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O Homem Que Calculava em Libras: Tradução, Contação de História e Matemática2 2 Pesquisa financiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIFSP) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)

The Man Who Counted in Libras: Translation, Storytelling and Mathematics

RESUMO:

Esta pesquisa teve por objetivo compreender os desafios e as possibilidades de tradução e contação em Língua Brasileira de Sinais (Libras) das histórias presentes no livro O homem que Calculava, do escritor modernista brasileiro Malba Tahan. Tratase de uma investigação qualitativa que se debruçou sobre o processo de tradução audiovisual das histórias presentes no livro, as adaptações feitas em suas narrativas, os recursos de preparação para a produção e edição dos vídeos, a implementação de recursos gráficos e visuais e, por fim, sua divulgação como produto da pesquisa. As análises indicam o potencial didático que emerge na interação entre os envolvidos no processo de tradução das histórias: professores, intérpretes e discentes (surdo e ouvinte), possibilitando formas de expressão artísticas que exploram a visualidade inerente da língua de sinais aliada a recursos gráficos, tomando as narrativas como elemento central para o desenvolvimento criativo ancorado no ensino da Matemática por meio da leitura e da interpretação de histórias.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Matemática; Língua Brasileira de Sinais; Tradução para surdos

ABSTRACT:

This research aimed to understand the challenges and possibilities of translation and storytelling in the Brazilian Sign Language (known by the acronym LIBRAS) of the stories present in the book O homem que calculava [The man who counted] by the Brazilian modernist writer Malba Tahan. This is a qualitative investigation that focused on the audiovisual translation process of the stories present in the book, on the adaptations made in its narratives, the preparation resources for the production and editing of the videos, the implementation of graphic and visual resources and, finally, its dissemination as a research product. The analyzes indicate the didactic potential that emerges in the interaction between those involved in the process of translating the stories: teachers, interpreters and students (deaf and hearing), enabling forms of artistic expression that explore the inherent visuality of sign language combined with graphic resources, taking the narratives as a central element for the creative development anchored in the teaching of Mathematics through the reading and interpretation of stories.

KEYWORDS:
Mathematics education; Brazilian Sign Language; Translation for the deaf

1 Introdução

Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade Raul Seixas, ‘Prelúdio’ 9 9 Em Libras: https://youtube.com/shorts/aSroKlMP12M?feature=share

O trabalho aqui apresentado resulta de um grupo diverso10 10 Neste texto, por um lado, a primeira pessoa do plural é utilizada, dada a importância da colaboração para o desenvolvimento da pesquisa. Por outro lado, nossa perspectiva de linguagem assume que nossas palavras são forjadas pela palavra do outro; dessa forma, qualquer texto que venha a ser criado é polifônico (Bakhtin, 1997). constituído por: um estudante surdo, uma estudante ouvinte e os orientadores também ouvintes. Ele emerge dos nossos interesses em comum no âmbito da Educação Inclusiva. Em 2021, recebemos, em nossa instituição, três estudantes surdos no primeiro ano de um curso técnico integrado ao Ensino Médio. Nesse contexto, encontramo-nos diante de questionamentos sobre nossas próprias práticas e buscamos materiais que nos possibilitassem refletir sobre elas e modificá-las. Percebemos, a partir de uma breve procura e sem preocupação com o rigor de estados do conhecimento ou da arte, a incipiência de diferentes materiais voltados ao ensino e à aprendizagem de conteúdos matemáticos do Ensino Médio para estudantes surdos.

Nessa primeira busca, constatamos também que materiais didáticos consagrados, como as obras do professor Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan, não contavam com tradução para a Língua Brasileira de Sinais (doravante Libras). Essa constatação nos provocou e nos colocou a tarefa de investigar, dessa vez com o rigor que exige uma pesquisa científica, o real panorama das obras de Malba Tahan e de suas possíveis traduções que almejam o ensino e a aprendizagem de Matemática de/para estudantes surdos.

Começamos nossas investigações em 2021, realizando um mapeamento no Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Tínhamos como pressuposto o fato de que alguns materiais voltados à perspectiva da Educação Inclusiva são produzidos a partir de pesquisas em nível da pós-graduação Stricto Sensu, isto é, em programas de Mestrado e Doutorado profissionais e acadêmicos. Desse mapeamento, não foram identificadas pesquisas que abordem ou proponham as histórias de Malba Tahan em Libras11 11 Utilizamos, neste mapeamento inicial, os termos “Malba Tahan e Libras”, “Homem que Calculava e Libras”, “Libras e histórias de Malba Tahan”. .

Partimos então para uma pesquisa na plataforma YouTube, empregando os termos “O Homem que Calculava Libras” e “Malba Tahan Libras”. Novamente, não foram localizados vídeos que se propusessem a contar as histórias desse autor em Libras. Partindo desse cenário e considerando ainda a emergência da criação de materiais didáticos em uma perspectiva inclusiva para o ensino e a aprendizagem de Matemática, foi que esta pesquisa tomou forma. Ao buscarmos refletir sobre nossas práticas, deparamo-nos com um tema potente e importante de investigação e que poderia gerar um produto igualmente importante e necessário: os vídeos com as contações das histórias de Malba Tahan, pela primeira vez, acessíveis em Libras.

Diante do exposto, o objetivo geral desta pesquisa é compreender os desafios e as possibilidades de tradução e contação em Libras, das histórias presentes no livro O homem que calculava, do escritor modernista brasileiro Malba Tahan. Para alcançarmos tal objetivo, o texto está estruturado nos seguintes tópicos: (i) Malba Tahan, Educação Matemática inclusiva e contação de histórias em Libras; (ii) Os caminhos metodológicos da pesquisa; (iii) Desafios e possibilidades na tradução e contação das histórias de Malba Tahan em Libras e (iv) Considerações ou das mil histórias sem fim…

2 Malba tahan, Educação Matemática Inclusiva e contação de histórias em Libras

Voltava eu, certa vez, ao passo lento do meu camelo, pela estrada de Bagdá, de uma excursão à famosa cidade de Samarra, nas margens do Tigre, quando avistei, sentado numa pedra, um viajante, modestamente vestido, que parecia repousar das fadigas de alguma viagem. (Tahan, 2014, p. 15Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

Júlio César de Mello e Souza (1895-1974), mais conhecido por seu pseudônimo Malba Tahan, foi um professor e escritor brasileiro que contribuiu enormemente para a popularização e para o ensino de Matemática no Brasil. Nascido em 6 de maio de 1895 – data que hoje é conhecida como Dia Nacional da Matemática –, Júlio César percebeu rapidamente que teria dificuldades de publicar seus contos utilizando o seu próprio nome; então, criou um pseudônimo, Ali Yezzid Izz-Edin Ibn-Salin Malba Tahan, que se intitula um famoso escritor árabe que atravessou a China, o Japão, a Rússia e grande parte da Índia e da Europa, observando os costumes dos diferentes povos (Roberto Filho, 2013Roberto Filho, M. (2013). Júlio César de Mello e Sousa - o Malba Tahan: o homem que calculava, a vida e o legado [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Triângulo Mineiro]. Plataforma Sucupira. https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=94304
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).

A obra do professor Júlio César conta com mais de 100 livros publicados até a sua morte, sendo o mais famoso deles o romance infantojuvenil O homem que calculava. Essa obra foi traduzida para diversos idiomas e conta a história de Beremiz Samir, um calculista persa que se vê em diversas situações em que suas habilidades matemáticas o auxiliam a resolver problemas.

Segundo Lorenzato (2004)Lorenzato, S. (2004). Malba Tahan: um precursor. https://www.malbatahan.com.br/wp-content/uploads/2017/09/Artigo-Novo-Lorenzato-2.pdf
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, Malba Tahan é considerado, ao lado de Sam Loyd (1841-1911), Yakov Perelman (1882-1942) e Martin Gardner (1914-2010), um dos mais importantes recreacionistas e popularizadores da Matemática em todo o mundo. No tempo em que viveu, o professor Júlio César contestou a maneira como a Matemática era ensinada no Brasil e percebeu que os materiais didáticos de seu tempo não o auxiliavam a ensinar Matemática de uma maneira prazerosa e nem contribuíam para a aprendizagem dos seus estudantes.

A sua concepção de ensino e de aprendizagem da Matemática destoava da concepção vigente que, por sua vez, culminou no Movimento da Matemática Moderna nos anos de 1960, baseada nas formalidades e nos rigores da Álgebra e da Teoria dos Conjuntos. Para Lorenzato (2004)Lorenzato, S. (2004). Malba Tahan: um precursor. https://www.malbatahan.com.br/wp-content/uploads/2017/09/Artigo-Novo-Lorenzato-2.pdf
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:

Como resultado, fica evidente que a concepção do ensino da Matemática que Malba Tahan detinha é muito diversa daquela que habitualmente muitos de nós recebemos nas escolas e, sobretudo, daquela que caracterizou a sua própria época. Com bastante segurança, em relação ao ensino da Matemática de seu tempo, pode-se afirmar que a Geometria não era mais senão um amontoado de demonstrações e de inúteis medições, a Álgebra se confundia com algebrismo e a Aritmética se resumia a imensos cálculos numéricos, não se falando, enfim, em ensino da Matemática. Em suma, eram arcaicos e inflexíveis tanto os programas de Matemática quanto a sua metodologia de ensino, inexistindo qualquer possibilidade para críticas e mudanças. (p. 3)

Nesse contexto, surgem as obras do professor Júlio César, o Malba Tahan, atualmente utilizadas por professores de todas as partes do mundo em aulas de Matemática. Como pesquisadores, tencionamos continuar o legado deixado por Malba Tahan, contribuindo para que mais pessoas possam aprender Matemática de maneira prazerosa.

Por esse prisma, partimos do contexto da Educação na perspectiva inclusiva para focarmos especificamente em alunos surdos, cuja forma natural de comunicação e expressão se dá por meio de uma língua de articulação visuoespacial, a Libras – Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm
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–, sendo a língua portuguesa escrita concebida como segunda língua (Stumpf & Linhares, 2021Stumpf, M. R., & Linhares, R. S. A. (2021). Referenciais para o ensino de Língua Brasileira de Sinais como primeira língua para surdos na Educação Bilíngue de Surdos: da Educação Infantil ao Ensino Superior (v. 3). Arara Azul.), à qual uma considerável parte das pessoas surdas não tem acesso adequado.

Assim, a ausência de traduções em Libras das histórias de Malba Tahan instaura uma barreira de acesso, visto que esse material permanece restrito à língua portuguesa escrita ou a exposições orais.

Cabe ressaltarmos que as discussões sobre Educação Inclusiva que orientam currículos e instituições são atuais, quando comparadas ao tempo em que as obras de Malba Tahan foram escritas. A própria Declaração de Salamanca (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 1994Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. (1994). Declaração de Salamanca sobre princípios, política e práticas na área das necessidades educativas especiais. Unesco. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000139394
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), por exemplo, foi criada na década de 1990 durante a Conferência Mundial sobre Educação Especial.

Segundo Rosa (2017)Rosa, F. M. C. (2017). Histórias de vida de alunos com deficiência visual e de suas mães: um estudo em Educação Matemática Inclusiva [Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”]. Repositório da Unesp. https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/151396/rosa_fmc_dr_rcla.pdf?sequence=4&isAllowed=y
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“o Brasil assumiu, a partir desta Declaração, o compromisso da proposta de ‘Educação para Todos’, comprometendo-se a transformar o sistema educacional de modo a acolher a todos, indiscriminadamente, com qualidade e igualdade de condições”. No entanto, o modelo clínico que compreende as deficiências como fatores limitantes a serem superados mantêm-se engendrado no tecido social e nas políticas educacionais. Com o advento de dispositivos mais modernos, como a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) – Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm
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–, com vistas à acessibilidade e a políticas linguísticas, nota-se um esforço de afastamento dessa centralidade clínica e uma compreensão mais ampla das deficiências como diferenças, ao mesmo tempo em que o Estado é imbuído da responsabilidade de promover a participação ativa e o pleno desenvolvimento de todos os alunos, sejam eles com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades. Além disso, a Lei também determina a adequação dos espaços físicos, a formação de professores para atender às necessidades diversificadas dos estudantes e a disponibilização de recursos de apoio.

Paralelamente, os intensos movimentos das comunidades surdas brasileiras e a intensificação de pesquisas voltadas à educação de surdos e à Libras, a partir de seu reconhecimento legal (Lei nº 10.436/2002Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10436.htm
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), catalisaram novas discussões voltadas a perspectivas bilíngues de educação para surdos pela óptica da diferença, o que inclui a produção de materiais acessíveis em Libras, com legendas e metodologias diversas que exploram a visualidade e as especificidades linguísticas e culturais dessas comunidades (Martins, 2016Martins, V. R. (2016). Educação de surdos e proposta bilíngue: ativação de novos saberes sob a ótica da filosofia da diferença. Educação & Realidade, 41(3), 713-729, https://doi.org/10.1590/2175-623661117
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).

Além disso, no início do século XXI, surgiram também alguns grupos de educadores matemáticos interessados em investigar o que se denomina hoje em dia de Educação Matemática Inclusiva. Entre as discussões geradas na época, estava um questionamento: Que perspectiva de Educação Matemática se relaciona com a integração das pessoas com deficiência e que perspectiva está associada à ideia de inclusão dessas pessoas?

Entretanto, integrar não é incluir. Ao pensarmos em materiais didáticos adaptados, estamos alicerçados no paradigma da integração da pessoa com deficiência (Fernandes, 2017Fernandes, S. H. A. A. (2017). Educação Matemática Inclusiva: adaptação x construção. REIN! Revista Educação Inclusiva, 1(1), 78-95. http://www.matematicainclusiva.net.br/pdf/Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20Inclusiva_Adapta%C3%A7%C3%A3o%20X%20Constru%C3%A7%C3%A3o.pdf
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). Por outro lado, construir materiais que atendam às especificidades desse público está associado ao paradigma da inclusão, sobre o qual nos debruçamos aqui.

Esta proposta de construção “envolve a elaboração de um contexto, no qual os aprendizes ‘diferentes’ possam vivenciar novas trajetórias rumo ao conhecimento, que favoreçam o compartilhamento e a negociação de significados dos objetos matemáticos” (Fernandes, 2017, p. 86Fernandes, S. H. A. A. (2017). Educação Matemática Inclusiva: adaptação x construção. REIN! Revista Educação Inclusiva, 1(1), 78-95. http://www.matematicainclusiva.net.br/pdf/Educa%C3%A7%C3%A3o%20Matem%C3%A1tica%20Inclusiva_Adapta%C3%A7%C3%A3o%20X%20Constru%C3%A7%C3%A3o.pdf
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).

Em se tratando das comunidades surdas no Brasil, as discussões atuais caminham para o cumprimento da estratégia 4.7 da meta 4 do Plano Nacional de Educação (PNE) – Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm
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–, no que diz respeito à garantia da oferta de educação bilíngue em Libras como primeira língua e na modalidade escrita da Língua Portuguesa como segunda língua em escolas e classes bilíngues e em escolas inclusivas. Contudo, as discussões ainda não se converteram em propostas substanciais em todo o território nacional, estando muito aquém do proposto pelo PNE. De todo modo, a perspectiva de educação bilíngue, hoje em dia, pressupõe que a surdez seja uma diferença socioantropológica (Abreu, 2020Abreu, M. C. B. F. (2020). Abordagem socioantropológica da surdez, Língua de Sinais e Educação Bilíngue: uma perspectiva histórica e cultural. Obutchénie: Revista de Didática e Psicologia Pedagógica, 4(3), 711-734. https://doi.org/10.14393/OBv4n3.a2020-58434
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).

Quando nos propomos a contar as histórias de Malba Tahan em Libras, também assumimos que a surdez é uma característica ou diferença. Assim, partimos de um movimento que se configura em um processo de tradução intersemiótica, por meio da qual se estabelece a narrativa de forma visual, oferecendo aos surdos possibilidades mais naturais de compreensão e reflexão.

Dentre as características inerentes às línguas de sinais, o parâmetro expressões não manuais, isto é, a utilização do corpo para produção de sentidos por meio de expressões faciais e movimentos do tronco (Quadros & Karnopp, 2004Quadros, R. M. de, & Karnopp, L. B. (2004). Língua Brasileira de sinais: estudos linguísticos. Artmed.) mostra-se potente para a contação de histórias na esfera da expressão artística. Essas características não se perderam de vista ao criarmos os produtos desta pesquisa, que concebeu que os produtos finais criados, não somente adaptados, estivessem alinhados interseccionalmente com as discussões trazidas pelas áreas que investigam a contação de histórias – a Libras e a Educação Matemática Inclusiva.

Contar e ouvir histórias é um ato ancestral que fundamenta o humano em nós. Essa atividade ocupa papel central em todas as culturas dos povos ancestrais e persiste no tempo atual, com formatos variados. O próprio Malba Tahan foi influenciado pela cultura árabe e pelo gosto desse povo em contar histórias.

É por meio das histórias que podemos elaborar o conhecimento historicamente acumulado pela civilização, que construímos uma linguagem complexa e potente, que aprofundamos caminhos da imaginação e da descoberta de explicações sobre a vida humana e que desenvolvemos uma leitura de mundo e o reconhecimento de emoções. Além dos benefícios que o contato com histórias proporciona, acreditamos que o próprio ato de narrar histórias auxilia na organização do pensamento, na capacidade de ordenação cronológica e no desenvolvimento da linguagem.

A pessoa em fase de letramento tem nas histórias um importante processo de apropriação da linguagem. Nesse sentido, podemos apoiar-nos na reflexão do professor Claudemir Belintane, que defende uma corporalidade no processo educativo (Belintane, s.d.Belintane, C. (n.d.). Literatura Popular. https://daa001a6-1397-4161-8956-3faf41c69538.filesusr.com/ugd/59d572_6c57e9544f7b45509271f14d7e5482f3.pdf
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), existindo aí um importante papel da contação de histórias (e não meramente a leitura) como uma metodologia do entusiasmo que possibilita a entrada da pessoa em letramento na linguagem verbal e não verbal. Para Stumpf e Linhares (2021)Stumpf, M. R., & Linhares, R. S. A. (2021). Referenciais para o ensino de Língua Brasileira de Sinais como primeira língua para surdos na Educação Bilíngue de Surdos: da Educação Infantil ao Ensino Superior (v. 3). Arara Azul., um dos pilares do letramento da pessoa surda

é a utilização de histórias para expandir inferências com base no texto e elaborar narrativas em vídeo que possibilitem à criança surda organizar o que expressar e observar o que é produzido em sinais por ela.... Outro pilar que evidencia a importância de estudar Libras no Ensino Fundamental é a literatura e a arte surdas. A literatura em Libras é o conjunto de produções de narrativas, poemas, jogos e outros meios artísticos que utilizam a Língua de Sinais para ensinar língua, identidade e cultura surdas. (p. 40)

Portanto, ao contarmos histórias em Libras, proporcionamos à pessoa surda a possibilidade de estar em contato com os benefícios das histórias e da sua narração, adentrando esse universo literário e narrativo. Nesse processo, ao contar as histórias de Malba Tahan, a interdisciplinaridade (Rodrigues, 2018Rodrigues, D. N. (2018). Literatura e Matemática: uma reflexão sobre contar histórias, ler números e viceversa [Dissertação de Mestrado Profissional, Universidade Federal de Juiz de Fora]. Plataforma Sucupira. https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=7452993
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; Silveira, 2015Silveira, M. A. (2015). A interdisciplinaridade da obra O homem que calculava, aplicada ao ensino de matemática [Dissertação de Mestrado Profissional, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”]. Plataforma Sucupira. https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=2493661
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) esteve presente, dado que mobilizamos diferentes áreas do conhecimento, nomeadamente a Matemática, a Língua Portuguesa, as Artes, a Literatura e a Libras.

Para criar histórias em Libras a partir da obra de Malba Tahan, pensamos em uma metodologia de pesquisa que levasse em conta as discussões até aqui trazidas. Na seção a seguir, apresentamos os caminhos trilhados que nos possibilitaram compreender os desafios e as possibilidades existentes para a tradução e para a contação de histórias em Libras.

3 Os caminhos metodológicos da pesquisa

Chamo-me Beremiz Samir e nasci na pequenina aldeia de Khói, na Pérsia, à sombra da pirâmide imensa formada pelo Ararat. Muito moço ainda, empreguei-me como pastor, a serviço de um rico senhor de Khamat. (Tahan, 2014, p. 17Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

O contexto em que iniciamos a pesquisa foi o ano de 2021. Nesse ano, nossa instituição estava em um momento de Ensino Remoto12 12 Em nossa instituição, o Ensino Remoto deu-se por meio da plataforma Moodle e de encontros síncronos pelo Google Meet. , dado o contexto da pandemia da covid-19. Entendemos que, no decorrer da pesquisa, passamos por três momentos distintos, que requereram mudanças na metodologia da pesquisa: (i) as reuniões de forma remota e as tentativas de gravação das histórias por parte dos bolsistas em suas casas; (ii) as reuniões ainda de forma remota e a gravação de maneira estruturada nas dependências do campus, com a orientação dos professores orientadores; (iii) o processo de edição, de avaliação do trabalho e de divulgação.

Começamos o trabalho com reuniões para delimitarmos os caminhos que seguiríamos para criar as histórias em Libras e começar a investigação. Decidimos que o livro O homem que calculava, de Malba Tahan, seria o foco de nossa pesquisa, pois, conforme discutimos, outras obras de Malba Tahan discorriam sobre assuntos diversos, e, no livro escolhido, há uma coleção de histórias sobre problemas que requerem soluções por meio de pensamentos e de conceitos matemáticos. A partir dessa seleção, organizamos encontros para estudar a obra e os aspectos culturais que moldaram as histórias criadas e para compreender a sua importância para a Educação Matemática brasileira.

Além disso, buscamos compreender as histórias e identificar os termos específicos que precisariam de uma busca prévia de traduções. A partir disso, optamos pelo uso de glosas que, segundo Paiva et al. (2016)Paiva, F. A. S., Martino, J. M., Barbosa, P. A., Benetti, A. B., & Silva, I. R. (2016). Um sistema de transcrição para língua de sinais brasileira: o caso de um avatar. Revista do Gel, 13(3), 12-48. https://doi.org/10.21165/gel.v13i3.1440
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, “são palavras de uma determinada língua oral grafadas com letras maiúsculas que representam sinais manuais de sentido próximo” (p. 13). Essas representações genéricas possibilitaram uma espécie de roteirização para sinalização das histórias pelos alunos bolsistas.

Nesse primeiro momento, não tínhamos clara uma metodologia de pesquisa e ainda estávamos discutindo uma sistematização de trabalho que possibilitasse a criação dos vídeos. Entretanto, organizando as tarefas por meio da plataforma Trello, conseguimos alinhar uma metodologia de trabalho e atribuímos tarefas e responsabilidades para todos os pesquisadores envolvidos. Nessa etapa, tentamos realizar gravações caseiras, mas não ficamos satisfeitos com os resultados, dado que a estrutura de que dispúnhamos prejudicava a compreensão das histórias e a qualidade do material final para edição.

Quando as condições sanitárias permitiram, continuamos com as reuniões ainda de forma remota e a gravação de maneira mais estruturada nas dependências do Campus Registro do IFSP. Nesse ponto, a metodologia de trabalho foi alinhada e a metodologia de pesquisa assumiu novos contornos.

À medida que organizávamos, com mais cuidado, as adaptações das histórias e as glosas criadas para gravação, observávamos com mais intencionalidade o processo de gravação – seus desafios e suas possibilidades – e dialogávamos presencialmente sobre as escolhas lexicais da tradução nas histórias de Malba Tahan. Com efeito, os dados construídos em todo esse processo nos sugeriam que esta pesquisa se enquadrava metodologicamente como uma investigação qualitativa que se debruçou, para a análise, nas histórias criadas por Malba Tahan, nas adaptações nelas feitas, nas glosas criadas para gravação e no próprio processo de preparação para a contação de histórias. Concordamos que a pesquisa se constituiu como qualitativa, na medida em que se dirigiu “à análise de casos concretos em suas peculiaridades locais e temporais, partindo das expressões e atividades das pessoas em seus contextos locais” (Flick, 2009, p. 37Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. Artmed.).

Para apresentarmos os desafios e as possibilidades existentes para a tradução e para a contação das histórias de Malba Tahan, estruturamos a próxima seção de forma que fosse possível compreender o movimento de trabalho e de produção dos vídeos, bem como o próprio movimento de pesquisa – alicerçado na reflexão constante sobre a produção dos materiais.

4 Desafios e possibilidades na tradução e contação das histórias de Malba Tahan em Libras

Beremiz era de gênio alegre e comunicativo. ... Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a meditar sobre cálculos prodigiosos. (Tahan, 2014, p. 19Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

Ao compreendermos que passamos por três momentos distintos durante a pesquisa, estruturamos nossas análises a partir de três tópicos, quais sejam: (i) Contar histórias em tempos de pandemia: reuniões, orientações cênicas e primeiras gravações; (ii) Mudança de rota… A retomada de atividades e a dinâmica das gravações presenciais; (iii) A edição, a avaliação do trabalho e a divulgação dos produtos da pesquisa.

4.1 Contar histórias em tempos de pandemia: reuniões, orientações cênicas e primeiras gravações

Uma das nossas primeiras ações de pesquisa foram as reuniões para delimitação das tarefas. Esse também foi o nosso primeiro desafio. Nas reuniões, estavam presentes os professores orientadores, a intérprete e os alunos pesquisadores. A dinâmica da reunião respeitou a diversidade do nosso grupo e o tempo necessário para discussão e tradução, pela intérprete, para o estudante-pesquisador-surdo. Uma de nossas delimitações a partir dessas reuniões foi a utilização do Trello13 13 Aplicativo de gerenciamento de projetos baseado na metodologia Kanban. Ver https://trello.com/pt . Esse aplicativo auxiliou na organização das ações da pesquisa. Criamos no Trello um quadro denominado “Projeto – Malba Tahan” (Figura 1) e colocamos as tarefas discutidas nas reuniões nas categorias “para fazer”, “em andament o” e “concluído”.

Figura 1
Quadro no Trello

O Trello funcionou como uma ferramenta de orientação para o nosso trabalho. Dadas as suas características visuais, ele se mostrou uma escolha assertiva para a compreensão do andamento das ações pelo aluno-pesquisador-surdo.

Dentre as primeiras ações que anotamos no Trello, estava uma investigação sobre quem era Malba Tahan e sua importância para a divulgação da Matemática no Brasil e no mundo. Discutimos em reuniões posteriores esse legado de Malba Tahan e o caminho que teríamos pela frente para a tradução de suas histórias para Libras. Nessa etapa, começamos também a ler o livro O homem que calculava. A dedicatória desse livro já nos indicava que o trabalho não seria nada simples:

À memória dos sete grandes geômetras cristãos ou agnósticos: Descartes, Pascal, Newton, Leibnitz, Euler, Lagrange, Comte, (Allah se compadeça desses infiéis), e à memória do inesquecível matemático, astrônomo e filósofo muçulmano, Buchafar Mohamed Abenmusa Al Kharismi, (Allah o tenha em sua glória!), e também a todos os que estudam, ensinam ou admiram a prodigiosa ciência das grandezas, das formas, dos números, das medidas, das funções, dos movimentos e das forças, eu, el-hadj xerife Ali Iezid Izz-Edim ibn Salim Hank Malba Tahan (crente de Allah e de seu santo profeta Maomé), dedico esta desvaliosa página de lenda e fantasia. De Bagdá, 19 da Lua de Ramadã de 1321. (Tahan, 2014Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

Sua leitura nos fez perceber a quantidade de termos e nomes que talvez não contassem ainda com tradução equivalente para a Libras. Preocupava-nos a ideia de criar sinais que já existiam e desconhecíamos. Por essa razão, realizamos uma pesquisa cuidadosa para cada termo específico. Além disso, no livro O homem que calculava, há vários termos de origem muçulmana, o que nos demandou consultar uma liderança muçulmana brasileira, o Sheikh Jihad Hammadeh, sempre que surgiam dúvidas quanto à cultura e à compreensão dos termos.

Nas discussões que fizemos, existia uma preocupação com o empobrecimento das histórias, caso mudássemos radicalmente por algum de seus sinônimos – quando estes existiam – as palavras utilizadas por Malba Tahan. Pretendíamos criar contações que auxiliassem no letramento de crianças e adolescentes surdos. Concordamos que o letramento de surdos não deve ser reduzido à competência de escrita (Lodi et al., 2014Lodi, A. C. B., Bortolotti, E. C., & Cavalmoreti, M. J. Z. (2014). Letramentos de surdos: práticas sociais de linguagem entre duas línguas/culturas. Bakhtiniana, 9(2), 131-149, https://doi.org/10.1590/S2176-45732014000200009
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) e, por isso, é necessário considerar também o letramento dito visual (Taveira & Rosado, 2016Taveira, C. C., & Rosado, A. (2016). O letramento visual como chave de leitura das práticas pedagógicas e da produção de artefatos no campo da surdez. Revista Pedagógica, 18(39), 174-195. https://doi.org/10.22196/rp.v18i39.3621 16
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), que pressupõe didáticas visuais diferenciadas para que a pessoa surda tenha possibilidade d e ler o mundo. Por isso, entendemos que, quanto mais ricas as contações permanecessem, mais poderíam os contribuir com o letramento de pessoas surdas e a apropriação de um vocabulário amplo. Com essa preocupação em mente, criamos os vídeos sinalários (Figura 2).

Figura 2
Sinalário da dedicatória

Ao iniciar a tradução, verificamos que muitas palavras em português não possuíam sinais em Libras, ou que o conhecimento de tais sinais talvez não fosse tão amplo, devido à especificidade da história (nomes de matemáticos e filósofos ou aspectos culturais). Portanto, era necessária uma forma de tornar tais sinais compreensíveis, porém sem que houvesse uma explicação no meio da história, atrapalhando seu enredo. A solução deu-se por meio dos vídeos sinalários, que são como dicionários, que apresentam o sinal e, em seguida, seu significado.

Pretendíamos que os vídeos sinalários fossem sucintos, mas sua construção se mostrou desafiadora. Além disso, percebemos que o material criado para o sinalário também era um produto de pesquisa necessário. Se, como pesquisadores, não encontramos os termos, então poderíamos propor uma primeira aproximação com essas palavras e sinais e auxiliaríamos na compreensão de seus significados.

A partir da dedicatória, começamos a leitura dos capítulos do livro. Nesse primeiro momento, propusemo-nos a realizar leituras individuais e discussões coletivas. Percebemos a dificuldade de uma leitura solitária e da compreensão dos problemas trazidos por Malba Tahan em suas histórias. Por outra mirada, as discussões em reuniões pelo Google Meet dificultavam a comunicação com os alunos pesquisadores, dada a limitação da internet e a necessidade de tradução das falas e sinalizações para a compreensão de todos os envolvidos no projeto.

Mesmo com as dificuldades que se apresentavam, propusemo-nos a realizar as primeiras gravações da dedicatória e do capítulo 1. Para isso, discutimos sobre interpretação teatral, iluminação, enquadramento (Figura 3) e sobre um ambiente adequado na casa dos alunos pesquisadores em que fosse possível gravar.

Figura 3
Ilustração feita durante reunião para discutir enquadramento

A metodologia de trabalho a partir desse ponto se caracterizou pelas gravações dos estudantes, pelas correções dos orientadores, pelas regravações e avaliações finais (Figura 4).

Figura 4
Metodologia de trabalho durante o período de distanciamento social

Concordamos que o tempo entre uma gravação e uma correção foi extenso, dado que estávamos desenvolvendo a pesquisa remotamente. Algumas vezes as correções se relacionavam às sinalizações equivocadas, às configurações dos sinais para visualizações em vídeo e outras à iluminação ou ao enquadramento. Por fim, percebemos que o produto final não estava padronizado, dado que eram dois estudantes gravando com câmeras distintas e em ambientes diferentes.

Tentamos essa metodologia de trabalho por alguns meses, mas percebemos que encontros presenciais entre os membros da pesquisa poderiam encurtar o tempo de gravação. Quando as condições sanitárias possibilitaram o retorno à instituição com segurança, começamos a marcar reuniões para a gravação. A partir desse momento, mudamos a rota.

4.2 Mudança de rota... A retomada de atividades e a dinâmica das gravações presenciais

Em outubro de 2021, foi anunciado o início das vacinações em adolescentes de 12 a 17 anos de idade. Com todos os integrantes da pesquisa vacinados, foi possível marcar as gravações presenciais no campus.

Como as aulas ainda estavam ocorrendo de forma remota, havia disponibilidade das salas de aula para realizarmos as gravações. No entanto, para otimizarmos nossas idas ao campus, nossa dinâmica consistiu na criação das glosas e estudos e treinos por parte dos bolsistas antes do dia da gravação.

Os professores orientadores já estavam preparados para a gravação de vídeos, dada a necessidade que se fez durante a pandemia e o Ensino Remoto. Já tínhamos alguns materiais, como câmera profissional com tripé, tecido verde para o chroma-key e aparelhos de iluminação caseiros (Figura 5). Tais equipamentos foram levados para o campus e resolveram os problemas que estávamos tendo anteriormente.

Figura 5
Gravação presencial na instituição de ensino

Uma possibilidade que surgiu ao estarmos presencialmente no campus foi a discussão detalhada das histórias de Malba Tahan com os estudantes pesquisadores e a reflexão sobre eventuais dúvidas que tivessem em relação à história ou aos conceitos e às resoluções trazidos por Malba Tahan (Figura 6).

Figura 6
Discussão do problema dos 35 camelos

Com as gravações presenciais, os desafios concentraram-se na sinalização. Por um lado, tínhamos a intérprete revisando e sugerindo correções. Por outro lado, existia a dificuldade em encontrar os sinais de palavras de origem árabe ou muçulmana como “alá” e “ramadã”, e outras que indicam cargos ou títulos, como “xeque” e “vizir”.

Nossas tentativas de solucionar tais dificuldades se deram por meio do contato com o Sheikh Jihad Hammadeh, com intérpretes e com surdos, externos à instituição de ensino, que nos auxiliaram como consultores. Por intermédio dessa assessoria, discutimos e elaboramos as glosas (Figura 7) em que o texto original do livro era adaptado e simplificado – suprimindo palavras que consideramos desnecessárias para a compreensão da história.

Figura 7
Trecho de uma das glosas elaboradas

Posteriormente, as glosas eram adaptadas e passavam por correções para que a contação da história ficasse fluida. Além disso, anotações eram feitas pelos estudantes-pesquisadores e pelos professores-orientadores para auxiliá-los no momento da gravação (Figura 8).

Figura 8
Glosa adaptada com indicadores que auxiliam na interpretação

Um exemplo que ilustra algumas das dificuldades encontradas na gravação se dá na tradução do capítulo 2, quando Beremiz, o homem que calculava, explica ao narrador da história como se conta a quantidade de folhas em uma árvore:

Aquela árvore, por exemplo, tem duzentos e oitenta e quatro ramos. Sabendo-se que cada ramo tem, em média, trezentas e quarenta e sete folhas, é fácil concluir que aquela árvore tem um total de noventa e oito mil, quinhentas e quarenta e oito folhas! (Tahan, 2014, p. 18Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

Nesse trecho, em específico, foram consultados dois surdos externos à instituição de ensino para que pudéssemos realizar a interpretação da forma mais coerente possível. Nesse momento, a ideia de uma complementação visual da história para acompanhar a narrativa em Libras ganhou mais força. Colocar elementos visuais para apoiar os cálculos matemáticos que estavam ocorrendo durante a contação da história também seria um fator que contribuiria para o seu entendimento. Essas questões e reflexões são constitutivas do terceiro momento da pesquisa, que discutiremos no próximo tópico.

4.3 A edição, a avaliação do trabalho e a divulgação dos produtos da pesquisa

Nossa metodologia de trabalho caracterizou-se de forma cíclica. Para cada capítulo do livro, realizamos: a leitura, a discussão em grupo, a adaptação do texto, a criação das glosas, a gravação, a revisão e, com todo esse material pronto, partirmos para outros momentos – edição, criação artística, animação, nova edição, desenvolvimento da legenda, criação do canal e divulgação.

Esse momento, em que várias decisões deveriam ser tomadas, gerou diversas discussões em grupo. Entre elas estavam: (i) delimitação das características do fundo do vídeo – um fundo liso para contemplar surdos com baixa visão ou um fundo com liberdade artística privilegiando a estética; (ii) definição da disposição dos elementos na tela e do tamanho que ocupariam a tela do intérprete e as animações; (iii) definição sobre a possibilidade de os vídeos terem som e quais as implicações dessa decisão; (iv) decisão sobre a inclusão ou não de legendas.

A partir de nossas discussões e dos testes, decisões foram tomadas e refletiram nos produtos finais da pesquisa. Todavia, antes de finalizá-los, percorremos um longo caminho chamado edição e animação. O primeiro passo desse caminhar consistiu em cortar os vídeos gravados no campus, eliminando as partes que continham erros, para então unir os arquivos na sequência da história. Com o encadeamento dos vídeos, retiramos o fundo verde (chroma-key) e fizemos o tratamento das imagens para ajustar o contorno dos estudantes bolsistas. A partir daí, foi feita a montagem e a renderização do vídeo, deixando o espaço para os elementos visuais que seriam criados e posteriormente adicionados à edição. Esse primeiro vídeo serviu de base para a criação das animações.

A qualidade das animações e a consistência dos elementos visuais foram um ponto das nossas discussões. Queríamos que os vídeos fossem utilizados por professores em sala de aula, assim a qualidade do produto final nos era cara. Não queríamos pegar imagens prontas com traços diferentes e que não conversassem entre si. Para solucionar essa dificuldade, o processo de animação foi todo realizado por nós, os desenhos foram feitos a partir da composição de imagens da internet, utilizando o programa Adobe Photoshop (Figura 9).

Figura 9
Composição para a criação do cenário do capítulo 3

Com as imagens prontas, o processo de animação das imagens foi iniciado, com a utilização do programa Adobe After Effects. O vídeo com a contação da história pelos estudantes pesquisadores era disposto no canto superior direito da tela, com o objetivo de orientar o trabalho de animação. As imagens inseridas e animadas buscavam acompanhar o tempo de interpretação do bolsista (Figura 10).

Figura 10
Processo de animação no software After Effects

O trabalho de criação da animação e da edição ficou a cargo de um dos orientadores, que estava familiarizado com os programas. Entretanto, pensando na formação dos estudantes pesquisadores, existia um trabalho de ensino sobre programas de edição e animação. Na Figura 11, está um dos resultados de edição desenvolvido pelo estudante-pesquisador-surdo.

Figura 11
Retirada de fundo e inclusão de outro

Nessa etapa, também discutimos sobre locais que eram indicados nas histórias e sobre suas coordenadas geográficas. Sentimos a necessidade de incluir nos vídeos alguns mapas que pudessem dar uma noção para a pessoa surda sobre os locais em que se desenvolviam as histórias. Por exemplo, nos capítulos 1 e 4, nosso narrador conhece seu amigo Beremiz, o homem que calculava, às margens do Rio Tigre, em algum lugar entre as cidades de Samarra e Bagdá. A partir daí, decidem continuar a viagem juntos rumo a Bagdá. No início do capítulo 4, eles passam por um lugar chamado Sippar, onde encontram um Xeque.

Geograficamente, Sippar não fica no caminho entre Samarra e Bagdá. Era necessária uma solução para ilustrar o trajeto seguido pelos viajantes. Na animação, traçamos um caminho que fazia curvas como se eles estivessem perdidos, o que sugeria que chegar a Sippar havia sido uma consequência em seu erro de trajeto (Figura 12).

Figura 12
Solução encontrada para o resolver o problema de localização geográfica dos viajantes

A conclusão de que Malba Tahan talvez tenha se equivocado na disposição dos locais no mapa para narração da história se deu após a análise de mapas encontrados na pesquisa de imagens do Google e no Google Maps. Tomamos o cuidado de investigar mapas que remontavam à época14 14 Houve uma grande dificuldade nesta pesquisa, pois a região é alvo de diversos conflitos que mudaram suas fronteiras ao longo do tempo. Talvez o próprio Malba Tahan tenha encontrado essa dificuldade na criação de suas histórias. que serviu de base para a construção das histórias de Malba Tahan e, a partir dessa pesquisa, criamos nosso próprio mapa (Figura 12) por meio da sobreposição das imagens encontradas (Figura 13).

Figura 13
Estudos de mapas para criação das imagens dos locais da história

A criação dos desenhos dos personagens também suscitou uma discussão no grupo que impactou a gravação dos capítulos seguintes. A proposta de colocar uma animação junto à interpretação surgiu com a ideia de que recursos visuais auxiliariam no entendimento da história, pois a posição adotada durante a interpretação talvez não fosse suficiente para diferenciar um personagem de outro. Na discussão em grupo, a primeira solução que surgiu foi a inclusão de um elemento visual para cada personagem na edição. Assim, quando os estudantes pesquisadores interpretavam personagens diferentes, as cores principais da vestimenta daquele personagem apareceriam no canto inferior esquerdo da tela para identificar quem estava falando (Figura 14).

Figura 14
Identificação dos personagens após a edição

A questão da identificação dos personagens apareceu novamente no capítulo três, pois três novos personagens surgiram na história – irmãos que discutiam pela herança deixada por seu pai – e isso poderia confundir os espectadores que assistissem ao vídeo. Assim, surgiu a ideia de caracterizar os estudantes bolsistas com tecidos, chapéus e outros apetrechos que os identificassem como um ou outro personagem, servindo como elemento complementar dos processos anafóricos (Quadros & Karnopp, 2004Quadros, R. M. de, & Karnopp, L. B. (2004). Língua Brasileira de sinais: estudos linguísticos. Artmed.) empregados durante a contação das histórias (Figura 15).

Figura 15
Caracterização dos personagens

Essa caracterização dos personagens foi útil não só para facilitar a narrativa, mas também para criar os desenhos dos personagens que acompanhariam a contação das histórias. Tivemos o cuidado de fazer com que os personagens fossem diversos e representassem as características das pessoas que viveram na região da Mesopotâmia (Figura 16).

Figura 16
Alguns personagens das histórias

Concluídas as animações e a edição dos primeiros vídeos, os produtos finais da pesquisa passaram por uma última avaliação de pessoas surdas externas ao campus, da intérprete e dos professores orientadores.

Por fim, decidimos que a divulgação das histórias se daria pela plataforma YouTube e, para isso, criamos o canal “Fantásticas Histórias de Malba Tahan em LIBRAS”15 15 Canal disponível em: https://www.youtube.com/c/FantásticasHistóriasdeMalbaTahanemLIBRAS (Figura 17).

Figura 17
Canal de divulgação no YouTube

A divulgação das primeiras contações de histórias em Libras foi feita na data de nascimento do professor Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan. Ele estaria completando 127 anos no dia 6 de maio de 2022. O número 127 é um primo de Mersenne – um número primo

da forma Mp = 2p — 1, no nosso caso, tomando p — 7, obtemos 127 – isso nada mais é que uma curiosidade sobre esse número, curiosidade que sempre foi uma das características de Malba Tahan.

5 Considerações ou das mil histórias sem fim...

Não resta dúvida. De todos os problemas, o que Beremiz melhor resolveu foi o da vida e do amor. E aqui termino, sem fórmulas e sem números, a história simples da vida do Homem que Calculava. (Tahan, 2014, p. 240Tahan, M. (2014). O homem que calculava. Record.)

Ao nos propormos a contar as histórias de Malba Tahan em Libras, possibilitamos a criação de um material didático que pode auxiliar professores de diferentes áreas que tenham estudantes, crianças e adolescentes, surdos que estão em processo de letramento em Português e em Libras. Para além disso, disponibilizar histórias para as pessoas surdas tem como objetivo primeiro o encantamento. Desejamos com esta pesquisa que os sujeitos adentrem o mundo criado por Malba Tahan e sintam prazer em fazer matemática.

Compreendemos a surdez como uma diferença, e é por isso que materiais, fruto de pesquisas, precisam ser criados para atender às especificidades desse grupo de forma satisfatória. A diferença nos provoca, nos coloca na busca, nos indaga e desafia a pensar o novo.

Como resultados desta pesquisa, podemos citar: a quantidade de visualizações (4.840) que as contações tiveram nesse curto espaço de tempo em que o canal no YouTube está disponível; o alcance e a projeção dos produtos – com acessos em Portugal e no Brasil. Em nosso país, nossos vídeos foram visualizados em várias cidades de diferentes estados como: São Paulo, Registro, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Campinas, Cabo de Santo Agostinho, João Pessoa, Teresina, Brasília e Salvador. Nosso desejo é que as contações criadas possam ser utilizadas nas salas de aula em diferentes locais do Brasil e do mundo, tal qual alguns professores já nos relataram, nas redes sociais, estar acontecendo.

Na Figura 18, um professor de uma escola rural do interior de São Paulo nos enviou uma foto de sua aula em que utiliza uma das contações criadas durante esta pesquisa. Em seu relato, ele evidenciou o incômodo das crianças ouvintes ao ver o vídeo e perceberem que não tinha áudio em português.

Figura 18
Aula de matemática utilizando um vídeo do canal

A diferença causa incômodo quando não estamos acostumados com ela. Esse incômodo é educativo, faz-nos refletir sobre nós e sobre os outros.

Para além das contribuições no âmbito da pesquisa, entendemos que este projeto contribuiu com o estudante-pesquisador surdo em sua formação, dado o desenvolvimento de habilidades de leitura, interpretação de texto, comunicação em Libras e de raciocínio matemático.

Por fim, entendemos que o desenvolvimento desta pesquisa reafirmou a indissociabilidade entre ensino, pesquisa, inovação e extensão e indicou caminhos para novos estudos que busquem criar materiais na perspectiva inclusiva.

  • 2
    Pesquisa financiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIFSP) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
  • 9
  • 10
    Neste texto, por um lado, a primeira pessoa do plural é utilizada, dada a importância da colaboração para o desenvolvimento da pesquisa. Por outro lado, nossa perspectiva de linguagem assume que nossas palavras são forjadas pela palavra do outro; dessa forma, qualquer texto que venha a ser criado é polifônico (Bakhtin, 1997Bakhtin, M. (1997). Estética da criação verbal. Martins Fontes.).
  • 11
    Utilizamos, neste mapeamento inicial, os termos “Malba Tahan e Libras”, “Homem que Calculava e Libras”, “Libras e histórias de Malba Tahan”.
  • 12
    Em nossa instituição, o Ensino Remoto deu-se por meio da plataforma Moodle e de encontros síncronos pelo Google Meet.
  • 13
    Aplicativo de gerenciamento de projetos baseado na metodologia Kanban. Ver https://trello.com/pt
  • 14
    Houve uma grande dificuldade nesta pesquisa, pois a região é alvo de diversos conflitos que mudaram suas fronteiras ao longo do tempo. Talvez o próprio Malba Tahan tenha encontrado essa dificuldade na criação de suas histórias.
  • 15

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Revisado
    10 Jul 2023
  • Aceito
    17 Jul 2023
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