Introdução
Até a década de 60, a formação de recursos humanos em Saúde Coletiva no Brasil era realizada, basicamente, em duas escolas de Saúde Pública, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Muitos profissionais recorreram ao exterior para aprimorarem a sua formação e, posteriormente, assumiram a responsabilidade de treinar novos sanitaristas.
Este tipo de formação de recursos humanos procurava atender ao chamado modelo clássico de Saúde Pública. Neste, o Estado preocupava-se, fundamentalmente, com a contenção de doenças epidêmicas e das chamadas endemias rurais que prejudicavam a economia agrária de exportação. E a especialização dos agentes enfatizava o aprimoramento do uso de instrumentos e técnicas, já que ocorria uma correspondência entre o saber produzido e as técnicas de intervenção. Para esse tipo de formação não existiam grandes contradições entre o campo de saber e o campo de prática. Era, portanto, orgânico a uma dada forma de estruturação das práticas de saúde.
A ação estatal sofria a influência do liberalismo, segundo o qual o Estado só devia intervir naquilo, e somente naquilo, que a iniciativa privada não o pudesse fazer. No campo da saúde, tal ideologia significava manter a atenção médica como responsabilidade individual, quer através da medicina privada liberal, quer através da medicina de caridade, enquanto as ações de alcance coletivo e a regulação das práticas de saúde e do exercício profissional requeriam a intervenção estatal.
A partir da década de 30, com o crescimento da industrialização e da urbanização e com as tentativas de regulação do trabalho e do capital, a política social do Estado brasileiro passa a privilegiar a Previdência Social4. A ação estatal expande-se para a assistência médica, ainda que observando os interesses do produtor privado de serviços médicos e hospitalares. De qualquer modo, ampliam-se os horizontes de práticas de saúde às custas do fortalecimento da atenção médica individual. Na medida em que os conhecimentos gerados na clínica articulavam-se à produção de medicamentos e de equipamentos e a atenção médica individual realizava as mercadorias produzidas no setor industrial, novas recomposições eram geradas na organização dos serviços de saúde e na prática médica em particular. Todavia, a formação de recursos humanos em saúde coletiva perseguia, até a década de 60, o modelo clássico de Saúde Pública.
A partir da criação de núcleos, cátedras, ou departamentos de Medicina Preventiva nas escolas médicas no final da década de 50 e durante os anos 60, ocorre um questionamento sobre a formação de recursos humanos em saúde. Ribeirão Preto sediou uma experiência pioneira de formação de recursos humanos em Saúde Coletiva, através da criação de um programa de Residência que, baseado nos princípios da medicina integral, buscava treinar os médicos, simultaneamente, em ações preventivas e curativas. Alguns programas de Residência em Medicina Preventiva foram instalados em São Paulo nessa época, incorporando as idéias do movimento preventivista. Embora restritas, essas experiências rompiam com o modelo anterior de formação de sanitaristas e construíam um campo de demonstração para adestramento de profissionais que, na de pendência das oportunidades do mercado de trabalho, se inclinavam para a docência em Medicina Preventiva, para o trabalho em Saúde Pública, ou mesmo para a prática clínica.
Cabe ainda destacar que, concomitantemente à formação especializada, vinculada à Escola Nacional de Saúde Pública e à então Faculdade de Higiene da USP, que no final da década de 60 instituíram cursos de mestrado, a OPS e a SUDENE promoveram cursos de especialização m planejamento de saúde que tiveram um impacto especial junto aos serviços de saúde. Portanto, nesse período ocorre uma ruptura entre o modelo clássico de formação de agentes no âmbito da Saúde Coletiva - ligado ao tradicional sanitarismo - e a experimentação de alternativas de treinamento de pessoal nesse campo do conhecimento. Tal experimentação é também propiciada pela própria Reforma Universitária de 1968, ao incluir a Medicina Preventiva no currículo mínimo do Curso Médico14. Mesmo que a concepção prevalente fosse a de formar um médico com uma nova atitude - preventiva e social - e com uma visão integral do cuidado ao paciente, já se notam algumas preocupações do Estado em ampliar o campo da racionalidade da organização dos serviços de saúde. Como exemplo dessa tendência racionalizadora, embutida na Reforma Universitária, cita-se a inclusão da disciplina Organização e Administração Sanitária no currículo médico.14
Reatualização da formação de recursos humanos em saúde coletiva
Essas iniciativas conduzidas ao longo da década de 60 poderiam ser interpretadas como tentativas de reatualização da formação de recursos humanos em Saúde Coletiva, já que a manutenção do padrão clássico de formação de sanitaristas encontrava-se defasado em relação ao desenvolvimento dos serviços de saúde no Brasil e às propostas de extensão de cobertura.
Durante a década de 60, muitas dessas possibilidades de formação de recursos humanos em Saúde Coletiva vão-se delineando mais claramente. Isso também não ocorre, ao nosso ver, ao acaso, nem surge da consciência dos docentes. Ao contrário, a própria dinâmica da sociedade brasileira vai exigindo do Estado novas respostas no sentido de dar conta das condições de sanidade da população e dos problemas referentes à organização dos serviços de saúde.
Como acentuou MADEL LUZ,8 enquanto assistíamos aos 7 anos de vacas gordas do “milagre brasileiro”, vivíamos, simultaneamente, os 7 anos de vacas magras da saúde do povo brasileiro. Este quadro impôs a diversos segmentos da sociedade civil pressionarem através de denúncia ao governo, responsabilizando-o pela deterioração das condições de saúde da população justamente num período em que o PIB alcançava as suas maiores taxas, e em que o capital se acumulava de forma mais exuberante e selvagem.
No plano da organização dos serviços, estabelecia-se uma situação que se convencionou chamar de “crise do setor saúde”, caracterizada pela baixa cobertura, pouco impacto e altos custos das ações de saúde.
É também nessa época que aparecem diversas propostas calcadas no modelo da Medicina Comunitária11, visando ao estabelecimento de reformas nos serviços de saúde e na formação de recursos humanos. Esse movimento da Medicina Comunitária é inicialmente incorporado pelos Departamentos de Medicina Preventiva que passam a testar novas modalidades de treinamento de pessoal, articuladas a alguma experiência de organização de serviços de saúde. Tais iniciativas, originariamente limitadas e focais, vão sendo ampliadas, tanto ao nível dos serviços de saúde, através dos programas de extensão de cobertura (PECs), como ao nível do ensino mediante a integração docente-assistencial (IDA).12
Essa tendência de formação de recursos humanos articulada a propostas de mudança na organização dos serviços, denominada de “tendência racionalizadora”, buscava dar conta das demandas geradas pela conjuntura política da saúde. Ela se expressa de maneira marcante através dos cursos regionalizados de Saúde Pública, com pleno desenvolvimento a partir de 1975, produzindo uma massa crítica de pessoal especializado em Saúde Coletiva.18 Esses cursos, por sua vez, eram destinados aos profissionais das Secretarias Estaduais de Saúde, no sentido de ajudar a operar a rede básica dos serviços de saúde e os programas de extensão de cobertura.16
Essa tendência racionalizadora vai tendo novos desdobramentos na medida em que as questões não resolvidas na organização dos serviços imprimiam um novo posicionamento crítico a respeito dessa formação. Por outro lado, o próprio saber produzido na academia, isto é, o saber crítico que estava sendo gerado mediante investigações que se faziam nos Departamentos de Medicina Preventiva e Social e nas Escolas de Saúde Pública que dispunham de mestrados na área de Saúde Coletiva, todo esse conjunto de conhecimentos foi alimentando as demandas que se faziam à política social do Estado e, mais concretamente, fundamentava as lutas que se davam na sociedade civil.
Nessa perspectiva, a década de 70 parece propiciar a confluência de interesses entre propostas ditas racionalizadoras e um projeto mais crítico de Medicina Social no Brasil.10 E o desenvolvimento dos programas de Residência em Medicina Preventiva e Social, especialmente a partir de 1980, sugere o estabelecimento dessa confluência. Pensamos, desse modo, que esses programas de Residência representam a síntese contraditória da tendência racionalizadora com uma proposta mais avançada de Medicina Social.
Para a emergência desse projeto de Medicina Social no Brasil contribuíram as discussões ocorridas em encontros de docentes de Medicina Preventiva1 e, especialmente, a produção teórica resultante da incorporação das Ciências Sociais no âmbito da Saúde. Ocorre progressivamente uma reconceptualização do “social” em saúde.9 Este “social” entendido como atributo pessoal (educação, renda, salário, ocupação) pelo preventivismo e como coletivo de indivíduos pelas propostas racionalizadoras, é reconcebido teoricamente pela Medicina Social e definido como um campo estruturado de práticas. Assumiu-se, portanto, a prática de saúde como uma prática eminentemente social e, conseqüentemente, não livre das determinações estruturais que incidem sobre a sociedade e sobre o conjunto das práticas sociais.5 Desse modo, esse trabalho teórico redimensionou o próprio conhecer crítico a respeito da organização dos serviços de saúde e dos determinantes da distribuição das doenças na sociedade brasileira.
A partir desse trabalho teórico foi possível pensar na redefinição dos marcos conceituais que orientavam os cursos regionalizados de Saúde Pública, as Residências em Medicina Preventiva e Social e os mestrados e doutorados em Saúde Coletiva. Esses pontos de encontro parecem marcar a década de 70, no que tange à formação dos agentes das práticas de saúde coletiva no Brasil.10 A “interfertilização” desses conhecimentos produzidos estimulou, continuamente, um processo extremamente rico em que cada um desses cursos ia modificando os seus conteúdos e atualizando seus métodos e campos de intervenção e pesquisa.
A crise do setor saúde, a crise econômica e a busca de alternativas
O desenvolvimento dessas tendências de formação de recursos humanos em saúde coletiva - preventivista, racionalizadora e teórico-crítica - enfrenta-se, no decorrer da década de 70, com o aguçamento das contradições específicas da crise do setor saúde, culminando com a questão financeira da Previdência Social. O aprofundamento dessa crise com a recessão impunha cada vez mais ao Estado identificar como uma das possibilidades de saída para o atendimento das necessidades de serviços de saúde da população o incremento da racionalidade na organização dos recursos. A crise econômica gerava um esvaziamento dos recursos fiscais do Estado - “crise fiscal do Estado” que, no caso brasileiro, se agravava num imenso déficit público e nas imposições do FMI visando ao corte de gastos públicos. Portanto, a opção por políticas racionalizadoras no âmbito da saúde se fazia inadiável, apesar das pressões organizadas das empresas médicas.13
Embora se possa perceber que essas diferentes tendências de formação de recursos humanos em Saúde Coletiva relacionam-se com distintos projetos de reforma em saúde, devemos destacar que tais projetos continuam subordinados à forma dominante de organização da atenção médica individual.5 Projetos que não são necessariamente alternativos, pois convivem contraditoriamente com a medicina individual que tem elementos de constituição radicados, fundamentalmente, no chamado complexo médico-industrial (Estado, empresa médica e indústrias de medica mentos e de equipamentos) que conforma esse tipo de prática.
Conseqüentemente, por mais que nas consciências individuais e nos discursos das propostas ditas alternativas sejam enfatizados o cuidado integral, a atenção primária, a participação comunitária, a rede regionalizada de serviços, na realidade, persiste a hegemonia da medicina individual e privada.
Já em 1979, no debate sobre Política Nacional de Saúde, DONNANGELO6 dizia que não acreditava em propostas radicalmente alternativas no âmbito da saúde. Ou as propostas se faziam com o povo, ou não se faziam. Destacava, porém, que nem por isso deveríamos declinar defendê-las.
Esse comentário mostra todo o campo dialético em que nos defrontamos a respeito da formação de recursos humanos. Ainda que reconheçamos que a hegemonia da atenção médica individual é extra-técnica e extra-doutrinária, (na perspectiva das diferentes tendências de formação de recursos humanos em saúde), sabemos que é preciso apresentar propostas alternativas e que é necessário defendê-las, mas temos que saber também que o avanço dessas propostas não se passa exclusivamente no aparelho escolar, muito pelo contrário, qualquer avanço real dessas propostas tem a ver com o movimento concreto das forças sociais.
Desenvolvimento das Residências em Medicina Preventiva e Social (RMPS)
No que se refere ao recente desenvolvimento desses programas devemos destacar duas ordens de eventos. A primeira é representada pelo avanço do movimento dos médicos residentes que culminou com a regulamentação da Residência Médica, na qual uma das cinco áreas básicas era a Medicina Preventiva.17 Baseado no Decreto de 1977, que regulamentou a Residência Médica e criou a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM), foi elaborada a Resolução 08/79 que legitimou e organizou no interior do Estado a Residência em Medicina Preventiva e Social. A segunda ordem de eventos diz respeito ao aparecimento de uma conjuntura favorável a processos diferenciados de formação de recursos humanos em saúde. Nesse particular, os programas de extensão de cobertura já implantados, como o PRÓ-SAÚDE e, posteriormente o PREVSAÚDE, estimulavam a criação de novos programas de RMPS.
Quando examinamos o texto da Resolução 08/79, podemos constatar que contempla um conjunto contraditório de tendências de formação de recursos humanos em Saúde Coletiva e, conseqüentemente, diferentes projetos de reforma em saúde. Assim, podemos encontrar o preventivismo, tal como era concebido na sua origem americana e no seu repasse para a América Latina, através dos Seminários de Tehuacan e de Viña del Mar,1 mas também se projeta nessa Resolução uma tendência racionalizadora de formação de recursos humanos orientada para o reordenamento dos serviços de saúde.14 Finalmente, é possível verificar uma tendência, que poderíamos denominar de teórico-critica, vinculada ao projeto de Medicina Social, com ênfase concedida ao estudo dos determinantes da organização das práticas de saúde e das condições de saúde.10
Entendemos que a Resolução 08/79 correspondeu a um grande avanço para a Medicina Preventiva e Social, no País, sobretudo, porque implicava o reconhecimento pelo Estado de uma proposta que, até então, era considerada “marginal”. Na verdade, essa proposta já havia sido assimilada pelo Estado através da Reforma Universitária para a graduação médica. No entanto, ela permanecia espremida pelos limites próprios da escola médica. Na medida em que essa Resolução ampliava o espaço para a pós-graduação lato sensu e o INAMPS se apresentava interessado na proposta, financiando parcialmente os programas e assegurando bolsas para os residentes, criava-se um novo alento para os programas de Residência até então existentes e estimulou-se a organização de um expressivo número de programas em curto espaço de tempo.16
Esta ampliação foi coordenada pelo Programa de Apoio às Residências de Medicina Social, Medicina Preventiva e Saúde Pública (PAR), ligado à ABEM e à Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). O PAR tem uma história relativamente rica e curta, já registrada num dos livros publicados pela ABRASCO.3 Interessa resgatar desse PAR o convívio entre aquelas tendências da saúde coletiva, já referidos anteriormente, sob o “guarda chuva” da Resolução 08/79. Quer dizer, conviviam nas discussões do Conselho de Coordenação do PAR, composto pelos coordenadores dos programas de Residência e por representantes da ABEM, da FIOCRUZ e do INAMPS, os que defendiam as idéias da Medicina Preventiva no seu sentido originário americano, os que propunham IDA como forma de estimular a racionalidade na organização dos serviços e a expansão dos programas de extensão de cobertura, e participavam também os que privilegiavam a incorporação das Ciências Sociais e a investigação no plano de estudos e a articulação com os movimentos sociais no âmbito das práticas dos residentes.
As primeiras escaramuças contra a RMPS
Esse convívio de tendências foi possível de ser preservado por quase 2 anos. Em diferentes reuniões, discutiam-se formas de aprimorar a qualificação dos residentes, procurando encontrar o equilíbrio entre a formação técnica e a capacidade crítica e política dos agentes das práticas de saúde, tal como se encontra atualmente no Documento de Princípios da ABRASCO.2 Esse convívio, no entanto foi interrompido num determinado momento quando foi apresentada para os coordenadores dos programas uma “alternativa”, que, na realidade, não era uma alternativa, mas uma imposição.
O fato surgiu 2 meses depois da última reunião do PAR. Nesta reunião, realizada em Brasília, em fevereiro de 1981, ocorreu uma discussão muito rica a respeito do que deveriam ser as práticas dos programas de RMPS.3 Nos mestrados e doutorados em Saúde Coletiva, as chamadas práticas técnicas tinham uma passagem quase que tangencial, já que a ênfase era dada à pesquisa. Todavia, nos programas de Residência, os Departamentos se deparavam com o treinamento-emserviço desses novos agentes num contexto que já não era o mesmo da Saúde Pública, na sua forma clássica, em que havia uma correspondência entre o saber produzido e as técnicas utilizadas. Ao contrário, as experiências indicavam que as questões técnicas se misturavam com as questões políticas e com as questões institucionais. Então, havia que se rediscutir a própria prática técnica por dentro e sem ignorar a produção teórica que indicava os determinantes estruturais que incidiam sobre as práticas de saúde em for mações sociais capitalistas e na sociedade brasileira em particular.
É possível que tais discussões tivessem assusta do a alguns elementos pelo fato de o PAR, na sua maioria, inclinar-se para uma estratégia de formação de recursos humanos que se distanciava de um movimento ideológico patrocinado por agências internacionais e locais - a Medicina de Família. Apesar da polêmica, essa reunião teve um final feliz. Houve consenso na composição do relatório final, que foi discutido em reunião plenária e aprovado pela totalidade dos presentes. Caberia, portanto aos coordenadores de programas identificarem formas de viabilidade das sugestões sobre o elenco de práticas aprovadas. Não houve, naquele momento, nenhuma rejeição frontal às propostas encaminhadas.
Surpreendentemente, 2 meses depois, os coordenadores dos programas ali representados eram convidados, isoladamente, ou em grupos de três, ou quatro, pelo representante do INAMPS: ou assumiam a proposta do representante do INAMPS, ou não recebiam mais bolsas. Argumentava que a formação em Saúde Coletiva não interessava à Previdência, pois a absorção desses profissionais não tinha passagem pelo DASP. Todavia, quando se contra-argumentava e se perguntava que tipo de formação era essa que interessaria à Previdência, o representante do INAMPS desenhava um perfil muito próximo ao “novo-velho” projeto de reforma médica denominado de Medicina de Família, já àquela altura, com o apoio de fundações estrangeiras, da Federação Pan-Americana de Faculdades e Escolas de Medicina (FEPAFEM) e da própria ABEM.
Alguns programas tiveram, por condições históricas e políticas, de aceitar a ameaça. Outros, pela própria doutrina que os marcava, seguiriam esse caminho de formação do “médico de uma nova atitude”, tal como o preventivismo acreditava possível, e a Medicina de Família ressuscitava suas esperanças. Outros programas, no entanto, decidiram não aceitar as injunções do representante do INAMPS. O resultado dessa situação foi o aparecimento da Resolução 07/81 da CNRM que, pela sua violência, surpreendeu e indignou a muitos que trabalhavam em Saúde Coletiva no Brasil. Esta Resolução, não satisfeita em introduzir a ideologia da Medicina de Família na formação dos residentes e de legitimar, ao nível do Estado, a existência desses programas, interveio, praticamente, no conjunto dos programas de RMPS obrigando-os a uma explicitação de suas práticas e impedindo-os de oferecer um segundo ano opcional em suas áreas de concentração, além de outras investidas que não com porta aqui discutir.
Desse modo, uma das primeiras lutas concretas da ABRASCO foi a de defender os programas que optaram por um treinamento em Medicina Preventiva e Social, rejeitando o movimento ideológico da Medicina de Família, e teve como vitória a adoção pela CNRM da Resolução 16/81.15 Dessa forma, revogava-se a Resolução 08/79 e criavam-se duas alternativas para os programas de Residência dela originários: os que adotaram o modelo da Medicina de Família ficaram com o nome de Medicina Geral e Comunitária, com a sua Resolução específica; os que optaram pela Saúde Coletiva passaram a ser reconhecidos pela Resolução 16/81.
O que representa essa Resolução 16 /81? Em primeiro lugar, a legitimação de certos espaços de prática em termos de saúde coletiva. Éramos forçados pela CNRM, naquela época, a admitir que a prática dos residentes teria que ser desenvolvida em ambulatórios e hospitais, quando na realidade nosso trabalho vinculava-se à administração e planejamento em outros níveis do sistema de saúde, à atuação em fábricas e em associações comunitárias. No I Fórum Nacional de Residências em Medicina Preventiva e Social esses campos de prática foram discutidos e sistematizados,3 servindo de embasamento para a Resolução 16/81. Assim, a CNRM decidiu acatar certas sugestões e recomendações daquele primeiro Fórum patrocinado pela ABRASCO e aprovou tal Resolução.
Em segundo lugar, esse instrumento normativo permitiu reforçar as tendências racionalizadora e teórico-crítica, aparentemente mais próximas da realidade da conjuntura política de saúde. Assim, há uma possibilidade de articular os programas de RMPS às necessidades dos serviços de saúde numa perspectiva racionalizadora e de contenção de gastos, mas também existe um espaço maior para que práticas educativas e de organização da população, que não eram reforçadas em iniciativas anteriores, passassem a ser objeto de preocupação dos programas.
Em terceiro lugar, as discussões sobre a redefinição dos programas para atenderem à nova Resolução propiciaram a reflexão sobre a formação de recursos humanos em Saúde Coletiva. Alertávamos que essa formação se defrontava com o que chamávamos “obstáculo da prática”,10 decorrente do tipo de organização de serviços de saúde ainda hegemônico no País. Assim, a prática de saúde coletiva de cunho inovador encontrava, concretamente, em diferentes níveis, confrontações que não se davam apenas por resistências ideoiógicas, mas, inclusive, de ordem política mais séria. Os serviços eram relativamente impermeáveis às práticas inovadoras, não obstante a proposta IDA insinuasse que o contato e a integração do ensino aos serviços modificariam serviços de saúde.
Contribuição das RMPS para a saúde coletiva
Consideramos que uma das contribuições dos programas de RMPS foi a demonstração, na prática, das limitações da ideologia de reforma do tipo IDA. Esta acenava para uma prática que não existia ao nível dos serviços, portanto, uma prática ausente. Uma prática de saúde que assegurasse a ampliação da participação comunitária, não instrumentalista, mas vital para os interesses da população, este tipo de prática era tomado inviável pela rigidez burocrática dos serviços de saúde. Portanto, uma das primeiras contribuições desses programas foi proceder uma crítica ao modelo de IDA presente no discurso oficial.
Uma segunda contribuição foi relacionar as práticas de saúde coletiva hegemônicas na sociedade brasileira e que subordinam a formação dos agentes. Quer dizer, uma análise crítica das práticas desenvolvidas pela SUCAM, pela FSESP, pelas Secretarias de Saúde, permitia avaliar até que ponto os programas de Residência estavam simplesmente reproduzindo as práticas disponíveis, ou se estavam preocupados com a recriação dessas práticas.
Uma terceira contribuição desses programas foi estimular a reflexão sobre o processo de trabalho em Saúde Coletiva. O processo de trabalho médico vinha sendo razoavelmente estudado na medida em que as contribuições impostas pelo assalariamento levam a um questionamento do seu objeto, dos meios de trabalho utilizados no cuidado ao paciente, das relações sociais que tais agentes estavam subordinados. A tese de GONÇALVES7, defendida em 1979, no Departamento de Medicina Preventiva da USP, procurava explicar tais questões e dava algumas indicações teóricas para o estudo das práticas em saúde coletiva. Assim, o médico do trabalho enquanto trabalhador coletivo no âmbito da fábrica, contribuiria para a realização do valor da mercadoria produzida. Teria uma função semelhante à do gerente de produção do ambiente social da fábrica, cabendo-lhe conter certas contradições, administrar conflitos, prescrever, fiscalizar, normatizar. Todavia, existe um outro tipo de trabalho realizado não na fábrica, e sim no chamado ambiente social. Trata-se do trabalho voltado para o controle das condições de saúde e saneamento, enfim das condições de vida dos grupos sociais, cabendo ao agente desse trabalho prever, planejar, administrar, vigiar, educar e controlar.
Enquanto os docentes de Medicina Preventiva e Social estavam voltados para a formação de médicos propriamente ditos na graduação, ou de investigadores e mestres em Saúde Coletiva, não estavam preocupados em perguntar qual era a prática da Saúde Coletiva. Na medida em que tínhamos como obrigação didática treinar residentes, junto aos serviços de saúde e aos grupos sociais organizados, essa prática não nos podia ser estranha. Portanto, essa é uma importante contribuição dos programas de RMPS, ou seja propiciar um campo de reflexão teórica e de investigação em Saúde Coletiva.
Finalmente, as RMPS evidenciaram certas contradições da divisão técnica e social do trabalho em Saúde Coletiva. Os Departamentos de Medicina Preventiva e Social estão sendo financiados por uma série de agências nacionais e estrangeiras.9 Estas impõem determinado ritmo de trabalho, determinado tipo de qualificação dos agentes, certa forma de produção dos docentes, fazendo com que se vão especializando, ou mesmo ultraespecializando, no interior da Saúde Coletiva. Não por uma questão da vontade do indivíduo, mas por uma condição objetiva, resultante da própria divisão do trabalho em saúde. Assim, começam a aparecer limites aos campos de práticas dos residentes, não só pela rigidez dos serviços, mas, também, devido ao “especialismo” em Saúde Coletiva. Muitos docentes já não se interessam por uma formação global do residente, adequando os campos de práticas às suas áreas de interesse. Na medida em que os docentes têm de apresentar relatórios para instituições financiadoras de pesquisas, ou de consultoria, e que necessitam captar recursos para a Universidade, vão realizando uma divisão interna do trabalho, cujas repercussões vêm sendo constatadas em alguns programas de Residência.
Perspectivas das RMPS
O exame dessas perspectivas parece passar pela análise das políticas de saúde no sentido de identificar algumas alterações previsíveis.
No conjunto das práticas de saúde cabe perguntar até que ponto aquela subordinação ilimitada das práticas de saúde coletiva em relação à atenção médica individual vai permanecer com a intensidade que hoje se apresenta. Outra indagação é quais as repercussões sobre a organização social dos serviços, se aprofundar a privatização, ou se o Estado não puder mais financiar o setor privado como vinha fazendo. Uma terceira pergunta seria qual o impacto que as diferentes formas de financiamento do setor saúde teria no mercado de trabalho dos profissionais da Saúde Coletiva.
Qual o significado desse conjunto de perguntas? É simplesmente ressaltar a indagação básica: qual será a nova política social do Estado brasileiro nessa época de crise?
O discurso “democrático-social” acionado durante a 7a Conferência Nacional de Saúde parece esgotado na atual conjuntura.14 Como entender a ação do Estado no futuro próximo? É claro que diante da crise fiscal haverá necessidade de corte nos gastos públicos, com reflexos nas empresas médicas, especialmente nas pequenas empresas. Já as grandes empresas, sobretudo as de medicina de grupo que podem competir com um projeto de reforma de saúde preconizado pelos agentes da saúde coletiva, poderão oferecer outras alternativas. Todavia, a mesma crise econômica que leva à redução de gastos públicos, incide sobre as condições de saúde da população através do desemprego, da contenção salarial e da desativação previsível de serviços públicos de saúde. Este quadro coloca para os movimentos sociais a possibilidade de entender a reagudização da questão saúde como questão social e política.
De qualquer maneira, temos a impressão de que, mesmo continuando as políticas de redução dos gastos públicos, os movimentos que ocorrem na sociedade civil, relativamente fortalecidos, poderão ampliar os espaços de atuação da saúde coletiva, tanto na sua tendência racionalizadora, quanto nas propostas oriundas da Medicina Social.
Por mais que sejam, aparentemente, negros os tempos que virão, acreditamos que se conseguirmos exorcizar1 uma saída de força, é possível pensar num espaço mais promissor para a Saúde Coletiva e para as Residências, em particular. Es te espaço pode surgir, tanto numa composição das forças hegemônicas atuais - negociação por cima - tornando viáveis políticas racionalizadoras em saúde, com o indica de certa forma a proposta do CONASP, como, também, através de uma saí da negociada da crise - negociação pela base - envolvendo grupos mais amplos da sociedade civil. Nessa perspectiva, uma saída democrática para a crise de hegemonia do Estado brasileiro pode implicar, ao nosso ver, a constituição de um projeto de Saúde Coletiva mais orgânico aos interesses do povo brasileiro.
Agradecimentos
O autor registra o seu reconhecimento ao esforço desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de Minas Gerais na gravação e transcrição da conferência, que originou este artigo. Agradece, particularmente, aos Drs. Francisco Campos e Paulo Buss, da ABRASCO, pelo estímulo a esta publicação.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Jul 2021 -
Data do Fascículo
May-Aug 1985