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O Vídeo Educativo Produzido pelo Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde/UFRJ: uma Visão Critica

Resumo:

A partir da reconstrução histórica da produção de vídeos educativos no Nutes/CCS/UFRJ e de sua articulação com diferentes correntes educacionais e com o contexto sócio-econômico maior, busca-se um entendimento das ideologias subjacentes ao trabalho do núcleo ao longo de seus 20 anos de existência.

Palavras-chave:
Vídeo educativo; Tecnologia educacional; Educação em saúde

Summary:

Based on a historical review of Nutes/CCS/UFRJ e educational video production, and of its connection with the major educational trends and the larger social context, this article attempts to identify the underlying ideologies of this educational technology center throughout its’ 25 years of existence.

Keywords:
Educational video; Educational technology; Education in health

INTRODUÇÃO

A produção de vídeos tem ocupado um lugar privilegiado no trabalho do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes) desde a sua criação, em 1972, até o presente momento. À medida que se analisa essa produção, levando em conta elementos de sua forma e conteúdo, desvenda-se a dinâmica que historicamente tem caracterizado o papel do núcleo na educação brasileira. O presente trabalho está referenciado pelos relatórios anuais do Nutes e por entrevistas de docentes e técnicos que, ao longo dos anos, vêm influindo nos rumos que toma o trabalho desse núcleo.

NUTES: CRIAÇÃO E OS PRIMEIROS DEZ ANOS

Em 1972, o Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apresentou projeto ao Ministério do Planejamento (lpca), solicitando recursos para a aplicação de tecnologia educacional visando à melhoria do Ensino de Biofísica e Fisiologia dessa instituição. O interesse imediatamente expresso por outras unidades do Centro de Ciências da Saúde (CCS)/UFRJ na melhoria do ensino das ciências da saúde resultou na expansão da abrangência do projeto. Assim, em julho de 1972, acrescentou-se um novo órgão de caráter suplemcntar ao Centro de Ciências da Saúde (CCS): O Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes).

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPS), reconhecendo a importância do projeto, assinou um acordo com o governo brasileiro, representado pela UFRJ e os ministérios do Planejamento e da Saúde, estabelecendo, em setembro de 1972, o Centro Latino-Americano de Tecnologia Educacional para a Saúde (Clates), sediado no Nutes, com o objetivo de viabilizar a difusão das tecnologias criadas para a América Latina.

Os objetivos traçados para o Nutes/Clates, quando de sua criação, referem-se principalmente a: "preparo pedagógico e adestramento no uso de novos materiais instrucionais, inclusive o computador, (...) organizar cursos em instrução programada e preparar programas instrucionais audiovisuais, (...) delinear projetos de cursos de Ciências Biomédicas visando à individualização do processo educacional"55. LOBO, L. C. G. Implantação do Núcleo de Tecnologia Educacional para Saúde e do Centro Latino Americano de Tecnologia Educacional para a Saúde. Rio de Janeiro, 1970 (mimeo). e à prestação de assessoria pedagógica no planejamento de cursos. Sua equipe foi formada por pessoal das áreas de Saúde, Psicologia, Educação, Sociologia, Computação, Biblíoteconomia e por profissionais da área de produção de audiovisuais.

Conforme lembrado por Sigaud88. SIGAUD, M. A. O ensino no ciclo básico. Uma abordagem integrada. Trabalho apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Fisiologia de Sociedade Brasileira de Fisiologia, realizado no Rio de Janeiro, de 4 a 7 de abril de 1982., no início de sua existência, o trabalho do Nutes voltou-se essencialmente para o atendimento das necessidades relativas aos cursos das diferentes unidades do CCS. Assim, dedica-se a atividades como a elaboração de projetos de cursos de Ciências Biomédicas, visando à individualização do processo educacional e ao desenvolvimento de programas (softwares) que possibilitem o emprego de computador no ensino das Ciências Biomédicas. A partir de 1973, passa a prestar assessoria numa reforma curricular que se inicia nesse mesmo ano, tendo em vista integrar as disciplinas do ciclo básico do Centro de Ciências da Saúde (Anatomia, Fisiologia, Histologia, etc.) em blocos sistêmicos (sistema nervoso, cardiorrespiratório, endócrino, etc.) segundo o modelo clássico da Western Reserve University. Os vídeos eram elaborados como parte da assessoria dada aos cursos, servindo como instrumentos para ilustrar as aulas. Desta forma, em 1976, quando o Nutes completa a instalação do setor de produção audiovisual, produz uma série de vídeos para serem trabalhados no ciclo básico. Explorava-se, desse modo, o potencial desse recurso de usar cores e movimentos para aumentar a eficiência do ensino. Além disso, os vídeos focalizavam habilidades importantes para o profissional de saúde, tais como a aplicação de uma injeção intradérmica, a arrumação do leito e a tomada de pressão arterial.

Data de 1976 a instalação de sistema de circuito fechado de TV em cores no Centro de Ciências da Saúde, permitindo a projeção de material audiovisual em salas de aula e em cabinas na biblioteca. A partir daí, os programas passaram a ser requisitados por um sistema de telefone interno, que ligava os lugares onde os monitores estavam instalados ao centro de distribuição localizado no setor de produção audiovisual. Esse sistema facilitou a ampla utilização dos vídeos, no correr dos anos, pelos alunos e professores do CCS.

Na época, os roteiros dos vídeos e sua direção corriam por conta da própria equipe do Nutes, assessorada por especialistas de conteúdo. A direção era assumida ora pelo médico assessor, ora por outro membro da equipe, e os atores eram os próprios alunos, membros da equipe do Nutes e professores do curso de Medicina. A vinculação do Nutes ao Centro Latino­Americano de Tecnologia Educacional (Clates) proporcionava ampla divulgação e distribuição dos materiais instrucionais produzidos entre os países latino-americanos, a partir de convênios firmados principalmente com a Organização Pan­Americana de Saúde (OPS), dentro de sua política de transferência de conhecimentos e experiências para professores de outras universidades.

Ainda com o objetivo de contribuir para o preparo pedagógico de docentes, o Nutes passa a desenvolver modelos que utilizam a estratégia de aprendizagem para o domínio, para o treinamento didático de professores do Instituto de Ciências Básicas da UFRJ, conforme descrito por Fontanive22. FONTANIVE, N. Modelo de Aprendizagem para o domínio de Benjamim Bloom. Uma experiência de utilização. Tecnologia Educacional, Associação Brasileira de Tecnologia Educacional -ABT, julho/ago 1980, n° 35.. Esses modelos foram posteriormente ampliados para o treinamento de professores em geral, como programas de extensão universitária.

A partir de 1974, o Nutes obtém know-how e passa a utilizar a tecnologia de treinamento em larga escala, que se fundamenta principalmente na análise experimental do comportamento, para desenvolver vários projetos regionais para a América Latina, patrocinados pela OPS, envolvendo a produção de módulos instrucionais além de treinamento de pessoal em nível de gerência de recursos humanos. Entre esses projetos, merece destaque o de Tecnologia Educacional para a Enfermagem, que proporcionou a implantação de dez subcentros distribuídos por sete países da América Latina. Constitui também atividade prioritária do Nutes, na década de 70, a assessoria para implantação de modelo de auto-instrução no ciclo básico. Assim é que, em 1976, todos os alunos do segundo e terceiro semestres do ciclo básico eram submetidos à auto-instrução. Outra atividade do núcleo na época era o desenvolvimento de software que possibilitasse o uso do computador como coadjuvante na aprendizagem (Computer Assisted Instruction - CAI) e a avaliação formativa dos alunos, a partir de programas que utilizavam a linguagem Mumps. Para se ter idéia da abrangência desse trabalho, em 1972 o Nutes colocava 13 terminais de computador, 12 horas por dia, à disposição dos 617 alunos do CCS. Houve transferência dessa tecnologia para várias instituições educacionais na América Latina, a última tendo ocorrido cm 1985, em projetos de cooperação técnica com Cuba. Deve-se notar que tanto os cursos de treinamento quanto os materiais desenvolvidos nessa época têm por base modelos instrucionais norte-americanos. Por exemplo, o modelo auto-instrucional introduzido no ciclo básico do CCS foi baseado na experiência da Ohio State University of Medicine. E, no decorrer da década de 80, o Nutes realizou a dublagem de inúmeros vídeos educacionais norte-americanos, que passaram a ser utilizados no ciclo básico do CCS.

Não se pode entender o trabalho do Nutes na época e sua produção de vídeos sem se voltar aos fundamentos que norteavam as iniciativas que, no início dos anos 70, dirigiam-se ao desenvolvimento da Tecnologia Educacional no Brasil. É incontestável a influência do pensamento positivista nas práticas educacionais então prevalentes. Esse paradigma apresenta uma visão tecnocrática do conhecimento e da ciência, uma vez que, como sustentado por Giroux44. GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis, Vozes, 1983., destaca a ciência da questão dos fins e da ética, apresenta os fatos desvinculados dos valores, coloca a objetividade como critério que solapa a crítica. O modelo das ciências naturais, transposto para a educação, resulta em sua “cientifização”: critérios de controle, generalização, eficiência e produtividade adquirem status de fins. Estes critérios se coadunam perfeitamente na concepção científica da educação encarnada pelo modelo de Tecnologia Educacional que chega ao Brasil, importado dos Estados Unidos, nos anos 60: o controle das condições do ensino o: hipertrofiado por meio da ênfase no planejamento sistêmico e no uso de recursos instrucionais. Assim, entende-se Tecnologia corno uma forma sistemática de planejar, implementar e avaliar o processo educativo, incorporando ao mesmo recursos tecnológicos. Trata-se de tornar mais eficientes as experiências educativas e de difundi-las a um maior número de pessoas, reduzindo os gastos. Os meios tecnológicos, assim como o planejamento racional da educação, constituem os recursos pretensamente neutros utilizados para este fim, embasados nos conhecimentos da psicologia experimental, da teoria de sistemas e de comunicação, desvinculados das circunstâncias históricas que os produziram, sem atingir os problemas essenciais da educação.

Os vídeos produzidos nesse período voltam-se basicamente à transmissão de conceitos (em anatomia, fisiologia, histologia, etc.), dentro de uma perspectiva de objetividade dos fotos, excluindo quaisquer questões de ordem ética ou valorativa, como em vídeo no qual crianças são usadas num experimento longitudinal, exibidas como se fossem objetos. Há ainda os audiovisuais que têm por objetivo o desenvolvimento de habilidades técnicas, mostrando de forma linear “como fazer”, sendo exemplos do "modelo bancário" da educação, assim chamado por Freire33. FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973. (1973): concebe-se o cérebro do aprendiz como um recipiente vazio, mero depósito de conhecimentos transmitidos de forma não-problematizada por aquele que detém o conhecimento. A tônica dos vídeos produzidos na época é coerente também com o modelo flexneriano prevalente na formação e prática médica, em que a cura se sobrepõe à prevenção, o individual ao coletivo, o biológico é desvinculado das indeterminações sociais, políticas e culturais.

Não resta dúvida de que o modelo "neutro" e universal não se manifesta apenas nas práticas então prevalentes no Nutes, mas permeia, ora mais ora menos acentuadamente, as teorias e práticas prevalentes no contexto educacional brasileiro. Naturalmente, esse modelo não se manifesta de forma monolítica, havendo também, no caso do trabalho então desenvolvido no núcleo, posturas mais progressistas, que se manifestam em algumas práticas de assessoria, de planejamento e execução de aulas, de produção de materiais educativos. Entretanto, tais posturas não ganharam visibilidade, sendo possível identificar o tecnicismo- entendido como a aplicação de modelos que hipertrofiam o lugar da técnica no campo pedagógico- como o modelo prevalente na época. Trata-se de uma época marcada pelo regime de exceções, que, mesmo quando cede lugar à transição democrática, deixa marcas que têm reflexos nas concepções teóricas e nas práticas das instituições escolares. Esse modelo, ao despolitizar a educação, excluindo da pauta as influências dos determinantes sócio­econômico-políticos, é funcional para a manutenção do sistema político, com restrição às liberdades democráticas, que desde 1964 imperava no País. Pode-se dizer que, de maneira geral, a atuação do Nutes não constituiu, na época, espaço de resistência importante à ordem estabelecida.

O reconhecimento do papel ampliado do profissional de saúde, incluindo sua capacidade de se relacionar com o cliente, se evidencia cm algumas produções do Nutes a partir da segunda metade da década de 70. Nessas produções, resgata-se como parte das preocupações da atenção médica a subjetividade do homem, encamada num profissional da saúde que expressa e reconhece sentimentos. Trata-se de romper com a divisão estabelecida entre o físico e o emocional, com contornos tão nítidos e ainda hoje prevalentes na formação e nas práticas de saúde. Deve-se lembrar que, ainda na década de 70, chega ao Brasil uma forte influência da abordagem humanista nos meios educacionais, que se faz sentir, por exemplo, no psicológico incorporado ao conceito saúde/doença. Sob a influência dos movimentos de medicina integral e comunitária, inicia-se também, na época, a produção de vídeos de caráter preventivo, mas a realidade ainda é vista de forma fragmentada, uma vez que as determinações econômico-sociais não são contemplados.

ANOS 80: NOVAS BASES CONCEITUAIS

No início dos anos 80, alguns acontecimentos exercem influência importante nas orientações do Nutes. Em 1980, o núcleo atravessa série crise financeira, reflexo em grande parte da crise econômica do País, o que acarreta, inclusive, a deterioração de suas instalações. Além disso, em 1981, seu diretor-fundador pede exoneração e em 1983 ocorre o término do Clates na UFRJ. A atuação do Nutes na América Latina, principalmente por meio de cursos de treinamento, diminui consideravelmente. Suas atividades docentes afastam-se cada vez mais da extensão e concentram-se nos cursos de Pedagogia Médica e Didática Especial, que já vinham sendo ministrados, desde 1979, para mestrandos do Centro de Ciências da Saúde, bem como no curso de especialização de Educação na área de Saúde, que, a partir de 1980, o Nutes passa a oferecer anualmente a profissionais de saúde. A assessoria a docentes do CCS, que já vinha diminuindo no final dos anos 70, perde importância em seu trabalho.

Conforme exposto por Souza99. SOUZA, A. A Tecnologia Educacional na área da Saúde. Tecnologia Educacional, ABT., ano XII n° 54, set-out 1983., é na década de 80 que, aos poucos, a crítica a uma visão reducionista da Tecnologia Educacional, que afirma a autonomia da dimensão técnica do ensino, se instala no Nutes, que procura redefinir sua identidade. Esse questionamento é parte de um movimento maior, incluindo a crítica aos modelos importados, que se instala no País no fim dos anos 70 à medida que acontece a abertura política. A influência dos teóricos neomarxistas se faz sentir, revestindo de um cunho político certas concepções e práticas educativas: a escola passa a ser vista como "aparelho reprodutor da ideologia dominante", e ganha hegemonia a seguir a posição histórico-crítica66. SEVERINO, A. J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986..

A incorporação de propostas de reforma do sistema de saúde e educacional, como Integração Docente Assistencial (IDA) e Ações Integradas de Saúde (AIS), às atividades do núcleo, principalmente por meio dos projetos de treinamento que, a partir de 1983, o núcleo desenvolve para o Programa de Aperfeiçoamento de Pessoal na área de Saúde (PAPPS), com certeza também influi para que reflexões sobre a política da Reforma Sanitária perpassem seu trabalho. Isto não significa, entretanto, que a partir daí o Nutes incorpore ao seu trabalho uma linha de atuação consistentemente crítica, comprometida com transformações sociais. Em primeiro lugar, deve-se lembrar que tais mudanças pressupõem modificações em valores e na própria concepção que se tem do conhecimento, o que é dificultado, entre outros fatores, pelo forte enraizamento em bases positivistas do trabalho do Nutes. Encontrar espaço para um trabalho comprometido no sistema capitalista em que se atua pressupõe que o núcleo possua clareza em seu posicionamento ideológico e que consiga se engajar em projetos que, ao menos, não sejam antagônicos às suas orientações. Ao se analisar o tipo de atividade desenvolvida pelo Nutes, é importante lembrar que, em sua história, conforme lembrado por Sigaud77. SIGAUD, M. A. Educational Technology in Brazil. A transactional analysis of Nutes/Clates (mimeo, 1980)., muitas vezes o núcleo teve que trabalhar em projetos alheios a seus objetivos, devido a sua dependência de recursos externos para financiamento. É o caso dos treinamentos que ministrou em 1979, em convênio com o então Instituto Nacional de Medicina e Previdência Social (Inamps), para pessoal de primeiro e segundo graus, dos 30 módulos instrucionais que desenvolveu em 1983 para capacitação de recursos humanos da Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (Caem) e de vários conjuntos de eslaides­som produzidos em 1985 para treinamento de operadores de sistemas de abastecimento de água.

Um importante espaço que o Nutes vem ganhando nos últimos anos refere-se à natureza de sua inserção em projetos. Em sua origem, coerentemente com a descontextualização política e social vigente nas práticas educativas, o núcleo, na maioria dos casos, contribuía com a técnica para viabilizar idéias desenvolvidas por outros: individualizava o ensino, “treinava” docente, desenvolvia vídeos para o ciclo básico do CCS. Atualmente, tenta-se reverter esse quadro, já que se tem como preocupação central participar em definições importantes dos projetos, desde a fase de sua concepção, e imprimir aos mesmos uma visão de educação e saúde norteada pelos princípios de equidade e transformação social. O núcleo busca, hoje, um entendimento mais amplo da problemática educacional e de saúde, em que determinantes sociais, políticos e econômicos ocupam papel central, e é esta a perspectiva que orienta sua participação atual em projetos. A dualidade teoria/prática que perpassa as experiências educacionais - a qual na área de saúde é refletida também no distanciamento ensino/trabalho -, bem como a dicotomia que se vem tradicionalmente estabelecendo entre prevenção/cura ocupam lugar privilegiado nas reflexões da equipe, o que já se tenta traduzir em sua atividade docente, em sua participação cm projetos e em sua produção de materiais. E, o que é muito importante, cada vez mais se configura em seu trabalho um processo de autocrítica e se criam condições para fazer da avaliação um componente de seu trabalho, o que se percebe como essencial para que se engaje no processo de criação de conhecimentos, cuja referência passa a ser a realidade nacional.

A produção de vídeos mais uma vez é espelho dessa orientação modificada. Pode-se dizer que o objetivo principal desses vídeos é a conscientização dos profissionais de saúde para o entendimento dos determinantes de seu trabalho, seja no atendimento à população, seja como docentes, e ao mesmo tempo para o potencial que lhes é dado, nestas funções, de transformar a realidade. Ganha papel central o homem, que sofre determinações sociais múltiplas e influi em mudanças de uma realidade que é vista como multidimensional e complexa, com aspectos que agem uns sobre os outros cm forma de contraposição e conflito. O conceito de saúde/doença, nessa perspectiva, é modificado, passando a ser entendido como resultante também de condições de vida, conforme definição da VIII Conferência Nacional de Saúde.

A realidade complexa e conflituosa do sistema de saúde é constituída a partir da voz que se dá aos diversos grupos que, de uma forma ou de outra, se relacionam no sistema: assim é que são privilegiados depoimentos de pacientes sobre o atendimento que recebem, bem como da equipe de saúde e de responsáveis pela política e administração do sistema. Em alguns desses vídeos, os argumentos são construídos a partir unicamente de depoimentos, enquanto em outros a ficção é utilizada para veicular as mensagens, às vezes com depoimentos intercalando o enredo. Elementos de contradição e de transformação perpassam a estrutura e o conteúdo desses materiais. Conhecimentos básicos sobre os problemas de saúde abordados também são desenvolvidos, ocupando, entretanto, papel secundário em relação ao objetivo maior de sensibilização. Alguns desses vídeos foram realizados dentro de um Programa de integração Ensino-Serviço, a partir de 1987, nas áreas de tuberculose, hanseníase, câncer e hipertensão arterial, em convênio com o Ministério da Saúde. Livros-texto e conjuntos de eslaides-som também foram desenvolvidos nesse programa, num processo de trabalho coletivo, tendo em vista contribuir para a melhoria do ensino dessas patologias nos cursos de graduação em Medicina, todos tendo como eixo a integração ensino-trabalho. Nessa mesma linha, foi produzido em 1988 um vídeo, em convênio com o Inamps, dentro do projeto de Assistência Perinatal, que retrata a situação do atendimento a gestantes a partir de diversos depoimentos. Um programa de vídeo, com mensagem também muito forte, produzido em 1986 e que retrata a visão ampliada do Nutes sobre os problemas de saúde e educação, diz respeito à questão da reforma agrária.

Por serem materiais que problematizam a realidade, deixando questões importantes em aberto, e por se reconhecer que os fatos e elementos críticos neles contidos necessitam ser interpretados, considera-se essencial que discussões sigam sua apresentação. A desestabilização da audiência - profissionais da saúde/alunos de mestrado, profissionais da saúde/docentes universitários - frente à apresentação dos vídeos, com o respectivo "acordar" para a problemática maior do sistema de saúde, constitui indício de que um dos objetivos principais desses vídeos vem sendo cumprido, à medida que se criam espaços para mudanças dentro dos condicionamentos do sistema.

CONCLUSÃO

O resgate da história da Tecnologia Educacional voltada à área de saúde no Brasil passa necessariamente pelo conhecimento do trabalho do Nutes, dado o pioneirismo desse núcleo na área e o espaço que ocupou no decorrer dos anos. Esse fato, acrescido da grande demanda dos materiais que o núcleo tem produzido e dos inúmeros cursos que tem ministrado voltados à formação de profissionais da saúde, atesta a importância de proceder a uma análise cuidadosa de todo o trabalho realizado pelo Nutes.

É indiscutível a importância do know-how técnico desenvolvido pelo núcleo ao longo dos anos, por meio do empenho e competência das diferentes administrações e corpo docente-técnico-administrativo. É a solidez desta base que abre caminho para que hoje o núcleo possa perseguir o aperfeiçoamento da técnica inserido num questionamento constante sobre a finalidade social e política dos processos de planejamento, de produção de materiais, etc. em que se engaja. Trata-se, em outras palavras, de pensar e agir dentro de uma concepção de Tecnologia Educacional - processos e produtos - identificada sempre com a indagação dos fins que se quer atingir, levando-se em conta, como exposto por Candau11. CANDAU, V. Tecnologia Educacional e mudança social. Mimeo. UFRJ/RJ, 1980., a relevância de seu trabalho para a construção da humanidade.

O equilíbrio almejado em contraposição a hipertrofia da dimensão metodológica na teoria e prática educativas pressupõe o desenvolvimento dos conteúdos de forma contextualizada e crítica, com as técnicas utilizadas a serviço desta proposta. A integração dos três componentes-conteúdo, técnica e contextualização política - passa a ser um desafio, dentro de um processo continuo de auto-reflexão e produç.io de conhecimentos.

O desenvolvimento de pesquisas na área de Tecnologia Educacional cm Saúde é, sem dúvida, um caminho necessário para alcançar tal propósito. No caso do vídeo educativo, reconhece-se a importância de uma invcstigação mais sistemática, sempre articulada com o reconhecimento de suas influências políticas, econômicas e sociais. Dentre as questões que já vêm sendo investigadas no núcleo, inseridas na área de Tecnologia Educacional que íntegra o programa de mestrado cm Educação cm Saúde recém-criado no Nutes, destacam-se: Como se constrói a intenção pedagógica dos vídeos educativos? Que propostas de educação e saúde estão por trás das mensagens veiculadas? O que é na verdade apreendido pela clientela a que se destinam? Como se dão as mediações feitas pelos professores e educandos no uso do recurso? Como se articulam as intenções pedagógicas e a expressão estética do vídeo?

Em outras palavras, considera-se que o Nutes hoje tem condições para se engajar num processo de produção de conhecimentos e de autocrítica que venha a contribuir na consolidação de um projeto mais crítico da educação em saúde, no qual a Tecnologia Educacional dê sua contribuição no sentido de legitimar uma educação brasileira contextualizada e comprometida com transformações sociais.

AGRADECIMENTO

A autora agradece aos colegas do Nutes as sugestões sobre o texto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • 1
    CANDAU, V. Tecnologia Educacional e mudança social. Mimeo. UFRJ/RJ, 1980.
  • 2
    FONTANIVE, N. Modelo de Aprendizagem para o domínio de Benjamim Bloom. Uma experiência de utilização. Tecnologia Educacional, Associação Brasileira de Tecnologia Educacional -ABT, julho/ago 1980, n° 35.
  • 3
    FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1973.
  • 4
    GIROUX, H. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis, Vozes, 1983.
  • 5
    LOBO, L. C. G. Implantação do Núcleo de Tecnologia Educacional para Saúde e do Centro Latino Americano de Tecnologia Educacional para a Saúde. Rio de Janeiro, 1970 (mimeo).
  • 6
    SEVERINO, A. J. Educação, ideologia e contra-ideologia. São Paulo: EPU, 1986.
  • 7
    SIGAUD, M. A. Educational Technology in Brazil. A transactional analysis of Nutes/Clates (mimeo, 1980).
  • 8
    SIGAUD, M. A. O ensino no ciclo básico. Uma abordagem integrada. Trabalho apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Fisiologia de Sociedade Brasileira de Fisiologia, realizado no Rio de Janeiro, de 4 a 7 de abril de 1982.
  • 9
    SOUZA, A. A Tecnologia Educacional na área da Saúde. Tecnologia Educacional, ABT., ano XII n° 54, set-out 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 1998
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