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REPERCUSSÃO DOS PROGRESSOS CIENTÍFICOS E TECNOLÔGICOS NA EDUCAÇÃO MÉDICA

O homem pertence a uma espécie eminentemente visual. A informação que recebe através dos olhos supera a de todos os outros sentidos com grande vantagem (Granil), e esta informação é elaborada pelo sistema nervoso central para nos dar uma imagem espacial do universo que nos cerca. Deste, nada saberíamos se não fossem nossos sentidos que, com simples correntes de despolarização, variações de freqüência e de quantidade de fibras nervosas, nos inserem na realidade do Universo. Segundo Rosenblueth, podemos afirmar isto apoiando-nos na informação que recebemos de outros membros da espécie, que, estando na mesma situação, concordam com os dados obtidos e têm capacidade de comunicação. Mountcastle (1975) sintetiza, de forma clara e concisa, o aspecto neurofisiológico dos dados que recebemos. “Cada um de nós crê que vive diretamente ao interior do mundo que o rodeia, que sente os objetos e os fatos de forma precisa, que vivem em um tempo real. Afirmo que tudo isso são ilusões perceptivas, posto que cada um de nós enfrenta o mundo com um cérebro que está ligado “ao que está fora” através de vários milhões de frágeis fibras sensitivas. Elas são nossos únicos canais de informação, nossas vias de comunicação com a realidade”. Estas fibras sensitivas não são registradoras de “alta fidelidade”, porque acentuam certo tipo de estímulos e deixam de lado outros. O neurônio central é um “repetidor”, com respeito a estas fibras nervosas aferentes, e não é completamente confiável, pois permite algumas alterações de qualidade e de medida dentro de uma tensa, porém isomórfica, relação espacial entre o externo e o interno. A sensação é uma abstração, não uma réplica do mundo real. Em tom poético, mas não menos científico, um poeta assinala: “e nesta monotonia - em que submergiu a maravilha da vida - uma mulher ou uma rosa - não são outra coisa - que ondas de despolarização”.

No processo que conduziu o progresso da Medicina, o que sobressai é a tendência a objetivar a realidade do doente, transformando-a em processo visual. O exemplo mais típico seria o método anátomo-clínico, que consegue, com bom êxito, que a enfermidade de cada paciente (criação conceptual do médico) se traduza em uma imagem visual, macro e microscópica, que permite “ver” o que sintomas e sinais fazem apenas suspeitar.

Quando Auenbrugger e Laennec e seus sucessores introduziram a percussão e a ausculta na clínica, não aspiravam a que a maciez e s estertores lhes dessem o diagnóstico de uma doença, senão que o “tamquam percussi femoris” significava que existia líquido na cavidade pleural e que os estertores implicavam a existência de uma cavidade de diâmetro suficiente, de paredes espessas e abertas em um brônquio. Com isso, imaginavam, visualmente, o estado anatômico do pulmão e da cavidade pleural.

A descoberta do raio X, em 1896, por Roentgen, foi um dos progressos que mais rapidamente se impôs. No ano da comunicação de Roentgen, já estavam publicados mais de mil artigos e cerca de cinqüenta livros, e já havia surgido uma revista, cujo nome era Archives af Clinical Skiagraphy. O bom êxito e a aceitação da descoberta, além de sua repercussão prática, residia em que a radiografia permitia ver, por diferenças de densidade, coisas até então ocultas. O médico, com seus conhecimentos anatômicos, estava capacitado para reconhecer a normalidade e a anormalidade dos ossos, etc., e as diferenças de densidade dos campos pulmonares ofereciam uma imagem visual do estado do pulmão. Foi necessária a “clarividência” de Walter B. Cannon404. MOUNTCASTLE, V.B. - Medical physiology. 12.a ed. Saint Louis, C.V. Mosby, 1968, vol. 2. para poder-se observar o tubo digestivo, no ano de 1898, através da imagem de substância opaca.

Na eletrocardiografia, um método que estava fora dos sentidos humanos, a modificação foi tal, que os fenômenos elétricos gerados pelo coração já podem ser vistos e registrados, ou seja há permanência da imagem visual. O mesmo se aplica à eletromiografia, à velocidade de condução nervosa, aos registros diretos de pressão por cateterismo, ou através de agulhas introduzidas em diferentes artérias. Igual processo repete-se, por exemplo, nas arteriografias e na concentração de compostos iodados na vesícula biliar. Em todos os procedimentos, conseguem-se imagens visuais de estados anatômicos e se estima a função dos órgãos de secreção.

Como conseqüência indireta da maior precisão diagnóstica e de poder observar a dinâmica de muitos processos que antes só podiam ser estudados em animais, o médico se vê obrigado a aprender fisiologia muito mais profundamente. Se o cateterismo cardíaco e outros métodos lhe permitem calcular o volume-minuto, a pressão final de enchimento, a fração de ejeção, etc., o médico deve saber utilizar estes dados para extrair uma conclusão acerca do estado circulatório do paciente. Anteriormente, o médico, pela anamnese e sinais clínicos, podia coletar o que agora lhe é revelado com fidedignidade, e é uma falta imperdoável não utilizar os dados diretos que a nova tecnologia fornece.

Numa análise superficial, poderia Parecer que o trabalho do médico ficou facilitado, porque é mais simples, do ponto de vista da semiologia, chegar a um diagnóstico anatômico. Entretanto, paralelamente ao aperfeiçoamento da técnica, surgem novos conhecimentos. Basta ler qualquer revista das especialidades médicas para dar-se conta que existe um grande número de dados que requerem, para correta interpretação, o conhecimento da fisiologia, em constante progresso. Faz mais de 20, ou 30 anos que a exploração de feixe de His era um problema que dizia respeito exclusivamente aos eletrocardiologistas; as arritmias ampliaram suas indicações terapêuticas, inclusive cirúrgicas, de acordo com sua fisiologia. Os pneumologistas não podem ignorar a fisiologia, por exemplo, dos pequenos brônquios e os métodos que agora existem para quantificar sua contribuição para a resistência das vias aéreas. Os hepatologistas aprofundam-se no papel que desempenha o tecido conjuntivo. Há que estudar separadamente o colágeno, a elastina, as glucoproteínas estruturais. Os neurologistas não se limita apenas a localizar em que segmento do sistema nervoso central se situam as lesões anatômicas, no momento em que foram descobertas alterações que se manifestam por ausência de dopamina, ou por diminuição de seu metabolito, o ácido homovainilínico, ou a diminuição de nor-adrenalina, ou de seu metabolito final, o 3 - metoxi 4 - hidroxifenilglicol, ainda que este possa encontrar-se também elevado. Estas alterações, que podem ser identificadas na doença de Alzheimer, ou em outras demências senis, e que podem ter uma relação com o nível destes metabolitos no líquido cefalorraquidiano, nos mostram a necessidade de conhecer a bioquímica nervosa para entender o que é a demência senil, e; quem sabe, melhorar de alguma forma o futuro destes pacientes505. OMS - Informe de um grupo de estudio de la OMS, n. o 665. El envejecimiento neuronal y sus relaciones con la patologia neurológica humana, 1981.. Poderia dar outros exemplos, tão importantes como os mencionados, em qualquer campo da Medicina Interna.

Quis fazer uma introdução que, ao mesmo tempo, dê realce e identifique o nexo comum a esses procedimentos. O nexo é a transformação em uma imagem visual que nos revela a alteração anatômica apresentada pelo paciente; é a análise, também com imagens visuais, das modificações que a doença impõe ao funcionamento de órgãos e sistemas.

Por trás e à frente de tudo isto, há um médico que pensa, que fez uma profunda e longa anamnese e que observou, repetidas vezes, com olhos inteligentes (inteligente, significa ser capaz de ler dentro) o aspecto e a expressão do paciente. Talvez sua exploração semiológica não seja tão precisa, nem tão minuciosa quanto a de seus predecessores há 50 anos, e isto não é de se estranhar, pois esses predecessores tampouco faziam, por exemplo, uma ausculta pulmonar tão exaustiva como o faziam os médicos que viveram antes de Roentgen. É preciso substituir o que está superado e dedicar-se ao aprofundamento do que não existia, que são a farmacologia e a terapêutica.

O perigo que há por trás desses indiscutíveis progressos não se refere tanto aos clínicos, que mantêm o relacionamento com o paciente e prosseguem sentindo-se médicos: São os super especialistas, que tendem a transformar-se em uma peça a mais do aparelho que utilizam, e a quem se dirige a advertência feita por Georges Fülgraff, Secretário de Estado do Ministério da Saúde na Alemanha Federal, e que traduzida diz: “O paciente não deve transformar-se em um fornecedor' de sinais a um determinado aparelho”606. PICKERING, G. - Reflections on research and the future of medicine. Ed. Ch. Lyght, 1966,.

O que compete à Universidade no ensino dessas aquisições e progressos? À universidade cabe, exclusivamente, formar médicos que saibam pensar e que estejam em dia com as correntes de pensamento na Medicina e na Biologia da época em que lhes é dado viver. As técnicas que significaram progresso evidente devem ser mencionadas ao estudante, mas não é necessário que se amplie o currículo para lhes dar lugar. Por outro lado, ninguém aprende em seis meses, ou em um ano, a manipular os dados e conhecer o significado dos inúmeros registros que exigem tempo e dedicação. Basta saber que existem e conhecer o princípio em que se fundamentam, para que, mais tarde, despertada alguma vocação, que não de ordem exclusivamente econômica, o impeçam de converter-se no servidor de um aparelho, não o obriguem a abandonar o contato com os pacientes.

Para concluir, quero assinalar que todo progresso tecnológico implica uma modificação, quando não há uma deterioração do meio que nos cerca. Todos conhecemos a atividade que desenvolvem os ecologistas, que tratam de reduzir o impacto da poluição, o desaparecimento, ou a diminuição, das espécies úteis ao homem, etc., e, também, ainda que não tenha valor venal, o atentado à beleza que significa o desaparecimento, por exemplo, das quedas do Guaíra, ou, em nosso país, as cachoeiras do Futaleufú, e tantos outros exemplos deploráveis.

Com os progressos diagnósticos e a ampliação das possibilidades terapêuticas; não estaremos contribuindo para a destruição da felicidade humana ao encher o mundo de velhos? Pickering707. ROSEN BLUETH, Arturo - Mente y cerebro. México, Sigla XXI Ed., 1970., com sentido de humor, dizia: “I find this a terrefyng prospect, and I am glad that I shal1 be dead and will have ceased to make my own contributions to this catastrophe long before it happens”. Há mais de 10 anos, mencionei808. SIRMEN, Rolf H. - Fülgraff Georges en “der arzte ungeliebte technik. Med. Welt., 27: , 1982., em um simpósio sobre a Medicina do futuro, a imprevisão de Eos, a Aurora, que pediu a Zeus para lhe conceder Tithonus, um mortal de quem se havia enamorado, a vida eterna. Ela se esqueceu de acrescentar a juventude, e, ao final, Eos, cansada de um velho decrépito, que falava continuadamente utilizou o método científico do reducionismo e o converteu em cigarra909. VAN GINDERTAEL, J.M. - Hamdard (Voice of eastern medicine) 1968.. Se a cura do câncer aparecer antes da cura da arteriosclerose, ou da substituição dos neurônios cerebrais, não teremos que recorrer a uma encantadora Eos para que nos converta em cigarras?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    GRANIT, Ragnar - The purposive brain Cambridge, M.I.T. Press, 1980.
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    MOUNTCASTLE, V.B. - Medical physiology. 12.a ed. Saint Louis, C.V. Mosby, 1968, vol. 2.
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    OMS - Informe de um grupo de estudio de la OMS, n. o 665. El envejecimiento neuronal y sus relaciones con la patologia neurológica humana, 1981.
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    PICKERING, G. - Reflections on research and the future of medicine Ed. Ch. Lyght, 1966,
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    ROSEN BLUETH, Arturo - Mente y cerebro México, Sigla XXI Ed., 1970.
  • 08
    SIRMEN, Rolf H. - Fülgraff Georges en “der arzte ungeliebte technik. Med. Welt, 27: , 1982.
  • 09
    VAN GINDERTAEL, J.M. - Hamdard (Voice of eastern medicine) 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1983
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