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OS TRÊS DEGRAUS DA EXCELÊNCIA PROFESSORAL

Ao Editor

Homenagem a Rubens Maciel

No mês de maio de 1983, a Enfermaria 29 da nossa Santa Casa de Misericórdia e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul completou 35 anos de fecunda atividade no campo de ensino, da pesquisa e da assistência médica. Naquela oportunidade, expressiva homenagem foi prestada ao Professor Rubens Maciel, fundador e grande promotor da Enfermaria 29 e um dos mais eminentes educadores médicos do Brasil. Da homenagem fez parte saudação que tive o prazer de lhe dirigir e que vai aqui reproduzida.

“Na primeira parte desta manhã, a Dra. Loanda Lugon declarou que, ao entrar no Anfiteatro desta nossa Enfermaria 29, e olhar para o senhor, Prof. Rubens Maciel, sentira-se como quando terceiranista de Medicina, comparecendo a mais uma aula sua. A única coisa que ela estranhara, era a falta do seu elegante avental branco. Ainda nesta manhã, o Dr. Moysés Lerrer contou da ovação dos alunos do atual 3.o ano da nossa Faculdade de Medicina. Ovação que silenciou as suas palavras de despedida, ao encerrar, na terça­feira desta semana, aquilo que o senhor considerava ser a sua última aula como Professor de nossa Escola.

Hoje, Professor, não há aula neste anfiteatro. Mas ele está repleto de gente. O senhor está aqui, próximo do quadro negro. Mas não há aula. As aulas, o senhor mesmo o declarou, já se encerraram. O senhor não está de avental branco. Nem as pessoas que compõem a platéia estão em trajes de aula. Estão todas em traje de festa. Uma festa que foi montada para homenageá-lo.

No entanto, Prof. Rubens, se eu perguntasse a todos e a cada um dos que aqui estão - que não vieram aqui para aula mas para homenagem - o que eles mais gostariam de que agora acontecesse, tenho a certeza, eles me diriam que o que mais gostariam era de ouvi-lo falar. Este sentimento, Professor, ilustra o raro, o invulgar talento que o senhor possui para criar ambiente educacional ao seu redor. Eu considero este talento a virtude que permite a algumas pessoas galgarem o primeiro degrau da excelência professoral.

Das muitas coisas que se têm estudado e das poucas que se têm aprendido sobre memória, uma delas diz que cada informação que se retém corresponde a uma molécula proteica que é estampada, em nosso cérebro, com esta informação. Diz também que esta marcação molecular só ocorre quando uma tinta especial é utilizada. Esta tinta especial é um ambiente emocionalmente rico. Que faz com que as coisas que nele se digam e se pensem sejam registradas de maneira indelével no nosso cérebro. A tarefa primeira do professor é garantir que um ambiente desta ordem um ambiente educacional, se assim podemos chamá-lo, seja criado ao seu redor. Só depois de instalada esta atmosfera é que o processo educacional pode ter um efetivo andamento.

Há entre os nossos alunos uma não rara referência de que os professores de clínica são melhores do que os professores de matérias básicas. Não é verdade. Não há esta diferença. A diferença que existe é que o professor de clínica, na maioria das vezes, dá suas aulas junto ao leito dos doentes. E, nesta circunstância, o doente cria o ambiente emocional que favorece o processo educativo. Mas, nas cadeiras básicas, a responsabilidade fica toda com o professor. O que expõe, com maior rudeza, as suas eventuais limitações.

Nós todos já tivemos experiência com situações em que dois professores, donos do mesmo saber, nos dão aula. A aula de um, anos após, a gente recorda em detalhes. A aula do outro, dias após, já está esquecida. A diferença é a competência ou não, de um e de outro, de tornar a sua mensagem duradoura.

Na nossa vida pessoal, este fenômeno tem ricas ilustrações. Nós todos lembramos, com todos os detalhes - se chovia, se o tempo era bonito, se havia lua, se não havia - a ocasião em que demos o primeiro beijo na primeira menina que nos enterneceu. Porque o momento emocional era muito rico. E, por isso, inesquecível. O amor é eterno não porque obriguemos os jovens a jurá-lo como tal. O amor é eterno porque os momentos de amor são ricos desta atmosfera emocional. E o que neles se vive é inapagável de nossas memórias. Ainda que o queiramos, nunca conseguiremos esquecê-los.

Que o senhor, Professor Rubens, possui este talento são testemunhas todos os que aqui estão. E testemunhas são todos os que, aqui não estando, algum dia tiveram a oportunidade de ouvi-lo. Os seus alunos lembram, com uma riqueza impressionante de detalhes, aulas que o senhor deu, décadas atrás. O senhor é, certamente, um professor que sobe com autoridade este primeiro, decisivo degrau da qualificação professoral.

Mas, após este primeiro degrau, há um outro degrau. Mais difícil de ser galgado. E que somente uma parcela dos que subiram ao primeiro, consegue alcançar.

Ao professor que tenha tido a competência para criar o bom momento educacional, abre-se, de pronto, um enorme desafio: o de que ele aproveite este momento para que o aluno cresça, dentro dele, com forma própria. Não com a forma do seu professor. Desafio ao professor a que resista a tentação tão humana de pretender dar às coisas, que o momento permite sejam fixadas, a sua forma pessoal, a sua marca.

Muito poucos professores conseguem furtar-se a esta provocação. Nós temos inúmeros exemplos de professores, hábeis galgadores do primeiro degrau, que sucumbem a esta tentação. Criam discípulos, criam seguidores, mas não conseguem criar elementos com forma própria, diferente da sua. Estes professores chegam a resultados que não se podem chamar de maus. Os seguidores, os discípulos que eles moldam, executa bem as suas tarefas: mas, ainda que de boa qualidade. não vão além de cópias de papel carbono de seu mestre, de seu professor.

Basta olharmos para os que aqui estão, para verificarmos com que grau de excelência o senhor conseguiu fazer germinar o talento daqueles a quem educou. Sem lhes alterar as tendências próprias de crescimento. Eu olho para a nossa platéia e nela vejo radiologistas, cardiologistas, pneumologistas, nefrologistas, internistas. Representantes ilustres dos mais distintos ramos do conhecimento médico. Todos eles foram seus alunos. Todos eles tiveram a sua influência, mas cada um cresceu à sua forma. Este talento, eu compararia ao de um jardineiro, que cria as condições para que a semente germine - enriquece-lhe a terra, irriga-a adequadamente, expõe-na convenientemente ao sol, protege seus brotos dos ventos - mas não lhe altera as potencialidades germinativas. Não altera os caminhos pelos quais os ramos da planta procuram, à sua moda, se aproximar do céu.

Poucos professores galgam com firmeza este segundo degrau. E os que lá chegam logo percebem que este ainda não é o último a desafiá-los. O terceiro degrau é conseguir que os alunos sintam que o seu professor busca, com eles, a melhor aproximação da verdade. Aproximação em que o professor põe o todo das suas forças íntimas, do seu talento pessoal, mas que nunca subordina às forças circunstanciais dominantes no momento.

Para se saber se um professor alcançou o terceiro degrau, o teste do tempo é decisivo. Nós, nesta festa de 35 anos, temos esta privilegiada vantagem: a de poder contemplar o seu trabalho ao longo de muitos anos de atuação. Esta perspectiva do tempo nos diz aquilo que os seus alunos nunca precisaram de tanto tempo assim para concluir: o de que nunca o senhor se deixou guiar pelos poderes externos dominantes, em cada ocasião da sua vida.

Nós temos vivido, no nosso mundo, uma variedade muito grande de influências, na seqüência do tempo. Esta variedade de “senhores do momento”, ainda que possa ter aspectos negativos, tem para mim um aspecto bom: é que ela permite testar situações tão valiosas quanto esta que aqui proponho. No mundo dos alunos que treinaram nesta enfermaria, ao longo destes 35 anos, nós encontramos gente da mais variada posição e crença: política, religiosa, econômica, social. Nunca foi feita discriminação de ninguém nesta casa, a partir das cores que a sociedade põe em cada um de nós. Nunca o ritmo da música que dominasse o momento exterior prejudicou ou facilitou o trânsito de quem quer que fosse dentro desta casa. Nós conhecemos aqui destros e canhotos, no campo político. Conhecemos aqui pessoas encantadas na fé, pessoas descrentes da fé, agnósticos. Nós conhecemos aqui indivíduos apaixonados por diferentes correntes dentro da própria ciência. Nunca vimos qualquer discriminação em relação a qualquer um deles. Nunca vimos estas diferentes posições alterarem o ambiente educacional desta casa. Esta tranqüilidade que o aluno sente quando percebe que o seu professor não caminha movido pelas tentações corriqueiras do ser humano, a começar pela mais comum de todas elas, a tentação do poder, dá ao trabalho deste professor uma qualificação que muito poucos professores do mundo chegam a possuir. É, por isso, Professor Rubens, por assomar com tanta legitimidade ao topo deste terceiro degrau que o senhor constituiu-se num mestre excepcional. É por isso que o seu nome escapou das nossas fronteiras e é refendo e indicado como um dos mais talentosos artífices da inteligência humana que passaram pelo cenário educacional do Brasil.

E é porque tudo o que eu disse corresponde à verdade, que todos os que questão, estão ansiosos por ouvi-lo. Ouvi-lo mais uma vez, e mais uma vez aprender com o senhor. E se todos estão tão desejosos de que isto ocorra, permita que eu lhe diga o quanto estou desejoso de que isto ocorra a mim também.

Mario Rigatto
Professor Adjunto de Medicina Interna da faculdade de Medicina da UFRGS

CARTA-RESPOSTA

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Meu caro Professor Rigatto

Não resisto à tentação de responder a sua carta, agora publicada em nossa Revista. E a não-resistência à resposta se torna tão prazerosa que a tentação como que se agiganta. Vamos, então, à resposta.

Em primeiro lugar, meus maiores agradecimentos pela lembrança de publicar na Revista da ABEM as palavras pronunciadas em homenagem ao Prof. Rubens Maciel, mormente quando a forma da expressão, ao lado do conteúdo significativo com que nos acostumanos a ver em tudo o que efeito pelo caro colega, se reveste da forma elegante, escorreita, amena.

Em segundo, não poderia deixar de me associar à homenagem ao ilustre Professor Rubens Maciel, entre outros e diversos motivos, pelo brilhantismo com que presidiu a Associação Brasileira de Educação Médica, entre 1970 e 1972. E não poderia deixar de agradecer, ainda uma vez, a honra e a confiança com que fui brindada, esse período, de trabalhar sob sua sábia orientação na Diretoria Executiva da ABEM.

Celia Lucia Monteiro de Castro
Diretor Executivo/ABE

  • Nota da Redação

    Recebemos carta do prof. José Luís da Silveira Baldy, do Centro de Ciências da Saúde, Universidade Estadual de Londrina, tecendo considerações sobre as diferenças encontradas entre o texto original apresentado a publicação na Revista Brasileira de Educação Médica e o artigo publicado no volume 7, número 2, sob o título “Ensino de doenças infecciosas e parasitárias no curso de graduação de escolas médicas brasileiras”. Reconhece o prof. Baldy que as modificações feitas não alteraram significativamente o conteúdo do trabalho. mas assinala as alterações feitas notadamente no que tange à pontuação (acréscimo de vírgulas e deslocamento da posição de pontos), a substituição ou supressão de palavras, o uso do plural etc. Encarece, ainda, a necessidade de que estas modificações sejam comunica das ao autor do trabalho, antes de sua publicação, visando à obtenção de anuência. É norma da Revista Brasileira de Educação Médica proceder à revisão de linguagem dos textos submetidos à publicação; consta, inclusive das instruções aos colaboradores que tais modificações não serão comunicadas ao autor. Dada, no entanto, a advertência feita pelo caro colega prof. José Luís da Silveira Baldy, procuraremos, na medida do possível, uma vez feitas as modificações consideradas necessárias, remeter o trabalho ao autor (ou autores), antes da publicação objetivando obter autorização para a efetivação das mudanças. Agradecemos, assim ao prof. Baldy a colaboração prestada, a qual entendemos como um desejo sincero de contribuir para um progressivo aperfeiçoamento de nossa Revista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1984
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