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A presença de Majorana na física contemporânea

Majorana’s presence in contemporary physics

Resumos

Apresenta-se neste trabalho uma abordagem da vida científica de Ettore Majorana com o objetivo de fornecer subsídios para transposições didáticas durante cursos de bacharelado e licenciatura em física, bem como durante cursos de mestrado acadêmico ou profissional em ensino de física. São discutidas especialmente as contribuições de Majorana para a formulação da teoria da interação forte e para a revisão da teoria de Dirac, com o consequente surgimento do neutrino de Majorana e dos férmions de Majorana. Também são apresentados os resultados obtidos por Majorana em 1932, e que foram usados por Rabi no artigo que é considerado como a origem da ressonância magnética nuclear.

Palavras-chave:
Majorana; física contemporânea; neutrinos; férmions; decaimento beta


This work presents an approach to the scientific life of Ettore Majorana with the aim of providing support for didactic transpositions during undergraduate courses in physics, as well as during academic or professional master’s courses in physics teaching. Specially discussed are Majorana’s contributions to the formulation of the strong interaction theory and to the revision of Dirac’s theory, with the consequent emergence of the Majorana neutrino and Majorana fermions. Also presented are the results obtained by Majorana in 1932, which were used by Rabi in the article that is considered the origin of nuclear magnetic resonance.

Keywords:
Majorana; contemporary physics; neutrinos; fermions; beta decay


1. Introdução

Em crônica que publiquei recentemente na Tribuna do Norte [1[1] C.A. dos Santos, Tribuna do Norte, disponível em: https://tribunadonorte.com.br/colunas/artigos/majorana-desapareceu-antes-de-ganhar-o-nobel/.
https://tribunadonorte.com.br/colunas/ar...
] afirmei: “Se você não participa do seleto grupo de pesquisadores de física das partículas elementares, provavelmente jamais ouviu falar em Ettore Majorana. Na melhor das hipóteses ouviu falar muito superficialmente”. A afirmação resultou de uma breve enquete que fiz com físicos da matéria condensada, e de um levantamento no Google Acadêmico (GA) usando a expressão de busca “ettore majorana”. Como se vê na Fig. 1, a literatura brasileira a respeito do hoje famoso físico italiano começou e ter alguma relevância numérica depois de 2010. Mesmo assim, trata-se de uma quantidade irrelevante frente à literatura internacional. Com essa mesma expressão de busca, o GA recupera, na literatura internacional, 50 documentos em 1950, e aproximadamente 500 em 2023.

Figura 1
Número de documentos recuperados pelo Google Acadêmico na literatura brasileira, para a expressão de busca “Ettore Majorana”.

Tudo indica que a primeira publicação no Brasil sobre Majorana surgiu em 1985 [2[2] M. Fracastaro-Decker e E. Recami, Rev. Bras. História da Ciência 2, 52 (1985).]. Um dos autores desse artigo, Erasmo Recami, é um conhecido biógrafo de Majorana. Depois dessa publicação há uma resenha de 1991 [3[3] H. Fleming, Rev. USP 11, 159 (1991).], do livro de Leonardo Sciascia, “Majorana desapareceu” [4[4] L. Sciascia, Majorana Desapareceu (Rocco, Rio de Janeiro, 1991).]. O primeiro trabalho dirigido à formação de professores de física foi apresentado em 2006, durante o X EPEF [5[5] V. Morcelle, V. Campbell, O.A.P. Tavares e N.V. Vugman, in: X Encontro Pesquisa em Ensino Física (Curitiba, 2006).]. A partir de 2010 começam a surgir trabalhos científicos com referências aos estudos de Majorana, mas esses trabalhos puramente científicos estão fora do escopo do presente artigo. O escopo aqui está restrito à abordagem das descobertas de Majorana com objetivos pedagógicos na formação de professores de física. Neste sentido valem as referências à primeira tese de doutorado sobre o tema, apresentada em 2008, na PUC-SP [6[6] M.S. Martins, História das Partículas: de Elétrons aos Quarks. Tese de Doutorado, Universidade Católica de São Paulo, São Paulo (2008).], e aos trabalhos de conclusão de curso (TCC) realizados até o presente [7[7] D.M. Souza, Férmions de Majorana e a Cadeia de Kitaev. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal Fluminense, Niterói (2018).,8[8] O. Ferreira-Neto, Explorando a Equação de Dirac: Um Passeio Por Isolantes Topológicos e Férmions de Majorana. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de Uberlância, Uberlância (2019).,9[9] J.F. Amorim, Introdução à Física de Neutrinos. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal (2019).,10[10] M.J.C. França, Férmions de Majorana. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal do Ceará (2021).].

Dados importantes sobre a biografia de Ettore Majorana podem ser obtidos na literatura supra citada, razão pela qual ficarei aqui restrito às informações diretamente ligadas à sua atividade científica, objetivando uma transposição didática para a formação de licenciados e bacharéis em física, bem como para uso em disciplinas do MNPEF.

Em julho de 1929, um ano depois de sua transferência do curso de engenharia para a física, Majorana defende sua tese de doutorado, sob orientação de Enrico Fermi. É a primeira vez que na Itália alguém usa a física quântica para estudar o núcleo atômico. Majorana era assim, pioneiro na abordagem de problemas difíceis, mas relutava até não poder mais à publicação de seus resultados; um comportamento absolutamente incompreensível para um cientista. Somente em 1931, depois de muitos pedaços de papel jogados no lixo, com cálculos originais, e muita insistência de Fermi, Majorana publica seu primeiro artigo solo1 1 Em 1928 ele havia publicado, na Rendiconti Accademia Lincei, um trabalho em colaboração com Giovanni Gentile Jr. Tudo indica que se tratava de um trabalho de Gentile, para o qual Majorana fez alguma contribuição. Por isso esse trabalho não será considerado no presente artigo. , na “Nuovo Cimento”, a mais importante revista de física na Itália. Entre 1931 e 1933 ele publica, sempre solitário, mais seis artigos, e 1937 é o ano da publicação de seu último artigo2 2 Há um artigo que foi publicado postumamente, em 1942, sobre o valor das leis estatísticas na física e nas ciências sociais, que também não será considerado aqui porque está fora do escopo do presente trabalho. . O conturbado período da sua vida, entre 1933 e 1938, quando ele desaparece sem deixar vestígio, é abordado na literatura citada [2[2] M. Fracastaro-Decker e E. Recami, Rev. Bras. História da Ciência 2, 52 (1985).5[5] V. Morcelle, V. Campbell, O.A.P. Tavares e N.V. Vugman, in: X Encontro Pesquisa em Ensino Física (Curitiba, 2006).]. Assim como 1666 é considerado o ano miraculoso de Newton, e 1905 o de Einstein, Étienne Klein considera 1931 e 1932 os anos miraculosos de Majorana [11[11] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013).]. Por esses trabalhos ele passa a despertar o interesse de cientistas hoje famosos. Entre 1930 e 1945 ele foi citado por Enrico Fermi (Prêmio Nobel de Física, PNF, em 1938), Felix Bloch (PNF, 1952), Isidor Isaac Rabi (PNF, 1944), Eugene Wigner (PNF, 1963), Julian Schwinger (PNF, 1965), John Hasbrouck Van Vleck (PNF, 1977), e Werner Karl Heisenberg (PNF, 1932). O mais interessante nisso tudo é que seus sete trabalhos impactaram diferentes áreas da física.

Por exemplo, Heisenberg, um dos pais da teoria quântica, estava investigando como prótons e nêutrons permaneciam ligados no interior do núcleo. Até aquele momento, início dos anos 1930, os fenômenos nucleares pertenciam mais ao domínio da química. Um pouco antes de Heisenberg elaborar sua teoria sobre a estrutura dos núcleos atômicos, Majorana introduziu o conceito de força de troca, citado por Heisenberg em um artigo publicado em 1935. Estamos acostumados com a força gravitacional e com a força eletromagnética. Ambas as forças são intermediadas, respectivamente, pelo campo gravitacional e pelo campo eletromagnético. E no caso da força de troca, quem a intermedia? Não precisa ser especialista para imaginar: é o campo nuclear que faz a intermediação. Estava nascendo a interação forte, a terceira interação fundamental da natureza, depois da interação gravitacional e da interação eletromagnética.

Essa ideia avançou rapidamente, e já em 1935 o físico japonês Hideki Yukawa (PNF, 1940) propôs que o campo nuclear aparecia por intermédio de uma nova partícula, que ele chamou de méson, imediatamente descoberta em experimentos com raios cósmicos. Um desses mésons, o méson pi, foi descoberto pelo físico brasileiro Cesar Lattes, em colaboração com pesquisadores italianos, estadunidenses e britânicos. Portanto, Majorana está no início dessa história.

Em 1935, quando Isidor Isaac Rabi estava investigando as propriedades magnéticas dos núcleos atômicos, ele fez uso de resultados publicados por Majorana em 1932. Por esses estudos Rabi ganhou o Nobel de Física de 1944, e seus resultados resultaram na descoberta da ressonância magnética nuclear, uma técnica presente hoje em qualquer hospital de porte médio.

Em apenas sete artigos e em conversas com Enrico Fermi e seus colaboradores, Majorana previu e antecipou descobertas científicas importantes. Algumas dessas antecipações ainda estão à espera de comprovações experimentais. Em 1932, ao ler o artigo do casal Irène e Frédéric Joliot-Curie, ele previu a existência do nêutron, que seria comprovada poucas semanas depois por James Chadwick.

A partir dos anos 1980, as referências às descobertas de Majorana aumentaram vertiginosamente. Duas expressões passaram a dominar a literatura: Neutrino de Majorana e Férmions de Majorana. A Fig. 2 mostra as quantidades de documentos recuperados pelo GA, de 1934 a 2023, para as expressões “majorana neutrino” e “majorana fermions”. Inicialmente as referências pertenciam ao domínio da física de partículas elementares, até que em 1960 surge a primeira referência aos férmions de Majorana na área da supercondutividade, que atualmente domina as referências a Majorana. Dos 16.000 documentos recuperados pelo GA no período 2014–2023, 10.400 pertencem à área da supercondutividade.

Figura 2
Número de documentos recuperados pelo Google Acadêmico, em qualquer idioma, para a expressão de busca “majorana neutrino” e “majorana fermions”.

A questão que pretendo abordar aqui é: Como transpor didaticamente esse importante conhecimento da física contemporânea para o nível acadêmico da formação de professores de física? Na sequência apresentarei uma narrativa que considero consistente com o nível de formação de licenciados e bacharéis em física, bem como de candidatos aos mestrados (acadêmicos e profissionais) de ensino de física.

Para facilitar o acompanhamento da narrativa, apresento um mapa conceitual sobre partículas elementares bastante reduzido (Fig. 3).

Figura 3
Mapa conceitual resumido sobre partículas elementares.

A abordagem didática que farei a seguir ficará restrita aos férmions. Interessados em abordagens didáticas mais detalhadas podem consultar o artigo de Moreira [12[12] M.A. Moreira, Rev. Ens. Fís. 11, 114 (1989).]. A configuração apresentada na Fig. 3 só começa a se desenhar depois de 1932, com a descoberta do nêutron. Até então, o átomo era constituído de um núcleo contendo prótons e de elétrons que orbitavam em volta desse núcleo. Como veremos a seguir, antes de 1930 acreditava-se também que o núcleo poderia conter uma partícula neutra, formada pelo par próton-elétron. Essa hipótese foi negada pela descoberta do nêutron.

2. Neutrone – Neutrino

A descoberta do nêutron resulta de experimentos iniciados por Rutherford, na primeira década do século 20, nos quais ele bombardeava vários materiais com partículas alfa. Foi com esses experimentos que ele chegou a propor o modelo atômico que Bohr desenvolveu, e que por isso ficou conhecido como modelo de Bohr. Na década seguinte Rutherford descobriu o próton, realizando o mesmo tipo de experimento. Portanto, não deve causar espanto o fato de que foi Chadwick, um colaborador de Rutherford, quem matou a charada do nêutron. Vejamos como tudo isso ocorreu.

Entre os experimentos realizados por Rutherford, por volta de 1919, podemos destacar aquele que ele interpretou por meio dessa reação:

(1) H 2 4 e + N 7 14 O 8 17 + H 1 1 .

Rutherford bombardeou nitrogênio com partículas alfa e obteve oxigênio e “átomo de hidrogênio carregado” [13[13] E. Rutherford, Proc. R. Soc. Lond. A 97, 374 (1920).]. Logo depois, esse “átomo de hidrogênio carregado” foi denominado próton, por sugestão de Lodge [14[14] O. Lodge, Nature 106, 467 (1920).]. A reação (1) mostra que átomos de nitrogênio se transformam em átomos de oxigênio, quando bombardeados por partículas alfa. É a primeira vez que se observa a transmutação nuclear. Ao discutir seus resultados, durante sua conferência Bakeriana, ministrada em 1920, Rutherford previu a existência do nêutron, que na sua concepção era formado pelo par próton-elétron [13[13] E. Rutherford, Proc. R. Soc. Lond. A 97, 374 (1920).].

Aparentemente, poucos levaram em conta essa previsão de Rutherford, mas muitos pesquisadores começaram a realizar experimentos similares para observar o fenômeno da transmutação nuclear. Foi por esse caminho que em 1930 Bothe e Becker apresentaram os primeiros indícios experimentais da existência do nêutron [15[15] E. Amaldi, Phys. Rep. 111, 1 (1984).], quando bombardearam alguns elementos leves (Li, Be, B, F) com partículas alfa. Aqui começa a história do nêutron e do neutrino.

Bothe e Becker interpretaram seus resultados a partir da reação [15[15] E. Amaldi, Phys. Rep. 111, 1 (1984).]:

(2) H 2 4 e + B 4 9 e C 6 13 + γ .

Irène e Frédéric Joliot-Curie repetiram o experimento de Bothe e Becker e chegaram à conclusão de que esses “raios gama” poderiam produzir transmutação [16[16] C.A. dos Santos, Sci. Unisinos 9, 27 (1998).]. Para testar essa hipótese, eles iniciaram uma série de experimentos, colocando diferentes materiais na frente dos raios γ. Em 18 de janeiro de 1932, eles relataram que prótons eram ejetados dos materiais ricos em hidrogênio, por exemplo, a parafina. Esse efeito era obviamente resultante da interação entre aquilo que se pensava ser um raio gama, e os prótons do material. Para esta radiação produzir um deslocamento considerável de prótons, com energia da ordem de 5 MeV, através do efeito Compton, é necessário que ela tenha energia da ordem de 50 MeV [17[17] J. Six, La Découverte du Neutron (Éditions du Centre National de La Recherche Scientifique, Paris, 1987).], um valor exageradamente alto.

Tão logo leu o artigo do casal francês, Majorana comentou [18[18] C. Weiner, American Institute of Physics, Niels Bohr Library & Archives 38 (1969), disponível em: https://www.aip.org/history-programs/niels-bohr-library/oral-histories/4485-1.
https://www.aip.org/history-programs/nie...
]: “Bem, os Joliots não entenderam nada. Eles não entendem o que fazem. É tão claro. Eles falam de raios gama, mas o que o artigo mostra é que existe um próton neutro.” [Tradução minha]. Fermi sugeriu que ele publicasse uma nota com seus comentários, mas o “grande inquisidor” não levou em conta o conselho do “papa”3 3 Entre o pessoal do Instituto de Física da Universidade de Roma, “papa” era o apelido de Fermi. Majorana era o “grande inquisidor”. [11[11] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013).]. Algumas semanas depois aparece, na Nature, o artigo de Chadwick, que a literatura considera como a descoberta do nêutron [19[19] J. Chadwick, Nature 129, 312 (1932).]. O ex-aluno de Rutherford concluiu que a radiação que se imaginava ser gama era na verdade um feixe de partículas neutras com a massa aproximadamente igual à do próton. Em vez dos 50 MeV necessários, caso a radiação fosse um gama, como propunham Irène e Frédéric Jolito-Curie, Chadwick mostrou que seriam necessários apenas 4,5 MeV para ejetar o próton com energia similar, caso a radiação fosse o nêutron, conforme a reação proposta por Chadwick:

(3) H 2 4 e + B 4 9 e C 6 12 + n 0 1 .

O equívoco do casal Joliot-Curie foi induzido pelo modelo nuclear de então, segundo o qual o núcleo era constituído de prótons e elétrons. Assim, o átomo de berílio, com número atômico 4 e massa nuclear igual a 9 prótons, teria o núcleo constituído por 9 prótons e 5 elétrons. Com tal constituição, ele pode emitir um raio gama de até 70 MeV, compatível com a interpretação do casal francês. Todavia, por volta de 1932, esse modelo apresentava tantas contradições que poucos o aceitavam. Ele fora abandonado antes mesmo do surgimento de uma alternativa viável. Esse cenário é bem descrito por Recami [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017).] e por Magueijo que o denomina de “crise nuclear” [21[21] J. Magueijo, A Brilliant Darkness (Basic Books, New York, 2009).]. Essa história, tão relevante para o desenvolvimento da física, deve fazer parte do universo cultural de bacharéis e licenciados em física, bem como de mestres em ensino de física. O texto a seguir foi largamente baseado nas duas referências supra citadas.

Para bem apreciarmos a “crise nuclear” devemos ter em mente que os antecedentes históricos vêm do final do século 19, quando foi descoberto que os elementos radioativos emitem três tipos de radiação: alfa, beta e gama [22[22] R.A. Martins, Rev. Soc. Bras. Hist. Cienc. 1, 28 (2003).]. A “crise nuclear” tem a ver com a investigação da radiação beta, ou seja, com o fenômeno que desde o início passou a ser conhecido como decaimento beta. Alguns resultados obtidos ao longo dos anos 1920 embaraçaram a comunidade que os investigava, principalmente o espectro contínuo de energia das partículas beta liberadas nos experimentos (Fig. 4).

Figura 4
Espectro típico observado no decaimento beta. Adaptado dehttps://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f6/Beta_Ray_Spectrum.PNG. Acesso em 3/1/2024.

As energias das partículas beta eram sistematicamente menores do que aquelas previstas pela equação de Einstein, E = mc2. Energia estava desaparecendo e ninguém sabia para onde ia. Chegaram mesmo a imaginar que a lei da conservação de energia talvez não valesse naqueles experimentos. Foi nesse contexto, que em total desespero, Pauli escreve para Lise Meitner, em dezembro de 1930, propondo a existência de uma nova partícula no núcleo, com massa desprezível, que ele denominou nêutron, e que seria responsável por transportar parte da energia prevista pela equação de Einstein. Quando, pouco mais de um ano depois Chadwick descobriu o nêutron, que os italianos denominavam “neutrone”, tão pesado quanto o próton, a denominação nêutron para aquela partícula quase sem massa não fazia sentido, razão pela qual os italianos denominaram “neutrino” a partícula prevista por Pauli. Magueijo [21[21] J. Magueijo, A Brilliant Darkness (Basic Books, New York, 2009).] atribui a Fermi a invenção da palavra, mas Recami afirma que foi Amaldi quem cunhou o termo, em conversa com Fermi [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017).]. É curioso que nas entrevistas que concedeu ao AIP, Amaldi não menciona esse importante fato [18[18] C. Weiner, American Institute of Physics, Niels Bohr Library & Archives 38 (1969), disponível em: https://www.aip.org/history-programs/niels-bohr-library/oral-histories/4485-1.
https://www.aip.org/history-programs/nie...
, 23[23] T.S. Kuhn, American Institute of Physics, Niels Bohr Library & Archives 42 (1963), disponível em: https://www.aip.org/history-programs/niels-bohr-library/oral-histories/4484.
https://www.aip.org/history-programs/nie...
]. De qualquer modo, o mundo acadêmico tomou conhecimento da palavra por intermédio de Fermi, na conferência de Paris, realizada em julho de 1932, sobre o estado da física e do núcleo atômico naquela época [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017).]. Portanto, 1932 é o ano em que se completa o início da parte à esquerda do mapa das partículas elementares (Fig. 3), com elétrons e neutrinos na categoria dos léptons, e prótons e nêutrons na categoria dosbárions.

Aquele foi um momento ao mesmo tempo glorioso e triste para Fermi. A glória vem da sua teoria para o decaimento beta, considerado como o primeiro trabalho sobre as interações fracas, a terceira interação conhecida na natureza, depois da gravitacional e de eletromagnética. Imediatamente após surgirá a interação forte, da qual nos ocuparemos mais adiante. Infelizmente, o artigo de Fermi foi rejeitado pela revista Nature, com o argumento de que “continha especulações muito distante da realidade para ser de interesse do leitor” [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017).]. Triste e decepcionado, Fermi publicou na Ricerca Scientifica [24[24] E. Fermi, Ric. Sci. 4, 491 (1933).] e na Zeitschrift für Physik [25[25] E. Fermi, Zeitschrift Für Phys. 88, 161 (1934).]. Uma versão em inglês foi publicada em (https://www.zeroic.com/writing/neutrino.pdf), e um bom relato desse fato encontra-se na Wikipedia (https://en.wikipedia.org/wiki/Fermi%27s_interaction#cite_note-Wilson-9). Seguirei aqui as obras de Amaldi, colaborador de Fermi e contemporâneo de Majorana [15[15] E. Amaldi, Phys. Rep. 111, 1 (1984).] e de Recami conhecido biógrafo de Majorana [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017)., 26[26] E. Recami, Electron. J. Theor. Phys. 3, 1 (2006).,27[27] E. Recami, Int. J. Mod. Phys. D 23, 1444009 (2014).,28[28] S. Esposito, E. Recami, A. Van-der-Merwe e R. Battiston, Ettore Majorana: Unpublished Research Notes on Theoretical Physics (Springer, New York, 2009).].

Na abertura do seu artigo [25[25] E. Fermi, Zeitschrift Für Phys. 88, 161 (1934).], Fermi comenta a dificuldade imposta pelo espectro contínuo da radiação beta (Fig. 4). Ele se refere à proposta de Pauli para a existência de uma nova partícula, “o chamado ‘neutrino”’, com massa similar à do elétron, e que será usado na teoria. Na sequência ele apresenta uma argumentação qualitativa da teoria, cuja base reside na hipótese de que no decaimento beta o núcleo emite um elétron (partícula beta) e um neutrino, que dividem a energia medida prevista pela equação de Einstein. A energia medida e exibida na Fig. 4 é aquela atribuída à partícula beta. Como o neutrino não tem carga elétrica, e tem uma massa muito pequena, ele escapa de qualquer sensor conhecido.

Embora Fermi não tenha colocado em seu artigo, ele se refere explicitamente à a reação proposta por Pauli:

(4) n 0 1 p 1 1 + e + ν .

Foi na elaboração da sua teoria que Fermi abandonou a ideia, ainda predominante, de que havia elétrons no núcleo. Ele diz explicitamente:

A maneira mais simples de construir uma teoria que permita uma discussão quantitativa dos fenômenos em que o elétron nuclear participa parece, consequentemente, ser a de perseguir a hipótese de que o elétron não existe como tal no núcleo antes da emissão beta, mas sim, como foi afirmado, que ele adquire existência no momento preciso em que é emitido – exatamente da mesma forma que um quantum de luz emitido por um átomo em um salto quântico não é de forma alguma considerado como tendo pré-existido no átomo antes do processo de emissão. [Tradução minha].

Usarei uma linguagem ao nível da disciplina de física moderna, geralmente ministrada na licenciatura e no bacharelado, para relatar como Fermi abordou esse problema. Trata-se, portanto, de uma transposição didática do formalismo matemático avançado da mecânica quântica (MQ) para o cenário compreensível por quem já cursou ou está cursando física moderna.

Todo o formalismo da MQ baseia-se na ideia de operador e observável. O nome operador é sugestivo. Quando ele “opera” sobre determinado sistema, ele produz algo que pode ser observado, e como era de se esperar, esse “algo que pode ser observado” é o observável associado ao operador. Por exemplo, a equação de Schrödinger, que normalmente é apresentada nos cursos de física moderna na forma diferencial, pode ser escrita na forma do operador de energia, H^ (hamiltoniano):

(5) H ^ | Ψ e = E | Ψ e .

A eq. (4) representa o fato de que o operador hamiltoniano aplicado à função de onda de um elétron em determinado estado, resulta na energia do elétron nesse estado. Para introduzir essa ideia de operadores no decaimento beta, vamos descrever o sistema abordado por Fermi. No núcleo existem partículas pesadas, prótons e nêutrons. Fermi associou a cada uma um estado quântico, algo como a função Ψ na eq. (5). No processo, o núcleo libera um elétron (partícula beta) e um neutrino, duas partículas leves. No interior do núcleo um nêutron se transforma em próton. O que Fermi queria era obter uma expressão para a energia de interação entre as partículas leves e as pesadas. Estava nascendo o que hoje conhecemos como energia de interação fraca.

Para chegar na expressão da energia, Fermi definiu um operador para cada partícula: Ψ (elétron), Φ (neutrino), Q(próton) e Q*(nêutron). Esses dois últimos operadores determinam, respectivamente, a transição de um próton para um nêutron, e de um nêutron para um próton. Utilizando cálculos complexos desenvolvidos em 1927 por Dirac, Jordan e Klein, Fermi obteve a expressão para a energia de interação entre as partículas leves e as pesadas. A expressão que ele obteve associa a transição de um nêutron para um próton, ou seja, a atuação do operador Q*, com a criação de um elétron e um neutrino. A expressão também associa a transição de um próton para um nêutron, ou seja, a atuação do operador Q, com o desaparecimento de um elétron e um neutrino.

Nessa mesma época, início de 1932, Majorana também chegou ao neutrino, mas por um caminho diferente daquele seguido por Pauli e Fermi. O caminho de Majorana começou com a teoria de Dirac sobre a mecânica quântica [29[29] P.A.M. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 109, 642 (1925).,30[30] P.A.M.. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 112, 661 (1926).,31[31] P.A.M. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 117, 610 (1928).,32[32] P.A.M. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 118, 351 (1928).,33[33] P.A.M. Dirac, em: Prêmio Nobel (Estocolmo, 1933).]. No âmbito da formação de bacharéis e licenciados em física, bem como de mestres em ensino de física, é importante examinarmos o contexto desse importante momento da história da física.

O primeiro artigo dessa série, Dirac publicou em 1925, logo depois do clássico artigo de Heisenberg e um pouco antes do igualmente clássico artigo de Schrödinger. É nesse artigo que Dirac estabelece o cenário formal da sua mecânica quântica. No final da introdução ele cita Heisenberg para dizer “que não são as equações da mecânica clássica que estão de alguma forma erradas, mas que as operações matemáticas pelas quais os resultados físicos são deduzidos delas requerem modificação.” (Tradução minha). Essas operações matemáticas começaram a ser modificadas por Heisenberg e desembocaram no seu famoso princípio da incerteza. O mais impressionante nessas novas operações matemáticas é que, ao contrário das regras usuais de multiplicação, na mecânica quântica a ordem dos fatores altera o produto. Tecnicamente diz-se que os operadores não comutam. Ou seja, P × Q é diferente de Q × P. A teoria de Heisenberg ficou conhecida como mecânica matricial, e foi encarada com alguma ressalva pelos seus contemporâneos, dadas as dificuldades operacionais. Foi um alívio quando em 1926 Schrödinger publicou sua teoria [34[34] E.Schrödinger, Phys. Rev. 28, 1049 (1926).], que passou a ser aplicada em vários problemas da física atômica, porque era operacionalmente muito mais simples do que o formalismo de Heisenberg. Logo depois de Schrödinger, Dirac [30[30] P.A.M.. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 112, 661 (1926).] realiza alguns cálculos a partir da Eq. (5) e mostra a equivalência matemática entre as teorias de Heisenberg e de Schrödinger. Não é por nada que Heisenberg, Dirac e Schrödinger são considerados a tríade fundadora da mecânica quântica, e também não é por acaso que eles tenham sido premiados com o Nobel de Física em 1932 (Heisenberg) e 1933 (Dirac e Schrödinger).

Dirac, que amava a beleza da matemática4 4 Dirac era professor Lucasiano de Matemática na Universidade de Cambridge. Ocupou, de 1932 a 1974 a cátedra que fora ocupada por Newton. , propõe uma nova abordagem para a mecânica quântica, ainda mais complicada do que a de Heisenberg. Ele começa citando a nova mecânica do átomo introduzida por Heisenberg, segundo a qual as variáveis que descrevem o sistema satisfazem certas condições quânticas, e propõe desenvolver uma teoria sem saber nada sobre as variáveis dinâmicas. Tudo que se precisa saber são as leis algébricas às quais elas estão sujeitas. Na sequência do trabalho ele usa correções relativísticas para abordar o problema do movimento do elétron. É por isso que sua teoria é conhecida como teoria relativística do elétron. O tratamento matemático está muito acima do escopo da presente transposição didática, mas por uma questão de completeza e para fazer justiça à beleza estética da equação de Dirac, reproduzo a forma como ela está na placa comemorativa na Abadia de Westminster, nas proximidades do túmulo de Newton:

(6) i γ δ ψ = m ψ .

Nessa equação, onde m representa a massa do elétron, todas as complexas expressões matemáticas na forma original publicada por Dirac foram reduzidas a uma matriz 4 × 4 (γ) e a um vetor de quatro componentes (δ). Vejamos alguns resultados obtidos com a eq. 6. Apenas aqueles que foram objeto de estudo por parte de Majorana serão considerados aqui. Uma boa narrativa a respeito da obra de Dirac é apresentada por Helge Kragh [35[35] H. Kragh, Simply Dirac (Simply Charly, New York, 2016).].

É preciso que se diga, sem entrarmos em maiores discussões, que correções relativísticas foram feitas na equação de Schrödinger antes de Dirac, mas nenhuma com poder analítico igual à do físico britânico. Essas correções, publicadas por volta de 1926 ficaram conhecidas como equação de Klein-Gordon. O principal problema de todas essas correções era o tratamento insatisfatório do spin do elétron. Dirac, que não estava interessado no spin, descobriu, entre 1927 e 1928, que ele estava dentro da sua equação, sem que ele tivesse feito qualquer imposição, como fizeram os outros autores.

A equação de Dirac encantou toda a comunidade de físicos, menos Majorana, que ficou muito incomodado com os resultados publicados por Dirac em 1930 [36[36] P.A.M. Dirac, Proc. R. Soc. Lond. A 126, 360 (1930).]. Nesse artigo Dirac mostrou que um elétron com energia negativa sujeito à ação de um campo elétrico comporta-se como se tivesse carga positiva. Esse resultado é considerado como o nascimento da ideia da antimatéria, e o elétron com carga positiva e energia negativa era o pósitron, que foi detectado em 1932 [37[37] C.D. Anderson, Phys. Rev. 43, 491 (1933).].

Os resultados obtidos por Dirac levavam ao seguinte cenário de matéria-antimatéria. Além dos elétrons, que obedecem ao eletromagnetismo clássico e à teoria quântica, existem partículas com energia negativa, algo inimaginável no paradigma de então. De acordo com a famosa equação de Einstein, E = mc2, uma partícula com energia negativa teria que ter massa negativa. A história é longa, mas podemos resumi-la assim [33[33] P.A.M. Dirac, em: Prêmio Nobel (Estocolmo, 1933).]. Para justificar e existência de partículas com energia negativa Dirac propôs a existência do que ficou conhecido como “mar de Dirac”, um “espaço” no qual os elétrons podem ter energia negativa, mas não podem ser observados. Se por algum efeito, um elétron no mar de Dirac ficar com energia positiva, ele salta para o “espaço convencional” e deixa uma lacuna no mar de Dirac. Essa lacuna é a antipartícula do elétron, que depois de 1932 recebeu o nome de pósitron.

Naquele ano, enquanto Fermi desenvolvia sua teoria do decaimento beta, Majorana trabalhava na sua teoria simétrica de elétrons e pósitrons, para contestar os resultados de Dirac. Na época ele não publicou seus resultados, porque logo em seguida partiu para uma viagem à Alemanha (visitando Heisenberg) e à Dinamarca (visitando Bohr). No retorno dessas viagens ele se isolou em sua residência durante quase quatro anos, praticamente sem contato com seus colegas do Instituto de Física da Universidade de Roma, e sem enviar nada para publicação [4[4] L. Sciascia, Majorana Desapareceu (Rocco, Rio de Janeiro, 1991)., 11[11] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013)., 21[21] J. Magueijo, A Brilliant Darkness (Basic Books, New York, 2009).]. Vários manuscritos não publicados foram encontrados depois do seu desaparecimento [20[20] E. Recami, Hadron. J. 40, 149 (2017).]. O trabalho, no qual ele apresentou a hipótese que ficou conhecida como o neutrino de Majorana só foi publicado em 1937 [38[38] E. Majorana, Nuovo Cim. 14, 171 (1937).], sendo hoje considerado seu artigo mais famoso5 5 Para escrever esse trabalho, Majorana deve ter lido o livro que Dirac publicou em 1931. Étienne Klein [11, p. 75] teve em mãos um exemplar que pertenceu a Majorana, com seu nome na primeira página, mas com todo o miolo do livro intacto, sem qualquer anotação. .

Para evitar a energia negativa, Majorana elaborou uma teoria de partículas neutras com a qual ele obteve a equação de Dirac e mostrou a existência de partículas que são suas próprias antipartículas. Essas partículas ficaram conhecidas como partículas de Majorana. Foi assim que surgiu o “neutrino de Majorana”, com a consequente possibilidade de que ele tivesse massa, algo que foi amplamente estudado por Pontecorvo e experimentalmente comprovado por outros pesquisadores [39[39] S. Bilenky, Eur. Phys. J. H 38, 345 (2013).].

3. O Que Mais Emerge da Equação de Majorana?

Depois de 70 anos esquecido nos rodapés da física teórica, esse trabalho de 1937 [38[38] E. Majorana, Nuovo Cim. 14, 171 (1937).] aparece como algo onipresente, importante para trabalhos recentes, não apenas em física de neutrinos, supersimetria e matéria escura, mas também em alguns estados exóticos da matéria comum, como os supercondutores. A imensa literatura registra a predominância do conceito de neutrino de Majorana até o final dos anos 1990 (Fig. 2), quando passou a ser superado pelo conceito mais geral de férmions de Majorana, sujeito atualmente a inúmeras investigações nas áreas de partículas elementares e supercondutividade. Entre as dezenas de trabalhos que consultei selecionei esses cinco [40[40] F. Wilczek, Nat. Phys. 5, 614 (2009).,41[41] S.R. Elliott e M. Franz, Rev. Mod. Phys. 87, 137 (2015).,42[42] L. Borsten e M.J. Du, in: The Future of Our Physics Including New Frontiers, editado por A. Zichichi (World Scientific, Erice, 2017), v. 53.,43[43] M. Sato and Y. Ando, Rep. Prog. Phys. 80, 076501 (2017).,44[44] F.A. Dessotti, Transporte Eletrônico em Nanosistemas na Presença de Férmions de Majorana. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista, Ilha Solteira (2017).] para sugerir aos leitores interessados em aprofundar o conhecimento a respeito da importância de Majorana na física contemporânea. O apanhado geral que farei a seguir, algo como um epílogo para esta seção, foi essencialmente extraído do artigo de Frank Wilczek, Prêmio Nobel de Física de 2004 [40[40] F. Wilczek, Nat. Phys. 5, 614 (2009).].

A questão do neutrino, se é de Dirac ou de Majorana, permanece em aberto, com muitas pesquisas em andamento. Quando eles foram observados, em 1956, suas propriedades indicavam obediência à teoria de Dirac, uma vez que havia clara distinção entre neutrinos e antineutrinos. Ou seja, ao contrário do que dizia Majorana, neutrinos e antineutrinos não eram a mesma partícula. A forma como essa distinção é feita envolve conceitos de física de partículas que estão acima do escopo deste artigo, como a lei de conservação do número de léptons. O fato importante é que todos os resultados experimentais mostram que neutrinos e antineutrinos são diferentes, sendo, portanto, neutrinos de Dirac. Todavia, estudos recentes têm apresentado resultados contraditórios em relação à lei de conservação do número de léptons, fazendo com que a ideia do neutrino de Majorana deva ser considerada.

Para facilitar a narrativa, devemos saber que os férmions detectados até o momento são: elétron (e), muon (μ), tau (τ), neutrino do elétron (νe), neutrino do muon (νμ) e neutrino do tau (ντ). Os antineutrinos são, respectivamente ν¯e, ν¯μ e ν¯τ. Os resultados que preocupam os astrofísicos atuais sugerem que neutrinos emitidos pelo Sol mudem sua característica durante a viagem à Terra. Por exemplo um antineutrino do elétron emitido pelo Sol, pode chegar à Terra como um antineutrino do muon, ou antineutrino do tau. Se isso se confirmar, podemos questionar, como fez Majorana, que a distinção entre neutrino e antineutrino é supérflua? Nesse caso, o neutrino deixa de ser de Dirac e passa a ser de Majorana?

Para concluir essa bela história do neutrino, precisamos usar mais um conceito avançado da física de partículas elementares. Refiro-me à quiralidade, um conceito que surgiu na química e foi usado na física para definir o tipo de spin das partículas. Uma partícula é dita de direita, se a direção da sua velocidade e do spin obedecem à “regra da mão direita”, muito conhecida nas disciplinas de eletricidade, mesmo no ensino médio. Caso contrário, a partícula é dita de esquerda, como ilustra a Fig. 5. Na física quântica, logo depois da descoberta do spin, a terminologia era spin para cima (de direita) e spin para baixo (de esquerda). Prótons, elétrons e fótons são ambidestros, ou seja, podem ter spin para cima ou para baixo, de direita ou de esquerda. Ao contrário disso, o que se observa é que o neutrino é de esquerda, e o antineutrino de direita. Portanto, em movimento partícula e antipartícula não são a mesma coisa. Se fosse possível mantê-las em repouso, poderíamos realizar experimentos para verificar se os comportamentos continuam diferentes, para saber quem tem razão, Dirac ou Majorana. Mas isso não é possível. Essa teoria de Majorana é tão impactante que muitos físicos continuam buscando experimentos para testá-la. Os pesquisadores envolvidos com teorias do campo unificado afirmam que os neutrinos são férmions de Majorana, e que os neutrinos de direita não são antineutrinos, devem ser outra coisa.

Figura 5
A imagem à direita ilustra uma partícula de direita. A outra imagem ilustra uma partícula de esquerda. Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Left_And_Right_Thumb.jpghttps://commons.wikimedia.org/wiki/File:Left_And_Right_Thumb.jpg.

Em sua tese de doutorado, “Transporte eletrônico em nanosistemas na presença de férmions de Majorana”, Fernando Augusto Dessotti [44[44] F.A. Dessotti, Transporte Eletrônico em Nanosistemas na Presença de Férmions de Majorana. Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista, Ilha Solteira (2017).], diz que no contexto de física da matéria condensada, os férmions de Majorana emergem como quasipartículas. Surgem, então, as quasipartículas de Majorana. O conceito de quasipartículas surgiu nos anos 1940, mas a expressão “majorana quasiparticle” (MQP) só aparece na literatura depois de 2009. Na década 2014–2023, o GA recupera 197 documentos para essa expressão. Embora a verificação experimental de uma MQP ainda seja questionável, Dessotti propõe formas experimentais para a observação de assinaturas dessas quasipartículas.

A tese de Dessotti é tecnicamente excelente, mas o conceito de quasipartícula não é apresentado em nível compatível com a formação inicial no bacharelado e na licenciatura. Em 2014, a Ciência Hoje online publicou um artigo, em linguagem de grande público, sobre a construção de um laser de polariton que funcionava em temperatura ambiente. Polariton é uma das conhecidas quasipartículas [45[45] C.A. dos Santos, Ciência Hoje Online, disponível em: https://cienciahoje.org.br/coluna/as-exoticas-quasiparticulas/.
https://cienciahoje.org.br/coluna/as-exo...
].

Finalmente abordarei um estudo de Majorana que foi usado na descoberta da ressonância magnética nuclear (RMN), e que é pouco explorado na literatura.

4. Majorana e a Ressonância Magnética Nuclear

Como se viu acima, a literatura contemporânea sobre Majorana praticamente se restringe às aplicações de seus estudos na física de partículas elementares e na física de supercondutores. Do ponto de vista pedagógico, tendo em mente possíveis transposições didáticas para a formação inicial de bacharéis e licenciados em física, a presença de Majorana na descoberta da ressonância magnética nuclear (RMN) é mais instigante, uma vez que envolve vários conceitos vistos nas disciplinas de física moderna e mecânica quântica.

Em 1932, Majorana publicou o artigo “orientação de átomos em um campo magnético variável” [46[46] E. Majorana, Nuovo Cim. 9, 43 (1932).]. O primeiro parágrafo desse artigo serve como roteiro para abordar parte da física moderna na década de 1920. Por exemplo, Majorana começa o artigo dizendo que “um átomo orientado num campo magnético lentamente variável segue, como se sabe, adiabaticamente a direção variável do campo”. Para ser completamente entendida, essa frase precisa ser decodificada. O que significa “um átomo orientado num campo magnético”? O que significa “seguir adiabaticamente a direção do campo”?

Majorana está se referindo à interação entre o spin do átomo e o campo magnético. No curso de graduação, isso é visto logo depois que o modelo de Bohr é apresentado. Sabe-se que a tendência do spin é se orientar na direção do campo magnético. O problema é razoavelmente simples no caso de um campo magnético estático, e bastante complicado se o campo magnético oscila, mudando sua direção. Majorana diz que é sabido que se a variação é lenta, o spin segue “adiabaticamente a direção do campo”. Quando o modelo de Bohr é apresentado no curso de graduação, os alunos já tiveram contato com os fundamentos da termodinâmica. O professor pode fazer uma breve revisão dos processos adiabáticos na termodinâmica, e depois apresentar um relato de como o termo passou a ser usado em outras áreas, sobretudo no magnetismo. No seu artigo, Majorana está se referindo ao caso de uma variação lenta, ou seja, o spin acompanha o campo magnético “instantaneamente”. Isso acontece quando a frequência de variação do campo magnético é aproximadamente igual à frequência de Larmor.

No artigo que é considerado como a descoberta da RMN [47[47] I. Rabi, Phys. Rev. 49, 324 (1936).], Rabi o define o problema experimental que foi estudado por outros autores, e que ele abordará teoricamente:

Um feixe de átomos de potássio neutros ao atravessar um campo magnético não homogêneo é dividido em dois feixes (experimento de Stern-Gerlach). Um desses feixes é selecionado por meio de uma fenda e permitida sua passagem por uma região em que o campo muda rapidamente tanto em direção, quanto em magnitude. O feixe resultante é então analisado por meio de um terceiro campo semelhante ao primeiro. A questão é qual será o resultado da quantização espacial em relação ao campo. (Tradução minha).

Na sequência, Rabi informa que uma solução completa para um determinado tipo de campo, cuja realização experimental é muito simples, foi apresentada por Majorana no artigo supra referido [46[46] E. Majorana, Nuovo Cim. 9, 43 (1932).]. Em sala de aula, o professor pode abrir um parêntese, antes de continuar com o relato do trabalho de Rabi, para abordar o experimento de Stern-Gerlach e mostrar como ele levou à descoberta do spin do elétron [48[48] C.A. dos Santos, Estadão 1, Estado da Arte, disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/mistica-glamour-nobel-carlos-alberto-santos/.
https://estadodaarte.estadao.com.br/mist...
].

Rabi conclui a introdução do seu artigo dizendo a que veio: levar em conta o spin nuclear, que havia sido negligenciado pelos autores anteriores. O importante no contexto do presente artigo é que ele informa que partiu dos cálculos publicados por Majorana. Ao final, ele agradece a três colegas da Universidade Columbia, Clark, Heller e Motz, pelas discussões sobre os detalhes da interpretação do artigo de Majorana.

O relato desse evento histórico pode propiciar ao professor uma discussão do uso contemporâneo da RMN, algo na linha do que foi publicado na Ciência Hoje [49[49] C.A. dos Santos, Ciência Hoje Online, disponível em: https://cienciahoje.org.br/coluna/nanoparticulas-que-salvam-vidas/.
https://cienciahoje.org.br/coluna/nanopa...
, 50[50] C.A. dos Santos, Ciência Hoje Online, disponível em: https://cienciahoje.org.br/coluna/da-coluna-para-a-sala-de-aula/.
https://cienciahoje.org.br/coluna/da-col...
].

5. Comentários Finais

Ettore Majorana tinha tudo para se tornar forte candidato ao Prêmio Nobel de Física. Infelizmente, antes de completar 32 anos de idade ele desapareceu sem deixar vestígios. A sua produção científica se resume a uma tese de doutorado, um artigo em colaboração com um colega de faculdade, um artigo póstumo, sobre a mecânica estatística nas ciências sociais, e oito artigos solos, publicados entre 1931 e 1937, cujos resultados impactam atualmente a física de partículas elementares e a supercondutividade. Há inúmeras tentativas para a observação de partículas elementares conhecidas como férmions de Majorana, especialmente o famoso neutrino de Majorana, cuja detecção poderá alterar o atual modelo padrão da física das partículas elementares.

Para além dessa presença na física contemporânea, o estudo da biografia científica de Majorana contribui para um cenário interessante de abordagens didáticas da transição da física moderna desenvolvida ao longo dos anos 1920 e 1930, para a física contemporânea.

Agradecimentos

Agradecimento ao Prof. Luiz Fernando Ziebell pela cuidadosa revisão do texto original.

Referências

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  • 1
    Em 1928 ele havia publicado, na Rendiconti Accademia Lincei, um trabalho em colaboração com Giovanni Gentile Jr. Tudo indica que se tratava de um trabalho de Gentile, para o qual Majorana fez alguma contribuição. Por isso esse trabalho não será considerado no presente artigo.
  • 2
    Há um artigo que foi publicado postumamente, em 1942, sobre o valor das leis estatísticas na física e nas ciências sociais, que também não será considerado aqui porque está fora do escopo do presente trabalho.
  • 3
    Entre o pessoal do Instituto de Física da Universidade de Roma, “papa” era o apelido de Fermi. Majorana era o “grande inquisidor”.
  • 4
    Dirac era professor Lucasiano de Matemática na Universidade de Cambridge. Ocupou, de 1932 a 1974 a cátedra que fora ocupada por Newton.
  • 5
    Para escrever esse trabalho, Majorana deve ter lido o livro que Dirac publicou em 1931. Étienne Klein [11[11] E. Klein, En Cherchant Majorana: Le Physicien Absolu (Flammarion, Paris, 2013)., p. 75] teve em mãos um exemplar que pertenceu a Majorana, com seu nome na primeira página, mas com todo o miolo do livro intacto, sem qualquer anotação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jan 2024
  • Aceito
    29 Jan 2024
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