anos, entretanto, tiveram lugar audiências públicas na Câmara de Vereadores, na Assembleia Legislativa e no Poder Judiciário, reuniões com a presidenta da República e com o Governador do Estado, matérias especiais em jornais impressos e televisivos, além de inúmeros debates informais. Assim, a questão habitacional, ausente da esfera pública, ganhou relevância e espaço por meio não de uma política formalmente participativa e materialmente estéril, mas de práticas de ação direta conduzidas por ativistas que sequer reconhecem a legitimidade do Poder Público e de seu aparato institucional24 24 É o caso da central CSP-Conlutas e do grupo Brigadas Populares, a que se filiam os dirigentes das principais ocupações. . Uma simples pesquisa na internet, hoje, sugere a constatação (passível de verificação nos estudos empíricos que integram a agenda de pesquisas proposta neste trabalho) de que as ocupações se constituíram como pano de fundo para longos debates, em que comentaristas filiados às mais distintas posições (desde a defesa de implacável repressão aos sem-casa, até a promoção da desapropriação de prédios públicos) argumentam, levantam dados, expressam-se e são ouvidos. Um tema outrora silencioso ou restrito às pouco visitadas assembleias do Orçamento Participativo da Habitação25 25 Menos de 6.000 (seis mil) pessoas passaram por uma dessas assembleias no ano de 2008, número inferior a 10% (dez por cento) da população sem moradia (PBH, 2011). parece ter ganhado visibilidade midiática e, provavelmente, projetou-se nas conversas em famílias, locais de trabalho e logradouros públicos, chegando aos palácios governamentais e, após muita pressão, até mesmo à agenda da presidenta da República. O caso sugere a factibilidade da ideia de que, frequentemente, as ações não comunicativas efetivadas por ativistas promovem um ambiente deliberativo e fomentam o ambiente discursivo de um modo que os espaços participativo-deliberativos provavelmente não são aptos a fazer.

Diante da argumentação acima tecida, pode-se supor que intensa produção empírica e teórica está a se dedicar sobre a relação entre ativismo anti-institucional e deliberação pública. Não é o caso, contudo. Escassa é a literatura dedicada ao tema e praticamente nula é a produção empírica que tenta medir os efeitos de ações diretas ou demonstrações públicas na instauração e na qualidade da deliberação. Como "fração dominada da classe dominante" (cf. Bourdieu e Passeron, 1975), a intelectualidade que conforma o main stream deliberacionista se concentra (não apenas no Brasil, mas mundialmente) cada vez mais em aproximar seus conceitos e formulações das forças dirigentes do Estado e do mercado26 26 Um caricatural exemplo é o estudo de Hendriks e Carson (2008), para quem há benefícios na transformação de modelos de deliberação pública em "produtos" para serem vendidos. e não parece ter o mesmo ânimo em relação aos movimentos insurgentes emanados dos setores dominados ou subalternos. A seguir, portanto, apresenta-se uma breve nota dos principais conceitos e argumentos presentes em um debate ainda marginal na teoria da democracia deliberativa, atinente à relação entre ativismo e deliberação.

Primeiramente, vê-se que no projeto teórico de Jürgen Habermas está presente o entendimento de que ao menos algumas ações típicas de ativistas, como a desobediência civil e os protestos não violentos27 27 Habermas não chega a definir violência, mas, em grau de coerência com a tradição humanista, concebe-se, neste trabalho, que a ação violenta tem sempre como destinatárias pessoas humanas, antes de coisas. Assim, se alguém destrói a casa em que outrem reside, tem-se uma violência contra a pessoa que, então, foi ofendida na paz e na dignidade do seu lar. Se alguém destrói uma agência bancária, sem deixar feridos, por outro lado, não há como definir essa ação como violenta, a menos que se entenda que a agência e os bens ali contidos podem ser objeto de atos violentos, ou seja, podem sofrer, sentir dor etc. Não há marco lógico ou filosófico que autorize tão largo passo em direção à vivificação de objetos inanimados. , podem fomentar o debate no âmbito da esfera pública e, ademais, restituir o Estado à atuação em conformidade com o medium do direito, nas hipóteses em que tal liame se rompe. Confira-se, nesse sentido, o seguinte trecho da obra Direito e democracia, em que o autor, referindo-se às esferas públicas liberais, não institucionalizadas, por onde correm, entre outros fluxos comunicacionais, desde protestos até atos de desobediência civil28 28 A delimitação do problema aqui discutido impede um aprofundamento sobre a questão da desobediência civil em Habermas e, por extensão, na democracia deliberativa. Remete-se o leitor, quanto à questão, a um profícuo estudo teórico de White e Farr, que tentam retomar o tema sob uma perspectiva interna ao deliberacionismo e para quem "uma democracia madura, desde a perspectiva do paradigma da comunicação, é aquela em que a desobediência civil deve ser amplamente tolerada" (White e Farr, 2012, p. 42). , assim se reporta a essa extrema modalidade de ativismo:

O último meio para conferir uma audiência maior e uma influência político-jornalística aos argumentos da oposição consiste em atos de desobediência civil, os quais necessitam de um alto grau de explicação.

(...)

A justificação da desobediência civil apoia-se (...) numa compreensão dinâmica da constituição, que é vista como um projeto inacabado. Nesta ótica de longo alcance, o Estado democrático de direito não se apresenta como uma configuração pronta, e sim, como um empreendimento arriscado, delicado e, especialmente, falível e carente de revisão, o qual tende a reatualizar, em circunstâncias precárias, o sistema dos direitos (...) (Habermas, 2003, p. 117-118).

Em que pese a preocupação que Habermas demonstrou com a desobediência civil e os protestos anti-institucionais na obra que tanto influenciou os rumos da democracia deliberativa, de modo a se referir a um tema que exige "alto grau de explicação", o assunto voltou a ser sistematicamente enfrentando somente em 2001 quando, de uma perspectiva externa ao campo deliberacionista, Iris M. Young se debruçou sobre o assunto.

O estudo empreendido pela autora partiu da premissa, acima já encampada, de que a teoria democrática contemporânea não costuma fazer justiça às práticas de corajosos ativistas, que já presentearam a humanidade com fundamentais conquistas e direitos. Disposta a enfrentar essa lacuna, em especial no que se refere à relação entre deliberação e ativismo, Iris Young percebe uma resistência dos ativistas ao engajamento em práticas deliberativas e passa a, dialeticamente, cogitar dos argumentos oferecidos em favor do ativismo contra a deliberação e vice-versa.

De saída, Young já recomenda precaução quanto ao aparente consenso da teoria deliberativa segundo o qual arranjos participativo-deliberativos se revelam, sempre, uma medida recomendável em sociedades pautadas por desigualdades estruturais (cf. Young, 2001). Sob essa premissa crítica são apresentados os argumentos da autora.

Primeiramente, Young reproduz um arquétipo do que julga ser a maneira como o participante de fóruns político-deliberativos (como OPs, conferências e conselhos) vislumbra o ativista anti-institucional. Na visão daquele, este não adotaria um comportamento muito diferente do que é exercido por grupos de interesses, de modo que agiria sem significativas preocupações com argumentos ou com a racionalidade, estando estritamente orientado em relação à consecução do seu autointeresse. Essa maneira de se conceber o militante anti-institucional, entretanto, parece não corresponder à realidade de ambientalistas, midiativistas, integrantes de partidos da extrema esquerda, ou sujeitos políticos congêneres. Young lembra que, diferentemente dos grupos de interesses – como federações empresariais ou sindicatos acoplados à burocracia estatal –, muitos ativistas tendem a se engajar em causas que não necessariamente os favorecem pessoalmente29 29 Vide os protestos conduzidos por estudantes contra, por exemplo, a presença do presidente estadunidense em países como Chile, Argentina e Brasil. O mesmo se diga quanto a grupos de advogados e de intelectuais que se associam para, a título voluntário e, em geral, anonimamente, defenderem ocupações urbanas. e se envolvem na busca por adeptos e no convencimento dos cidadãos em favor de causas que reputam como universalistas, em uma medida que não se coaduna com o modus operandi dos grupos de interesses (Young, 2001). Em resumo, não é exato submeter o ativista, em função da circunstância de não deliberar em espaços pré-constituídos para tal, à mesma categoria sócio-taxonômica dos grupos de interesses, haja vista que aquele não é sequer necessariamente autointeressado e, ademais, pretende convencer a universalidade dos sujeitos acerca da pertinência de sua causa.

Outra objeção à prática dos ativistas mencionada por Young se reporta ao fato de que tais militantes se recusam a participar de fóruns nos quais são incluídos formalmente, de modo que, acaso objetassem apenas os espaços aos quais não têm acesso, como reuniões da OMC ou cúpulas presidenciais, ainda estariam a agir de modo racional e justificável. Ao não atuarem, todavia, em ambientes nos quais sua presença é franqueada (como OPs e conferências), os ativistas agiriam, segundo uma leitura arquetípica conferida por Young ao deliberacionismo, de modo não válido. Em relação a essa possível crítica, a autora constata que há acordo entre ativistas e democratas deliberativos quanto ao fato de que os espaços decisórios devem ser abertos a todos os interessados. Pondera-se, contudo, que os deliberacionistas deixam o trem do ativismo na estação da inclusão meramente formal dos participantes em debates públicos. Nesse caso, sob o prisma do ideal normativo i3, formulado por Joshua Cohen e acima apresentado, é possível sugerir que ativistas estariam mais ajustados às exigências da democracia deliberativa do que os aderentes ou defensores de espaços formalmente igualitários.

No entender de Young, em sociedades pautadas por iniquidades estruturais – como aqui se entende ser o caso de todas as sociedades capitalistas –, não é suficiente ou equânime a simples inclusão de pessoas que se definem por recursos cognitivos, tempo livre, reconhecimento simbólico e aptidões argumentativas díspares em espaços discursivos. Ao declarar que o ativista conta com lastro racional ao se recusar ao ingresso em fóruns nos quais nem todos contam com as mesmas condições argumentativas, a autora parece caminhar nos trilhos da teoria que dispõe sobre condições econômicas, recognitivas e cognitivas estruturantes, mais do que sobre espaços formais, para que o princípio democrático se efetive (cf. Fraser, 2007).

A ideia de que espaços apenas formalmente igualitários, abertos à livre discussão entre participantes estruturalmente desiguais, acaba por reforçar, antes de superar, as estruturas de estratificação e de dominação, parece ressoar a ampla tradição do pensamento marxista não dogmático ocidental, para a qual o princípio democrático pressupõe acesso a recursos cognitivos que permitam a todos agirem como governantes (cf. Gramsci, 2010). Ademais, tal princípio democrático não pode se realizar apenas por meio de um suposto livre debate, inserido artificialmente como igualitário em um mundo onde as opressões e desigualdades anteriores ao fórum discursivo já estão postas. A crítica de Young, com efeito, parece seguir os passos do conceito de "tolerância repressiva", desenvolvido por H. Marcuse, companheiro de Habermas no Instituto de Pesquisas em Frankfurt, para denunciar a dominação que pode estar oculta sob o biombo da igualitária abertura para a deliberação. Confira-se, a tal respeito, a seguinte passagem do autor mencionado:

Sob um sistema constitucionalmente garantido e (geralmente e também sem muitas e claras exceções) praticado, são toleradas liberdades e direitos civis, a oposição e a dissensão, a menos que elas propaguem a violência e/ou a exortação para a organização da subversão violenta. A hipótese subjacente é de que a sociedade estabelecida é livre, e que nenhum aprimoramento, até mesmo uma mudança na estrutura e nos valores sociais, ocorreria no curso normal dos eventos, preparados, definidos, e testados na discussão livre e igualitária, na feira aberta de ideias e bens

(...)

Justamente por isso, essas minorias que se esforçam por uma mudança do todo propriamente dito, sob ótimas condições que raramente prevalecem, serão deixadas livres para deliberar e discutir, para falar e reunir-se – e serão deixadas inofensivas e desamparadas diante da maioria subjugadora que milita contra a mudança social qualitativa. Essa maioria é firmemente fundamentada na crescente satisfação das necessidades e da co-ordenação mental – e tecnológica – a qual testemunha o desamparo geral de grupos radicais em um sistema social que funciona – bem (Marcuse, 2007, p.37-38).

A recusa do ativista, com efeito, não reside apenas em protestar ou mesmo boicotar os espaços onde não pode entrar ou nos quais não tem acesso à palavra. A ideia é mais profunda e critica a inclusão apenas formal, entendida como artefato, no glossário marcusiano, de "tolerância repressiva" a igualar os estruturalmente desiguais em um âmbito deliberativo supostamente neutro, cujo efeito social não é outro senão legitimar e perpetuar as desigualdades.

Na contenda entre ativistas e deliberacionistas, Young prossegue para constatar que, em regra, os espaços deliberativo-participativos institucionalizados são instaurados com regras e limites já predefinidos e inalteráveis nos termos da própria deliberação. Assim, por exemplo, um fórum participativo sobre a habitação não tem atribuição para rever prioridades orçamentárias e, por exemplo, retirar benefícios fiscais concedidos a grandes construtoras que financiam eleições, em favor da construção de moradias populares. Um espaço deliberativo dedicado a direitos sobre a comunicação social não teria atribuição para dispor sobre os critérios governamentais de distribuição do espectro de radiofrequência, ou sobre a maneira como as despesas governamentais com publicidade seriam distribuídas entre diferentes veículos. Uma conferência orientada à questão ambiental não seria apta a questionar o volume de dispêndio energético, já que estaria fora da sua alçada dispor sobre a taxa de crescimento desejada para o Produto Interno Bruto de um determinado país. Em síntese, o argumento das iniquidades estruturais formulado por Young se estende para enunciar que, em regra, ativistas se recusam, justificadamente, a ingressar em fóruns deliberativos, porquanto se o fizessem estariam apenas a legitimar políticas e normas cuja essência já fora petrificada em fóruns nada porosos à participação ou mesmo à influência do conjunto dos cidadãos. Young propõe, assim, que as deliberações, em geral, já partem de premissas inaceitáveis, de modo que não resta ao ativista alternativa senão rechaçá-las e seguir para os protestos e ações diretas (cf. Young, 2001).

Finalmente, Iris M. Young observa que os estudos sobre democracia deliberativa e a prática que se inspira em tais formulações têm sido pouco atentos para duas categorias cruciais no pensamento crítico moderno: ideologia e, principalmente, hegemonia (Young, 2001).

Assumir que o ativismo anti-institucional possui menos legitimidade racional e argumentativa do que os espaços deliberativos promovidos por mercado, Estado ou pelo terceiro setor implicaria não extrair todas as consequências da ideia de que não apenas em âmbito sistêmico mas precisamente na "sociedade civil" nem sempre é possível a ocorrência de livres trânsitos argumentativos entre sujeitos racionais e iguais. Desse modo, também nessa esfera, opressões estruturais impedem a igualdade discursiva, como já alertara Gramsci na primeira metade do século XX, ao dispor sobre o papel cumprido pelos intelectuais orgânicos da classe dominante:

Por enquanto, podem-se fixar dois grandes "planos" superestruturais: o que pode ser chamado de "sociedade civil" (isto é, o conjunto de organismos vulgarmente designados como "privados") e o da "sociedade política ou Estado", planos que correspondem, respectivamente, à função de "hegemonia" que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de "domínio direto" ou de comando, que se expressa no Estado e no governo "jurídico" (...) Os intelectuais são os "prepostos" do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente" do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e sua função no mundo da produção (Gramsci, 2010, p. 21).

Os estudos mais recentes sobre a democracia deliberativa tendem a naturalizar os espaços decisórios em que discussões sobre normas ou políticas públicas são produzidas, de modo que não se concentram suficientemente, empírica ou teoricamente, sobre o impacto da hegemonia (para se ater a Gramsci) ou dos processos de violência simbólica mediante ações pedagógicas efetivadas por autoridades pedagógicas (para se reportar aos estudos de Bourdieu e Passeron, 1975)30 30 Não há dúvidas de que os autores em questão guardam importantes distinções entre suas concepções sobre o papel e o sentido sociais da intelectualidade. Basta uma referência ao desencanto reprodutivista de Bourdieu e Passeron em relação à elevada conta em que Gramsci tem o intelectual orgânico do proletariado para se indicar a profundidade desta clivagens. Este dado apenas reforça o argumento teórico aqui desenvolvido, de modo a indicar que um amplo espectro afiliado ao conhecimento crítico ou reflexivo autoriza ou respalda a tese de Young, ora assumida. Para uma comparação crítica entre Bourdieu e Gramsci quanto ao papel dos intelectuais, confira-se Burawoy (2010). , de modo que, assim, discutem menos as condições para que ocorra a ação comunicativa, as quais se situam, muito frequentemente, fora de seus próprios limites, como sugere o concento apeliano de agir estratégico-contra-estratégico, que parece ser o agir usualmente efetivado por ativistas anti-institucionais. Estudos deliberacionistas discutem desigualdades de classe, raça, gênero e outras formas de exclusão no interior dos fóruns de participação social sobre os quais se concentram. Entretanto, revelam-se menos interessados em adotar opções teóricas nítidas para explicarem essas desigualdades e, ainda menos, em investigarem as respectivas origens e mecanismos explicativos em um ambiente social transcendente e condicionador desses fóruns.

Apresentada a força do argumento ativista, que não se reporta à deliberação em espaços participativos enquanto tal, mas à ausência de condições para que tal prática ocorra nas sociedades contemporâneas, é pertinente a síntese formulada por Cláudia Feres Faria quanto ao tema, ao dispor que "a opção pelo método discursivo é considerada prioritária, mas, uma vez que as condições ou os oponentes o rejeitam – seus procedimentos e os valores nele contidos – é possível recorrer a outras formas de ação" (Faria, 2010, p. 109).

Os argumentos teóricos acima indicam que as práticas efetivadas por ativistas encerram, ao menos em tese, elementos plenamente compatíveis com o núcleo normativo da democracia deliberativa. É plausível supor, ademais, que ações diretas e práticas correlatas possam ser, em determinados contextos, não apenas condizentes com a deliberação pública mas indispensáveis para a sua válida ocorrência, assim entendida como a que se realiza em ambiente propenso à circulação ampla de fluxos comunicativos, aí incluídos os que emanam de públicos subalternos. Há uma lacuna teórica, que as revisões bibliográficas de ânimo reconstrutivo conduzidas nesta seção e na antecedente indicaram, a escamotear uma imensa gama de condutas políticas compatíveis com a democracia deliberativa e responsáveis, ao menos em tese, por um aprofundamento da democracia no Brasil. Estudar os espaços estatais abertos à participação social sem compará-los com o ativismo e seus resultados pode levar a uma superestimação dos efeitos daqueles e a uma desqualificação, ainda que tácita, das práticas ativistas, que, como visto, não infirmam o núcleo normativo da democracia deliberativa. Abaixo, portanto, conclui-se este texto com uma sucinta pauta de perguntas que, sugere-se, podem orientar os estudos políticos inspirados pelo marco deliberacionista, de modo a superar a lacuna observada a partir da discussão teórico-bibliográfica aqui apresentada.

Para uma agenda de pesquisas sobre a relação entre ativismo, participação e deliberação

Como aqui se afirmou, os estudos de inspiração deliberacionista concentrados na participação política em espaços estatais têm adquirido crescente volume, impacto e sofisticação metodológica no Brasil. O conhecimento científico sobre o assunto – seja no que tange à teoria, seja quanto à descoberta de dados empíricos por meio de avançadas técnicas de pesquisa – pode ser caracterizado, sem favores, junto ao seleto conjunto de saberes produzidos no Brasil revestidos de qualidade e relevância para contribuírem significativa e perenemente ao debate global.

Propôs-se, entretanto, a partir de uma discussão teórica, que um aspecto exige maior atenção no campo de estudos em comento. Trata-se da produção de dados e de interpretações sobre a relação entre ativismo e participação, bem como sobre as semelhanças e diferenças entre os resultados produzidos por tais práticas. Alguns temas-problemas de pesquisas se revelam, com efeito, promissores para uma nova agenda de investigações no campo deliberacionista brasileiro como, apenas exemplificativamente, os seguintes:

1. Em uma cidade em que há orçamento participativo da habitação e movimentos de ocupações urbanas – caso de Belo Horizonte – qual dentre tais práticas tem fomentado a esfera pública temática sobre a questão da moradia de modo mais significativo, assim entendido como aquele que gera notícias na imprensa local, audiências públicas governamentais, debates e visitas frequentes em fóruns da internet, etc.? Estudos apoiados pela análise de jornais de grande circulação, de atas de audiências públicas, da produção legislativa em câmaras de vereadores, do comportamento orçamentário de municípios em diferentes exercícios ou dos resultados colhidos em grupos focais com lideranças de movimentos sociais, apenas por exemplo, podem contribuir para se testar a hipótese de que o ativismo é duplamente mais propício à deliberação pública, seja por gerar outcomes em termos de normas e direitos mais significativos, seja por fomentar o debate e a circulação de ideias egressas de públicos subalternos de maneira mais intensa e eficaz.

2. A partir da aplicação de técnicas de pesquisa quantitativas como surveys e de qualitativas como grupos focais, o que se pode concluir sobre a relação entre formação política e ampliação de espectro cognitivo nos grupos de ativistas que aderem – sem um passado militante – a protestos e ações diretas, em relação a pessoas que participam de assembleias de orçamentos participativos, conselhos e fóruns afins? Assim como já se descobriu que a participação em orçamentos participativos não se correlaciona necessariamente com maior politização quanto a campanhas político-eleitorais (Rennó, 2006), deve-se testar a mesma questão quanto ao engajamento em grupos de ativistas, de modo a verificar a hipótese de que os integrantes destes, seja pelos riscos a que estão sujeitos, seja pela usual ocorrência de mútua ajuda e solidariedade entre diferentes movimentos, tendem a se ocupar de modo mais consistente quanto a questões transcendentes às suas causas diretas, como eleições, crises econômicas internacionais, direitos humanos etc..

3. Assim como se criou um Índice Municipal de Participação (cf. Avritzer, 2010a), cujo uso comparativo permitiu a formulação de correlação entre participação e qualidade de políticas públicas, seria pertinente a elaboração de um índice análogo de ativismo, de modo a se permitir um cruzamento de dados entre os resultados alcançados em contextos com maior participação e os obtidos em cenários de mais frequente ocorrência de protestos, boicotes e ações diretas. Desse modo, pode-se obter uma verificação empírica, atinente à contemporaneidade, da constatação histórica sustentada por autores como G. Eley (2002) e Costas Douzinas (2012) de que, mais do que apenas as políticas públicas, são os direitos e mudanças estruturais, em grande medida, influenciados pelo ativismo em sua gênese e institucionalização.

4. Estudos orientados por técnicas como história de vida poderiam, ainda, comparar a trajetória, no que tange à relação com a burocracia e à cooptação pelo aparato estatal, de ativistas antirregime em relação a pessoas que participam frequentemente de conselhos, conferências e assembleias de orçamentos participativos. Esse exame poderia testar a hipótese, muito recorrente junto aos partidos, intelectuais e movimentos identificados com a esquerda socialista, de que a participação social em espaços estatais como conferências e conselhos seria, em grande medida, um expediente de cooptação e de violação da autonomia das formas organizativas autônomas edificadas pelos grupos subalternos. Estudos comparativos como o que aqui se propõe contribuiriam, portanto, para elidirem o significativo grau de passionalidade e de nebulosidade empírica que costuma acompanhar o debate sobre a existência ou não de relação entre cooptação estatal e participação social em fóruns estatais.

5. O exame de assembleias de orçamentos participativos em contraposição a reuniões de movimentos ativistas, assembleias de assentamentos e de ocupações urbanas e congressos autônomos organizados por movimentos sociais, sob o critério do Índice de Qualidade Discursiva (cf. Steenbergen et al., 2003), em uma mesma localidade e com públicos de semelhante trajetória militante prévia, permite quais conclusões acerca da qualidade da deliberação em tais espaços? Também aqui será possível testar questões que costumam pautar debates informais, mas que ainda não foram submetidas a um escrutínio político-científico mais rigoroso. Por exemplo, ativistas antirregime costumam alegar que, em espaços como as conferências nacionais do Brasil contemporâneo, quase todas as ideias apresentadas emergem de um só partido político, o Partido dos Trabalhadores, de maneira que o máximo de pluralismo e de diversidade que se encontra em tais fóruns é aquele que corresponde à multiplicidade de tendências da legenda que está no Governo Federal do Brasil desde o ano de 2003. Por outro lado, apologéticos de conferências e orçamentos participativos podem não apenas negar tal crítica como propor que movimentos dedicados a ações diretas é que costumam ser acometidos por discursos únicos e severamente controlados por suas direções. O uso do IQD, como aqui sugerido, seguido da comparação entre resultados encontrados, pode dar início a uma abordagem mais rigorosa desse tema.

As sugestões acima não revelam questões suficientemente delimitadas ou aptas à pronta edificação de projetos a partir das respectivas inquietações. Não expressam, tampouco, um rol exaustivo de problemas que podem ser investigados sob as premissas teóricas aqui expostas. Ofertam, de qualquer modo, indícios da plausibilidade de um giro em direção ao ativismo, aqui justificado como teoricamente adequado e, ademais, como necessário ao fortalecimento do rigor da ciência política de matriz deliberacionista no Brasil. Inobstante as conclusões que podem ser obtidas – mais generosas com a participação, com o ativismo, ou com a equivalência em importância entre ambos –, o único caminho que parece pouco recomendável é o de evitar o tema e as comparações aqui sugeridas.

Enfim, propõe-se, a partir da revisão bibliográfica, dos argumentos teóricos e das sugestões de problemas de pesquisa aqui apresentados, que o ativismo é: (i) compatível com os modelos de ação pressupostos no ideal normativo da democracia deliberativa; (ii) capaz de trazer à esfera pública vozes de grupos subalternos que, de outro modo, ficariam silenciadas, além de contribuir para a conquista de direitos que conformam o ideal normativo e requisito da deliberação pública referente à igualdade e; (iii) refere-se a inúmeras questões de ordem comparativa em relação à deliberação nos espaços estatais cuja elucidação científica é indispensável para a ciência política brasileira.

Recebido em 27 de abril de 2012.

Aprovado em 2 de setembro de 2012.

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  • 1
    Agradeço aos pareceristas anônimos da RBCP pelas contribuições oferecidas. Agradeço, ainda, aos professores com quem discuti o assunto deste artigo, em especial Cláudia Feres Faria, Luis Felipe Miguel, Pedro Mundim e Debora Rezende de Almeida. Naturalmente, a responsabilidade pelo conteúdo do texto é exclusivamente do autor.
  • 2
    Para uma retomada desse debate desde a sua gênese, a obra coletiva – que já completa um decênio –
    Sociedade civil e espaços públicos no Brasil é um recomendável ponto de partida (cf. Dagnino, 2002). Para uma apresentação do caminho seguido por esses estudos desde o seu início até a atualidade, confira-se Avritzer, (2010b).
  • 3
    São particularmente comuns os programas de formação ou qualificação de conselheiros e agentes afins mantidos por pesquisadores e estudiosos da questão. Apenas como exemplo, confira-se o seguinte:
  • 4
    Assume-se, neste trabalho, uma classificação inspirada no trabalho de Axel Honneth quanto à democracia radical no pensamento político contemporâneo, identificando-se a tricotomia republicanismo, deliberacionismo e cooperacionismo reflexivo (cf. Honneth, 2001).
  • 5
    Nem todos esses autores se identificam com o campo deliberacionista, o qual, como qualquer referencial teórico, não pode ser compreendido como um clube fechado, composto de uma lista estática de adeptos. O fato é que o diálogo estabelecido nesses trabalhos é, sempre, um diálogo com a literatura associada à democracia deliberativa e com o conceito de deliberação.
  • 6
    Uma formulação sintética do conceito de esfera pública geral na obra habermasiana pode assim se expressar: "A esfera pública é uma 'estrutura intermediária' que faz a mediação entre o Estado e o sistema político e os setores privados do mundo da vida. Uma 'estrutura comunicativa', um centro potencial de comunicação pública, que revela um raciocínio de natureza pública, de formação da opinião e da vontade política, enraizada no mundo da vida através da sociedade civil. A esfera pública tem a ver com o 'espaço social' do qual pode emergir uma formação discursiva da opinião e da vontade política. No seu bojo colidem os conflitos em torno do controle dos fluxos comunicativos que percorrem o limiar entre o mundo da vida e a sociedade civil e o sistema político e administrativo. A esfera pública constitui uma 'caixa de ressonância', dotada de um sistema de sensores sensíveis ao âmbito de toda sociedade, e tem a função de filtrar e sintetizar temas, argumentos e contribuições, e transportá-los para o nível dos processos institucionalizados de resolução e decisão, de introduzir no sistema político os conflitos existentes na sociedade civil, a fim de exercer influência e direcionar os processos de regulação e circulação do poder do sistema político através de uma abertura estrutural, sensível e porosa, ancorada no mundo da vida" (Lubenow, 2010).
  • 7
    É certo que, neste limitado texto, não se pretende reconstruir a teoria da democracia deliberativa. O resgate do seu ideal normativo, contudo, para posterior contraste com as práticas ativistas e, enfim, para descortinar uma gama de problemas científicos ainda não explorados, tem clara inspiração no método de investigação teórica reconstrutivo, na forma assim condensada por Habermas: "Reconstrução significa, em nosso contexto, que uma teoria é desmontada e recomposta de modo novo, a fim de melhor atingir a meta que ela própria se fixou: esse é o modo normal (...) de se comportar diante de uma teoria que, sob diversos aspectos, carece de revisão, mas cujo potencial de estímulo não chegou ainda a se esgotar" (Habermas, 1983, p. 11).
  • 8
    Como afirma Manin: "Seguindo um uso que remete a Aristóteles, para a tradição filosófica deliberação significa o processo de formação da vontade, o momento particular que precede a escolha, e no qual o indivíduo pondera diferentes soluções antes de se filiar a uma delas. Rousseau usa o termo deliberação num sentido diferente, que é aceito no uso da linguagem comum, significando 'decisão'. Podemos ver a diferença que separa as duas definições: no vocabulário da filosofia, deliberação descreve o processo que precede a decisão; nos escritos de Rousseau, ela significa a própria decisão" (2007, p. 23-24). O sentido adotado pela democracia deliberativa é aquele que Manin classifica como aristotélico.
  • 9
    Se a prática política preconizada pelo autor concebesse apenas o agir comunicativo e as ações orientadas ao consenso, tratar-se-ia de um caso de pensador irremediavelmente contraditório, uma vez que, como se sabe, esse é o mesmo filósofo que escreveu o artigo "Bestiality and humanity", em que se defende o ataque perpetrado pelas potências ocidentais, sem aval da ONU, contra alvos civis e militares em Kosovo (cf. Habermas, 1999). É certo que a posição ali sustentada pelo autor pode ser refutada sob a perspectiva de uma leitura interna da respectiva obra. Mas é igualmente certo que, para defender ataques militares sem respaldo jurídico-normativo, Habermas jamais seria um teórico político ingenuamente contrário a qualquer espécie de agir
    racional-com-respeito-a-fins.
  • 10
    Para uma apresentação detalhada e consistente acerca do modo como Habermas propõe um modelo dual, amparado no binômio centro (Estado, instituições)/periferia (esfera pública, opinião) da legitimação democrática que flui desta para aquele, confira-se Faria (2000). Veja-se, ainda, no mesmo trabalho, uma aprofundada exposição acerca da relação entre democracia deliberativa e complexidade social, acompanhada por uma definitiva sistematização das variações ocorrentes entre as apreensões de Habermas, Cohen e Bohman quanto à questão.
  • 11
    Recorre-se aqui ao advérbio
    ortodoxamente porque, em alguma medida, mesmo que seja quanto ao conceito de deliberação e à centralidade do discurso, toda a democracia deliberativa é tributária da obra de Habermas. Um forte indício da gênese habermasiana de toda a democracia deliberativa é que mesmo os autores, como Bächtiger
    et al., que se referem a uma versão extra-habermasiana do modelo, se apressam em filiar a essa corrente, em sua fase madura, ninguém menos do que... Jürgen Habermas (cf. Bächtiger
    et al., 2010).
  • 12
    Para uma abordagem crítica de democracia deliberativa de Joshua Cohen segundo Habermas, confira Habermas, (2003, p. 28-33) e, ainda, Faria (2000). Em brevíssimo resumo, constata-se que Habermas objeta em Cohen a não previsão de um elo entre a opinião pública informal e os processos decisórios do sistema político, conduzindo o modelo do estadunidense a uma incompletude. Por outro lado, para uma crítica cunhada por Cohen à democracia deliberativa habermasiana – assunto sobre o qual voltaremos com maior profundidade ao longo deste estudo – confira-se Cohen (1999) e, novamente, Faria (2000).
  • 13
    Trata-se de uma das principais influências sobre a obra de Habermas, cujos estudos em filosofia da linguagem, teoria dos atos de fala e ética do discurso foram decisivos sobre os seus passos teóricos e filosóficos, como expressamente reconhece o autor (Habermas, 2007).
  • 14
    Como afirma o próprio Habermas: "Quando fala sobre a aplicação – a "parte B" da ética do discurso –, o que Apel tem em mente é "( ...) [o] tipo de praxe que visa à promoção daquelas condições cuja realização já está pressuposta no discurso prático regular: em primeiro lugar, as condições econômicas, sociais e culturais que garantam uma participação abrangente e competente de todos os que podem ter algum interesse no discurso prático; e, em segundo lugar, a condição de que cada parte disposta a aceitar as normas intersubjetivamente reconhecidas possa contar com que todas as demais partes interessadas se comportem da mesma maneira" (Habermas, 2007, p. 25).
  • 15
    Variantes contemporâneas da democracia deliberativa são ainda mais condescendentes com as ações teleológicas. Para um aprofundamento desse debate, confira-se Mansbridge
    et al. (2010).
  • 16
    Por todos, confira-se o abrangente estudo de Geoff Eley (2002), não acidentalmente denominado "Forjando a democracia", em que se reconstrói a trajetória da esquerda europeia entre 1850 e 2000, de maneira que se oferecem inúmeros exemplos e referências que fundamentam a tese da estreita relação entre lutas sociais (antecedentes) e direitos constitucionais (consequentes).
  • 17
    Como afirma Costas Douzinas: "O voto, o voto feminimo, direitos básicos para a proteção do trabalho e cessação da discriminação, além de muitas outras garantias, hoje dadas como certas, foram o resultado de protestos de rua, violência e distúrbios. A denúncia abstrata dos protestos por serem violentos combina defesa do status quo com ignorância histórica" (Douzinas, 2012, p. 47).
  • 18
    É certo, todavia, que já há estudos empíricos que têm lastreado conclusões como a seguinte: "Há uma forte correlação entre participação e desempenho administrativo, em particular na área de políticas sociais (...), instituições participativas de alta intensidade têm um efeito positivo sobre as políticas públicas (...), uma maior intensidade de participação está associada a uma melhor organização do governo" (Avritzer, 2010b, p. 48). Esses exemplos, como se vê, ainda estão todos circunscritos ao que Burawoy define como uma "sociologia para as políticas públicas" (cf. Burawoy, 2010), o que entra em clara rota de colisão metodológica com os pilares alicerçados na teoria crítica, próprios à democracia deliberativa.
  • 19
    Refere-se, aqui, a direitos e transformações estruturais por se tratarem de elementos perceptíveis de modo agregado em períodos mais longos (como duas décadas), o que isenta da apresentação de minuciosos elementos empíricos. Por exemplo, há poucas controvérsias sobre a forte relação entre as marchas em favor das Diretas Já e o restabelecimento das eleições livres, em que pese a derrota da Emenda Dante de Oliveira em abril de 1984 (apenas cinco anos depois, todos já votavam para presidente). Até aqui, não se tem notícia da conquista de direitos fundamentais ou de grandes mudanças decorrentes ou mesmo sutilmente correlacionadas com as discussões ocorrentes em conselhos, conferências, assembleias de orçamentos participativos ou congêneres.
  • 20
    Contrariamente, confira-se: "A democracia participativa transformou a política brasileira em três importantes aspectos: ela criou um processo político que incluiu os pobres no campo da política; ela criou um processo de inversão de prioridades que deu aos pobres brasileiros acesso aos bens públicos; e ela permitiu a um novo grupo político vir à política desde baixo" (Avritzer, 2010c, p. 183, tradução nossa). Proponho que uma leitura dos padrões orçamentários da União, dos estados e de municípios nos últimos vinte anos, associada a uma aprofundada análise das mudanças regressivas ocorrentes no sistema tributário e a uma avaliação do impacto da lei geral de direito financeiro, promulgada em 2001 (Lei de Responsabilidade Fiscal), é suficiente para atestar que não há qualquer inclusão, senão simbólica, dos pobres e de suas demandas no âmbito político, muito menos que se possa correlacionar com fóruns participativos. Ocorre, de fato, o inverso (cf. Tavares, 2008b).
  • 21
    O número de leis promulgadas em determinado período - parâmetro preferido no estudo em questão - encerra problemas metodológicos que uma avaliação sobre a distribuição orçamentária pode contornar. Por exemplo: tome-se uma lei com três artigos, em comparação com três leis de um artigo cada uma e que reproduzem o mesmo teor normativo daquela. Seguindo o critério do estudo que vê correlação positiva entre conferências e normas, este caso seria três vezes mais "impactante" do que aquele, quando, de fato, se trata de uma normatividade idêntica. Sob a unidade "uma lei" se equiparam desde as centenas de dispositivos do Código Civil até uma simples definição, em um artigo, de um feriado nacional.
  • 22
    Para a compreensão do Estado capitalista e das relações políticas que lhe dizem respeito, a constatação de J. Schumpeter segundo a qual "tudo o que acontece tem um reflexo fiscal" permanece válida e atual. Confira-se: "As finanças públicas são um dos melhores pontos de partida para uma investigação sobre a sociedade, em especial, mas não exclusivamente, de sua vida política. A plena aptidão para produção de bons resultados dessa perspectiva é vista particularmente naqueles pontos de virada, ou melhor, épocas, durante as quais as formas existentes começam a perecer e a se transformar em algo novo, o que sempre envolve uma crise dos velhos métodos fiscais. Isso é verdade tanto em relação à importância causal da política fiscal (na medida em que os acontecimentos fiscais são um importante elemento causador de mudança) quanto de sua significância sintomática (na medida em que tudo o que acontece possui seu reflexo fiscal." (Schumpeter, 1991, p. 101, tradução nossa). Não é em número de leis (indicador desprovido de materialidade e próprio a todo tipo de aleatoriedade – como a equivalência normativo-deontológica de uma lei com trinta artigos em relação aos mesmos comandos prescritivos em dez leis com três artigos), mas em impacto orçamentário (medida da atuação estatal quanto a políticas públicas e normas atinentes a quaisquer direitos, sejam sociais, sejam os assim chamados simbólicos) que se mede a extensão e o significado de um novo mecanismo decisório.
  • 23
    No Brasil, a Constituição tutela o direito de greve, razão pela qual esse não seria, a princípio, um bom exemplo de prática anti-institucional. Ocorre, entretanto, que a origem histórica dessa tática de luta, associada ao colossal volume de greves ainda hoje declaradas ilegais, permite seu enquadramento sob esse filtro taxonômico.
  • 24
    É o caso da central CSP-Conlutas e do grupo Brigadas Populares, a que se filiam os dirigentes das principais ocupações.
  • 25
    Menos de 6.000 (seis mil) pessoas passaram por uma dessas assembleias no ano de 2008, número inferior a 10% (dez por cento) da população sem moradia (PBH, 2011).
  • 26
    Um caricatural exemplo é o estudo de Hendriks e Carson (2008), para quem há benefícios na transformação de modelos de deliberação pública em "produtos" para serem vendidos.
  • 27
    Habermas não chega a definir violência, mas, em grau de coerência com a tradição humanista, concebe-se, neste trabalho, que a ação violenta tem sempre como destinatárias pessoas humanas, antes de coisas. Assim, se alguém destrói a casa em que outrem reside, tem-se uma violência contra a pessoa que, então, foi ofendida na paz e na dignidade do seu lar. Se alguém destrói uma agência bancária, sem deixar feridos, por outro lado, não há como definir essa ação como violenta, a menos que se entenda que a agência e os bens ali contidos podem ser objeto de atos violentos, ou seja, podem sofrer, sentir dor etc. Não há marco lógico ou filosófico que autorize tão largo passo em direção à vivificação de objetos inanimados.
  • 28
    A delimitação do problema aqui discutido impede um aprofundamento sobre a questão da desobediência civil em Habermas e, por extensão, na democracia deliberativa. Remete-se o leitor, quanto à questão, a um profícuo estudo teórico de White e Farr, que tentam retomar o tema sob uma perspectiva interna ao deliberacionismo e para quem "uma democracia madura, desde a perspectiva do paradigma da comunicação, é aquela em que a desobediência civil deve ser amplamente tolerada" (White e Farr, 2012, p. 42).
  • 29
    Vide os protestos conduzidos por estudantes contra, por exemplo, a presença do presidente estadunidense em países como Chile, Argentina e Brasil. O mesmo se diga quanto a grupos de advogados e de intelectuais que se associam para, a título voluntário e, em geral, anonimamente, defenderem ocupações urbanas.
  • 30
    Não há dúvidas de que os autores em questão guardam importantes distinções entre suas concepções sobre o papel e o sentido sociais da intelectualidade. Basta uma referência ao desencanto reprodutivista de Bourdieu e Passeron em relação à elevada conta em que Gramsci tem o intelectual orgânico do proletariado para se indicar a profundidade desta clivagens. Este dado apenas reforça o argumento teórico aqui desenvolvido, de modo a indicar que um amplo espectro afiliado ao conhecimento crítico ou reflexivo autoriza ou respalda a tese de Young, ora assumida. Para uma comparação crítica entre Bourdieu e Gramsci quanto ao papel dos intelectuais, confira-se Burawoy (2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      27 Abr 2012
    • Aceito
      02 Set 2012
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