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A UNIVERSIDADE E A REFORMA SANITÁRIA*

Introdução

“As modificações necessárias ao setor saúde transcendem os limites de uma reforma administrativa e financeira, exigindo-se uma reformulação mais profunda, ampliando-se o próprio conceito de saúde e sua correspondente ação institucional revendo-se o legislação no que diz respeito à proteção e recuperação do saúde, constituindo-se no que está convencionando chamar de Reforma Sanitária” 14 14. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. Brasília, 1986. Anais da 8. a Conferência Nacional de Saúde. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987. p. 381-9. .

Este trecho, destacado do Relatório Final da 8.a Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), ocorrida em março de 1986, revela os traços básicos da proposta da Reforma Sanitária. Trata-se de um conjunto articulado de princípios e proposições políticas, elaborado pelo movimento de democratização da saúde, que tomou corpo, na sociedade brasileira, nas lutas de resistência contra o autoritarismo. Esta reformulação profunda do setor saúde, que vai além de uma reforma administrativa e financeira, apresenta componentes políticos, jurídicos, organizacionais e, comportamentais3232. POSSAS, C. de A. Prefácio. In: BERLINGUER, G. et alii. Reforma sanitária Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES, 1988.. Significa a revisão crítica de concepções, de paradigmas, de técnicas, mas também mudanças no relacionamento do Estado e de seus aparelhos com a sociedade e dos funcionários com os cidadãos.

Ainda que a sistematização e difusão da proposta da Reforma Sanitária tenha como marco a VIII CNS, suas origens podem ser identificadas desde a década de 50. O debate sobre “saúde e desenvolvimento” bem como a busca de alternativas para a reorganização do sistema como a “socialização da medicina”1717. FARIA, A. de. Socialização da medicina. Saúde em Debate . 7/8:25-9, abr./mai./jun. 1978. e a “municipalização de serviços de saúde”3939. WILSON FADUL. Minha política nacional de saúde (entrevista). Saúde em Debate . 7/8:67-76, abr./maio/jun., 1978. compunham o discurso sanitarista-desenvolvimentista da época2626. LUZ, M. T. As instituições médicas no Brasil: instituição e estratégia de hegemonia. Rio de Janeiro, Graal , 1979. p. 76-6.. A Universidade Brasileira, formada basicamente por conglomerados de escolas isoladas, segundo o modelo francês, não teve, nesse período, um papel proeminente na discussão da questão saúde. Apenas duas escolas de saúde pública existiam no país, sendo uma ligada ao Ministério da Saúde e a outra à Universidade de São Paulo. Poucas escolas de medicina ou de enfermagem dispunham de espaço acadêmico para o estudo da saúde coletiva.

O movimento estudantil reivindicava a Reforma Universitária e criticava a falta de preocupação da universidade de então para com a saúde da coletividade. A atenção para a saúde do povo e não apenas a assistência às doenças dos ricos e das elites, somente passou a ser esboçada a partir do projeto da Universidade de Brasília, no início dos anos sessenta.3434. RIBEIRO, D. A universidade necessária. 2.ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1975. 313p.

Essas questões, juntamente com as idéias de “municipalização de serviços de saúde” e de “fixação de um plano nacional de saúde” que atravessaram a III Conferência Nacional de Saúde, realizada em dezembro de 1963, foram apagadas com o golpe militar de 643939. WILSON FADUL. Minha política nacional de saúde (entrevista). Saúde em Debate . 7/8:67-76, abr./maio/jun., 1978..

A perseguição política contra docentes e pesquisadores e a adoção de políticas privatizantes e centralizadoras pelo regime militar sufocaram, por longo tempo, os anseios pela democratização da saúde. O ressurgimento do movimento estudantil nos anos 67 e 68, denunciando a ditadura e o Relatório Atcon, matriz do Acordo MEC/USAID, defendia a construção de uma universidade comprometida com a realidade brasileira. A mobilização política que recortou todo o ano de 68 foi brutalmente reprimida, culminando com a adoção do AI-5 e, posteriormente, com a implantação de uma reforma universitária visando a “modernização reflexa” da estrutura acadêmica brasileira. Esta reforma, segundo AQUINO 2, concretizou-se mediante quatro estratégias: esvaziamento da autonomia universitária, inoculação do modelo autocrático de Estado, inseminação da ideologia de segurança nacional e agenciamento de um espaço de exceção para a incursão do Estado na vida acadêmica.

Ainda em 68, o governo lançou um plano nacional de saúde mais conhecido como “Plano Leonel Miranda”, tentando efetivar a mais desvairada privatização, transferindo hospitais públicos para “pessoas de direito privado por quantia mensal fixada pela administração pública em função do valor histórico de aquisiçlio”2121. FREIRE, P. Pedagogia del oprimido. 10.ed. México. Siglo XXI, 1973, p. 110.. Críticas veementes contra o plano foram feitas por entidades de saúde e pela Congregação da Faculdade de Saúde Pública da USP2727. MELLO, C G. de. Saúde e assistência médica no Brasil. São Paulo. CEBES/HUCITEC. 1977. p. 65-83., indicando, já nesse tempo, a possibilidade de articulação da Universidade com embriões de movimentos sociais em defesa da saúde coletiva.

Na fase do chamado “milagre brasileiro” (1968-1973), em que o PIB crescia a 10% ao ano e a sociedade amargava o momento mais fascista do regime de 64, dois conjuntos de fatos podem ser destacados para a reflexão sobre o tema “A Universidade e a Reforma Sanitária”:

  1. a deteriorizção das condições de saúde da população brasileira e a evidência da crise do setor saúde justamente quando o governo afirmava que a economia ia bem;

  2. a implantação de uma reforma universitária que, apesar do seu caráter autoritário, abriu espaços acadêmicos para o ensino da saúde coletiva e para expansão dos cursos de pós-graduação.

A universidade passou a contribuir com o estudo, a investigação e, posteriormente, através da denúncia da piora das condições de saúde, relacionando-as com o modelo de desenvolvimento imposto pelo regime. Noutra perspectiva, a aproximação de alguns Departamentos de Medicina Preventiva e Social com os serviços de saúde, a partir do desenvolvimento de projetos de medicina comunitária, estimulou a elaboração de propostas alternativas de organização de serviços, bem como a discussão de políticas e do planejamento de saúde.

O movimento pela democratização da saúde

A distensão “lenta, segura e gradual”, proposta pelo governo Geisel em 74, reduziu a censura à imprensa, tolerou relativamente a discussão entre intelectuais e cientistas (especialmente nas reuniões anuais da SBPC) e reorientou a política social do Estado que, na saúde, expressou-se através de iniciativas racionalizadoras como a Lei 6229/75 - Instituindo o Sistema Nacional de Saúde, e a implantação de programas de extensão de cobertura de serviços de saúde (PECs)2929. PAIM, J. S. A democratização da saúde e o SUDS: o caso da Bahia. Saúde em Debate . 21:39-44, jun. 1988..

Enquanto o Estado politizava a saúde para o controle de tensões sociais acumuladas, a sociedade civil e setores da universidade avançavam no processo de discussão, denúncia e investigação, tanto das condições de saúde e seus determinantes, como das políticas do setor. Assim o movimento pela democratização da saúde, também conhecido como “movimento sanitário”1515. ESCOREL, S. Revirada na saúde. Tema . Radis 11:5-7, nov. 1988. representava a contra-politização da saúde, articulada por instâncias da sociedade civil. O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) projetou-se como “sujeito coletivo” e “organizador da cultura” em saúde, viabilizando a socialização da produção científica da academia e constituindo um espaço privilegiado de articulação de profissionais de saúde, personalidades e estudantes que passaram a ocupar diversas entidades da sociedade civil. Assim, a contribuição de setores da universidade ao movimento pela democratização da saúde efetivou-se, durante o autoritarismo, através da SBPC, inicialmente, e do CEBES, por mais de uma década.

Este movimento-matriz do projeto da Reforma Sanitária, chega ao Parlamento em 79, durante a realização do I Simpósio de Política Nacional de Saúde, quando foi aprovado pelo plenário o documento do CEBES” A SAÚDE E A QUESTÃO DEMOCRÁTICA”3636. SIMPÓSIO sobre política nacional de saúde. Brasília, 1980. p. 227-32.. A importância desse texto reside, entre outros méritos, por constituir numa primeira sistematização dos princípios de “uma saúde autenticamente democrática”3333. A QUESTÃO democrática na área de saúde. Saúde em Debate 9:111-3, jan./fev./mar., 1980. que explicitava as medidas necessárias ao seu alcance, destacando-se a criação do Sistema Único de Saúde e o estabelecimento de unidades básicas descentralizadas, presentemente concretizadas através dos distritos sanitários.

O estudo da crise do setor saúde e das suas determinações, fundamentado em novos paradigmas de investigação desenvolvidos em centros de pós-graduação em saúde coletiva fornecia o embasamento para as lutas políticas de entidades na área de saúde e, simultaneamente, para a formulação de propostas alternativas visando a reorganização dos serviços de saúde e a redefinição das políticas do setor66. BERLINGER, G.; TEIXEIRA, S. F.; CAMPOS, G. W. da S. Reforma sanitária-Itália e Brasil. São Paulo. CEBES/HUCITEC, 1988. 207p.. Esta foi a forma modesta, porém significativa, de setores da academia, mesmo na vigência do AI-5 e do Decreto 477, participarem ativamente no movimento pela democratização da saúde que, a partir de 1986, ficou conhecido como o projeto da Reforma Sanitária.

Consequentemente, o corpo doutrinário que informa essa proposta, consubstanciado no Relatório Final da VIII CNS1414. CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE, 8. Brasília, 1986. Anais da 8. a Conferência Nacional de Saúde. Brasília, Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987. p. 381-9., foi composto por três vias principais:

  1. A través dos movimentos sociais da área de saúde que participaram do combate ao regime autoritário, inclusive na campanha das Diretas Já, - a maior mobilização popular registrada na História do Brasil, e discutiram proposições no V Simpósio de Política Nacional de Saúde na Câmara dos Deputados, em 1984, muito contribuindo na elaboração do Programa de Governo da Transição Democrática88. BORBA, E. Programa de ação do governo - setor saúde. s.n.t. 65p. Documento elaborado pelo Escritório Técnico do Presidente Trancredo Neves.),(99. BRASIL. Congresso. Camara dos Deputados. Proposta política para um programa de saúde. Saúde em Debate. 17: 33-6, 1985.;

  2. A partir da experiência adquirida com a implementação de políticas racionalizadoras, iniciadas com o PECs e reforçadas com a estratégia das Ações Integradas de Saúde (AIS). Governos estaduais e municipais, democraticamente eleitos depois de 82, tiveram um papel especial na expansão dessas experiências que possibilitaram, pela primeira vez na história brasileira, às universidades participarem de um consórcio compartilhado de responsabilidades no campo das políticas de saúde, podendo redefinir a formação de recursos humanos e a pesquisa em função das necessidades sociais majoritárias3232. POSSAS, C. de A. Prefácio. In: BERLINGUER, G. et alii. Reforma sanitária Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES, 1988..

  3. Mediante um esforço específico de estudo e investigação das relações entre saúde e sociedade que permitiram “repensar a saúde coletiva enquanto campo de conhecimento e prática social”44. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÔS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA. Pelo direito Universal à Saúde Rio de Janeiro, 1986. 96p. Contribuição da ABRASCO para os debates da VIII Conferência Nacional de Saúde. Desse modo, a produção da academia contou, além do CEBES, com a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO) que, desde 1979 vem colaborando na fundamentação de proposições que, atualmente configuram o projeto da Reforma Sanitária. Os textos básicos que subsidiaram os debates da VIII CNS foram produzidos, na sua maioria, por intelectuais vinculados a academia, destacando-se o documento da ABRASCO “Pelo Direito Universal à Saúde”44. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PÔS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA. Pelo direito Universal à Saúde Rio de Janeiro, 1986. 96p. Contribuição da ABRASCO para os debates da VIII Conferência Nacional de Saúde.

A mirada sobre essas três vias está a sugerir que, apesar da crítica corrente a respeito da alienação da universidade por referência aos problemas fundamentais da sociedade, a academia, mesmo com seus limites, ofereceu uma colaboração não desprezível para a elaboração da proposta da Reforma Sanitária Brasileira.

A reforma sanitária no Brasil

A leitura do Relatório Final da VIII CNS permite destacar os principais elementos constitutivos da proposta da Reforma Sanitária:

  1. ampliação do conceito de saúde;

  2. reconhecimento da Saúde como direito de todos e dever do Estado;

  3. criação de um Sistema Único de Saúde;

  4. participação popular;

  5. constituição e ampliação do orçamento social.

Este marco conceitual da Reforma Sanitária, enquanto proposta (conjunto articulado de princípios e proposições políticas), transforma-se no período subseqüente a VIII CNS em projeto (conjunto de políticas articuladas). Ou seja, trata-se de uma “bandeira específica e parte de uma totalidade de mudanças”33. AROUCA, S. A reforma sanitária brasileira. Tema. Radis 11:2-4, nov. 1988..

Apesar do agravamento da crise econômica e do recuo político praticado pelo Governo Federal, desde 19873131. PEREIRA, L. C. B. A crise da “Nova República”. Novos Estudos CEBRAP. 23:85-101, mar. 1989 a construção do projeto da Reforma Sanitária, tanto na sua dimensão política quanto no seu componente cultural, avançou mediante os seguintes passos:

  1. constituição da Comissão Nacional da Reforma Sanitária produzindo textos básicos como contribuição ao capítulo saúde da Constituição e para o arcabouço institucional do setor;

  2. implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS);
    • mediante o aperfeiçoamento das AIS e o envolvimento de governos estaduais, empossados em 1987, com relação a alguns itens do projeto da Reforma Sanitária tais como o reforço aos serviços públicos, a descentralização e a participação popular em órgãos colegiados de gestão.

  3. promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil;
    • incorporando no capítulo saúde os princípios básicos da Reforma Sanitária, entre os quais o reconhecimento do direito à saúde, a responsabilidade estatal, a organização do Sistema Único de Saúde (SUS), a participação da comunidade e a atuação complementar das instituições privadas;

  4. instalação das constituintes estaduais;
    • cujos projetos em discussão procuram avançar certos pontos da Constituição da República, assimilando, inclusive, alguns elementos testados pelo SUS55. BAHIA. Assembléia Constituinte. Ante-projeto da Constituição, maio 1989. 129p..

  5. elaboração do projeto da lei Orgânica da Saúde.
    • as versões enviadas, pelos Ministérios envolvidos1010. BRASIL. Ministério da Saúde. Projeto de lei Orgânica da Saúde. Abril, 1989 (mimeo).),(1313. COMISSÃO INTERMINISTERIAL DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO - CIPLAN. Projeto de Lei do Sistema Único de Saúde. Brasília, abril 1989. (mimeo)., a Presidência da República, apesar de divergentes em certos pontos e recuadas em outros, apontam para alguns progressos na organização do sistema, fruto do trabalho coordenado pela Universidade de Brasília cuja proposta3838. UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. Faculdade de Ciências da Saúde. Núcleo de Estudos em Saúde Pública. Grupo de assessoramento para elaboração da legislação sobre seguridade social pós-constituinte. Ante projeto Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde. Brasília, fev. 1989. 51p. (proposta p/discussão). serviu de base para a redação dessas versões.

A despeito dessas conquistas, a Reforma Sanitária enquanto processo (conjunto complexo de práticas que integram a prática social) enfrenta-se com obstáculos presentes na estrutura e na superestrutura da sociedade brasileira, agravados pelas dificuldades de ampliação de sua base de sustentação política para vencer os seus adversários transitórios e estruturais numa conjuntura marcada pela crise fiscal do Estado, pela adoção de políticas recessivas e pela manipulação político-ideológica da desesperança do povo.

O monitoramento desse processo, passando pelo reconhecimento de que a Reforma Sanitária comporta tempos técnico e político de viabilização distintos, - como ilustra a experiência italiana6, repõe para a Universidade novos objetos da reflexão e de pesquisa e, provavelmente, formas diferenciadas de inserção.

A universidade e a contra-hegemonia

Muitos devem estar se perguntando como a Universidade Brasileira, na sua miséria, poderia se comprometer, atualmente, com um projeto tão complexo e desafiante quanto a Reforma Sanitária. Alguns estariam questionando como a Universidade, numa sociedade de classe pode atender aos interesses e necessidades das camadas populares. Outros ainda, reticentes em relação a própria Reforma Sanitária. Insistiram em indagar se a saúde pode ser equalizada numa economia capitalista. Essas perguntas talvez carreguem a suspeita de que a luta pela democracia e pelo socialismo não passa de sonho, quimera, ou, na melhor das hipóteses, utopia.

De início, peço emprestado a BOBBIO77. BOBBIO, N. As ideologias e o poder em crise. Polis, 1988. p. 39-40.) uma resposta genérica para muitas dessas questões:

“A única resposta que tenho condição de dar é que socialismo, em todas as suas diferentes e contrastes encarnações, significa, antes de tudo, uma coisa: mais igualdade.

Parece uma resposta um pouco pobre. Apesar de tudo uma das poucas coisas que aprendi da história e da meditação através dos livros com homens de todos os tempos é que uma das maiores linhas de diversão entre os homens, em sua atitude para com seus semelhantes, é a que ocorre entre igualitários e não igualitários, ou seja, entre os outros que crêem que os homens são iguais entre si, apesar das diferenças, e os que crêem que são desiguais, apesar das semelhanças; ou ainda entre os que acham injustas as desigualdades sociais porque os homens são mais iguais do que desiguais e os que pensam que o encurtamento das distâncias entre classes e categorias não se justifica por serem os homens mais desiguais que iguais”.

A Reforma sanitária, enquanto processo, pode reduzir desigualdades, viabilizar certas proposições que constavam na sua proposta original e melhorar a assistência à população. A luta que merece ser travada na Universidade, nessa perspectiva, é a de ampliar seu leque de compromissos com a maior parte possível da sociedade em que se insere.

Algumas teorias, no entanto, destacam a função da educação como a reprodução das desigualdades sociais e que, através da reprodução cultural, a escola contribuiria para a reprodução da estrutura social capitalista3535. SAVIANNI, D. Escola e democracia. 2.ed. Cortez Editora, 1984, p. 7-39.. A Universidade, por exemplo, constituiria um aparelho ideológico do estado (AIE) responsável pela reprodução das relações de produção do tipo capitalista. Mas o próprio ALTHUSSER11. ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Lisboa, Presença, 1974. p.49-60. assinala “que os AIE podem ser não só o alvo, mas também o local da luta de classe. A classe (ou as alianças de classes) no poder não domina tão facilmente os AIE como o Aparelho (repressivo) de Estado, e isto não só porque as antigas classes dominantes podem durante muito tempo conservar neles posições fortes, mas também porque a existência das classes exploradas pode encontrar meios e ocasiões de se exprimir neles, quer utilizando as contradições existentes (nos AIE) que conquistando pela luta (nos AIE) posições de combate”. Ou seja, reconhece a possibilidade de competição de diferentes projetos sociais, mesmo nos aparelhos do Estado.

Outras teorias críticas3636. SIMPÓSIO sobre política nacional de saúde. Brasília, 1980. p. 227-32. vão indicando que, apesar da aparência unitária, a escola é dividida e corresponde a clivagem das classes fundamentais da sociedade capitalista: burguesia e o proletariado. A Universidade reproduz, no seu interior, enfrentamentos políticos ideológicos, condicionados pelos diferentes projetos de sociedade que circulam nas órbitas das classes fundamentais. Não constitui, portanto, num monobloco ou num instrumento de uso exclusivo da burguesia e dos seus aliados no Estado e reproduzir, mecânica e monotonamente sua ideologia e seus interesses de classe, como fazer crer a concepção “estrutural-paranoide”2828. MENENDEZ, E. El modelo medico y la salud de los trabajadores. In: BASAGLIA, F. et alii. La salud de los trabajadores: aportes para una política de la salud. México. Nueva Imagen, 1978. p. 9-51.

A Universidade pode ser um aparelho de hegemonia1212. BUCI - GLUCKSMANN, C. Gramscie o estado: por uma teoria materialista da filosofia. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1980. p. 473-94. utilizado pelas classes dominantes para a direção político-cultural, mas comporta, simultaneamente, um processo de luta contra-hegemônica dos agentes que se articulam com os projetos orgânicos das classes subalternas. A Universidade é, pois, um aparelho heterogêneo de hegemonia.

Analisando a concepção gramsciana da educação, BROCCOLI1111. BROCCOLI, A. Antonio Gramsci - la educacion como hegemonia. 2.ed. México, Nueva Imagem, 1979. p. 155-230. destaca: “es necesario volverse hacia el ambiente para captar el sentido y los límites de toda actividad educatica; y en esa búsqueda se satisfacen las necesidades históricas de la propia humanidad, ella vulven a encontrarse estímulos para fecundar la propia personalidad que es el resultado de la obra educativas. El alumno es el hombre que se debe ser impulsado a concerse a si mismo, es decir, las possibilidades de realizarse y de reconcerse em el ambiente, para transformar la historia y para modificar según su visón racional del mundo las relaciones existentes. Por conseguiente, crear los presupuestos para la superación de la sociedade actual, a través del conocimiento de las contradicciones existentes y el logro de un genuino sentido de historicidade parece el fin de la educación”1111. BROCCOLI, A. Antonio Gramsci - la educacion como hegemonia. 2.ed. México, Nueva Imagem, 1979. p. 155-230..

A universidade na Reforma Sanitária

A pedagogia gramsciana toma-se útil para demarcar o papel da Universidade na Reforma Sanitária. Reconhece a Universidade como uma escola de alta cultura e de elaboração crítica e científica, não apenas no seu perfil de ensino e de investigação mas também “como uma estrutura destinada a incidir profundamente na vida cultural da nação”1111. BROCCOLI, A. Antonio Gramsci - la educacion como hegemonia. 2.ed. México, Nueva Imagem, 1979. p. 155-230.. A Reforma Sanitária, enquanto um projeto político-cultural, requer da Universidade o seu mais decidido apoio tanto no seu momento político quanto na sua dimensão cultural. Mesmo não contando com a participação de toda a Universidade na sua concepção, formulação e implementação. dispõe no espaço acadêmico, de aliados significativos para a sua efetivação.

Não se trata de ver na Universidade o poder ilusório de ser agente de mudança por si só, nem reiterar a impotência e o imobilismo “racionalizados” pela ideologia "estrutural-paranoide”. Ao contrário, cabe entendê-la como espaço de luta, seja nas reformas curriculares, seja na discussão de conteúdo de disciplinas e dos projetos de pesquisa e de extensão.

A discussão da chamada “integração docente-assistencial” ou articulação ensino-serviço, por exemplo, deve ser resposta rompendo com a imagem bipolar, dominante. O próprio processo de construção dos distritos sanitários, na perspectiva com que se realiza na Bahia, via SUDS, possibilita a Universidade participar no planejamento de situações, capacitando recursos humanos dos serviços e os matriculados nos seus cursos em bases inteiramente novas, procedendo, na praxis, a crítica dessa suposta “razão dualista”.

Superar as análises dualistas centradas na dicotomia “polo universidade versus polo serviço” faz parte da estratégia de aproximação do mundo do estudo ao mundo do trabalho (entendido o estudo como trabalho e este como ato de transformação-objeto de conhecimento). Do mesmo modo, identificar os aliados e adversários estruturais e conjunturas na Universidade, nas instituições de saúde e na sociedade, costurar alianças e desenvolver programas específicos de ensino, pesquisa e de cooperação técnico-científica, representam táticas relevantes para tomar hegemónico o projeto da Reforma Sanitária.

Imaginar que todos os departamentos de Medicina, Enfermagem, Odontologia, Farmácia e Nutrição bem como a totalidade dos órgãos que integram as instituições de saúde vão se mobilizar, homogeneamente, para a realização dessas atividades e apoiar a Reforma Sanitária, é insistir numa postura ingênua e idealista, correndo o risco de, não trabalhando em cima das contradições tal como elas ocorrem, perder os horizontes de construção da viabilidade.

Também não se pode perder de vista que além da prática teórica (construção do saber), da prática ideológica (transformação da consciência) e da prática política (transformação das relações sociais), analisadas por ESCOREL1515. ESCOREL, S. Revirada na saúde. Tema . Radis 11:5-7, nov. 1988., existem outras práticas que integram a prática social e que precisam ser contempladas pela Universidade. É o caso, por exemplo, da produção de meios de produção, (como as tecnologias) que compõem a dimensão institucional de uma dada situação de saúde a ser transformada pelo processo da Reforma Sanitária, e, por conseguinte, precisam ser recriados.

A partir da formação dos arcos de aliados conjunturais e estruturais e da articulação do “conjunto complexo das práticas que se inter-determinam dentro de um todo social dado” (prática social)2525. HERBERT, T. La practica teórica y las ciências sociales. In: VERON, E. El processo ideológico. 3.ed. Buenos Aires. Tiempo Contemporâneo. 1976. p. 197-223., pode-se superar impasses e corrigir os desvios político-ideológicos que o processo da Reforma Sanitária tende a sofrer ao ser conduzido pelo Estado num contexto desfavorável de correlação de forças. É o caso da sua redução em mera reforma administrativa, a reprodução ampliada da mesmice burocrática, a exacerbação do viés tecnocrático e a dissimulação das condições de desigualdade no acesso aos serviços e na produção das doenças ao transformar o princípio “saúde - direito de todos e dever do Estado” num slogan vazio.

“Ser governo não é ser poder”, adverte TEIXEIRA3737. TEIXEIRA, S. O dilema da reforma sanitária brasileira. In: BERLINGUER, G; et alii. Reforma sanitaria Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES. 1988. p. 195-207.. E continua: “Ser dirigente governamental sem exercício efetivo de poder coloca a questão da perda de credibilidade da reforma sanitária, enquanto projeto que pressupõe uma legitimidade política por eficácia/eficiência do projeto”. Nessas circunstâncias há que se proceder com cautela para que categorias gramscianas como “guerra de posições” e “contra-hegemonia”2424. GRUPPI, L. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro, Graal, 1978. p. 1-4. não sejam empregadas de forma equivocada ou como justificativa ideológica para o oportunismo político.

Assim, a luta político-ideológica da Reforma Sanitária, tanto na Universidade como nos serviços de saúde, tem que estar preparada para enfrentar esses desvios, e outros dilemas como o assumido por liberais da medicina de que “é melhor um bom serviço de saúde para poucos do que um serviço deficiente para muitos”. Ao contrário, há que se buscar alternativas teóricas e políticas criativas sem deixar de denunciar os limites estruturais da sociedade capitalista em assegurar a equalização na saúde, os decorrentes da natureza conservadora da transição pactuada3737. TEIXEIRA, S. O dilema da reforma sanitária brasileira. In: BERLINGUER, G; et alii. Reforma sanitaria Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES. 1988. p. 195-207. ocorrida no Brasil, além daqueles próprios de governos estaduais e municipais sustentados por forças retrógradas.

A equidade, assumida como princípio da Reforma Sanitária, tende a ser formalista nos marcos do capitalismo. Mas a consciência dos seus limites pelas forças progressistas da história alimenta a luta pela igualdade real a ser garantida por um patamar mais elevado de organização social. Enquanto essa luta se processa batalhas mais concretas devem ser travadas no cotidiano como as que são empreendidas, anonimamente, por tantos companheiros que participam do grande esforço técnico de montagem do SUDS, “tijolo-por-tijolo num desenho lógico”3030. PAIM, J. S. Saúde, crises e reformas. Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBA, 1986. p. 185-250.. Ainda que alguns desejem uma Reforma Sanitária como se fosse um “desenho mágico” há que dispor de paciência histórica e entender, diferentes tipos de consciência: o mágico, o ingênuo e o crítico18. Assim, a prática ideológica necessária a transformação da consciência sanitária dos trabalhadores de saúde e da população deve ajudá-los a ultrapassar as fases mágicas e ingênua e alcançar a consciência crítica.

Combater as dificuldades de acesso aos serviços, a discriminação na assistência, a baixa cobertura, o alto custo do mau-trato e a deficiente qualidade da atenção prestada às camadas populares, também faz parte dessa luta político-ideológica. E ao mesmo tempo demonstrar que é difícil melhorar, significativamente, os serviços públicos mantendo-se privilégios corporativos e esquemas de atenção à saúde concebi­ dos para as elites e as classes dominantes.

Conseqüentemente um dos compromissos que a Universidade pode assumir nessa luta seria o de contribuir na garantia de uma atenção à saúde da melhor qualidade possível para as camadas populares mesmo nas condições históricas atuais, a partir da qualificação de recursos humanos, da cooperação técnico-cientifica e da articulação programático-funcional das suas unidades de saúde aos distritos sanitários. A autonomia relativa que dispõe face ao Estado e às instituições de saúde permite avaliar, permanentemente, o desenvolvimento da Reforma Sanitária, ajudar a explicar seus obstáculos, repensar estratégias, projetar novos objetivos intermediários a médio e longo prazos, contribuir na consolidação dos distritos sanitários, proceder estudos comparados de sistemas de saúde em formações sociais distintas e rediscutir os tempos técnicos e políticos de viabilização.

No que diz respeito a qualificação de recursos humanos, cabe a Universidade formar quadros competentes, solidários ao projeto da Reforma Sanitária e dispostos a se colocarem como intelectuais orgânicos2323. GRAMSCI, A. A cultura y literatura. Barcelona, Península, 1977. p. 27-84. a serviço dos interesses fundamentais do povo brasileiro. Para tanto faz-se necessário não só a busca rigorosa de uma competência técnica e cientifica - nos planos teórico-conceitual e técnico-instrumental - mas, especialmente, uma obsessiva atenção às necessidades sociais. Isto requer uma atualização constante de seus objetos de reflexão e de pesquisa no sentido de uma interação permanente com a sociedade, tal como o estudo da situação de saúde nas suas diversas dimensões33. AROUCA, S. A reforma sanitária brasileira. Tema. Radis 11:2-4, nov. 1988., o desenvolvimento de investigações e de novas tecnologias e a redefinição de políticas e práticas de saúde.

Esta interação não significa uma aderência simplista, mecânica, da academia às demandas imediatas do movimentos sociais ou das instituições de saúde. Também não se trata de um ativismo político inconseqüente que, contaminado com o populismo tão em moda, negue as especificidades da Universidade. Mas, através dessa comunicação permanente1313. COMISSÃO INTERMINISTERIAL DE PLANEJAMENTO E COORDENAÇÃO - CIPLAN. Projeto de Lei do Sistema Único de Saúde. Brasília, abril 1989. (mimeo)., a Universidade pode reorientar as suas atividades básicas - ensino, pesquisa e extensão para que se comprometa com a vida, com o que se passa no cotidiano do povo e, até mesmo, com suas utopias. Que seja a resposta necessária, às vezes antecipada, às exigências da História. Nesse particular, a Medicina Social Brasileira, gestada na academia, tem sido pródiga de exemplos de como pesquisas teóricas e históricas, aparentemente desprovidas de sentido prático, passaram a fundamentar, competentemente, não só novas investigações empíricas e intervenções técnicas como a formulação de políticas e a ação das lutas sociais por mudanças no âmbito da saúde.

Na medida em que a Universidade se comunica, organizadamente, com projetos da natureza da Reforma Sanitária, tende a ampliar seus vínculos e compromissos com as classes subalternas, mesmo mantendo, contraditoriamente relações político-ideológicas com as classes dirigentes. Esta me parece a política a ser construída pelos setores da Universidade que apostam na Reforma Sanitária em que a educação, entendida como produção, transmissão e apropriação crítica do conhecimento, é também assumida como prática de liberdade2020. FREIRE, P. La educacion como práctica de la libertad. 16.ed. México, Siglo XXI. 1979. 161p.. Nesse percurso, novas temáticas vão emergindo como a questão ecológica e das suas relações com a luta maior contra as causas naturais e sociais das doenças nas sociedades urbano-industriais.

Portanto, se a Universidade em sintonia com as necessidades do seu tempo, produz um saber crítico que dissemina estímulos na sociedade, estes retornam como demanda, sob a forma de reorientação da formação de profissionais, pesquisas, treinamento em serviço, educação continuada, capacitação inovadora, consultorias, bem como novas conceituações, paradigmas e teorias capazes de repolitizar a questão saúde.

A miséria da Universidade brasileira não se reduz a deterioração das suas instalações físicas e dos equipamentos nem à escassez de laboratórios e bibliotecas. Passa também pela indigência no desenho e na implementação de novas utopias, assim como pela incapacidade de “intencionalizar suas formas de ação”, como diria Darcy Ribeiro3434. RIBEIRO, D. A universidade necessária. 2.ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1975. 313p..

Por mais que seja dura a crítica em relação à Universidade Brasileira do presente, como fizera GIANNOTTI2222. GIANNOTTI, J. A. A universidade em ritmo de barbárie. São Paulo, Brasiliense. 1986. p. 48. em seu livro “A Universidade em Ritmo de Barbário”, é possível vislumbrar caminhos, tal como afirma:

"Nos centros mais avançados, nossos pesquisadores sabem o que no mundo se conhece. E possuímos uma medicina, uma odontologia ou uma engenharia das mais sofisticadas, a despeito de servir a parcelas muito privilegiadas da população. Além do mais não são tanto os recursos de pesquisa que nos faltam, mas aquela capacidade de selecionar os problemas relevantes para o país e para a própria comunidade cientifica tecer uma trama auto-referente. A ciência não é feita somente por gênios mas também por toda uma pirâmide de investigadores trabalhando continuada e competentemente, vinculada a uma infra-estrutura lábil, nervosa, capaz de proteger o investigador da procura bibliográfica inútil, das vicissitudes do laboratório, do enorme desperdício que hoje representa o trabalho artesanal, desliado duma tradição. Tudo isso não se constrói de um dia para o outro, mas também não se obtém esse resultado se a universidade não souber a que propósito vem. Não se trata de definir seu ideal, seus objetivos mais longínquos, mas, sobretudo, de delinear claramente suas regras de conduta, o papel e a responsabilidade de seus atores, e procurar nessa direção avançar o todo custo”2222. GIANNOTTI, J. A. A universidade em ritmo de barbárie. São Paulo, Brasiliense. 1986. p. 48..

Projetos político-culturais da envergadura da Reforma Sanitária Brasileira poderão contribuir com a Universidade no sentido de orientar e planificar a sua ação3434. RIBEIRO, D. A universidade necessária. 2.ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1975. 313p. assumindo o desafio de reconstruir o seu destino.

Comentários finais

Apontar, teoricamente, caminhos para a viabilização da Reforma Sanitária e para a reestruturação da Universidade é uma tarefa necessária, porém, a realização de análises concretas de situações concretas faz-se imprescindível. Isto porque os obstáculos que se antepõem à Reforma Sanitária, na conjuntura atual, exigem saídas substancialmente políticas, além de esforços técnico-científicos.

O processo da Reforma Sanitária supõe o desenvolvimento do capitalismo brasileiro e o percurso da sua superação para o socialismo. Tem a ver com a conquista da cidadania plena e com a democratização da vida social. Conseqüentemente, o avanço das Reformas na Saúde e na Educação depende do que se consiga fazer deste país: desde a supressão das políticas recessivas e do enfrentamento da crise econômica, passando pelo respeito a Constituição, pelas eleições diretas e posse do Presidente da República, pela ampliação e melhor utilização de recursos para educação e para a saúde, pela revitalização da Universidade até a modernização da rede pública de serviços de saúde.

É certo que vivemos um momento grave da vida nacional em que nenhum desses aspectos sugere um caminho tranqüilo. Essas dificuldades presentes na sociedade brasileira repercutem no plano da superestrutura e se apresentam com a face de “crise moral”. Queiramos ou não a questão moral passa a atravessar as instituições, seja a Universidade, sejam os serviços públicos de saúde. Isto significa que a falta de crédito nos governos, na política, nos políticos, nos partidos, nos dirigentes, nas instituições compromete a Reforma Sanitária cujo projeto apresenta componentes políticos, jurídicos, organizacionais, tecnológicos, mas sobretudo, comportamentais. E a tradição brasileira não ilustra um serviço público eficiente na área social, livre do clientelismo político e permeável é participação, nem servidores permanentemente comprometidos com o bem público, defensores da cidadania. A Reforma Sanitária, na sua dimensão cultural parece exigir uma “reforma intelectual e moral”2323. GRAMSCI, A. A cultura y literatura. Barcelona, Península, 1977. p. 27-84. conduzida por novos intelectuais coletivos, orgânicos às transformações necessárias. Lamentavelmente, na experiência política brasileira os partidos não se tem configurado como intelectuais coletivos, deixando que demagogos e aventureiros lancem mão dessa bandeira ou mesmo do falso moralismo.

A análise da conjuntura não indica, portanto, um tempo próximo favorável à concretização de todas as proposições formuladas na VIII CNS. Evidentemente que certos avanços poderão ocorrer a partir dos resultados da implantação do SUDS, nos textos das constituintes estaduais e das leis orgânicas dos municípios e da saúde, entre outros. Mas a crise fiscal do Estado não parece ter solução próxima. A dívida externa constrange a economia e o financiamento dos serviços públicos fica comprometido. Se o SUDS era uma possibilidade da passagem de políticas racionalizadoras para políticas democratizantes no setor saúde3030. PAIM, J. S. Saúde, crises e reformas. Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBA, 1986. p. 185-250., a Reforma Sanitária, enquanto expressão dessas últimas é impensável sem os investimentos necessários à ampliação da rede pública de serviços.

Este quadro fortalece a tese de que a Reforma Sanitária não, tem saída se confinada aos limites de uma reforma administrativa setorial na qual a lei, simplesmente, estabeleça a organização do Sistema Único de Saúde. Permanecendo estreitas as suas bases financeira e política corre o risco de se desmoralizar perante a população. Contra esses riscos novos esforços devem ser envitados nos campos cultural e político. A reconceitualização das necessidades de saúde e a crítica das práticas sanitárias apresentam-se como pertinentes, deslocando-se a ênfase da questão dos serviços para as condições de saúde e seus determinantes. Tais alternativas precisam ser exploradas para facilitar a repolitização da saúde numa conjuntura que tende a banalizar o projeto da Reforma Sanitária.

Procede, portanto, a preocupação de TEIXEIRA3737. TEIXEIRA, S. O dilema da reforma sanitária brasileira. In: BERLINGUER, G; et alii. Reforma sanitaria Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES. 1988. p. 195-207. exposta no seu artigo “O Dilema da Reforma Sanitária Brasileira”:

“Atualmente existe um consenso quanto a incapacidade das medidas reformistas adotadas alterarem o conteúdo da prática médica, o final da linha, o colóquio singular. Explicações com base na atuação corporativa dos profissionais de saúde ou em sua deformação profissional apontam um problema, mas não uma solução.

O que se pode perguntar é em que medida o paradigma adotado na construção do projeto da reforma é capaz de dar conta de uma transformação das práticas sanitárias. Em outras palavras, a ruptura almejada em termos das relações técnicas e sociais que se reproduzem nas práticas sanitárias não parece encontrar respaldo teórico em um paradigma que assume o poder como objeto de transformação.

Assim é necessário repensar os pressupostos teóricos em conexão com as práticas políticas que surgem a cada momento na sociedade civil, como a indicar que os dilemas encontrados podem ser resolvidos a partir da capacidade coletiva de enfrentar as contradições atuais, reconstruindo, a cada passo, a unidade dialética saber-ideologia-prática”3737. TEIXEIRA, S. O dilema da reforma sanitária brasileira. In: BERLINGUER, G; et alii. Reforma sanitaria Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES. 1988. p. 195-207..

Daí o entendimento de que a Reforma Sanitária é, simultaneamente uma proposta, um projeto e um processo. Fixar-se na pureza da proposta deixando de construir viabilidade para o projeto e negando a existência do processo é insistir numa postura idealista, a histórica. Limitar-se ao vai-e-vem conjuntural do processo ignorando a natureza revolucionária da proposta e escamoteando a direcionalidade do projeto é deixar margem para o florescimento de diferentes tipos de oportunismos. A “unidade dialética saber-ideologia-prática”3737. TEIXEIRA, S. O dilema da reforma sanitária brasileira. In: BERLINGUER, G; et alii. Reforma sanitaria Itália e Brasil. São Paulo. HUCITEC/CEBES. 1988. p. 195-207. na Reforma Sanitária só pode ser constituída na luta pela equidade na saúde e por uma sociedade mais livre e mais justa.

Investir nessa luta, aprofundando a discussão da crise brasileira e das suas alternativas representa uma manifestação de esperança na Universidade e na Reforma Sanitária do Brasil.

“Esperanza que no se manifiesta, sin embargo, en el gesto pasivo de quien cruza los brazos y espera. Me muovo en la esperanza en cuanto lucho y si lucho con esperanza. es­ pero”2121. FREIRE, P. Pedagogia del oprimido. 10.ed. México. Siglo XXI, 1973, p. 110..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1991
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