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EDUCAÇÃO MÉDICA: NEM ONIPOTÊNCIA, NEM IMPOTÊNCIA - FLEXIBILIDADE E HUMANÍSTICA

De acordo com a Física moderna não existem estruturas estáticas na natureza: há estabilidade, mas é a estabilidade do equilíbrio dinâmico. Quanto mais se penetra na matéria mais é preciso reconhecer a sua natureza dinâmica.

Se a matéria no sentido físico é dinâmica, o que dizer da ciência e das idéias? O que dizer da ciência médica e da universidade, dinâmica por essência?

A cada pergunta respondida, a cada novo conhecimento, seguem-se novas perguntas e buscam-se novos conhecimentos.

É o dinamismo da dúvida, da ciência; é a angústia do conhecimnto, que exige revisão, renovação, reflexão crítica. Só assim se evolue, só assim se ensina e se aprende e só assim se cresce e se amadurece.

Diante do equilíbiro dinâmico das áreas do conhecimento que formam a ciência médica, é evidente que o ensino deverá ser dinâmico, sofrendo reajustes e reformulações. As mudanças são parte inerente do processo educacional verdadeiro; a estagnação é anti pedagógica e anti cultural.

Nunca é demais relembrar que nosso aluno de hoje será o médico pleno do ano 2030. Que educação devemos dar a ele, hoje, para que possa se preparar e enfrentar os desafios que o progresso científico acarretará?

A maioria das escolas médicas e muitos professores não estão sequer conseguindo se manter atualizados em termos de infra-estrutura e de conhecimento médico.

Não se pode ignorar que este século já tece duas grandes Revoluções científicas (a atômica, na primeira metade e a molecular, na segunda metada), e está dando ao homem o domínio (quase total) em 3 grandes campos, o da reprodução, o da hereditariedade e o do sistema neuro­psíquico.

Os conhecimentos científicos daí advindos não foram ainda totalmente absorvidos, mesmo nos centros médicos melhor desenvolvidos; na maioria das vezes ainda não foram nem mesmo identificados plenamente. Mais ainda, as repercussões humanísticas daí decorrentes nem sequer estão sendo cogitadas. Os conflitos e os dilemas éticos não foram equacionados; alguns deles (maioria, pode-se dizer) estão apenas aflorados e sendo discutidos.

Mudanças de grade curricular, reformulações de cargas horárias, mudanças epidérmicas do conteúdo e da forma, acréscimos ou 'enxertos' improvisados de temas, não são mais suficientes, se é que alguma vez foram realmente suficientes (mesmo quando autenticamente buscados).

O que fazer? Não há receita pronta. E, então, como proceder?

Em primeiro lugar reconhecer, de 'peito aberto', o fenômeno (diria mesmo crise) e assimilar a noção de que ele é profundo, complexo, interligado a fatores múltiplos; concomitantemente, reconhecer, também, que não há modelo ou receita acabada para sair da situação, por mais angustiante que seja admitir tal fato.

Isto posto, adotar algumas posturas e traçar algumas diretrizes básicas, não para solução definitiva, mas para permitir que surjam caminhos ou vias que levem a soluções.

Assim, é imprescindível aceitar o fato de que estatutos, regulamentos e regimentos, embora necessários, apenas consolidam conquistas já obtidas e, em período de rápidas transformações, podem impedir novas conquistas e reformulações; impõe-se que contemplem e criem vias de escape, válvulas de segurança para as novas idéias e novas reflexões e mudanças.

Nesta linha, é bom assinalar que em termos de educação médica, os Departamentos não são “donos” do ensino: quem tem autonomia é a Universidade. Os Departamentos e as disciplinas não têm soberania, embora devam ter liberdade para melhor desempenho dos compromissos e das responsabilidades educacionais a ele afetas.

O modelo “gerencial” (tão em voga até recentemente) em nome de eficiência burocrático­ administrativa, não pode sufocar a criatividade dos homens da Universidade. O 'modelo gerencial', levado aos extremos, cria regras para defesa e manutenção da mediocridade, alijando a intelectualidade e os fenômenos criativos.

Por outro lado, faz mais de meio século que a graduação, no ensino médico, tem 6 anos de duração. E inconcebível comparar a Medicina de hoje com a de 50 anos atrás, em termos de corpo de doutrina.

A Medicina, de arte e técnica, passou a ciência médica; seu corpo de doutrina aumentou exponencialmente em escala jamais vista, e a duração do curso de graduação continuou a mesma. Como isto tem sido possível? Dois mecanismos foram postos em jogo: de um lado, alguns "acréscimos" foram sendo feitos nas matérias lecionadas e, de outro lado, “esticou-se a graduação” para a fase de Residência. Forçoso é admitir que estes dois mecanismos são meras soluções de subterfúgio de escape, de alívio. Por mais que se estenda a duração da Residência como “terminalidade do curso médico”, não se conseguirá resolver a questão.

Estes dois mecanismos não são suficientes e não satisfazem. É necessário ampla reformulação (cuidadosa, crítica, ponderada, equilibrada etc) da educação médica. É inadiável a busca de “novo paradigma”. Mesmo não se dispondo do ‘paradigma’ pronto reconhcer sua necessidade é medida importante.

Certamente não será com a onipotência de pessoas ou grupos (educadores déspotas, ainda que às vezes esclarecidos), ' donos da verdade' e da política institucional, e nem com a impotência dos acomodados e dos menos interessados, que será feito o equacionamento das questões acima referidas.

Seguramente, os caminhos deverão exigir uma condição: a flexibilização. A história demonstra que, em situações de crise e de desagregação social e cultural, a saída passa pela existência de uma minoria criativa (segundo Toynbee) e pelo estabelecimento de flexibilização no sentido estrutural, institucional e mental.

Estas duas condições (comunidade criativa, ainda que minoritária, e flexibilização), pela sua essência, darão ao processo de reformulação, condições para reflexão, avaliação evolutiva, análise crítica, com humildade e seriedade de propósitos.

A busca do “novo paradigma’ põe a nú, talvez até de modo cruel, uma grande verdade, qual seja, a Medicina não é ciência biológica e sim uma ciência humana com base na Biologia. A ciência médica é o entroncamento das ciências biológicas (ciências naturais) com os ciências humanas. As assim chamadas ciências humanas atual, em última análise, para o homem; a ciência médica também, só que atua no homem.

O preparo do médico, por mais completo que seja em ciências naturais e em tecnologia, é absolutamente incompleto sema formação humanística; tal preparo é míope, tacanho e perigoso. Não existe ato médico sem fundamento científico, mas sem fundamento humanístico ele também não existe.

Flexibilização e formação humanística são duas pedras angulares, para a busca de soluções para o presente e, sobretudo, para a busca de soluções para o futuro.

A ABEM, pela sua Presidência, se compromete a defender a flexibilização institucional e a amparar a formação humanística do médico: desde já fica o compromisso de patrocinar as atividades, ainda que extracurriculares, de formação humanística na educação médica.

Prof. William Saad Hossne
Presidente da ABEM e da CINAEM Professor Titular de Cirurgia e Profesor responsável pela Ética da FAculdade de Medicina de Botucatu - UNESP-SP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1993
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