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Humanismo e Tecnicismo na Formação Médica

Resumo:

Traça-se o perfil do estudante de Medicina e do médico, buscando encontrar uma dimensão humana no processo ensino-aprendizagem em Educação Médica. Evidencia-se o caráter ansiogênico da prática médica e os riscos advindos à saúde mental do profissional. Visando a uma educação humanista, propõe-se mais debates sobre emoções, sociopatias e relação médico-paciente, pressupostos básicos à saúde mental na formação do médico. Sugere-se a criação de condições para expressão corporal e verbalização. Ressaltam-se a interconsulta, a interdisciplinaridade e a operacionalização de um Serviço de Apaio ao Educando como condições básicas para a humanização do processo e dos atores.

Palavras-chave:
Educação Médica; Humanismo; Ética; Tecnologia

Summary:

The author trace the medicine student's profile and of the doctor looking for to find a human dimension in the process teaches leaning in Medical Education. They evidence the provocative character of anxiety of the medical practice and the risks to the professional’s mental health. Seeking a Humanist Education, they proposes more debates on themes, such as emotions, social problems, doctor-patient's relationship, considering them as presupposed to the mental health in the doctor's formation. They stand out the inter consult, the interdisciplinarity and the operacionalization of a Service of Support to the Educating as basic conditions for the humanization of the process and it donates actors.

Keywords:
Medical Education; Humanism; Ethics; Technology

"Ou o homem humaniza a ciência, ou
a ciência desumaniza o homem."
(Miguel Couto)
"Tão importante quanto conhecer a doença que o homem tem, é conhecer o homem que tem a doença." (Osler)

EM BUSCA DA DIMENSÃO HUMANA NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM EM EDUCAÇÃO MÉDICA

O homem é uma criatura única, Livre, criativa. Sua liberdade é consequência da responsabilidade assumida a partir de seus atos, que o habilita a decidir e a discriminar. O objetivo último do processo educacional do homem é o desenvolvimento global, harmônico, holístico, de sua pessoa como unidade cognitiva e emocional. O estimulo à aquisição de habilidades do pensar implica o desenvolvimento de um sistema de valoração, a formação de julgamentos que auxiliem na elaboração de atitudes novas.

O enfoque humanístico que busca a integração harmônica do conhecimento e da percepção demonstra que a aquisição de conhecimentos só é significante se tiver valor individual dado pela afetividade. A aprendizagem é significativa quando se refere à necessidade de auto-realização. Aprendizagens afetivas são evidenciadas por meio da introjeção de modelos, mais do que por demonstrações expositivas. A humanização do processo ensino-aprendizagem visa imprimir um significado mais dinâmico, intensivo e extensivo dos conceitos psicológicos à educação. Isto se refere fundamentalmente à psicologia transpessoal, dos metamotivos e social.

Não podemos cair no irracionalismo de identificar a tecnologia como um mal em si. Maléfico pode ser o uso que se faz da tecnologia, a quem serve e para que serve. A tecnologia em si é apenas a expressão primeira do processo criador, materializado num instrumento a serviço da transformação evolutiva da humanidade.

Haveria, pois, uma tecnologia da educação e dentro dela urna individualização de ensino. Na individualização, resgatamos o homem e com ele o senso e a sensibilidade. Estas ações são determinantes do equilíbrio com que se espera possamos pensar, sentir, trabalhar, amar, refletir e reorganizar. "O grande perigo da tecnologia é implantar no homem a convicção enganosa de que é onipotente, impedindo-o de ver a sua imensa fragilidade" (Hermógenes).

Tecnologia origina-se do grego tekné (arte) e logus (discurso). Tecnologia, discurso da arte, etimologicamente perdeu seu significado, para representar, hoje, a ideia de: "conjunto de conhecimentos, principalmente científicos que se aplicam a determinado ramo de atividade" (Aurélio Buarque de Holanda).

O método científico não é o único caminho para o domínio de novas técnicas, pois temos a intuição, a experimentação e os sentidos (a percepção sensorial). A pesquisa tecnológica está subordinada às condições sócio-econômico-culturais dos países de origem (da tecnologia, não do produto tecnológico, geralmente fabricado em parque industrial de menor custo e vendido a preço mais competitivo no mercado mundial). A política da universalização de tecnologias (o discurso da arte ou o discurso de determinado conhecimento científico) traz como consequência uma universalização de uma cultura tecnológica em detrimento da cultura das artes, do humanismo e da emoção.

Quando a ciência não se faz acompanhar de consciência ética, ao invés de ser o beneficiário, o homem se torna o agredido. A engenharia genética, a clonagem e outros exemplos mostram o acerto das palavras de Hermógenes e o risco que a humanidade pode se impor se não prevalecerem os valores bioéticos.

O PERFIL DO ESTUDANTE DE MEDICINA

Quando os estudantes chegam precocemente adolescen­tes à universidade - que hoje já não representa geográfica e culturalmente um universo -, não costumam trazer urna bagagem cultural ampla e diversificada, visto serem produto de um sistema de ensino alienante, cartesiano, diretivo, acrescido de ambiência de falência moral, advinda dos anos de repressão -política, cultural, de debates de ideias, prática democrática, participativa. Começamos a entender a não-participação, a passividade, a indiferença, o alheamento aos temas coletivos, nacionais, sociais, o descompromisso social, a intimidade com a mídia televisiva, sem crítica, sem discriminação seletiva.

Entendemos por que nosso estudante transforma diretórios em associações de recreação e lazer, descuidando-se de exercer uma real representatividade estudantil em suas assembleias e fóruns.

O profissional médico se sente diferente, sub-remunera­do, poli-subempregado, posto na linha de frente de um sistema de saúde caótico, não-hierarquizado, onde falta do receituário ao esparadrapo, da higiene básica ao antiséptico, do leito ao medicamento, submisso a um sistema corrupto e face a face com o usuário desesperado, ansioso, doente e marginalizado.

O resultado do confronto é o rechaço, a anomia, a não­relação, o bloqueio da sensibilidade, a antimedicina. Ao invés da cura, produzimos doenças.

No templo das unidades coronarianas ou dos centros de tratamento intensivo, a liturgia dos respiradores, oxímetros, cânulas, fios, monitores, etc. separa o oficiante (o médico) do paciente e do coletivo de suas famílias. Trata-se a insuficiência coronariana do leito 15, desconhece-se o ser humano que ali habita.

Até quando morreremos tecnologicamente bem assistidos? Até quando viveremos tão distanciados de nossas raízes animais da terra, da água, da natureza? Não há esforços para educar o homem em sua alimentação, sua atividade física, sua integração social e sua reflexão mental, o que, comprovadamente11. PESSOTTI, I. A Formação humanística do médico. Medicina, Ribeirão Preto, v. 29, n. 4, p. 440-448, out./dez. 1996., dá excelentes resultados e sobrevida.

A alienação a que o processo nos conduz leva à busca de uma onipotência que a ciência e o domínio de suas verdades parecem nos oferecer. Nunca os médicos souberam tanto de tão pouco.

O QUE A GRADUAÇÃO MÉDICA PODE OFERECER?

Esse cidadão, em geral adolescente, submetido a esse cadinho social em ebulição de violência e transgressões, impregnado de visões românticas da prática e do saber médico, ao adentrar o templo da universidade, recebe: toxicidade psicológica elevada, com escassa informação e formação em Psicologia Humana e Médica e em Psiquiatria. Alie-se a isto praticamente uma ausência de informação em saúde familiar, mental, etc.

Num curso sobre saúde e vida, o jovem é sempre apresentado apenas à doença, raramente à saúde, poucas vezes à morte (sob visão distorcida) e quase nunca celebra a vida. A morte à qual é introduzido é a morte solitária, anônima, indigente, do cadáver no anatômico. Mais à morte do corpo que à morte da vida no corpo, que ao espírito. Aprendemos a morte do corpo e não aprendemos a perceber as pequenas mortes no vivo, e mesmo a vida que a morte em si mesma representa como negação do continuar sendo.

O ensino mantém a visão perene da doença como ameaça de morte. Dor, sofrimento e morte são cartesianamente apresentados dissociados da vida. O aluno aprende a tratar doenças e não doentes, o corpo enfermo e não o homem que nele habita. Jamais se refere às relações mente-corpo-ambiente e às suas transcrições psicossomáticas.

Na prática da relação médico-paciente, não há relação, nem continuidade de acompanhamento. O modelo é a indiferença, o que interessa é o caso, quando raro e grave. O prevalente não é interessante. Introduzido nesse ambiente, a partir do caos social, muitas vezes não identificado, o aluno divide-se entre o ideal a ser buscado e a anomia. A partir do ideário de desumanização do cadáver, gera-se, por consequência, a desumanização do paciente. Essas situações, ansiogênicas, geram defesas que podem eclodir como atitudes viris, agressivas, escamoteadoras de inseguranças e fragilidades introjetadas.

A formação do médico não discute nem possibilita instrumentos de identificação da necessidade de o aluno estruturar seu equipamento emocional. Se estruturado, é necessário mantê-lo em equilíbrio ao submetê-lo diuturnamente às condições ansiogênicas de sua prática profissional.

A interposição da máquina atende ao apelo capitalista ao mesmo tempo em que transfere e minimiza a possibilidade do erro médico (tão a gosto das companhias de seguro), assim como anula as interações da relação mente-mente e corpo­corpo (terapeuta-paciente). A resolutividade sai da relação humana e cai no potencial miraculoso da tecnologia. Quanto mais instrwnentalizado, mais apto o profissional. A demanda para a medicina de aparelhos afasta o médico de seu paciente, aumenta o custo operacional, mas não melhora as estatísticas.

A deformação da graduação leva a uma solicitação única de valores no recém-formado, que se cristaliza na residência médica, verdadeiro rito de iniciação ao templo das atividades médicas. O residente deve ser eficiente e responsável, modelo para os outros e referencial de si mesmo. Deve vencer o isolamento social a que o curso obriga (44 horas de atividades semanais, plantão no meio da semana, rodízios de fim de semana), mantendo-se atualizado, amável, solícito e educado. Deve suplantar a fadiga e a privação do sono, estando sempre bem disposto, apresentável, asseado e bem passado. Deve ser competitivo, hábil, eficiente, competente.

As taxas anuais de suicídio entre jovens estudantes de Medicina são altas, mais elevadas que as da população geral na mesma faixa etária. Estudantes de Medicina levam para a atividade profissional seus distúrbios de personalidade. Muitas vezes, procuram a carreira como forma de encontrar solução para seus problemas. As dificuldades de adaptação, ligadas à nossa vulnerabilidade às tensões, associadas à não-imunidade às doenças psiquiátricas, são fatores que exigem ações concretas quanto a esclarecimento, educação e tratamento.

Miranda e Queiroz22. MIRANDA, P. S. C., QUEIROZ, E. A. Pensamento suicida e tentativa de suicídio entre estudantes de medicina. Revista ABP-APAL, São Paulo, v. 13, n. 4, p. 157 - 160, nov./ dez. 1981. nos mostram que 37% de uma amostra de 875 estudantes de Medicina já tiveram ideias suicidas e que 2,3% (20 alunos) tentaram o suicídio pelo menos urna vez. Um conjunto de pessoas submetido a determinada situação - por exemplo, fogo - implicará uma série de atitudes que irão da serenidade ao pânico. Assim, o estudante de Medicina irá se adaptar a essas situações ansiogênicas, independentemente dos recursos que a escola não oferece. Apenas com os instrumentos e alternativas que sua construção biopsicossocial permita, essa adaptação poderá ser adequada, inadequada ou impossível, com graves consequências que podem se exteriorizar por abandono do curso, frustração, agressividade, depressão, distúrbios psicogênicos, psicopatias, doença mental e suicídio.

O CARÁTER ANSIOGÊNICO E ALIENANTE DA ATIVIDADE MÉDICA.

FATORES DE RISCO PARA A SAÚOE MENTAL DO MÉDICO

Na prática médica, a tensão aumenta por termos de atender à demanda, não importando as condições. Trabalha-se não pela qualidade e/ou resolutividade, mas pela produtividade, que, na prática, significa menos tempo útil com maior resolução que as 16 consultas/4 horas. A privação do sono por plantões múltiplos, não sendo observadas jamais as leis do descan­so médico, e a submissão a condições sub-humanas de traba­lho levam a distúrbios da cognição com consequências no mínimo desagradáveis para o paciente.

A igualdade reside na biodiversidade. Somos diferentes, mas somos humanos. O poder do capital permite a opressão do homem. Mais que o capital, o mau uso que se faz do capital. Isto nutre a indiferença social. Quando pago impostos, minha consciência se turva à indignação social e me acomodo na indiferença emocional. "A cada nova invenção tecnológica, me sinto mais incompetente. Sinto-me excluído do clube de navegadores da internet". Entre os pobres, a solidariedade se manifesta na dor, e a tragédia é um estímulo à solidariedade coletiva. Como se sentir solidário se cada novo cliente é sempre uma necessidade social de não ter como comprar remédio, voltar para casa ou mesmo comer? Como tratar adequadamente situações crônicas -diabetes, hipertensão ou as duas associadas - se a renda pessoal, após anos de contribuição, não permite a compra dos medicamentos? Cada vez mais, o sistema torna ricos mais ricos e pobres mais miseráveis, em nome da ordem social. O desemprego e o subemprego são o exílio social. Na aparente paz do consultório, ocorrem situações extremamente dramáticas, que não se fazem presentes em nenhum outro campo de atividades humanas em tempo de paz: exposição íntima à dor e ao sofrimento, ao processo de adoecer, ao corpo do outro, à emoção do outro, à morte e ao morrer.

Vivencia-se a impotência diante da falência do sistema (fazer e não fazer, ou saber fazer e não poder) e diante do processo da vida-morte. Experiencia-se a intimidade com pacientes vitimados, egoístas, agressivos, reivindicadores, autodestrutivos, deprimidos, etc. Sofre-se com as carências humanas, com o medo, o desespero, o pânico. Se é exortado aos milagres, às curas impossíveis, à resolução rápida. Projeta­se na figura do médico raiva, hostilidade, a culpa do sistema, bem como o endeusamento, a idealização e a dependência. Confortamo-nos com expectativas sociais de comportamento idealizado, domínio de habilidades e poderes transcendentes do humano.

Solicitam-nos posicionamentos éticos, morais, sexuais, para os quais o profissional sente-se inseguro, ou mesmo incapaz, por não ter embasamento anterior.

EXTERIORIZAÇÃO DA INADAPTAÇÃO

A sobrevivência a esse quadro após seis anos de graduação e, no mínimo, dois anos de pós-graduação significa ter resistido a oito anos de ambiência ansiogênica, quando raros saem incólumes. Um dos comportamentos é a impessoalidade, a anestesia emocional que garante impermeabilidade às emoções do paciente ou, no sentido inverso, às do profissional. É frequente a desvalorização afetiva da relação familiar por priorização de plantões, feriados e visitas de final de semana.

Ocorre a racionalização que sustenta fantasias de onipotência, como não tirar férias, levar a família, mas continuar trabalhando, etc. O isolamento social, iniciado na graduação e potencializado na residência, faz com que médicos se relacionem com médicos e que, nas raras ocasiões sociais que se per­mitem, o assunto discutido seja apenas medicina. Esses isolamentos mantêm a fantasia, para alguns médicos, de que são insubstituíveis e necessários. Não admitem que seus pacientes vivam sem eles. Competem estatisticamente com colegas, submetem a chantagens afetivas seus pacientes, exigindo fidelidade.

A vulnerabilidade e a impotência diante da vida os levam ao uso de termos depreciativos. Em outras ocasiões, a ironia, o sadismo e mesmo o humor negro revelam a inadaptação do profissional. Os médicos mostram sua inadaptação quando se automedicam e a seus familiares, impondo-se além de sua especialidade e competência, insubmissos à necessidade de se despirem da atitude messiânica todo-poderosa em prol da posição humilde de reconhecer sua condição de doente, necessitando de ajuda.

A EDUCAÇÃO HUMANISTA NA ESCOLA MÉDICA

A educação é um misto de atividades que se caracteriza fundamentalmente por uma preocupação, por uma finalidade a ser atingida. Então, é a reflexão filosófica sobre a educação que dá o tom à pedagogia, garantindo-lhe a compreensão dos valo res que hoje direcionam a prática educacional e que deverão orientá-la para o futuro. Assim, não há como ter uma proposta pedagógica sem fundamentos e proposições filosóficas.

Quem é o educando, o que deve ser, qual o seu papel no mundo; o que é a sociedade, o que pretende; qual deve ser a finalidade da ação pedagógica - estes são alguns problemas que emergem da ação pedagógica dos povos para a reflexão filosófica, no sentido de que esta estabeleça pressupostos para aquela.

Quem não pensa é pensado por outros! A humanização do processo ensino-aprendizagem deve ser vista como um dos imperativos do nosso tempo.

De imediato, tal consideração parece controvertida e des­necessária. Humanizar o ensino-aprendizagem? Mas o processo não envolve uma relação humana por excelência, a relação professor-aluno? Não é a educação o setor do conhecimento e da atividade que se volta para o desenvolvimento do homem e da sociedade? Mas o que se observa em nossas escolas é a ênfase da dimensão intelectual ou cognitiva, em detrimento quase total das dimensões emocional e social que integram a totalidade da pessoa humana.

Assim pressuposta a natureza humana, seguem-se como finalidades e objetivos educacionais o desenvolvimento conjunto e integrado da pessoa toda, de sua capacidade intelectual, assim como de sua sensibilidade pessoal e social. Centralizam-se, então, os objetivos em habilidades do pensamento - como a de solucionar problemas - e, ao mesmo tempo, no desenvolvimento de sistema e de valores, na formação de atitudes, interesses e julgamentos. O enfoque humanístico, integrando cognição e afetividade, enfatiza novas e produtivas formas educacionais, desde a montagem do currículo até a avaliação do ensino-aprendizagem. Toma evidente, nesse sentido, que a aquisição e a assimilação do conhecimento são relevantes, uma vez que apresentam um significado individual. Aprendizagens significativas ocorrem quando correspondem às necessidades básicas da pessoa. Que cada um analise, pesquise, assimile e aprenda. Aprender é educar. Educar é aprender.

Só a educação poderá libertar o homem para o controle de sua saúde. A melhor e mais eficiente de todas as modalidades de assistência é a educação, por ser a única de natureza preventiva. Não remedia os males sociais, evita-os.

COMO PASSAR DA REFLEXÃO À AÇÃO

A Educação Médica há de privilegiar o homem que se en­cerra no estudante de Medicina, de maneira a construí-lo para que a partir dele nasça um profissional não esquecido de suas origens humanas.

Ao planejarmos, precisamos estar atentos aos seguintes aspectos: 1) Crescimento do mundo nas dimensões onde está situada a comunidade escolar: suas possibilidades, recursos, limitações, problemas, etc.; 2) Conhecimento do aluno como ser conhecedor e que traz para a escola uma bagagem experiencial rica e marcante, que não pode ser ignorada na previsão do trabalho escolar a desenvolver; 3) Estabelecimento das relações conteúdos - objetivos, definindo-se o que trabalhar e com que finalidade; 4) Seleção e descrição de procedimentos, técnicas e atividades adequadas aos conteúdos de modo a tratá-los como algo próximo e que desafie os alunos para a vivência de processos mentais avançados. Por meio de uma metodologia dialética, que vai da síncrese à análise e desta à síntese, os aprendizes participam efetivamente da descoberta e da construção do saber; 5) Seleção e previsão de uso de recursos (do mundo, da comunidade, da escola, audiovisuais); 6) Decisões sobre meios a empregar para a avaliação do processo, com a finalidade de verificar a coerência interna das ações em sala aula. A avaliação deve ser vista como um meio e não como um fim, onde todos os elementos têm oportunidades de julgar a si e aos seus companheiros de jornada, corrigindo desvios, preenchendo lacunas, refazendo caminhos, replanejando ações.

A qualidade do ensino depende não somente da qualidade das informações, mas também do que o aluno é capaz de fazer de posse delas - refletir sobre elas, reelaborá-las e utilizá-las com adequação, desenvolvendo permanentemente o espírito de busca e a curiosidade intelectual. Não há um ensino apenas cognitivo, ou afetivo, ou social. Não há uma disciplina que ensine somente valores e atividades. Todo ensino supõe diálogo, comunicação, cognição e afetividade.

Precisamos discutir e avaliar nosso processo pedagógico continuamente. Medicina é ciência e arte. Educar também é ciência e arte.

Sugerimos, ainda, outras medidas educacionais profiláticas da desumanização do aluno e/ou profissional de Medicina: 1) Organização de debates (na graduação e na pós-graduação) com mesa-redonda motivadora e participação da plateia sobre temas como o desejo; o amor; as sociopatias; a relação médico-paciente; a relação pais e filhos; o casamento; o médico como paciente; o paciente impaciente; a morte, a ilusão da impotência; a vida e o viver; o cadáver; a matéria; o coração; ideias suicidas; a depressão; a emoção; o mito; a ciência e a fé; a ciência e a arte; arte e fé; 2) Identificação, análise e modificação das insanidades institucionais e/ ou irracionalidades gerenciais de nosso sistema de formação e especialização médica (por exemplo: plantões extensos, cargas horárias de atividades, etc.); 3) Inclusão da dimensão de saúde mental e análise psicológica na formação do estudante de Medicina. Estratégias podem ser organizadas para permitir a discussão de temas como aptidão; motivação corri a profissão; idealização do papel do médico e da Medicina; discussão das vivências experienciadas enquanto estudante; relações inter-humanas; 4) Propiciação de condições de expressão corporal, verbalização, ritmo, harmonia, por meio de grupos de expressão teatral, coral, oficinas de escultura, pintura, texto, poesias; 5) Fortalecimento da disciplina de Psicologia Médica, ação de equipe interdisciplinar; 6) Implantação de Serviço de Apoio ao Educando com abordagem social, psicológica, psicopedagógica, psiquiátrica e humanista. Idealmente, este serviço deverá ser oferecido também a docentes.

Por meio de ações com grupos de discussão e terapêuticas, poder-se-ia:

  • Explicar deveres e responsabilidades do médico, mas dar igual destaque a seus direitos, prerrogativas e limites;

  • Realizaras figuras heroicas, místicas, da Medicina;

  • Discutir e refletir sobre a prática assistencial do estudante e do residente;

  • Discutir e desempenhar papéis quanto a ansiedades, temores, dificuldades ligadas ao exercício profissional;

  • Discutir e reavaliar o real desempenho dos chamados grupos de Ética, infecção e condições de trabalho, de atuação hospitalar;

  • Estimular a identificação real das condições em que se desenvolve o trabalho de alunos e residentes;

  • Para buscar uma conscientização, discutir direitos e rei­vindicações trabalhistas, fazendo um paralelo entre eles e o escamoteamento de riscos a que o profissional se expõe (por exemplo, pagamento de insalubridade e manutenção de riscos de contaminação desnecessários).

Finalmente, enumeramos outras ações educacionais fundamentais: 1) Interdisciplinaridade - organização e locação de equipes interdisciplinares, no ensino e na assistência, que possam discutir Medicina sob diferentes óticas, de forma harmônica, integrada, e que possam discutir doentes de uma mesma doença de forma a transmitir vivências; 2) Interconsulta - criação de serviços de interconsultas em hospitais gerais (consultoria psiquiátrica e psicológica), o que significa um ganho real e qualitativo na assistência médica e melhoria no nível de execução da tarefa médica, com diminuição das determinantes ansiogênicas, como confusão mental, associada ou não a drogas, fármacos, patologias orgânicas, pacientes deprimidos, autodestrutivos, com ideias suicidas, etc., que serão encaminhados à interconsulta.

Quem busca o bem vive pelo ideal de servir. Que a evolu­ção interior em cada um não obstaculize o desejo crescente de aumentar essa experiência íntima. Procurem sempre ultrapassar os conceitos de quantidade em favor dos de qualidade. Quando o homem encontrar seu ponto de equilíbrio; quando aceitar suas limitações e as do seu semelhante; quando tolerar a si mesmo e a seu próximo, é porque terá encontrado uma profunda consciência de paz interior, uma exuberante vivência de plenitude interna, em que quanto maior o seu ser, menor é o seu desejo de ter.

O homem que se libertou pelo conhecimento de si mesmo é invulnerável, uma vez que ninguém lhe pode infligir perda alguma, pois ninguém pode obrigá-lo a deixar de ser o que é.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    PESSOTTI, I. A Formação humanística do médico. Medicina, Ribeirão Preto, v. 29, n. 4, p. 440-448, out./dez. 1996.
  • 2
    MIRANDA, P. S. C., QUEIROZ, E. A. Pensamento suicida e tentativa de suicídio entre estudantes de medicina. Revista ABP-APAL, São Paulo, v. 13, n. 4, p. 157 - 160, nov./ dez. 1981.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 1998
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