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UM DESAFIO SOCIOLÓGICO PARA A EDUCAÇÃO MÉDICA (Apresentações Sociais de Saúde-Doença)

Introdução

Pode parecer estranho que numa publicação específica de educação médica eu introduza a análise de uma problemática que, à primeira viste concerne e os especialistas das Ciências Sociais, e compreensão das concepções de saúde-doença. Gostaria aqui de propor à consideração dos leitores, e ampliação do campo e o aprofundamento do foco sociológico dentro do qual trabalhem os médicos.

Em primeiro lugar, porque cada um dos especialistas tem implícita uma visão do social, a partir. de qual realize sua profissão: todos trabalham com gente. Essa concepção, que geralmente corresponde a sua própria “visão social de mundo” (visão de classe) geralmente está marcada pelo senso comum, é fragmentada e comporta tantos preconceitos, quanto elementos de “bom senso”, do ponto de vista mais amplo. No que concerne, porém, à formação específica, ela costuma estar reduzida, na intervenção médica, ao contorno do corpo, dos órgãos e das mensagens infracorporais fornecidas pela tecnologia do setor. O médico costuma ser um técnico da doença, apesar às vezes, de sua índole, sua sensibilidade e vontade pessoal.

Essa observação inicial está referendada pala minha experiência docente nos cursos de pós-graduação em “Saúde Coletiva”. Geralmente a descoberta, a reflexão e a assimilação de novos conceitos traz, por parta dos médicos, a queixa sobre e ausência nos currículos de graduação, de uma abordagem mais totalizante relativa ao conjunto do que configura o saber médico.

Eu seria ingênua se pensasse ou dissesse que essa ausência de uma reflexão central nuclear, fundamental sobre o sujeito, o cliente, o doente, o SER HUMANO no interior dos currículos de medicina fosse apenes uma lacuna involuntária a ser sanada. A formação médica tem uma lógica coerente com o próprio sistema social em que esses profissionais (e nós também) militam. Neste artigo tocamos nos pressupostos desta questão.

Gostaria de apresentar este trabalho, portanto, como uma contribuição ao debate sobre educação. E nesse particular, entendo que é importante entrar no coração das relações sociais que permeiam e complexidade do sistema das instituições, dos serviços e da prática médica: elas constituem o cerne do problema. Creio que reduzir a problemática da educação à transmissão de conhecimentos, de técnicas e de especialidades é escamotear a cumplicidade social e esociológica dessa praxis cotidiana de reprodução e de transformação da realidade.

Este artigo trata da elaboração de um conceito de extrema utilidade teórica no campo da pesquisa social em saúde: Representações Sociais e Representações Sociais de Saúde-Doença.

Trabalhado sobretudo no âmbito da Antropologia e da Sociologia Clássica, o terna tem sido pouco discutido, problematizado e teorizado na área da saúde. No entanto é através dele que podemos recuperar a subjetividade e o sentido da ação dos atores e autores sociais no conjunto das relações políticas, instituições e serviços sanitários.

A finalidade do presente trabalho é pois contribuir, dentro de uma visão dialética das relações entre base material e a visão social de mundo, para o debate interno à metodologia de construção de conhecimento do setor.

O pressuposto do artigo é de que não há uma verdade sobre Saúde-Doença, mas um campo de teoria e prática historicamente construído no calor da luta social e ideológica, passível de ser compreendido (enquanto visão parcial) e transformado.

Representações Sociais de Saúde/Doença

A) Saúde/Doença como Expressão Social e Individual

Embora seja indiscutível a existência da Medicina Social como um tema tão antigo quanto a reflexão sobre o homem e a sociedade (Rosen, 1983), desde o início deste século sociólogos e antropólogos aportaram uma contribuição muito importante ao demonstrar, através de estudos empíricos, o fato de que a doença, a saúde e a morte não se reduziam a uma evidência “orgânica”, “natural”, “objetiva”, mas estavam intimamente relacionadas com as características de cada sociedade. Isto é, revelaram que a doença é uma realidade construída e que o doente é um personagem social. Ao introduzir a obra de Marcel Mauss, por exemplo, Lévy Strauss faz algumas considerações e esse respeito que se tornaram clássicas:

“O esforço irrealizável, e dor intolerável, o prazer ou o aborrecimento são menos função das particularidades individuais que de critérios sancionados pela aprovação ou desaprovação coletivas”. (1950, XIII).

E acrescenta:

“Em face das concepções racistas que querem ver o homem o produto de seu corpo, mostra-se, ao contrário, que é o homem, sempre e em toda parte que faz de seu corpo, um produto de suas técnicas e de suas representações”. (1950, XIV)

A partir da reflexão sobre o trabalho de Mauss, Lévy­Strauss mostra que uma representação, tal como a de saúde/doença, manifesta de forma específica as concepções de uma sociedade como um todo. Cada sociedade tem um discurso sobre saúde/doença e sobreo corpo, que corresponde à coerência ou às contradições de sua visão de mundo e de sua organização social. Assim que, o tema referido, além de ter seu próprio esquema de explicação interno e particular, é como uma janela aberta para a compreensão das relações entre indivíduos/sociedade e vice-versa, das instituições e de seus mecanismos de direção e controle:

“Em todas as condutas de aparência aberrantes, os doentes não fazem senão transcrever um estado do grupo e tomar manifestas tais e tais circunstâncias. Sua posição periférica em relação a um sistema local, não impede que eles sejam parte integrante de um sistema total. Pode-se dizer que, para cada sociedade, condutas normais e condutas especiais são complementares”. (1960, XXII)

Marcel Mauss15. MAUSS, M. L’idée de mort. In: Sociologie et Antropologie. Paris, Press Universitaires do France, 1950. p. 312-360., num belo texto intitulado “L'ldée de Mort” analisa a maneira como povos nova-zelandeses e australianos encaram as doenças e a morte. A idéia de mane, demonstra Mauss a partir de vários trabalhos decampo, é construída e cria uma ligação direta entre o físico, o psicológico e o moral, isto é, diz ele, “o social”. Num grande número de sociedades abordadas pelo autor, a partir de trabalhos de etnógrafos, o medo da morte, de origem puramente social; sem nenhuma mistura de fatores individuais, é capaz de criar tais manifestações mentais e físicas na consciência e nos corpos dos indivíduos, que eles se relacionam com sua morte, com detalhes, sem lesões aparentes ou conhecidas:

“São casos acontecidos de morte causadas brutalmente, em numerosos indivíduos, mas simplesmente pelo fato de que eles souberam ou acreditaram que iam morrer”. (1960, 313)

Comenta o autor, a partir dos fatos observados nesses povos, que os indivíduos eram possuídos repentinamente por doenças causadas (segundo eles) por feitiço, encantamento ou por pecado de comissão ou omissão. A idéia da doença para esses grupos seria a causa mediadora do raciocínio consciente ou inconsciente de infração a alguma norma ou a algum tabu da sociedade. São situações em que o sujeito que adoece ou morre não se crê ou não se sabe doente a não ser por causas coletivas que em geral se representam pela ruptura com as coisas sagradas que o sustentam.

A seguinte afirmação de Mary Douglas6. DOUGLAS, M. Natural symbols. New York, Pantheon Books, 1971. apenas confirma a posição de Lévy-Streuss e Marcel Mauss:

“O corpo social limita a forma pela qual o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo. sempre modificada pelas categorias sociais através das quais é conhecida, sustenta uma visão particular da sociedade”. (1971, 83)

Portanto, a partir das ciências sociais podemos dizer que há uma ordem de significações culturais mais abrangentes que informa o olhar lançado sobre o corpo que adoece e que morre. A linguagem da doença não é em primeiro lugar, linguagem em relação ao corpo, mas à sociedade e às relações sociais. Seja qual for a dinâmica efetiva do “ficar doente”, no plano das representações, o indivíduo julga seu estado. não apenas por manifestações intrínsecas, mas a partir de seus efeitos: ele busca no médico (ou no correspondente a ele em cada sociedade) a legitimidade da definição de sua situação. Disso retira atitudes e comportamentos em relação a seu estado e assim se torna doente para o outro: para a sociedade.

Do ponto de vista causal, a ordem de significações culturais informa e se refere (a) à visão do mundo; (b) a atitudes coletivas face à infelicidade dominadora; (c) ao “pecado” que se personaliza na doença, isto é, ao rompimento do homem com limites dados pelas regras e normas da sociedade, frequentemente traduzidas em códigos morais ou religiosos; (d) ao corpo doente como espaço do “horrível” que se mostra, simbolizando o “infeliz” e “alienante” naquela sociedade, aquilo que para ela não está resolvido, não é compreensível e revela sua precariedade.

Esse nexo causal de origem pode ser resumido em fatores endógenos e exógenos que perpassam a concepções tanto dos povos primitivos como as dos mais modernos. Do ponto de vista médico-clínico, os fatores endógenos são pensados como processo biológico que nasce e se desenvolve no interior do indivíduo. Do ponto de vista do senso comum, o indivíduo causador de doença se deve a questões hereditárias, castigo divino ou pecado individual. As causas exógenas são pensadas sobretudo a partir da sociedade, isto é, do desequilíbrio entre as relações sociais de determinado grupo e dele com seu meio, como bem expressam Peter Manning e Horácio Fábrega Jr13. MANNING, P. K. and FABREGA, Jr. H. The Experience of self and body. In: Phenomenological sociology. New York, John Wiley and Sons, 1973..:

“Estudos que comprovam os significados básicos acerca do corpo podem esclarecer não somente o que é universal e o que é culturalmente variável sobre a doença, mas também o papel central que esses noções interrelacionadas exercem na percepção do homem na sua relação como ecossistema”. (1973, 72)

A concepção da doença como proveniente do indivíduo primeiramente se deve ao fato de que ela ocorra como um processo que, de imediato não revela seu vínculo como social. Isto é, em primeira instancia, independentemente de qualquer explicação que possa ser dada, é o indivíduo que adoece e enfrenta a morte. No entanto, a atribuição de sentidos das causes endógenas é também socialmente construída. Quase sempre são interpretações que revelam desígnio divino, fatalidade ou desordem que rematem à obediência ou à quebra da normas e tabus coletivos, ultrapassando assim as razões do corpo individual e do estado orgânico.

As concepções da origem da doença por causas exógenas estão ligadas à sociedade compreendida como agressiva, opressiva e ao modo de viver pouco saudável. Nas tribos primitivas as doenças, como por exemplo as sub-normalidades, são por vezes atribuídas a bênçãos, presença ou castigo da divindade, à obra de feiticeiros e mágicos ou demônios. No mundo moderno as causas são atribuídas particularmente ao modo de vida, definido por Claudine Herzlich (1984) como sendo o quadro espacial e temporal no qual o indivíduo vive, e suas características (densidade de população, atmosfera), o ritmo de vida (horários e estímulos), assim como seus reflexos em certos comportamentos cotidianos: alimentação, atividades, descanso, sono. Trata-se de uma representação que revela a relação de exterioridade na forma como o indivíduo se pensa em relação à sociedade, mas que tem, ao mesmo tempo, significação comum ao grupo. O meio ambiente e a própria organização social são representados como hostís e portadores de doenças e desequilíbrios. Em tais circunstâncias, a saúde é vista como um a tributo do indivíduo que afronta o mundo malsão e passa a ser vítima dele.

B) Saúde/Doença como Expressão de Contradições Sociais

Se Saúde/Doença é uma noção que revela a realidade social na qual é construída, para compreendermos essa representação dentro de nosso contexto, é preciso examiná-la a partir dos substratos econômico, político e cultural no qual vivemos.

Numa sociedade capitalista onde as relações sociais se fazem a partir da diferenciação de classes, da desigualdade na distribuição e atribuição de riquezas, a concepção de saúde/doença está marcada por essas contradições. Contradições marcam as representações da classe dominante que informam as concepções mais abrangentes da sociedade como um todo e são veiculadas de forma especializada através da corporação médica. Refletem-se também nas representações das classes trabalhadoras que se subordinam à visão dominante, e a reinterpretam de forma peculiar, de acordo com suas condições de existência e seus interesses específicos. São essas expressões de dominação, de resistência e, subordinação que procuramos entender aqui através do tema SAÚDE/DOENÇA.

Em la Médicine du Capital, Pollack afirma:

“Pode-se dizer, sem paradoxo que o capital fixa provisoriamente a duração média da existência, para os diferentes estratos sociais e distribui taticamente sua sentença de morte”. Pollack: 197218. POLLACK, M. La Medicine du Capital. Paris, Maspero, 1972.)

As representações mais gerais de SAÚDE/DOENÇA em nossa sociedade, no entanto, não se fazem através de um desvendamento claro das desigualdades e nem explicitam os efeitos do modo de produção sobre a vida e a morte dos indivíduos. Pelo contrário, as formulações ideológicas embutidas nas representações tentam escamotear as contradições da vida real, embora não consigam apresentar uma imagem totalmente coerente da realidade.

Conti5. CONTI, A. Estrutura social y medicina. In: Medicina y sociedad. Barcelona. Fontanela, 1972. p. 287-310., no seu texto “Estrutura Social y Medicina” comenta que “A análise histórica nos mostra como as necessidades das classes dominantes que se expressam como se fossem as necessidades da sociedade em seu conjunto, condicionam o conceito de saúde-doença. Na sociedade capitalista, o conceito de doença está centrado na biologia individual, fato que tenta escamotear o caráter social do fenômeno”. (1972, 288)

As representações dominantes que perpassam toda a sociedae são mediadas de forma muito peculiar pela corporação médica. Intelectual orgânico da classe dominante na construção de hegemonia que se expressa em tomo do setor saúde, o médico é ao mesmo tempo o principal agente da prática e agente do conhecimento.

Através de relações e de instituições legitimadoras de seus atos e discursos, dentro de um esquema corporativa, o profissional médico reproduz de forma contraditória as concepções sobre o corpo, sobre saúde/doença, sobre a vida e a morte.

A profissão. conforme Boltanski3. BOLTANSKI, L. As Classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal Ed., 1979., situa o médico na confluência de três lógicas absolutamente contraditórias: (a) lógica do desinteresse humanitário, que se traduz na ideologia de fazer tudo pelo doente na medida em que se julga o depositário da chave da vida e da morte; (b) lógica da racionalidade e do interesse cientifico., o que toma cada cliente “um caso” ou possível laboratório de progressão da ciência; (c) lógica da rentabilidade econômica, “do ganhar dinheiro” que é o grande estímulo de seu status profissional na sociedade capitalista. O conjunto de conflitos gerados por essas lógicas distintas leva a que os médicos não possam, como os outros comerciantes de bens e serviços, explicitar como fim único de seu empreendimento. a maximização de lucros. Mas é essa lógica que predomina no setor considerado como um todo e que, na verdade, informa a sua relação com o Estado e a população (1979, 41)

Referindo-se à história da medicina moderna, Boltanski3. BOLTANSKI, L. As Classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal Ed., 1979. escreve que é ela a “história de uma luta contra os preconceitos médicos do público e mais especialmente, das “classes baixas”, contra as práticas médicas populares, com o fim de reforçar a autoridade do médico, de lhe conferir o monopólio dos atos médicos e colocar sob sua jurisdição, novos campos abandonados até então ao arbítrio individual, tais como a criação dos recém-nascidos ou a alimentação.” (1979, 14)

Esta história de luta é uma história de dominação perenemente contestada e que revela sua precariedade no cotidiano. A barreira mais visível entre o médico e a população no exercício de sua profissão se dá através de um código de linguagem fechado e específico. Esse código, como afirma Bakntin “retrata a realidade”. Primeiramente ele se atém ao contorno biológico e individual do doente. Desta forma explica o fenômeno saúde/doença como o bom funcionamento dos órgãos e como responsabilidade individual. Separa o sujeito de seu meio, de sua experiência existencial, de sua classe e dos condicionamentos de sua situação. Em segundo lugar, transforma o conceito de doença numa especialidade a respeito de determinado órgão, considerando o corpo do doente principalmente como objeto de saber e espaço da doença. Em terceiro plano, a praxis médica chega a prescindir da realidade mais imediata e sensível que é o corpo e seus sintomas, voltando-se para as mensagens infra-corporais fornecidas pelos equipamentos laboratoriais.

Essa forma de dominação centrada sobre a concepção médica da saúde/doença corresponde à lógica mais global do sistema. Conforme analisa Arouca1. AROUCA, A. S. da S. O Dilema preventivista: Contribuição para a compreensão e crítica de medicina preventiva.. São Paulo, 1976 (Tese de Doutoramento apresentada a UNICAMP).:

“Na medida em que se fixa na eficiência do corpo, a medicina moderna, contribuindo para a produtividade, toma o cuidado médico indiretamente produtivo, mas de forma desigualmente distribuído: ele possui significados diferentes diante das diferentes classe sociais”. (Arouca: 1975, 213)

Para as classes dominantes, cuja leitura sobre o corpo passa pelas expressões de saúde, vigor, beleza, harmonia e prazer, o conceito restrito ao bio-médico complementa-se através de outros cuidados que se ampliam no lazer, na estética e termina no divã do psicanalista. Sua dificuldade em relação aos códigos da medicina se expressa na dissimetria da linguagem de competência técnica, e se anula em termos de distância social.

“Dos doentes supostamente pertencentes à mesma classe social, ou pelo menos, ao mesmo universo cultural do médico, este espera uma cooperação para chegar ao diagnóstico, através dos sinais e dos sintomas que percebem”. (Loyola: 198412. LOYOLA, A. Médicos e curandeiros. São Paulo, DIFEL, 1984., 23)

A visão mais ampliada de saúde dos grupos dominantes é mediada pela noção de “modo de vida moderno” que por sua vez fetichiza e coisifica a opressão da sociedade sobre os indivíduos, como se não fossem eles, através das formas de organização social e das instituições, atores e autores, desse “modo de vida”. Essa noção construída a partir do senso comum costuma ser resumida em - ambiente poluído, vida agitada, miséria, violência, marginalidade, ritmo de vida cansativa, vida social conflitiva etc. uma representação que escamoteia o conceito de relações sociais características do modo de produção capitalista, que se traduzem em objetivação da vida no lucro, contradição entre os que produzem as riquezas e os que delas se apropriam, entre a harmonia como a natureza e seu uso predatório com finalidade econômica imediatista. O próprio bem-estar redunda efetivamente na noção de bem-estar relativo e conflitivo porque se choca com as consequências de uma lógica que não se centra nem na harmonia e nem no equilíbrio da sociedade, mas nas suas contradições permanentes.

O sistema médico oficial, quando focaliza seu Quadro de referência no biológico individual ou nos constrangimentos do modo de vida, reforça a representação do fenômeno saúde/doença de forma positivista. Na verdade a visão do social quando se incorpora ao conceito dominante é tratada como um elemento a mais para o diagnóstico, numa relação linear e ilustrativa. A realidade concreta continua obscurecida pelas idéias de “progresso”, de “avanço”, de “domínio sobre a vida e a morte” de forma evolucionista e desenvolvimentista, que vê a história da doença como projeção do grau de domínio do homem sobre a natureza. Essa representação própria do esquema dominante que justifica os investimentos no investimento técnico, é importante, mas parcial. Ela desconsidera os condicionantes histórico-sociais que marcam definitivamente os modos específicos de adoecer e morrer numa sociedade de classe, e desconhece todos os aspectos sociais envoltos tanto na definição como na prática relativa aos cuidados com a saúde.

Nada tão poderoso como as “doenças-metáforas” para marcar tanto a concepção dominante da sociedade em sua visão de mundo, como a forma “oficial” de se encarar o fenômeno de Susan Sontag (198419. SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro, Graal , 1984.) enfermidades que ensejam catástrofes e que tomam um caráter histórico dentro de determinadas épocas por mobilizarem o conjunto da sociedade. Sontag cita a peste nos séculos XVI e XVII, a tuberculose e a sífilis no século XIX, o câncer no século XX e acrescentamos a AIDS atualmente.

Do ponto de vista da tecnologia médica, essas doenças funcionam como desafio à ciência, ao progresso e reafirmam a ideologia desenvolvimentista segundo à qual o poder da medicina investe para vencer. A partir dos interesses corporativos, elas são o espaço privilegiado de acirramento na guerra dos grupos profissionais, laboratórios, indústrias de equipamentos entre si. Elas mediam a luta entre saber e poder econômico organicamente relacionados como sistema como um todo. Do ponto de vista ideológico, o sentido da corporação médica e sua imagem salvadora e filantrópica estão sempre em jogo, numa relação contraditória entre os avanços conseguidos e o que consideram fracasso, isto é, a impotência frente a morte.

Do ponto de vista sociológico poderiam ser considerados (a despeito da especificidade dos mitos, dos sintomas e da especificidade de cada um) doenças-sínteses porque criam o consenso do mal proveniente das “anomalias sociais”, reúnem em si as explicações dos desequilíbrios individuais (auto-julgamento e auto-punição) e sociais (modo de vida opressivo e repressivo) apelam para o transcendente ligando o material e o espiritual.

Essas doenças desafiam o caráter de classe do medo específico de adoecer e morrer. São interpretadas como capazes de atingir a todos os grupos sociais indiscriminadamente e portanto, fazem parte de um imaginário social mais amplo que explica a desordem, os desvios morais e até a pretensa “devassidão” do ser humano. São fenômenos privilegiados de questionamento da precariedade da organização social. Reúnem a ameaça de morte da humanidade, anunciam sua decadência, perpetuam a permanência simbólica ou real da infelicidade e chamam atenção para os “comportamentos re­crimináveis”, vetores do mal de hoje e sempre. Em algumas delas a síndrome de medo da doença reforça as crenças conservadoras da sociedade, como é o caso da sífilis e da AIDS.

Claudine Herzlich9. HEERZLICH, C. Les mots et les maux. Marseille, Coopérative d'Edition de la Vie Mutualiste, 1985. 11p., retomando a expressão de Susan Sontag, fala a respeito das referidas doenças como metáforas que nos fazem reencontrar a visão arcaica e moderna do mal, que nos revelam nossa ralação com o mundo de hoje e ao mesmo tempo evidenciam nossa fragilidade permanente de indivíduos (1984: 77-92)

“Somos sempre dominados e mudos frente aos cataclismas de nosso corpo” (1984, 101).

“Mas”, acrescenta Herzlich, “a medicina também, e não apenas a saúde-doença, é hoje uma metáfora: em volta dela estão articuladas nossas interrogações mais essenciais concernentes ao futuro da humanidade”. (1984, 105)

Essa última afirmação da autora, reforça a visão dominadora da medicina como resposta a interrogações essenciais. Legitimadora do poder de um grupo dominante, atribui-lhe vocação salvadora. Essa concepção tem raízes nas teorias desenvolvimentistas. Ela contrasta com a visão da medicina religiosa (com a qual se expressa boa parte dos segmentos da classe trabalhadora nos comportamentos a respeito das doenças) que passa por articulações diferentes, que atribuem a razão e o futuro da humanidade, em última instância, à sua reconciliação com Deus. Ambas as concepções podem ser questionadas na sua atribuição de causas e em seus efeitos morais: de um lado se reafirma o poder de um grupo sobre o mal; de outro, transfere-se para o transcendente a causa e o cuidado da infelicidade. As doenças metáforas nos seus mistérios, indicam caminho de volta ou de transformação. Em suas representações religiosa ou profana, Sontag as considera como poder conservador:

"As modernas metáforas da doença especificam um bem-estar da sociedade assemelhado à saúde física que é tão freqüentemente apolítico quanto o é um apelo à nova ordem política”. (Sontag: 198419. SONTAG, S. A doença como metáfora. Rio de Janeiro, Graal , 1984., 96)

Pela sua capacidade desencadeadora de tecnologias, de conflitos de poder e saber e ao mesmo tempo mobilizadora de sentimentos, emoções e medos, ela se sobrepõem, no imaginário social, ao quadro social de morbi-mortalidade de determinada sociedade e época. Esse quadro, marcado como um fenômeno coletivo, pelos impactos dos processos de trabalho específicos do modo de produção, refletem a divisão de classe peculiar, no interior da formação social.

Da mesma forma que em relação à construção social das chamadas “doenças metáforas” a realidade costuma ser mistificada, a compreensão do processo saúde/doença não é fácil para as classes trabalhadoras. Elas próprias assumem concepções dominantes, embora criando códigos próprios de interpretação que compõem seu esquema de resistência cultural. Esse jogo de subordinação e afirmação permanentes e que dão coerência à visão de saúde/doença dos dominados é o que veremos a seguir.

Em relação à classe trabalhadora, o conceito que está subjacente na definição social de saúde/doença, veiculado pela visão de mundo dominante é a incapacidade para trabalhar. Essa noção tem estreita relação com a economia e eventualmente com a criação de mais-valia e possibilidade de acumulação capitalista. Para a classe trabalhadora, representação de “estar doente” como sinônimo de inatividade, tem a marca da experiência existencial. Trata-se de uma equivalência “social” e não “natural”. As expressões correntes “a saúde é tudo, é a maior riqueza”, “saúde é igual à fortuna, é o maior tesouro” em oposição a “doença como castigo, infelicidade, miséria etc”, são representações eloqüentes de uma realidade onde o corpo se tomou, para a maioria, o único gerador de bens. A miséria, a forme e o desespero que advêm do fato de estar doente, lhes dizem na prática, que seu corpo é sua fonte de subsistência e sua única fonte de reprodução. O assalariado enquanto cerne do modo de produção capitalista faz do corpo “força de trabalho”, criador de excedentes para as classes que detêm os meios de produção e única condição para a vida dos trabalhadores e suas famílias. “Saúde/riqueza”, “corpo/instrumento de trabalho” representam uma realidade vivida, fruto das contradições que estão na base material da sociedade.

Também a medicina como mediadora que individualiza o mal e a cura, está presente nas representações dos trabalhadores. Para eles, a doença como responsabilidade pessoal e portanto como custo financeiro, e a medicalização de um conjunto de atos de sua vida, são fato real e imposto pelas relações de produção. O “estar doente” além de significar e espoliação de sua única fonte de subsistência, o corpo, indica, também um “status” colado em categorias anatômico-fisiológicas, estruturadas e legitimadas socialmente através do olhar e do veredito médico. “Estar doente” corresponde então a submeter-se a regras, obedecer a prescrições e a respeitar consignas. Desta forma, a apreensão essencial do corpo doente, tendo em vista a expectativa que dele se faz como “motor” e “funcional” - numa sociedade onde nos definimos e somos valorizados corno produtores - leva a que, a incapacidade de fazer, mais do que alterações no parecer, tornem os trabalhadores apreensivos. O sentimento de desintegração social e de subordinação à medicina marcam o corpo do doente da classe trabalhadora.

Seria, no entanto incorreto desconhecer o espaço de expressão que constitui o fenômeno saúde/doença, para expressar nas representações das classes trabalhadoras, sua visão particular, sua resistência à dominação e seu projeto de mudança que se forja, de forma contraditória, ao conjunto das idéias dominantes.

A particularidade cultural pode ser observada a partir da linguagem, mediadora por excelência das concepções de mundo. São os médicos, como já dissemos, que detêm a linguagem do corpo coordenada. Para as classes trabalhadoras, os sintomas são colocados no corpo de forma localizada, nalgum órgão e expressos através de explicações que os analisam, geralmente ligados a fatos existenciais, intervenções sobrenaturais e/ou situações vividas no dia a dia. Essa forma de atribuição de causas através de uma concepção ao mesmo tempo localizada e analítica, que contempla o conjunto das situações infelizes da vida cotidiana, é talvez o primeiro ponto de ruptura com a linguagem médica que é, ao contrário, coordenadora, sintética e específica.

Claudine Herzlich9. HEERZLICH, C. Les mots et les maux. Marseille, Coopérative d'Edition de la Vie Mutualiste, 1985. 11p. comenta que “essa concepção localizadora que tenta fazer corresponder a cada sinal isolado um órgão, nos aparece como a pobreza de linguagem sobre o corpo: linguagem que ignora a frase e a sintaxe e que se reduz ao nome. Da mesma forma que a palavra-frase representa o primeiro estágio da linguagem humana, para o doente, essa denominação elementar é a única de que dispõe”. (1984, 175)

A referida interpretação da autora, a nosso ver, reflete uma visão preconceituosa da classe trabalhadora tomada como ignorante e em estágio infantil. Visão que, por ignorar as condições de produção da linguagem, acaba sendo etnocêntrica. Ao caracterizar os doentes das classes trabalhadoras por sua ignorância quanto ao corpo e à melhor forma de cuidá-lo, desqualificam-se suas representações de saúde/doença e dos seus princípios de higiene. Ao mesmo tempo o código da medicina científica sai por ela legitimado como o único capaz de decifrar a fala desarticulada e confusa dos doentes, numa verdadeira linguagem dos sintomas e, portanto, a única verdadeira. É importante perceber que, ao contrário das concepções da classe dominante que mantêm com a medicina oficial uma relação apenas dissimétrica em relação ao senso comum e ao saber técnico, nas classes trabalhadoras, as representações revelam valores, atitudes e interesses em oposição contraditória. Essa oposição certamente não se assemelha a um corte estático. Ambas as visões se influenciam mutuamente em relação de submissão e resistência. Na verdade, vários estudiosos têm demonstrado que tanto o esquema dominante é incorporado, como os médicos absorvem o senso comum e agem através dele (Boltanski, 19793. BOLTANSKI, L. As Classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro, Graal Ed., 1979.; Loyola, 198412. LOYOLA, A. Médicos e curandeiros. São Paulo, DIFEL, 1984.; Montero, 198517. MONTERO, P. Da doença à desordem: a magia da umbada. Rio de Janeiro, Graal, 1985.; Herzlich, 1984, 1984 2 a. ed.; Friedson, 1961). Mas, em ambas as partes existe uma reinterpretação “interessada” diríamos, que reflete as posições diferenciadas dos atores sociais.

Para as classes trabalhadoras, “a doença (ou a saúde) é considerada no quadro global dos problemas da vida e da morte, como um fenômeno que escapa, em última instancia, ao controle do homem, como algo que, no limite, é produto de forças sobrenaturais ou mais comumente, de Deus”. (Loyola: 198412. LOYOLA, A. Médicos e curandeiros. São Paulo, DIFEL, 1984., 162)

Para esses grupos, a doença se refere internamente a desequilíbrios que afetam de uma só vez espírito/alma e corpo/matéria. As doenças espirituais causadas por “mau olhado”, “trabalho feito”, espírito encostado”, “castigo divino” - segundo as crenças dos atores sociais, integram-se no indivíduo, às doenças da matéria causadas pelo meio ambiente, o trabalho, as condições de vida. De acordo com as circunstâncias, ora o espírito, ora a matéria, são mais valorizados nas explicações. No entanto, em momento algum, esses mesmos fenômenos são apresentados apenas do ponto de vista biológico ou espiritual: envolvem a visão integrada de homem (corpo e alma) e sua relação com as condições de vida tomadas no sentido mais ampla. As oposições “corpo/alma”, “indivíduo/sociedade” que são complementares e mesmo inclusivas nas representações da classe trabalhadora, justificam - mais do que as dificuldades de linguagem, seu comportamento em relação à medicina oficial. Para desespero dos profissionais (que explicam o fato pela ignorância, reafirmando assim seu campo de competências), os indivíduos recorrem a eles mas não crêem estritamente em suas prescrições. Relativizam-nas, seja em relação ao uso dos medicamentos, seja na consideração de suas palavras. Esses grupos têm uma liberdade - liberdade de dominados não comprometidos com a perenidade do sistema - de reinterpretar os preceitos médicos, de integrá-los dentro de suas condições existenciais e ao mesmo tempo prescindir deles ou subestimá-los. Assim, pelo uso, de acordo com seus interesses imediatos, do esquema dominante, e pela posse estratégica de um instrumental de explicações e aplicações próprios, constrói-se uma maneira especial das classes trabalhadoras lidarem com os serviços e assistência médica. Essa forma particular desconcerta e questiona as tentativas de racionalizar a partir da lógica do sistema.

O modo próprio de se relacionar com a medicina oficial, particularmente através da medicina religiosa e tradicional é um esquema através do qual a classe trabalhadora resiste à despossessão do sentido de sua vida e de sua morte. Enquanto procura e reivindica um tratamento adequado e “digno” no sistema oficial, mas ao mesmo tempo, através de outros sistemas encontram uma alternativa para a sua representação de corpo e sua relação com o mundo, os trabalhadores reafirmam sua identidade. E um saber específico que se contrapõem e questionam as interpretações dominantes e legitimadas.

Concluímos que, a forma como as classes trabalhadoras representam o corpo não pode ser traxada de ignorante, mas como um saber específico que tem eficácia real e conseqüêncas concreta sobrea vida e a morte de seus membros.

Constitua uma estratégica de resistência à ótica dominante que tenta passar a imagem do corpo apenas como instrumento de trabalho e para isso o disciplina. O embrutecimento resultante do “homem-força de trabalho”, “homem-complemento da máquina”, “homem-máquina” esbarra tanto nas concepções como na experiência existencial de uma classe que tanto nas unidades de trabalho como nos seus locais de moradia gritam simbolicamente pela sua unidade/globalidade perdida.

O exemplo melhor que confirma esse “grito parado no ar” são as estatísticas de sintomas classificadas pelo IBGE11. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estudo nacional de despesas familiares (ENDEF). Rio de Janeiro, IBGE, 1974. em relação a situação de saúde da população pobre o Estudo Nacional de Despesas Familiares (ENDEF) de 1974. Tanto as formulações aí contidas como outras que surgem nas diferentes configurações de pobreza do país oferecem um quadro de doenças chamadas pelos entrevistados como “nervosas” sob o termo “nervoso” ou “doenças dos nervos” e outras palavras temáticas que expressam a mesma categoria. Usando seu próprio código para interpretá-las, seriam “doenças do espírito” que se referem ao conjunto das ansiedades e insatisfações pelas “dificuldades da vida”. O cansaço permanente do sobre trabalho, a alimentação insuficiente, as restrições compulsórias provocadas pelos baixos salários, o desemprego, a incapacidade de lidar com os esquemas burocráticos e impessoalizados compõem o campo das “doenças sentidas” sob a denominação de “nervoso”. Elas são talvez o questionamento mais loquaz e o desafio maior ao modelo bio-médico. Ele pode propor a cura de uma enfermidade localizada, mas não possui um quadro de referência para lidar com as sensações experimentadas no corpo marcado pela exclusão dos bens necessários à manutenção da vida individual e social.

A título de exemplo, podemos perceber que a curva de mortalidade adulta no Brasil está marcada prioritariamente por causas agressivas (acidentes de trabalho, acidentes de trânsito, homicídios). Os indicadores de mortalidade infantil denotam causas provenientes da miséria, da fome e da falta de saneamento básico, itens particularmente importantes para atribuição do padrão de saúde coletiva. A distribuição das doenças e da morte, segundo a epidemiologia social revela sua determinação social (Tambellini, 1976; Laureli, 1984; Breilh, 1986; Rosário Costa, 1986). Cristina Possas, ao terminar seu livro sobre Saúde e Trabalho conclui que:

“Não existe nenhuma alternativa de solução dos problemas de saúde da população brasileira que possa ser buscada apenas no interior do próprio setor SAÚDE”.

Essa reflexão, no entanto, não passa pelo crivo da medicina oficial porque aceitá-la significaria colocar em evidência o caráter predatório e destruidor do sistema dominante. Definir categorias e programas centrados na segurança do trabalho e no combate a doenças profissionais, questionar as condições gerais de produção, do ponto de vista dos interesses das classes trabalhadoras, exige afrontar forças econômicas e políticas dominantes. Desta forma as doenças provocadas pelas condições de vida e de trabalho são tratadas como questão individual ou inespecificamente como “males da vida moderna”.

Assim, as chamadas “doenças-metáforas”, por atingirem a todos os grupos sociais e serem ameaças permanentes para os setores dominantes do sistema, canalizam recursos, pesquisas e novas tecnologias que certamente beneficiam o conjunto da população. Porém, as doenças relacionadas às precárias condições da existência apenas de longe são tocadas como tal. São socialmente “desconstruídas”, despidas de seu caráter social e transformadas em “culpa”, “descuido”, “ignorância popular”. A compreensão de seu caráter apela para mudanças sociais abrangentes que se referem ao conjunto das relações de produção e de reprodução.

C) A Representação da SAÚDE como Campo de Luta Política

Do ponto de vista das representações dominantes, a SAÚDE é o campo de ação do indivíduo. Já Descartes dizia que nada existe que o indivíduo não pode fazer por si mesmo, melhor que o melhor dos médicos, se ele quer ter o bom senso de prolongar sua saúde. Essa afirmação revela uma visão hipocrática, segundo a qual a doença pode ensinar o homem a se comportar ouvindo a natureza e percebendo o que é melhor para ele. Em nossa sociedade atual, a SAÚDE como virtude individual se expressa de várias formas. A mais simples e generalizada pela visão médico/biológicaé a ausência de doença que se manifesta pelo “silêncio do corpo” ou pela sensação de bem-estar. É pensada também como um capital de reserva, isto é, como uma espécie de resistência ou robustez que tem sua origem nos cuidados da primeira infância. Refere-se, particularmente na vida adulta, à idéia de equilíbrio, de sobriedade que permite “desequilíbrios positivos” graças àquele “capital inicial” conservado cuidadosamente. Essas representações da saúde como algo essencialmente endógeno e de atribuição individual são particularmente reveladoras do ponto de vista dominante. Supõem uma sociedade equilibrada e passível de ser controlada pela vontade pessoal.

Em oposição às concepções mencionadas, a organização política em tomo dos interesses da classe trabalhadora propõe uma representação da Saúde como uma questão vital de atribuição individual e coletiva e que ultrapassa os aspectos bio-fisiológicos. Berlinguer (1978: 19-26) considera o tema soba denominação de “Consciência Sanitária” pensada como um fragmento da “Consciência Social”, essa sim, contendo compreensão da relação social em termos mais amplos e globais. Trata-se de uma representação que atinge um nível de abrangência e de historicidade na sua expressão. Berlinguer a define da seguinte forma:

“Por consciência sanitária entendo a tomada de consciência de que a saúde é um direito da pessoa e um interesse da comunidade. Mas como esse direito é sufocado e este interesse descuidado, consciência sanitária é ação individual e coletiva para atingir este objetivo”. (1978, 19)

A questão da saúde no interior da luta das Classes Trabalhadoras sai do campo estritamente médico e vai para a arena do conjunto das reivindicações por direitos sociais, entre os quais se coloca o direito ao serviço e à assistência médica.

A representação da saúde como direito coletivo é uma bandeira de transformação das condições de vida e de trabalho e que em última instância aponta para transformações do modo de produção e das relações sociais de produção: melhores salários, acesso à terra, a empregos, a saneamento básico, a transporte, a moradia, a educação, a lazer e a condições de trabalho seguras. Mas é também uma bandeira de redefinição das prioridades do Estado. Desvenda o caráter de classe dos investimentos públicos, chamando atenção para a forma dominada e marginal com que se definem as políticas sociais. Portanto o apelo à transformação das condições de vida e de trabalho como condições de Saúde Coletiva é ao mesmo tempo apelo à luta, no interior do aparelhado Estado pelas prioridades sociais que se colocam sempre em relação de negatividade com os interesses econômicos. Portanto, Saúde Coletiva é um tema da prática política da classe trabalhadora.

Essa representação da Saúde como Bem Coletivo coincide com o ponto de vista da Epidemiologia Social (Breilh e Granda, 1986; Laureli, 1983; Tambellini, 1975) que através de uma posição crítica do positivismo na Medicina, reforça as propostas de luta da classe trabalhadora. De forma também dominada, e sendo ela própria um movimento social no interior das concepções conservadoras de saúde/doença, a Epidemiologia Social constitui uma quebra nas representações oficiais. É uma visão por dentro do setor que, ao abrir a discussão da significância social da SAÚDE comete também uma fenda no sistema e politiza seu objeto. Sua defasagem em relação à concepção das classes trabalhadoras está no fato de que seu paradigma contém ainda uma redução da saúde e da doença ao contorno do corpo, ainda que seja CORPO SOCIAL, como afirma Teixeira (198522. TEIXEIRA, S. M. F. As ciências sociais em saúde no Brasil. In: As ciências sociais em saúde na América Latina. OPAS, 1985. p. 87-110., 88).

Esse limite que a estrutura impõe, reafirma e reproduz vai pouco a pouco também sendo colocado em questão. Não dá hoje para reduzir o sentido transformador do conceito de saúde à sua simples ampliação ao coletivo enquanto grupo ou classe social, pensada como núcleo econômico/político de ação social. A chamada à mudança de paradigma inclui uma redefinição mais totalizante do processo que leve em conta todos os aspectos que concernem ao corpo, à mente e ao meio ambiente.

A visão social de saúde também vai ao encontro das concepções de resistências das classes trabalhadoras ao nível do senso comum. Porém ela inclui a imagem mais totalizante do homem-corpo/alma, matéria e espírito, assim como as condições de vida e trabalho. Sua definição de saúde/doença ganha expressão de resistência cultural de classe. Se na cotidianeidade, sua representação abrangente da saúde fica anuviada pela ideologia dominante que as considera “responsáveis por seus males”, “incultas”, “atrasadas”, “ignorantes” e “mal educadas”, na luta organizada, aparece-lhes claro que SAÚDE é uma conquista histórica e que sua participação é determinante e decisiva.

Conclusões

O estudo das representações sociais de SAÚDE/OOENÇA abrange aspectos universalmente observáveis e outros que são peculiares a cada sociedade. Esses aspectos, tratados no presente trabalho dizem respeito à relação indivíduo/sociedade e seu ecossistema.

Saúde/doença constituem metáforas privilegiadas para explicação da sociedade: engendram atitudes, comportamentos e revelam concepção de mundo. Através da experiência desse fenômeno, as pessoas falam de si, do que as rodeia, de suas condições de vida, do que as oprime, ameaça e amedronta. Expressam também suas opiniões sobre as instituições e sobre a organização social em seus substratos econômicos político e cultural. Saúde/Doença são também metáforas de explicação da sociedade sobre ela mesma: de suas “anemias”, desequilíbrios e preconceitos, servindo como instrumento coercitivo ou liberados para o poder político se legitimar ou ser execrada. O “status” de representação significante privilegiada se deve ao fato de que a noção SAÚDE/DOENÇA está intimamente vinculada ao tema existencial e inquestionavelmente significativo da VIDA e da MORTE.

SAÚDE/OOENÇA enquanto fenômeno social tem seu esquema interno de explicações que parte de um marco referencial de especialistas (doutores, curandeiros, rezadores, mágicos), mas também compõe o quadro da experiência do dia a dia que se expressa através do senso-comum. Ambas as modalidades de representação do fenômeno se influenciam mutuamente, de forma dinâmica, embora o saber do especialista seja dominante. Portanto, na construção histórica da saúde e da doença tanto são atores e autores, os sábios do setor como a população, para conformar a noção que por sua vez influi dialeticamente nas atitudes e comportamentos da sociedade.

A atribuição de causas endógenas e exógenas ao fenômeno da SAÚDE/DOENÇA constitui uma atitude universalmente comprovada. É no indivíduo que essas concepções se unificam: é ele que sofre os males ou detém a saúde. As causas de origem, no entanto, se expressam, no plano simbólico, com referência ao social. DOENÇA é sinônimo de infelicidade individual e coletiva: representa o rompimento do homem com seus limites estabelecidos pelas normas e regras da sociedade SAÚDE significa bem estar e felicidade: ela própria, explicita­ mente ou no “silêncio do corpo”, é a linguagem preferida da harmonia e do equilíbrio entre o indivíduo, a sociedade e seu ecossistema.

Cada sociedade tem suas doenças que consideramos aqui “metáforas”. São enfermidades que, a partir do imaginário social, perpetuam na coletividade a idéia de perenidade do mal e de limites do ser humano frente à ameaça da morte. São doenças que, por criarem um clima de medo, de catástrofe e de desordem, tendem a ser usadas ideologica e politicamente como meios de recompor a harmonia social. Essas doenças - além do seu caráter de sofrimento e infelicidade - são construídas socialmente como mitos através dos quais os membros dos grupos expressam sua coerção e coesão em torno da organização social.

Na sociedade capitalista, a representação de SAÚDE/DOENÇA passa pelas contradições sociais que caracterizam o sistema. Do ponto de vista das classes dominantes, a saúde é de atribuição individual como um capital de reserva de propriedade privada que se mantém pelo equilíbrio e pela harmonia. A concepção de doença é também marcada pela responsabilidade do indivíduo em luta contra o mundo opressivo. Baseia-se na representação anatômico-fisiológica da pessoa do doente, na concepção do corpo como produtor e instrumento de trabalho e na idéia desenvolvimentista do poder da tecnologia contra as enfermidades. As representações dominantes são particularmente elaboradas pelos profissionais médicos, categoria hegemônica, intelectuais orgânicos na elaboração tanto do conhecimento como na imposição de normas e atitudes a respeito do corpo e da definição social do doente e da doença. No entanto suas idéias são perpassadas dinâmica e perenemente pelo senso comum que “contamina” o chamado “saber científico”, com suas próprias categorias de interpretação, esse mundo de significados sobre a vida e a morte.

Em contraposição, apesar de assimilarem as concepções dominantes e agirem também a partir das regras estabelecidas pelos especialistas do sistema, as classes trabalhadoras possuem um código de resistência que as caracteriza. Seu esquema está centrado numa visão mais totalizante do fenômeno, que abrange a concepão do homem como corpo/alma, matéria/espírito e inclui relações afetivas e condições de via e de trabalho (sua situação de classe em si) na definição de sua situação de SAÚDE/DOENÇA. Apesar de reconhecer o poder médico e subordinar-se à medicalização, elas possuem uma visão crítica, a partir da experiência, tanto dos profissionais e sua técnica como do sistema de assistência e serviço de que fazem uso. Por isso reinterpretam o esquema racionalizado, usam-no de acordo com seus interesses imediatos e concepções particulares e não legitimam totalmente o saber médico. Sua relação com a medicina oficial é sempre precária, provisória e conflitiva. Sua interpretação da vida e da morte está inevitavelmente perpassada, junto com a crítica ao sistema dominante, pelas crenças e tradições, pela medicina caseira e/ou religiosa que fazem parte de seu imaginário social vinculado à experiência cotidiana. Desta forma, a partir do senso comum elas resistem não apenas à linguagem erudita: contraditoriamente aceitam e recusam o lugar “material” que os donos dos meios de produção atribuem a sua vida, isto é, o de força ou instrumento de trabalho. No seu conhecimento e nas suas práticas esses agentes sociais se recompõem como matéria/espírito transcendentes, ator e autor social particularmente marcados pelas relações afetivas e de lealdade de seu meio.

A epidemiologia social é o espaço no interior do setor dominante que recompõe (de forma dominada) uma representação abrangente de saúde, ao englobar o social como determinante e os indivíduos como componentes de classes em oposição, na sociedade capitalista. Essa concepção que politiza o conceito vai ao encontro da visão específica das classes trabalhadoras que se expressa através da resistência cultural e de forma politicamente organizada. Os trabalhadores e profissionais do setor que representam a saúde como direito individual e coletivo rompem a concepção centrada no biológico, no individual, na harmonia e equilíbrio sociais. Fazem da saúde uma meta a ser conquistada, como um bem que se adquire através dos conflitos e da luta de classe.

No entanto a epidemiologia social encontra seu limite no paradigma que institui o corpo como o espaço da saúde/doença. Seu desafio atual é encontrar na teoria e na prática a totalidade fundamental do ser humano.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 1991
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