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EDITORIAL

Eliana Claudia de Otero Ribeiro

Professora Adjunta do NUTES/UFRJ

Coordenadora de Ensino e Divulgação Científica do INCA

Aqui e ali, buscando ouvir o que dizem coordenadores de programas, gestores preocupados com a qualidade dos serviços, residentes e colegas comprometidos com a formação profissional em saúde, um pouco de cada lado, escuto o suficiente para caracterizar um momento da residência médica no País que demanda reflexão. Nada de novo, dirão outros, a situação é crônica, há muito anunciada.

Profissionais mais antigos lembram-me da disputa por vagas nos melhores programas de residência e referem-se claramente ao valor que se atribuía a essa etapa da formação para o exercício profissional, de treinamento em serviço, identificada com uma esperada carga de trabalho, responsabilidades e plantões. Os programas não eram tão estruturados do ponto de vista pedagógico, mas todos e cada um reconheciam seus papéis como formadores e aprendizes. Alguns descrevem, explicitamente, os vínculos que orientavam essa relação, mediados pela responsabilidade na condução de seus pacientes. Recordam, igualmente, a valorosa luta dos residentes por seus direitos, movimento esse responsável pela construção de legitimidade para a criação de espaços e normas de regulação dos programas.

Ouço, hoje, preceptores indignados com o novo vestibular para a residência médica, com o frenesi pelos cursinhos que esvaziam as enfermarias e ambulatórios para lotar salas de aula, apontando a notável incongruência entre as determinações das Diretrizes Curriculares Nacionais e os atributos valorados para ingresso em programas de residência médica. Acompanho-os na busca de explicações para a mudança nos padrões de opção por esta ou aquela instituição formadora entre os mais bem classificados nos processos seletivos para ingresso em instituições de renome: entendo que transparece um interesse por programas menos rigorosos, menos reconhecidos, mas que "liberam" os residentes mais cedo no turno da tarde, e a justificativa de tal escolha parece recair em valores relativos à inserção no mercado de trabalho. Escuto residentes questionando a ausência de seus preceptores, e estes, por sua vez, inconformados com os argumentos daqueles que pautam sua atuação nos serviços por normas e parâmetros legais. Um tenso diálogo, no qual não se reconhece o elemento essencial, vínculo instituinte da relação docente-aluno na saúde: as necessidades dos pacientes. As dimensões éticas envolvidas são escancaradas, o esgarçamento de valores tidos como essenciais na organização do cuidado são jogados na vala comum da gestão de cargas horárias, dos rodízios formais, do preenchimento burocrático de itens obrigatórios de avaliação.

Expressam-se nesses diálogos, a meu juízo, contradições importantes a serem enfrentadas, e aqueles que entendem a residência como estruturada sobre as relações entre educação e trabalho avaliam, certamente, que a degradação da clínica e das condições de trabalho dos profissionais em muitas instituições que formam especialistas é inseparável da demanda por melhoria da qualidade da formação e de reestruturação da residência médica. Nesse sentido, a formação em serviço será sempre uma das dimensões da gestão em saúde comprometida com a qualidade.

Parece-me importante destacar a distância entre os processos de regulação da formação de especialistas na modalidade residência e as demandas do SUS, expressa, já à primeira vista, pela manutenção da composição original da CNRM, decorridos tantos anos de sua criação. Com o progressivo aumento da demanda por especialização, entendo ser inadiável o envolvimento, ao lado de outros atores relevantes, das esferas de gestão do SUS – responsáveis pelo financiamento da maior parte das bolsas de residência médica no País – na regulação da oferta regional de programas e vagas, orientada por critérios de relevância epidemiológica e social e pelo compromisso de excelência e qualificação dos serviços de saúde. O debate não prescinde, nesse contexto, da participação de todos esses atores na definição do próprio perfil do especialista, cuja competência profissional passaria a legitimar-se não apenas pelo domínio dos saberes acadêmicos, mas também pelo exercício das capacidades por eles identificadas como necessárias à transformação das práticas de saúde regidas pelos princípios do SUS.

No contexto atual de valorização da recertificação profissional no âmbito das especialidades, reacende-se o debate sobre que atores devem participar da regulação da residência médica. Identificam-se, de forma crescente, movimentos de acreditação institucional e de adoção de critérios de certificação profissional por sociedades de especialidades médicas que não necessariamente correspondem aos parâmetros vigentes de avaliação aplicados pelas instâncias estaduais responsáveis pelo credenciamento de programas. Seja por fazerem juízos de valor diversos sobre a qualidade da formação, formação, seja pelo questionamento sobre quem tem legitimidade para exercer o papel de avaliador, o fato é que essas tensões revelam que a formação de especialidades se dá na interface de múltiplos, e às vezes contraditórios, interesses. Por essa razão, entendo que os processos de regulação da formação devem ser entendidos em sua natureza social e necessariamente complexa.

As experiências que vêm se somando no País no campo de currículos orientados por competência na graduação e pós graduação lato sensu – incluindo programas de residência médica – podem certamente contribuir para o necessário processo de revisão das práticas de formação de especialistas. A experiência vivenciada nesses moldes para a reorganização dos programas de cancerologia no País, sob a coordenação do INCA e em parceria com os diferentes atores envolvidos na regulação da especialidade, incluindo as instituições formadoras, aponta o potencial da metodologia e a natureza múltipla dos desafios a serem enfrentados para sua plena operacionalização.

A ênfase dada à questão da residência nos fóruns de debate e congressos realizados pela ABEM, também expressa na escolha do tema deste editorial, favorece uma interlocução que promove a sinergia de iniciativas inovadoras e potencializa os esforços para fazer face à perplexidade criada por conflitos e contradições que ainda não encontram resposta nas instâncias atuais de regulação da formação de especialistas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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