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Editorial

Durante o ano de 1978 a Associação Brasileira de Educação Médica estará empenhada em uma tarefa de indiscutível significação e oportunidade. Ao lado da Associação Colombiana de Faculdades de Medicina e da Academia Nacional de Medicina do México, que resolveram também se engajar em idêntica tarefa, irá ela convocar educadores médicos, autoridades de saúde e profissionais de áreas afins, para um amplo debate sobre o gradual desaparecimento do tradicional “médico de família”, ou seja, daquele verdadeiro “especialista em cuidados gerais” que, até há pouco, predominava no seio da profissão médica. Apoiadas pela Fundação Kellogg as três entidades estarão, portanto, envidando esforços concomitantes com vistas a motivar as instituições e órgãos que formam e utilizam médicos, a alcançarem um consenso, chegando mesmo, a um compromisso, com respeito à necessidade da adoção de medidas que visem a corrigir a atual tendência de a profissão dirigir-se para campos cada vez mais especializados, com prejuízo para a formação necessariamente geral e abrangente que todo médico deverá adquirir durante seus estudos a nível de graduação.

Justo será, neste momento, ressaltar o interesse que a ABEM sempre revelou pelo problema. De fato, em 1973 coube-lhe organizar, na cidade de Petrópolis, um Seminário sobre a Formação do Médico de Família, de que dá conta a excelente publicação que distribuiu, contendo os trabalhos apresentados, um resumo dos debates e recomendações de perfeita atualidade. A ABEM estará, portanto, dando prosseguimento àquilo que já havia iniciado, esperando, agora, fazê-lo em maior profundidade e amplitude.

Vale referir que, em 1963, a OMS reuniu em Genebra, um grupo de peritos para estudar a matéria, mas o respectivo relatório, distribuído aos vários países do mundo, pouca influência parece ter exercido. A maioria deles continuou a não se preocupar com o que estava ocorrendo, especialmente quanto às repercussões negativas do fenômeno sobre o desenvolvimento de sistemas de saúde que ofereçam cuidados de primeira linha voltados pra a família, obviamente indivisível em matéria de saúde. A sociedade, em sua demanda por ver suas necessidades atendidas nesse campo vê-se, pois, à mercê de uma situação conflitante, isto é, o Estado busca satisfazer suas reivindicações, enquanto o processo formação/utilização do médico para cuidados gerais funciona de certo modo ao azar, influenciado por fatores que convirá identificar o quanto antes.

Que qualificações deverá possuir aquele médico? Deverá ele ser o “médico indiferenciado” de que tanto se falou? Ou o “médico generalista”, o “de família”, o “de cuidados gerais”, etc., todos eles não serão o mesmo profissional cujas características, missão, deveres, competência e responsabilidades falta bem definir; quando menos para evitar confusões semânticas? Eis uma questão preliminar do programa que a ABEM está desenvolvendo. Aparentemente não será trabalho que possa apresentar maiores dificuldades, mas uma boa prova de como não é fácil definir um profissional de saúde pode ser dada pelo que, ainda nesta década, ocorreu no seio da Organização Mundial da Saúde, com respeito à simples palavra “médico”.

Em 1969, alguns países-membros da OMS, preocupados com as dificuldades existentes no plano internacional relativamente à delicada questão da “equivalência de títulos e diplomas” - problema este de competência básica da UNESCO - conseguiram que a Vigésima Segunda Assembléia Mundial da Saúde aprovasse uma Resolução no sentido de o Secretariado daquela agência formular uma definição para a palavra “médico”, submetendo-a à apreciação, respectivamente, do Conselho Executivo da OMS e da Vigésima Quinta Assembléia, a reunir-se em 1972. Esperavam tais países, certamente, que a proposição pudesse ser facilmente atendida e que, ao aprovar tão óbvia definição a Assembléia iria colocar à disposição dos países­membros um instrumento de grande utilidade para dirimir dúvidas quanto à equivalência dos diplomas concedidos por suas instituições de educação médica.

Mas, como mostra a documentação oficial da OMS, a tarefa foi particularmente difícil. De fato, à parte as definições geralmente incompletas encontradas nos melhores dicionários de diversas línguas(1 1 AURÉLIO - Brasil: 1. “Médico” S.m. Aquele que é diplomado em medicina e a exerce; clínico. 2. “Diplomado” S.m. Que tem diploma ou título justificativo de certas habilitações científicas ou literárias, etc. 3. “Medicina” S.f. (Do lat. Medicina) Arte e Ciência de curar ou atenuar doenças. 4. “Profissão” S.m. (Do lat. profissione) Atividade ou ocupação especializada, da qual se podem tirar os meios de subsistência. P. ext. Meio de vida, emprego, ocupação, mister. ), nenhuma instituição acadêmica ou científica, no campo das ciências biomédicas, havia até então se preocupado em formalmente definir aquele profissional, caracterizando-o não só quanto aos seus conhecimentos, habilitações, etc. mas, também, quanto aos seus deveres e responsabilidades. A OMS teve, por conseguinte, que buscar a cooperação das instituições vinculadas ao Conselho das Organizações Internacionais das Ciências Médicas (CIOMS), dos membros de seu Quadro de Peritos em Educação Médica, de filólogos e legisladores, bem como de universidades e faculdades de medicina, a todos solicitando que opinassem a respeito, contribuindo para a formulação de uma definição que, por sua abrangência, pudesse ser aplicável universalmente.

O CIOMS, por exemplo, em nome das associações a ele vinculadas, sugeriu uma definição cujos termos permitiriam comparar as qualificações básicas que habilitariam uma pessoa a exercer a medicina e a assumir as responsabilidades correspondentes à profissão de médico. Deixou no entanto, bem claro que a palavra “médico” só seria aplicável a quem se qualificasse academicamente em medicina geral, antes de obter qualificações especializadas adicionais. Na Grã-Bretanha a palavra corresponderia ao “registered medical practicioner”; nos Estados Unidos à palavra “physician”, a sinônima da expressão “medical doctor”; em francês, espanhol e português, a “médecin” e “médico”, respectivamente; em russo, a “vrac”.

Após cuidadosa análise da documentação, propostas e sugestões que recebeu, o Secretariado da OMS conseguiu, finalmente, formular a esperada definição. Ao fazê-lo, teve em conta, entre outras cousas, que a qualificação de médico é usualmente atestada, ou certificada por um grau acadêmico; que só após sua aquisição uma pessoa adquire o direito de exercer a profissão; que por fim, seu exercício varia extensamente de país a país, sendo regulado por uma série de exigências de caráter legal, regulamentar, profissional, acadêmico, etc. Foi, também, levado em consideração que é prerrogativa dos governos e do interesse da profissão médica, que sua prática se faça com observância de normas que sirvam de salvaguarda para o público e, ao mesmo tempo, garantam o “status” profissional daqueles que a exercem. A definição, abaixo transcrita na língua em que foi formulada, o inglês, recebeu boa acolhida do Conselho Executivo da OMS, que a aprovou encaminhando-a, com pequenas emendas, à consideração da Vigésima Quinta Assembléia Mundial de Saúde.

Após intensos e ardorosos debates logo se viu que a definição não seria aprovada pelo simples fato de tentar equiparar no plano internacional, direitos e privilégios que só o Estado pode conceder no plano nacional, regional e, mesmo, local. Em sua sabedoria a Assembléia decidiu “tomar nota” da definição nos termos com que havia sido aprovada pelo Conselho Executivo da OMS, deixando a critério dos países-membros utilizá-la como e quando lhes parecesse oportuno, ou conveniente.

A apresentação da breve história de um evento ocorrido na OMS, teve por fim enfatizar a necessidade de atribuir-se formal reconhecimento, tanto sob o ângulo acadêmico, quanto profissional, ao “médico policlínico” - se mais esta denominação lhe concedêssemos - cujo desaparecimento bastante nos preocupa, mas cuja exata caracterização ainda está por fazer. Mas aquele profissional, não será, pura e simplesmente, o “médico” sem adjetivos que a OMS tentou definir?

“A PHYSICIAN IS A PERSON WHO, HAVING BEEN REGULARLY AD­ MITTED TO A MEDICAL SCHOOL, DULY RECOGNIZED IN THE COUNTRY IN WHICH IT IS LOCATED, HAS SUCCESSFULLY COMPLETED THE PRESCRIBED COURSE OF STUDIES IN MEDICINE AND HAS ACQUIRED THE REQUISITE QUALIFICATIONS TO BE LEGALLY LICENSED TO PRACTISE MEDICINE (COMPRISING PREVENTION, DIAGNOSIS, TREATMENT AND REABILI­ TATION), USING INDEPENDENT JUDGEMENT, TO PROMOVE COMMUNITY AND INDIVIDUAL HEALTH.”(2 2 *) Definição de médico aprovada pelo Conselho Executivo da OMS em 20-1-1972. )

Ernani Braga
Coordenador, Programa Formação do Médico de Família

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    AURÉLIO - Brasil: 1. “Médico” S.m. Aquele que é diplomado em medicina e a exerce; clínico. 2. “Diplomado” S.m. Que tem diploma ou título justificativo de certas habilitações científicas ou literárias, etc. 3. “Medicina” S.f. (Do lat. Medicina) Arte e Ciência de curar ou atenuar doenças. 4. “Profissão” S.m. (Do lat. profissione) Atividade ou ocupação especializada, da qual se podem tirar os meios de subsistência. P. ext. Meio de vida, emprego, ocupação, mister.

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    *) Definição de médico aprovada pelo Conselho Executivo da OMS em 20-1-1972.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1978
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