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Poetnografias: trieiros e vielas entre poéticas afro-ameríndias e a criação artística

RESUMO

Neste ensaio pretende-se revisitar os trieiros e vielas que conduziram às noções de poetnografia e campo vivido, como uma abordagem metodológica do trabalho de criação em artes da cena. No ato de revisitar, busca-se também observar os desdobramentos e fazer atualizações, bem como discutir os desafios conceituais e éticos que se impõem frente ao trabalho com poéticas afro-ameríndias, em uma perspectiva decolonial. A discussão é feita a partir da própria produção das autoras sobre o assunto, mas flerta com os Estudos da Performance. Apresenta-se, então, a pesquisa poetnográfica, não apenas como um resultado artístico, mas como um processo que revela alteridades, reforça ou problematiza identidades, constrói ou reconstrói imaginários, numa confluência indissociável entre arte, educação e política.

Palavras-chave:
Poetnografia; Campo Vivido; Dança; Poética Afro-Ameríndia

ABSTRACT

In this essay, we intend to revisit the trieiros and alleys that led to the notions of poetnography and the lived field, with a methodological approach towards the creative work in performing arts. In the act of revisiting, we also seek to observe the developments, update and discuss the conceptual and ethical challenges involved in the work with popular knowledge and Afro-Amerindian poetics form a decolonial perspective. The discussion is based on the authors' own production on the subject, but flirts with Performance Studies. A poetnographic research is presented so, not only as an artistic result, but as a process that reveals otherness, reinforces or problematizes identities, constructs or reconstructs imagery, in an inseparable confluence between art, education and politics.

Keywords:
Poetnography; Lived Field; Dance; Afro-Amerindian Poetics

RÉSUMÉ

Dans cet essai, nous entendons revisiter les trieiros et les traverses qui ont conduit aux notions de Ethnopoétique-graphie et de champ vécu, par la perspective d'approche méthodologique du travail de création dans les arts du spectacle. Dans cet acte de revisiter, nous cherchons à observer les développements et à faire des actualisations mais aussi 'à discuter les défis conceptuels et éthiques qui ´s'imposent du fait de la perspective décoloniale de ce travail de connaissance et de poétique afro-amérindiennes. La discussion est basée sur la propre production des auteurs concernant ce thème, mais flirte avec les études de performance. La recherche poétnographique est présentée, non seulement comme un résultat artistique, mais également comme unprocessus qui révèle des altérations, renforce ou problématise les identités, construit ou reconstruit l'imagerie, dans une confluence inséparable de l'art, l'éducation et la politique.

Mots-clés:
Ethnopoétique-Graphie; Champ Vécu; Danse; Poétiques Afro-Amérindiennes

Ouvir o Silêncio, Ver o Invisível

A sala tá cheia minha gente,

Como é que entro agora?

A sala tá cheia minha gente

Como é que entro agora?

Eu entro, minha gente eu entro

Com Deus e nossa senhora

Eu entro, minha gente eu entro

Com Deus e nossa senhora

(Canto Popular de Baião de Princesa, Maranhão, Domínio Público).

Ouvir o silêncio e ver o invisível poderia se tratar de alucinações, de perceber algo que não está realmente no local ou que não existe fisicamente. Embora alucinações, fantasias e delírios também interessem às artistas em seu ofício de criar outras realidades, não é esse o mote de interesse sobre o assunto. Ouvir o silêncio e ver o invisível aqui dizem respeito a uma espécie de acuidade, ou melhor, de reconhecer processos de silenciamento e invisibilidade. Tampouco se referem a dar voz a pobres e oprimidos, trata-se de dignar-se a reconhecer distintas identidades, quiçá alteridades, ouvir vozes dissonantes, ou que sussurram ao longe. Mas afinal, do que destoam essas vozes?

Falar sobre diferença, no contexto deste ensaio, implica, entre outras questões, em retomar e reafirmar o que Frantz Fanon (1968)FANON, Frantz. Os condenados da terra (1961). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. anunciou desde Os condenados da terra (1961) sobre a violência do processo colonial, que instaurou a ruptura do mundo na relação entre colonizadores e colonizados, em que os segundos foram reduzidos a uma massa anônima a ser explorada e expropriada. O pensamento e a voz do pensador martinicano Fanon chamam a atenção para a importância de se considerar o racismo como agente de desigualdades que operam nas distintas camadas da vida, inclusive na produção e validação de conhecimento, cultura, educação e nos padrões de corpo e de comportamento.

Algumas décadas mais adiante de Fanon, um outro corpo dissonante, o de uma mulher, interpela se Pode o subalterno falar? . Em 1985, a indiana Gayatri Chakravorty Spivak, ao narrar a história de uma indiana impedida de se autorrepresentar, por ser mulher e viúva, a autora aponta para o fato de que esta situação de marginalidade é mais arduamente imposta ao gênero feminino, posto que a "[...] mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir" (Spivak, 2010SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? (1985). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. [1985], p. 15).

É interessante pensar que o ato de se fazer ouvir implica invariavelmente na audiência, isto é, em uma escuta atenta, interessada e talvez silenciosa. Assim, ouvir o silêncio é primeiramente reconhecer a própria surdez. Ver o invisível é reconhecer a própria cegueira. As discussões de autores como Fanon e Spivak ajudam-nos a reconhecer essa surdez e cegueira não como deficiências individuais, mas como consequência do projeto da colonialidade, que, conforme Quijano (2005)QUIJANO. Aníbal. Coloniadade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americana. Buenos Aires: CLASCO, 2005. P. 107-130., surge com a modernidade e se diferencia do colonialismo, pois não se trata somente de um sistema de dominação política e de uma possível dependência, mas sim de um sistema de opressão mais amplo que fomenta relações desiguais, na imposição de uma classificação racial/étnica da população, que opera em dimensões materiais, subjetivas e cotidianas (Mota Neto, 2016MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016.).

Dito isso, podemos anunciar que o intuito do presente ensaio é relatar um pouco do que vimos e ouvimos por entre trieiros e vielas que permitiram desdobrar o nosso eu a partir de encontros e reencontros com poéticas afro-ameríndias. A ideia de desdobrar o eu, nos é muito cara, porque aparece como alternativa para borrar as fronteiras entre o eu e o outro construídas a partir do paradigma colonial - o que não é Eu[ropeu], é o Outro, como ratifica Spivak (2010 [1985], p. 45-46)SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? (1985). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010..

É impossível para os intelectuais franceses contemporâneos imaginar o tipo de Poder e Desejo que habitaria o sujeito inominado do Outro da Europa. Não é apenas o fato de que tudo o que leem ― crítico ou não ― esteja aprisionado no debate sobre a produção desse Outro, apoiando ou criticando a constituição do Sujeito como sendo a Europa.

O lugar que ocupamos na condição de docentes do ensino superior - a universidade - é, por vezes, olhado como um lugar de poder que reproduz hegemonias epistemológicas. E nossos enfrentamentos diários não nos permitem destituir por completo essa impressão. Todavia, é importante reconhecer (e defender) a universidade pública como um espaço plural de criticidade e de resistência, de formação e de enfrentamentos políticos. Assim, falamos aqui do nosso eu como acadêmicas, trabalhadoras da educação, artistas, mas também como mulheres, mães, latino-americanas, uma com fortes traços da descendência africana banto e outra da indígena tupi-guarani, com trajetórias de vida, geográficas e acadêmicas distintas, mas ambas interessadas em desdobrar o seu eu, a partir do encontro com poéticas afroameríndias.

Manifestações tradicionais expressivas, performances culturais, performances ritualísticas, manifestações de encruzilhadas, são algumas das categorias que eventualmente utilizamos na busca por alternativas para evitar o uso excessivo do termo cultura popular, tanto por compreendê-lo como um conceito escorregadio frente às demandas e fluxos sociais da contemporaneidade, como pelo interesse em buscar compreensões que se aproximem e caracterizem mais e melhor a abordagem artística. E também, atentas ao que ponderou o pesquisador Jorge das Graças Veloso (2016)VELOSO, Jorge das Graças. Paradoxos e Paradigmas: a etnocenologia, os saberes e seus léxicos. Repertório, Salvador, a. 19, n. 26, p. 88-94, 2016.:

Para as narrativas da alteridade, os saberes e fazeres culturais, na sua pluralidade, são reconhecidos por suas falas internas, formuladas pelos próprios fazedores. Neste universo, onde reconheço que se localizam as proposições da Etnocenologia, para as artes cênicas, da Etnomusicologia, para a música, e da Cultura Visual, para as Artes Visuais, cada prática se constitui por uma lógica interna e por elementos constitutivos singulares a cada uma delas. Aqui, como não se formula um pensamento generalizante, cada manifestação é estudada a partir de seu interior e do que compreendem que estão fazendo os seus fazedores. [...] E as referências teóricas são todas as que possibilitam os diálogos a partir desse deslocamento do lugar de fala, com uma aproximação maior de pensadores de outros centros que não os europeus. Finalmente, me estabelecendo nesse último grupo, de reconhecimento do direito que o outro tem de exercer sua própria narrativa, levanto a questão da utilização de léxicos próprios a cada fazer e a cada grupo de fazedores. Inegavelmente, toda e qualquer manifestação expressiva humana, seja ela tradicional (das antigas ou das novas tradições) ou não, tem um léxico próprio, que é capaz de dar conta de tudo que lhe diz respeito. Não estou, com isto, negando o direito que seus fazedores têm de incorporar definições de outras áreas. O que estou afirmando é: o que melhor define o saber e o fazer de cada grupo cultural é o léxico adotado por eles mesmos (Veloso, 2016VELOSO, Jorge das Graças. Paradoxos e Paradigmas: a etnocenologia, os saberes e seus léxicos. Repertório, Salvador, a. 19, n. 26, p. 88-94, 2016., p. 92-93).

Em relação à crítica à terminologia cultura popular, soma-se a crítica de mascarar a importante contribuição/participação/autoria da população afrodescendente e indígena nesses processos culturais, aproximando-se de um falido discurso de democracia racial. A despeito dessa preocupação, não são raras as vezes que utilizamos a terminologia cultura popular, ou, ainda, culturas populares, como alternativa para nos referirmos a um conjunto de práticas que se constituem como experiências contextuais, pautadas pela oralidade, memória, ancestralidade, afetividade, espiritualidade, vividas no cotidiano ou nas práticas ritualísticas de diferentes grupos identitários que se reconhecem entre si como comunidade. Isso por que, apesar de nossas posturas e trajetórias de enfrentamento ao racismo, em todas as suas formas, parecia-nos que faltavam elementos para sustentar conceitos alternativos que dessem conta de nosso interesse tanto por manifestações como o Jongo (praticado em algumas comunidades do sudeste), a Capoeira Angola (praticada em todo Brasil e muitos lugares do mundo), ambas práticas com marcada identidade negra, quanto pelos saberes de parteiras, raizeiras e fiandeiras do cerrado brasileiro, construídos em uma confluência de etnicidades.

Embora essa discussão conceitual e terminológica causasse certa angústia, o fato de trabalharmos não apenas com ideias, mas também com/sobre o corpo, afetos e movimentos, nos fez continuar a caminhada sem maiores preocupações, pois estava claro que nossa busca era (e é) por ouvir o silêncio, ver o invisível e, também, em uma tentativa de renunciar a subalternidade, falar e sermos vistas, para criar e ensinar dança a partir daí. Assim, nossos incômodos se acomodaram na ideia exposta em Silva e Falcão (2016)SILVA, Renata de Lima; FALCÃO, José Luiz Cirqueira. Cultura Popular: seus contornos, desdobramentos e materializações. Revista Rascunhos, Uberlândia, v. 3, n. 2, p. 07-20, dez. 2016., que os conceitos não cabem nos termos e que, por sua vez, as práticas, por seu dinamismo e pulsão, extrapolam os conceitos.

O fato é que, nas diferentes sociedades, os seres humanos são feitos, fazem e refazem a cultura por intermédio de experiências significativas, compartilhadas simbólica e emocionalmente, num intenso jogo de interações, cujas referências locais e globais se intersectam no 'mundo vivido'. Nesse jogo, o embate entre tradição e modernidade, entre o velho e o novo, opera na mesma lógica maniqueísta da clássica divisão entre o bem e o mal, que não dá conta da diversidade epistemológica dos saberes do mundo e de suas cosmopercepções. Por isso, a perspectiva de análise cartesiana que simplifica, decompõe e desmonta em partes elementares os traços característicos das manifestações das culturas populares, na tentativa de encontrar homogeneidade conceitual é inconsistente, por não dar conta de compreender e explicar a pulsão da vida nas produções culturais. Uma perspectiva contemporânea de cultura popular deve renegar, portanto, posturas essencialistas que outrora a caracterizavam e incorporar as construções e afirmações identitárias (Silva; Falcão, 2016SILVA, Renata de Lima; FALCÃO, José Luiz Cirqueira. Cultura Popular: seus contornos, desdobramentos e materializações. Revista Rascunhos, Uberlândia, v. 3, n. 2, p. 07-20, dez. 2016., p. 16).

Todavia, uma recente aproximação com as discussões sobre a ideia de decolonialidade, modernidade/colonialidade e sobre a constituição de uma pedagogia decolonial promoveu nosso reencontro com a educação popular de Paulo Freire (1921-1997) e ainda com o trabalho do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda (1925-2008) e sua proposta de Investigação-ação participativa (IAP) que contribuíram com importantes subsídios para alavancar a Educação Popular na América Latina e no Caribe. Nesse sentido, compreendemos, assim como Mota Neto (2016, p. 44)MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016.:

[...] que o conceito de decolonialidade seja entendido, a despeito de sua diversidade, como um questionamento radical e uma busca de superação das mais distintas formas de opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade contra as classes e os grupos sociais subalternos, sobretudo das regiões colonizadas e neocolonizadas pelas metrópoles euro-norteamericanas, nos planos do existir humano, das relações sociais e econômicas, do pensamento e da educação.

Das contribuições de Paulo Freire a respeito da educação popular, em suas distintas obras, em diferentes momentos de sua produção intelectual, destacamos alguns princípios importantes para este ensaio. Pois, conforme observou Mota Neto (2016)MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016., são também aspectos que se configuram como uma pedagogia decolonial, ligados ao lugar de enunciação de um educador do Terceiro-Mundo . Paulo Freire, em seu caminhar pelo mundo, do nordeste brasileiro à África, aprendeu com o diferente e captou a geopolítica do conhecimento. O educador criou e experimentou uma proposta políticopedagógica que valoriza a memória coletiva e os movimentos de resistência.

Já a concepção de Fals Borda, que também pode ser entendida numa perspectiva decolonial, organiza-se a partir de seu pensamento socioeducacional, de um intelectual sentipensante , que se orienta não somente pela razão instrumental, mas que se compromete com a ética e com as condições objetivas dos oprimidos (explorados). Assim, seu método dialoga com o campo de pesquisa, estruturando-se como método de investigação, técnica, proposta educativa e ação política, que para Mota Neto (2016)MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016. forma uma tríade de investigar, educar e atuar juntos como sujeitos sentipensantes. Essas estratégias caracterizam a investigação-ação participativa.

De forma ampla, a crítica de Fals Borda ao colonialismo intelectual implica na construção de uma ciência própria, traduzida mais tarde como sociologia da libertação, que ele mesmo denominou de rebelde, subversiva, comprometida em travar batalha contra o colonialismo, com métodos científicos que enfrentem de forma interdisciplinar as complexidades da nossa realidade, em busca da transformação social. Entre as bases gerais de sua proposta de investigação, estão a recuperação crítica da história e da cultura dos povos originários e a busca respeitosa da soma dos saberes entre o conhecimento acadêmico e a experiência popular (Mota Neto, 2016MOTA NETO, João Colares da. Por uma pedagogia decolonial na América Latina: reflexões em torno do pensamento de Paulo Freire e Orlando Fals Borda. Curitiba: CRV, 2016.).

A educação popular proposta por Freire e a síntese cultural de Fals Borda nos ajudam a compreender a importância de poéticas afro-ameríndias, já que valorizam a cultura local, as memórias coletivas, as histórias silenciadas, os saberes das classes populares. Pois, nessas perspectivas a ação educativa supera as barreiras entre teoria-prática, entre sujeito-objeto investigado, entre saber popular e conhecimento científico, dentre tantas outras barreiras impostas pela colonialidade. Assim, a ideia de popular ganha um novo fôlego para nós, à medida que a aproximamos da ideia de educação e de movimentos sociais, numa perspectiva decolonial.

Por seu turno, a expressão afro-ameríndia também parece, ao menos nesse momento, atender a nossa necessidade de assumir (logo no título) um lugar político que valorize a diáspora africana no Brasil e, ainda, dar-nos a ver e ouvir, quiçá compreendermos algo sobre os inúmeros povos indígenas brasileiros e de toda a América Latina, entendendo essa tomada de posição como um passo mais adiante na luta antirracista.

Essa consciência latino-americana que a expressão afro-ameríndia parece abarcar e transpor as barreiras ideológicas do projeto de nação Brasil, nos aproximando de realidades distintas, mas muito próximas, como comentou Zeca Ligiéro, no prefácio do livro Performances Culturales en América Latina:

Ao circular pelo interior destes países e aprender sobre suas tradições africanas e ameríndias, percebemos nossas parecenças também por meio de resistências comuns às atrocidades dos países colonizadores ibéricos que nos educaram na base da espada e da cruz. Entretanto, posteriormente, muitas outras levas de imigrantes trouxeram para cada país latino outras matizes acrescentando novas tintas às particularidades de cada país, projetando uma América Latina multiétnica e multicultural, onde convivem o mais arcaico com o mais moderno (Ligiéro apud Koeltzsch; Silva, 2019KOELTZSCH, Grit Kirstin; SILVA, Renata de Lima (org.). Performances culturales en América Latina: estudios de lo popular, género y arte. 1. ed. San Salvador de Jujuy: Purmamarka Ediciones, 2019., p. 15).

Assim, os nossos interesses e engajamentos em poéticas afroameríndias nos conduziram por caminhos que promoveram o desdobrar do eu no sentido da construção e/ou do fortalecimento de nossas identidades (de cada uma e coletiva). Aqui evocamos, portanto, a metáfora de trieiros e vielas como vias de acesso para se chegar a determinado lugar, que ou são caminhos alternativos que apenas as moradoras locais conhecem ou são as únicas vias de acesso, construídas pela própria população que ocupa determinado território. Por trieiros de campos, chapadas e vielas de bairros e morros, nos aproximamos de poéticas afro-ameríndias, como insurgências, e por esses caminhos chegamos à noção de poetnografia.

É importante que se diga que não foi nossa intenção, a priori, construir uma metodologia de criação em artes da cena, da mesma forma que não é nossa intenção, neste ensaio, defendê-la como uma proposta pronta e acabada. Todavia, o fato de a poetnografia estar sendo utilizada em alguns estudos acadêmico no campo das artes cênicas e das performances culturais, nos impulsiona a investir esforços no sentido de construir referenciais teóricos que deem suporte para estudos destinados a investigar poéticas afroameríndias, ou o termo que queira dar. É nesse sentido que, no presente ensaio, pretendemos revisitar os caminhos que nos conduziram a essa noção, observando seus desdobramentos, como esses dão suporte aos nossos estudos, bem como os desafios conceituais que nos impõem.

Embora esse exercício de revisão ensaística seja em grande medida salutar, pois nos dá a oportunidade de amadurecimento e autocrítica é, também, um grande desafio do ponto de vista textual, já que, a despeito de nos propormos a uma construção conceitual a partir de experiência vividas conjuntamente na última década, é importante considerar que temos distintas trajetórias artístico-acadêmicas e que o esforço que empreendemos aqui é, sobretudo, o de colocar em diálogo nossas respectivas pesquisas de doutoramento, priorizando as relações entre essas, em detrimento de um aprofundamento em cada uma. Por essa razão, optamos por não trazer de forma densa as experiências de cada campo, que podem ser acessadas em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. e Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016..

Por Trieiros e Vielas

Em 2014 publicamos o artigo Entre Raízes, Corpos e Fé: poetnografias dançadas , na Revista Moringa (UFPB), a primeira publicação em que utilizamos o termo poetnografia (Silva; Lima, 2014SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014.). É importante dizer que a aparição da noção não se deu por um esforço puramente teórico e, sim, no exercício de encontrar palavras e ideias que dessem conta do que estávamos vivendo e experimentando nos laboratórios de investigação cênica. Somos acadêmicas, como anunciamos anteriormente, mas teorizamos sobretudo a partir de nossa prática artística. Mais especificamente no campo da dança, todavia com especial atenção em seus aspectos interdisciplinares, que promovem importantes encontros com a música e com o teatro.

Nosso ponto de encontro foi o curso de graduação em Dança da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde lecionamos, mas é, também, os espaços que construímos (ou reconstruímos) a partir daí, a saber, a companhia artística Núcleo Coletivo 22, o Núcleo de Pesquisa e Investigação Cênica Coletivo 22 (NuPICC) e o projeto Águas de Menino, de Capoeira Angola. Considerando que as entrelinhas desse encontro já foram largamente exploradas em outras publicações, no que diz respeito à trajetória e produção artística do Núcleo Coletivo 22, no contexto deste ensaio nos deteremos a mapear a trajetória de construção da noção de poetnografia a partir de nossa produção acadêmica, que em geral diz respeito às práticas artísticas/pedagógicas em Dança. Nesse sentido, ressaltamos que os processos de investigação cênica que refletimos teoricamente são também vividos como parte de nosso processo formativo. Esses processos de criação, por sua vez, alimentam nossas práticas docentes, sobretudo aquelas que envolvem a orientação dos estudantes em processos de criação.

Embora não seja necessário nos aprofundarmos, neste momento, nas entrelinhas de nosso encontro, é importante mencionar que o artigo escrito em 2014 tinha como contexto o fato de uma de nós estar cursando o doutorado, na linha de Processos Composicionais para a Cena, no Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), e seu estudo dialogava tanto com a metodologia de trabalho em dança, como com algumas noções conceituais, logo abaixo referenciadas, defendidas pela outra autora desse ensaio e publicadas em Silva (2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.; 2012)SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012..

Desde a tese de doutorado de Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., os procedimentos para o trabalho cênico vêm sendo discutidos e investigados a partir de parâmetros oferecidos pela experiência com manifestações expressivas tradicionais, que aqui neste estudo abordamos como poéticas afro-ameríndias, para ressaltar seus aspectos estéticos e qualidade artística. No referido trabalho (Silva, 2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.), as noções de corpo limiar e encruzilhadas aparecem como chave para o entendimento da relação entre ritual e artes da cena. Neste contexto, a encruzilhada1 1 A discussão sobre o conceito de encruzilhada é realizado a partir de Leda Maria Martins (1997) é entendida primeiramente como um espaço-tempo em que se inscreve no corpo e pelo corpo afrografias da memória (Martins, 1997MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.). Por seu turno, o corpo limiar seria a corporeidade de sujeitos que habitam e significam as encruzilhadas. Trata-se então de um estado corporal acionado por determinadas estruturas que instauram a encruzilhada, apresentado em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. fundamentado pelo estudo e vivência com a Capoeira Angola, o Jongo, o Batuque, o Samba de Roda e o Tambor de Crioula.

A partir do referido trabalho, a compreensão da encruzilhada, como performance ritual, e do corpo limiar, como um agenciamento para uma dramaturgia corporal, incidiu em alguns procedimentos metodológicos para o trabalho de preparação corporal em dança e teatro, bem como para os processos de criação inseridos em um contexto de busca por identificações com as encruzilhadas, isto é, que se identificam (no sentido de se reconhecer) e buscam se identificar (no sentido de se assumir) como poéticas negras, marginais, afirmativas e de resistência. Noções como instalação corporal, lugares-momentos, jogo de dentro e jogo de fora, ginga pessoal2 2 Cf.: Silva (2010; 2012). , foram desenvolvidas a partir da teia conceitual da encruzilhada e do corpo limiar.

O desafio que se apresentava para a então doutoranda no diálogo com essas noções era o fato de seu campo não ser exatamente com manifestações tradicionais expressivas e nem com performances de matriz africana, como no caso de Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.. O contexto do cerrado brasileiro e o encontro com mulheres parteiras e raizeiras3 3 Temática da tese de doutorado Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade (Lima, 2016) em desenvolvimento na ocasião da escrita do artigo publicado em 2014. nos sugeriu uma vivência de campo com a mesma intensidade com a qual a encruzilhada havia sido pensada em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.. Todavia em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. o campo é delimitado em performances ritualísticas muito específicas e não em performances do cotidiano:

Ora, se a Encruzilhada, como está definido em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., é justamente o lugar em que passado e presente se sobrepõem e, ainda, onde perpassam questões relacionadas ao sagrado, ela pode também ser pensada não apenas como o tempo-espaço de festas e vadiações, mas, também, de rezas, partos e benzeduras. O corpo em cena não é exatamente um corpo limiar e nem a cena é uma Encruzilhada, mas queremos reivindicar para a arte essas identificações, que são relidas e reinterpretadas pelo artista, que pode poetnografar na dança as singularidades e alteridades das mulheres do cerrado, inventando 'outras encruzilhadas' (Silva; Lima, 2014SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014., p. 163).

Por outro lado, pensar o cotidiano de alteridades como fenômeno de encruzilhada poderia incidir no risco da espetacularização da pobreza, isto é, das dificuldades e do aperreio que essas comunidades no Brasil adentro enfrentam, sendo obrigadas a dar respostas às adversidades da vida, em uma sociedade violentamente desigual.

A intensidade da encruzilhada que buscávamos alargar para outro contexto social diz respeito ao encontro. Pois em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. a encruzilhada é definida como tal à medida que se participa dela em uma zona de contaminação, não apenas como um mero observador, isto é, que se deixa afetar. Assim, expandimos a ideia de encruzilhada para a noção de campo vivido.

Outra preocupação que nos afligia no momento da escrita do referido artigo era a sensação de que nossos colegas das ciências sociais desconfiavam de nossa propriedade para falar de pesquisa de campo e de experiência etnográfica. O que pode até ser interpretado como um recalque nosso, que gerou uma questão na qual nos debruçamos naquele momento, a de distinguir as metodologias de trabalho da(o) artista da cena em relação às da(o) antropólogo.

O olhar do artista-pesquisador para a cultura popular, mesmo que respaldado por procedimentos da pesquisa antropológica, é norteado pelo princípio do 'saber sensível', isto é, por questões de ordem estética, sejam elas técnicas, poéticas e/ou simbólicas. É este olhar que se volta para o cerrado brasileiro, mais especificamente o estado de Goiás, em busca de motivos para fazer o corpo dançar. Uma dança que evoque corpos e histórias dos outros e que dialogue com o inventário pessoal. Em outras palavras, que promova o encontro, o estranhamento, o reconhecimento e a criação de poetnografias dançadas, no sentido de poetizar a existência e o ser mulher que habita o cerrado com suas práticas corporais, crenças e fé (Silva; Lima, 2014SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014., p. 155).

Convém frisar que nossa intenção não era a de desfazer o importante feito do encontro entre Richard Schechner e Victor Turner de aproximar performance e antropologia, que ocorreu no campo dos Estudos da Performance, nos idos de 1980, na Universidade de Nova York. Entre outras contribuições, os autores supracitados construíram a possibilidade de um olhar para o ritual como drama e para diferentes tipos de performances como ritual. Nossa intenção, naquele momento, era refletir e problematizar acerca da especificidade do trabalho artístico, a partir do seu interesse pelo desdobrar do eu. Assim, chegamos a algumas questões: De quais ferramentas o(a) artista dispõe? Qual deve ser a sua postura ética frente à alteridade? E, não menos importante, o que fazer e como fazer a partir da experiência vivida em campo?

Nesse debate, a ideia de experiência vivida aparece como um ponto nodal que nos faz denominar a pesquisa de campo como um campo vivido, com claros resquícios de uma influência fenomenológica que permite a compreensão da experiência do corpo no mundo, a partir do sensível.

Conforme defende Merleau-Ponty (1996)MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996., em sua Fenomenologia da Percepção , a sensação pode ser entendida primeiramente como a maneira pela qual somos afetados e, depois, como percebo a experiência de um "[...] estado de mim mesmo" (Merleau-Ponty, 1996MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 23):

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (Merleau-Ponty, 1996MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 18).

Nesta perspectiva, no mundo vivido o sujeito reivindica uma relação viva daquilo que percebe com seu corpo. "Portanto, as sensações, as 'qualidades sensíveis', estão longe de se reduzir à experiência de um certo estado ou de um certo quale indizíveis, elas se oferecem como uma fisionomia motora, estão envolvidas por uma significação vital" (Merleau-Ponty, 1996MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996., p. 282-283).

Do mundo vivido ao campo vivido, tem-se uma passagem em que se acentuam qualidades sensíveis culturalmente construídas e experienciadas nos estados de encruzilhada, em que desenham-se texturas e paisagens, sotaques, anunciam-se sons e é possível sentir os cheiros e os sabores que dão seus contornos a cada contexto.

Assim, em Silva e Lima (2014)SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014. apresentamos as ideias de poetnografia e de campo vivido, partindo da necessidade de compreender o trabalho do artista na busca por poéticas e motivações para o corpo dançar a partir do encontro com a alteridade. Naquele momento definimos poetnografia como "[...] pedaços de realidades reinventadas que trazem em seu seio identificações encontradas em manifestações da cultura popular e em performances que se abrem em meio ao cotidiano" (Silva; Lima, 2014SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014., p. 167). É interessante observar como a ideia de poetnografia perpassa tanto pela ideia de etnografia, como um método de pesquisa em campo, como também pela ideia de coreografia, na qualidade de escrita da dança. Figurativamente, a poetnografia constitui um pêndulo entre a realidade vivida em um determinado contexto social, com a qual a(o) artista compromete-se ética e politicamente, e a criação artística, que, por sua vez, é permeada por uma autonomia criativa que não necessariamente pretende reproduzir a realidade vivida e sim recriá-la, daí a importância desse campo vivido estar atrelado ao desdobrar do eu, à luz do pensamento decolonial, como uma formulação inquietante e crítica.

Outros Caminhos

Assim como diz o provérbio africano: as pegadas das pessoas que andaram juntas nunca se apagam , no caminhar por essas trilhas que, na verdade, foram sendo construídas pelo nosso próprio caminhar, outros encontros e estudos se desdobraram. De onde foi possível a percepção de que o que estava (e está) sendo construído ressoava e respondia aos anseios de estudos que partem do lugar da experiência e que operam poéticas e saberes populares como dispositivos para a criação em dança, como foi o caso do trabalho de mestrado de Miranda (2016)MIRANDA, Maria Fernanda Costa. Mulheres de linhas: dos cantos femininos de fiação do Vale do Rio Urucuia ao processo de criação em dança. 2016. 139 f. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016. Available at <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322084>. Accessed on: Sept. 1st, 2019.
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, intitulado: Mulheres de Linhas: dos cantos femininos de fiação do vale do rio Urucuia ao processo de criação em dança , realizado no Instituto de Artes da Unicamp. Processo que também resultou em um artigo em parceria, com uma de nós, publicado na Revista Textos Escolhidos de Cultura e Artes Populares (UERJ), intitulado: Linhas para tecer poetnografias (Miranda; Silva, 2015MIRANDA, Maria Fernanda; SILVA, Renata de Lima. Linhas para tecer poetnografias dançadas. Textos Escolhidos de Cultura e Artes Populares, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 73-86, 2015.).

O estudo supracitado discute o processo de criação em dança a partir de um olhar sensível e etnográfico para o contexto sociocultural das fiandeiras e tecelãs de Hidrolândia (GO) e do Vale do rio Urucuia (MG) para a investigação de poetnografias dançadas. Para Miranda e Silva (2015)MIRANDA, Maria Fernanda; SILVA, Renata de Lima. Linhas para tecer poetnografias dançadas. Textos Escolhidos de Cultura e Artes Populares, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 73-86, 2015., a linha e todo o processo de fiação aparecem como potentes metáforas para a tessitura da dança e reforçam o caráter da poetnografia como uma dramaturgia para dança comprometida com o contexto.

A linha a ser fiada a partir desse algodão encontrou, nas noções de corpo limiar e encruzilhada e de poetnografia dançada, sua 'roda' e seu 'tear', para tecer uma dança tal como se tece uma grande e delicada colcha. Encontramo-nos, atualmente, nessa etapa da 'tecedura': vendo no algodão (tradição da fiação e tecelagem em Minas Gerais e Goiás), colhido no algodoeiro (cultura popular do cerrado), o potencial de se transformar fios em tramas de um trabalho cênico em dança, composto de poetnografias dançadas. [...] Vivenciar afetos da roda de fiação e tecelagem como manifestações de encruzilhada, isto é, enxergando ali uma potência simbólica advinda de saberes populares para a criação de poetnografias dançadas, é, a nosso ver, uma forma de fazer e refletir a arte da dança de forma pós-abissal, reconhecendo no corpo seu potencial discursivo (Miranda; Silva, 2015MIRANDA, Maria Fernanda; SILVA, Renata de Lima. Linhas para tecer poetnografias dançadas. Textos Escolhidos de Cultura e Artes Populares, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 73-86, 2015., p. 77-79).

Bastante vinculado conceitualmente ao texto publicado em 2014 sobre a metodologia do trabalho, o artigo de 2015 selou a parelha entre o ato de poetnografar e a ideia de campo vivido, graças à reciprocidade dos dois campos e o interesse das autoras em ouvir o silêncio de mulheres do Brasil adentro, protagonistas de ambos os trabalhos.

Em termos de procedimentos técnicos da poetnografia, nota-se que enquanto Silva e Lima (2014)SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpo e fé: poetnografias dançadas. Revista Moringa, Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 5, n. 2, p. 153-168, jul./dez. 2014. chamaram a atenção para motivações temáticas , Miranda e Silva (2015)MIRANDA, Maria Fernanda; SILVA, Renata de Lima. Linhas para tecer poetnografias dançadas. Textos Escolhidos de Cultura e Artes Populares, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 73-86, 2015. destacaram a questão das matrizes , discutida desde Silva (2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.; 2012)SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012. a partir de estudos teatrais. Em Silva (2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.; 2012)SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012. as matrizes são entendidas como pontos de encontros de uma suposta harmonia entre a forma do movimento e a sensação, quer dizer: quando a ação corporal atinge plasticidade que preenche os olhos e, ao mesmo tempo, resolve-se no corpo do atuante organicamente. Essas matrizes são reconhecidas dentro de um estado corporal mergulhado em um campo de intensidade (corpo instalado) que leva o artista a escapar dos chavões pessoais e redimensionar as ações, criando nexos de sentidos próprios. Miranda (2016)MIRANDA, Maria Fernanda Costa. Mulheres de linhas: dos cantos femininos de fiação do Vale do Rio Urucuia ao processo de criação em dança. 2016. 139 f. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2016. Available at <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322084>. Accessed on: Sept. 1st, 2019.
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, em sua dissertação de mestrado, por outras vielas, deu continuidade ao esforço de refletir sobre o campo vivido e a poetnografia, no diálogo com conceitos bakhtinianos. Por questões prática, neste ensaio nos deteremos nas produções que envolvem apenas as autoras.

Adiante, nesse trieiro, a tese Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade , de Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., é defendida dois anos depois da primeira publicação sobre poetnografia, dando especial atenção à questão do campo vivido e destacando alguns procedimentos poetnográficos, tais como inventário pessoal, narrativa semificcional, lugares-momento, instalação corporal, entre outros, que neste ensaio não vem ao caso esmiuçá-los. Neste momento, fazemos o exercício de revisitar alguns desses procedimentos, já à luz de novas reflexões.

Inventário Pessoal e Campo Vivido

O inventário pessoal é na verdade uma pesquisa sobre si, as histórias e memórias familiares com seus devidos contextos históricos e geográficos como mola propulsora para o processo de criação em dança, embora não queiramos chamar demasiada atenção para essa denominação. É importante mencionar que se trata de uma proposta metodológica que fez parte da formação de uma de nós, no curso de graduação em Dança da Unicamp, entre 1998 e 2001, onde professoras4 4 Inaicyra Falcão dos Santos e Graziela Rodrigues. relacionadas aos conteúdos de poéticas populares lançavam esse desafio, logo nos primeiros anos da formação. Essa prática, que podemos observar em muitas propostas metodológicas de ensino de dança e teatro nas universidades brasileiras, é algo caro para nós, pois parece ser um caminho para a construção de um entendimento sobre poéticas afro-ameríndias sobre si e não como algo exógeno. Pois esse desafio tem como objetivo a busca por resquícios, pistas de saberes e fazeres tradicionais, enfim, de reminiscências duráveis (Farias; Mira, 2014FARIAS, Edson Silva de; MIRA, Maria Celeste. Introdução: mensagens do pós- nacional-popular. In: FARIAS, Edson Silva de; MIRA, Maria Celeste (org.). Faces contemporâneas da cultura popular. Jundiaí: Paco Editorial, 2014.), que podem ser facilmente encontradas e acionadas, ou estarem soterradas por camadas de preconceitos que tendem a produzir silenciamentos e invisibilidades, e que nesse processo podem ser removidas, ou ao menos remexidas, escavadas.

A relação entre a pesquisa sobre si e o campo vivido foi crucial em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., pois a escolha pelo campo vivido não foi aleatória, já que fez parte de um processo de se voltar para si e para a sua história pessoal e encontrar senhoras com fortes heranças tupi-guarani, silenciosas, talvez silenciadas. Uma delas benzia com brasa. Essas memórias, que já movimentavam a pesquisadora em algumas experiências preliminares em dança, estimularam o encontro com mulheres parteiras, benzedeira e raizeiras do cerrado brasileiro, em especial dos estados de Goiás e Tocantins, passando por aldeias indígenas e comunidades quilombolas para ver invisibilidades, ouvir silêncios, estancar a cegueira e a surdez.

É nesse sentido que a poética da alteridade é constituída na urdidura do ato de poetnografar, partindo da compreensão de que o corpo se define pela capacidade de transformação e afetação, e não de tradução do outro, caminhando em direção à alteridade, se lançando para o outro no exercício de compreendê-lo e de se abrir para o mundo, como defendeu Correia (2009, p. 161)CORREIA, Paulo Petronilio. Agô, Orixá! Gestão de uma jornada afro-estética-trágica: o relato de um aprendizado e de uma formação pedagógica vivida no candomblé. 2009. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009. na ideia de "[...] ser com o outro [...]", como um exercício de alteridade por parte do/da pesquisador/a que experimenta um processo de educação de si, na escuta do outro.

Para esse ensaio, pensamos a ideia do desdobrar do eu, conforme mencionado na introdução, como uma forma de abandonar a ideia do outro pautado a partir de um Eu[ropeu], mas sem deixar de reconhecer no encontro com a alteridade possibilidades de trocas e aprendizagens. Nesse sentido, encontramos em Viveiros de Castro (2018)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. 1. ed. São Paulo: Ubu Editora, 2018. algo que corrobora com essa intenção, ao tomar as noções ameríndias de perspectivismo e multinaturalismo para pensar a alteridade como uma problemática de revisão desse outro . O autor faz questão de lembrar que "[...] o vento vira, as coisas mudam, e a alteridade sempre termina por corroer e fazer desmoronar as mais sólidas muralhas da identidade" (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. 1. ed. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 27).

Deste modo, as parteiras, as benzedeiras, as raizeiras, as fiandeiras, mas também os mestres e mestras do jongo, do batuque e da capoeira, não são objetos de estudos, são interlocutores, e a pesquisa não está orientada em observá-los para descrever seus hábitos e, sim, em conhecê-los de forma relacional e, com isso, expandir a nossa capacidade de ser e estar. Algo que nos aproxima da ideia de communitas , discutida por Victor Turner a partir dos rituais de passagem.

A 'communitas' é um relacionamento não-estruturado que muitas vezes se desenvolve entre liminares. É um relacionamento entre indivíduos concretos, históricos, idiossincráticos. Esses indivíduos não estão segmentados em funções e 'status', mas encaram-se como seres humanos totais. É um relacionamento entre seres humanos racionais cuja emancipação temporária de normas socio-estruturais é assunto de escolha consciente (Turner, 1974TURNER, Victor W. O Processo Ritual. Petrópolis: Ed. Vozes, 1974., p. 05).

Se em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. este estado era a vivência na encruzilhada, com uma participação ativa no aprendizado das rodas de Capoeira Angola, para citar um exemplo, em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016. esse estado implicou em entrar no mato com D. Flor na hora certa, para encontrar as plantas para determinado chá, ou para a cura de enfermidades.

O campo vivido também pode nos colocar frente aos desafios da diferença, impondo a barreira do ser de dentro e do ser de fora, daí a importância da pesquisa sobre si (inventário pessoal), para se chegar em campo ciente de sua identidade. Ademais, um olhar e escuta atenta e sensível para não forçar porteiras que não se querem abrir. Estar ciente de sua identidade, porém, significa também compreender a identidade como algo em constante construção e atravessamentos, pois para se entrar no campo vivido é preciso estar poroso, para desdobrar o eu, isto é, na poética da alteridade, se reinventar. Essa reinvenção acontece por meio da poetnografia e são marcas que ficam tatuadas na pele por se tratar de aprendizados afetivos.

Ainda, a respeito do campo vivido, é preciso dizer que o bom e velho diário de campo é um aliado, bem como os dedos de prosa. É necessário diferenciar um campo vivido de um passeio turístico, daí a importância de se ter um recorte claro do que se almeja pesquisar. Os registros (fotos, vídeos e som) também podem ser ferramentas a serem utilizadas, desde que esses dispositivos não desarmem o corpo e a percepção e se coloquem como uma barreira que interrompa ou fragilize encontros que possam promover impulsos dançantes.

No caso específico da investigação de doutoramento, sistematizada em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., o recorte da pesquisa esteve pautado na investigação de um processo de criação a partir dos saberes e fazeres de mulheres do cerrado brasileiro. Em meio às caminhadas realizadas no Projeto de Extensão Trocas de Saberes5 5 Projeto de extensão vinculado a UFG que organiza um grupo de pessoas para em meio a uma caminhada realizar trocas culturais com comunidades tradicionais. , nos anos de 2013 e 2014, respectivamente no território Kalunga na Chapada dos Veadeiros e, na Ilha do Bananal, na comunidade indígena Santa Isabel do Morro, do povo Karajá (Iny), o encontro com determinadas mulheres foi definindo esses saberes e fazeres, no ofício de partejar, benzer, cuidar e curar. Embora tenha se realizado alguns registros, priorizou-se sobretudo as sensações e experiências que atravessaram o corpo, como por exemplo, a experiência de participar da feitura dos adereços da festa de Nossa Senhora da Abadia, em meio a dedos de prosa e cachaça. Experiência que, impregnada na memória da pesquisadora, foi posteriormente acessada nos laboratórios de criação, transformando-se em um lugarmomento, conceito que apresentaremos mais adiante.

Vale a pena destacar que essas experiências de laboratórios de criação fazem parte do percurso metodológico da investigação e que, em geral, são processos coletivos, do qual fazem parte, além da pesquisadora que esteve em campo, colaboradores que, no caso do citado estudo, foi o Núcleo Coletivo 22.

O tempo necessário para se caracterizar um campo vivido não é algo dado a priori e evidentemente vai depender do tipo de pesquisa a ser realizado. O mais importante é o compromisso ético e político com a comunidade, pois, como comentou Greiner (2019, p. 62)GREINER, Christine. O corpo e os mapas da alteridade. Moringa Artes do Espetáculo, João Pessoa, v. 10, n. 2, p. 53-64, jun./dez. 2019.:

A criação artística não tem o compromisso de promover mudanças sociais ou políticas. Mas, ao dar visibilidade aos estados de crise, explicita questões nem sempre visíveis na vida cotidiana. Assim, instauram-se conexões que podem desestabilizar hábitos e crenças e apontar possibilidades. É neste sentido que o estado de alteridade pode se traduzir como um estado de criação - um ativismo absolutamente fundamental sobretudo nos ambientes mais acometidos pela lógica neoliberal que se nutre do desinteresse pelas singularidades.

Narrativas Semi-Ficcionais

O retorno do campo vivido é sempre um turbilhão; muitas histórias para contar, muitas emoções, angústias e ansiedades. Irrompe-se uma necessidade efusiva de falar, falar, falar [...]. O que é parte do processo de organização do trabalho a ser desenvolvido nos laboratórios cênicos, onde essas pulsões vividas no campo se desvelarão no corpo.

Tanto em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., como em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., o recurso da narrativa semi-ficcional foi utilizado como uma estratégia de se criar ou acionar um imaginário sobre o contexto histórico-cultural em que o campo vivido aconteceu. A narrativa é aqui compreendida como um recurso próprio das tradições populares de se transmitir conhecimentos e memórias através do ato de contar histórias e também como um primeiro exercício criativo. No caso de Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., que criou o Seu Firmino, e de Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., que criou Dona Mélia, a semi-ficcionalidade se dá porque esses são de fato personagens fictícios, todavia congregam característica históricas, culturais e geográficas do lugar, isto é, embora tenhamos criado personagens, os contextos são factuais.

Talvez a própria narrativa semi-ficcional já pudesse, em si, ser pensada como poetnografia, já que nela existe a presença de memória e de subjetividade. No caso de Seu Firmino, a autora se coloca como a neta do senhor que é mestre de capoeira e tem mais de 400 anos. Essa relação de parentesco com o velho reflete tanto a centralidade que homens mais velhos (mestres) tiveram no seu campo de estudo, como cria a possibilidade de materialização de um avô que a autora não conheceu (mas idealizou), trazendo aspectos de seu inventário pessoal.

Ainda que possa ser pensada como um fim, a narrativa semi-ficcional é mais uma viela de acesso entre o campo e o trabalho escrito, entre o campo e outras pessoas que porventura não tiveram a oportunidade de viver o campo, mas terminam participando do processo de criação e, sobretudo, são vielas para a própria artista-pesquisadora acionar as memórias do campo vivido.

No caso específico de Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., a narrativa sobre o Seu Firmino teve o papel de substituir a descrição densa, tão necessária para a validação de uma etnografia em pesquisas antropológicas, e serviu também para acionar o campo do sensível. Já Dona Mélia, em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., configura-se como uma síntese das velhas senhoras raizeiras, benzedeiras e parteiras do cerrado, conjugadas a partir do inventário pessoal, em que a bisavó benzedeira da pesquisadora acentua sua própria descendência indígena guarani. Assim, esta velha senhora traz em sua narrativa os rastros e ruídos encontrados no campo vivido e da pesquisa sobre si da artista-pesquisadora, como fechamento do trabalho acadêmico, constituindo-se como metáfora síntese das noções conceituais que direcionaram a pesquisa, bem como, a própria trajetória da investigação. E, não por um acaso, o fechamento da tese se dá justamente com o encontro de Dona Mélia e Seu Firmino.

Lugares-Momentos e Motivações Temáticas

Com o mesmo intuito de criar trieiros e vielas de acesso ao campo vivido, os lugares-momentos constituem-se como outra importante ferramenta metodológica, já que se referem às formas de organizar as experiências que se destacam do campo vivido e que, no laboratório de criação, são peças-chaves para a construção poetnográfica, isto é, da tessitura dramatúrgica do trabalho. O exemplo do processo descrito em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016. é especialmente relevante para a compreensão desse conceito, pois os lugares-momentos se configuraram como dispositivos de criação, como um "[...] lugar praticado [...]" (Silva, 1999SILVA, Paulo Cunha. O lugar do Corpo: elementos para uma cartografia fractal. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. (Coleção: Epistemologia e Sociedade Lisboa)., p. 28), um lugar com uma ambiguidade potente para o processo de criação, pois é algo que se instala no corpo e no espaço-tempo.

Os lugares-momentos são definidos a partir de motivações temáticas, que, conforme descrevemos anteriormente, são ações ou símbolos diretamente trazidos do campo e que são a porta de entrada para o movimento poético (matrizes). No caso do processo descrito por Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016., a vivência em quilombos e em aldeias indígenas dos estados de Goiás e Tocantins promoveram motivações temáticas como, por exemplo, a relação com a fé, com as ervas, com o partejar (e o parir), com o cotidiano e com a festividade.

A presença física de ervas, dispostas no chão e em uma cuia de coité, o cheiro que delas exala e o ato de macerá-las é um lugar-momento. Isto é, um lugar qualquer da sala de ensaio e um momento específico em que o artista-pesquisador (com o corpo instalado) relaciona-se com aquele material (ou com aquelas ideias), evocando memórias do campo vivido e desdobrando-as em movimento poético.

A passagem de um lugar-momento para outro exige a construção de pontes e sentidos que são tecidos pelo próprio mover a partir do estado corporal instaurado na harmonia entre movimento e sensação. "[...] No entanto, ambos (movimento e sensação) vão se configurar como pontos de um mapa em que se traça um caminho. O traçar o caminho é a ligação entre um lugar-momento e outro" (Silva, 2012SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012., p. 151).

Esse ponto merece maior atenção, pois em um processo deste tipo, sobretudo porque envolve campo vivido expandido no cotidiano, não seria difícil incorrer em caricaturas e formas miméticas, que a arte da dança cênica já superou há alguns séculos. Para evitar esse caminho, parece-nos importantes destacar dois pontos: primeiro é que o campo vivido tenha de fato ocasionado um desdobramento do eu, no sentido das ações não serem imitações e sim reverberações da própria artista-pesquisadora; e, depois, que se tenham à mão dispositivos e métodos para auxiliar a investigação da atuante (dançarina/atriz), no que diz respeito à criação de matrizes, partituras e da dramaturgia do espetáculo como um todo.

No nosso caso, a instalação corporal vem cumprindo esse papel. A primeira vez que esse termo aparece nos estudos de Silva é em 2004, em sua dissertação de mestrado, como um compilado de técnicas, experiências sensoriais e exercícios que fizeram parte de sua formação em dança e em manifestações tradicionais. Esse trabalho é posteriormente desenvolvido em seu curso de doutorado, estando sistematizado em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. como:

A instalação é vista como um trabalho de consciência corporal de transformação do corpo (simplesmente corpo ou corpo cotidiano) em um corpo diferenciado, em um processo de se aliar à imagem de si e a sensação de si através de exercícios que acionam um tônus muscular, respiração, equilíbrio e concentração, distintos do cotidiano. [...] O corpo instalado é, então, um corpo diferenciado, isto é, sensivelmente preparado para uma abordagem extracotidiana do movimento corporal. Assim, a instalação se constitui em alguns exercícios, classificados como primários e secundários, que foram nomeados metaforicamente para facilitar a explicação e, também, como recurso imagético de extensão do corpo - conexão do espaço interno e externo (Silva, 2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., p. 134).

Para além de exercícios técnicos, a noção de inteireza corporal é fundamental desde o primeiro momento, isto é, o relaxamento, que não deve ser apenas a suavização do tônus muscular, mas, também, dos pensamentos e emoções. Haja vista que os exercícios primários e secundários exigem um grau elevado de concentração, pois tal atividade é uma busca individual de autoconhecimento corporal, e não apenas repetições de ações padronizadas, o que exige um total envolvimento consigo próprio (Silva, 2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.).

Além dos exercícios primários e secundários, a instalação corporal é constituída por outros elementos dos quais destacamos, aqui, a dinamização, baseada no treinamento energético6 6 Cf. Burnier (2001); Ferracini (2006). e a ginga pessoal, baseada na capoeira. A ginga pessoal seria um estado movente de prontidão, já acionando memórias e identificações de encruzilhadas, isto é, um repertório afrorreferenciado, mas aberto para a subjetividade de cada artista-pesquisadora.

Essa viela para a criação de matrizes, construída desde 2010, a cada novo processo criativo, ou mesmo em sala de aula, vem se transformando, atendendo as demandas de cada processo ou grupo. Mas foi no processo de investigação tratado em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016. que a instalação corporal sofreu transformações interessantes, ao incorporar o arquétipo de uma velha-árvore, trazida nas motivações temáticas daquele campo vivido. Metaforicamente, esse corpo pode ser, ao mesmo tempo, as velhas parteiras, benzedeiras e raizeiras do cerrado, e as velhas árvores do cerrado que renascem das queimadas e se enraízam na terra, ampliando sua existência.

Embora a instalação corporal já trouxesse imagens (raiz nos pés, arqueamento nos joelhos, zíper no púbis, seta no cóccix, fio de nylon na coluna e cachoeira nos ombros) estas operavam sobretudo para um trabalho técnico, na criação de um estado corporal, e não sugeriam a priori um arquétipo como se deu no processo sistematizado em Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016.. O que vemos aqui é o método de pesquisa se transformar a partir da própria pesquisa.

Não queremos dizer com isso que a única possibilidade de poetnografar seja por meio da instalação corporal. Esse é apenas o nosso caminho. Postulamos que todo o processo comprometido e engajado com poéticas afro-ameríndias, numa perspectiva decolonial, constitui uma possibilidade de poetnografias. Em artigo publicado no ano de 2017, abandonamos o complemento dançadas e falamos apenas de poetnografias para analisar a montagem cênico-musical, intitulada de Por cima do mar eu vim , do Núcleo Coletivo 22, por se tratar de um trabalho que opera numa zona de confluência muito porosa entre dança, teatro, música e ritual (Silva e Lima, 2017SILVA, Renata de Lima; LIMA, Marlini Dorneles de. Por cima do mar eu vim: processo de criação de corpos em travessia. Cadernos do GIPE-CIT, Salvador, a. 21, n. 39, p. 80-92, 2017.). A partir daí identificamos o surgimento de interesse por poetnografias vocais, visuais [...].

Rastros que Orientaram a Caminhada

Embora tenhamos optado por, neste ensaio, fazer o percurso de nossos próprios estudos, como uma oportunidade de organizar e atualizar nossa produção, este caminhar por trieiros e vielas seguiram algumas pistas e pegadas que foram deixadas no chão e que são importantes de serem enfatizadas. Tanto em Silva (2004)SILVA, Renata de Lima. Mandinga da rua: a construção do corpo cênico a partir de elementos da cultura popular urbana. 2004. 139 f. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. Available at: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/284844>. Accessed on: Apr. 24, 2020.
http://www.repositorio.unicamp.br/handle...
, como em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., a capoeira, em especial a Capoeira Angola (entre outras performances negras estudadas), é um fio condutor importante para o pensamento e a ação em dança, por sua capacidade de promoção de uma consciência de corpo e domínio de movimento, de habilidades musicais, de jogo e de improvisação. Mas, sobretudo, pela força ancestral que é capaz de evocar. Essa força, que também podemos chamar de axé, ou de nguzu, para utilizar termos do léxico afrocentrado, além de gerar uma conexão com a ancestralidade, assunto largamente discutido em Silva (2010)SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010., gera uma sensação de pertencimento e, consequentemente, de identificação. Assim, as pesquisas artístico-acadêmicas realizadas buscavam justamente trazer essa força e identificação para a linguagem da dança contemporânea.

Os estudos realizados no âmbito da preparação corporal tiveram como importante suporte teórico (e prático), tanto as produções da chamada Antropologia Teatral como as ideias produzidas a partir do Lume, Núcleo de Pesquisas Teatrais da Unicamp, propostas que podem ser bem sistematizadas na fala de Luis Otávio Burnier: "A verdadeira técnica da arte de ator é aquela que consegue esculpir o corpo e as ações físicas no tempo e no espaço, acordando memórias, dinamizando energias potenciais e humanas, tanto para o ator quanto para o espectador"7 7 Disponível em: <http://www.lumeteatro.com.br/o-grupo>. Acesso em: 5 de abr. 2020. .

Os Estudos da Performance, conforme já mencionados, com sua aproximação com a Antropologia, abrira um caminho mais seguro para se discutir as questões de identidade, alteridade, campo, ritual que são muito próprias do contexto das poéticas afro-ameríndias.

A ideia de encruzilhada, amparada pelas discussões de Leda Maria Martins (1997)MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997. e Eduardo Oliveira (2007)OLIVEIRA, Eduardo David. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2007., se desdobra no campo vivido, mas deixa sua marca de uma cosmopercepção afrocentradas8 8 “A ideia afrocêntrica refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar. Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na África e sua diáspora. Começamos com a visão de que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos” (Asante, 2009, p. 93). e, por isso, decolonial. Cumpre notar que não se pretende substituir a ideia de encruzilhada por campo vivido, porque a primeira se refere a um tempo e espaço, enquanto o segundo é uma ação, um jeito de fazer e ver a pesquisa de campo, uma metodologia sentipensante de pesquisa.

Considerações sem Fim: pegadas que ficam no chão

Como uma abordagem metodológica de pesquisa em artes da cena, a poetnografia é, sem dúvida, tangenciada e atravessada pela pedagogia decolonial, que nos apresenta a urgência de um compromisso ético e político com a existência humana, com os sujeitos do campo vivido, com o oprimido, o subalterno, traduzido igualmente no compromisso das pesquisadoras em fazer com que o trabalho artístico, bem como seus desdobramentos (oficinas, vídeos, exposição fotográfica entre outros), se façam presentes nos espaços e nas comunidades em que o campo vivido é realizado.

Aqui vale citar uma das experiências de retorno à comunidade, em Moinhos (GO), uma comunidade quilombola, onde reside Dona Flor, uma importante interlocutora do estudo produzido por Lima (2016)LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016.. No fim da estrada de chão batido que leva a esta comunidade, artistas e moradoras se misturam para a performance-ritual Entre raízes, corpos e fé , trocas e conversas ao redor da fogueira com Dona Flor e outros encontros, estabeleceram uma possibilidade de desdobramento do eu, como exercício de alteridade e de encontro com os saberes que geram poéticas afro-ameríndias.

Qual seria então a contribuição da poetnografia? A poetnografia é, primeiramente, uma referência teórico-metodológica para a construção de conhecimento em arte, sobretudo a partir das invisibilidades e silêncios produzidos pelos mecanismos de controle, discriminação e negação gerados pela modernidade/colonialidade. Assim, poetnografar, envolve, invariavelmente, o ato e o efeito de abrir as portas e janelas para o mundo, em busca de ouvir os silêncios, ver as invisibilidades e, ainda, sentirpensar a partir do encontro com vozes, pessoas, histórias, danças, saberes que se quer reconhecer, aprender e fortalecer. E é claro que, antes de sair por uma porta ou janela dessas, é fundamental se olhar no espelho.

Ao rever essa trajetória de produção artístico-acadêmica, podemos, enfim, apontar a poetnografia, como uma escrita do corpo a partir do desdobrar do eu por meio do campo vivido. Deste modo, a pesquisa poetnográfica, além de um resultado artístico, revela alteridades, reforça ou problematiza identidades, constrói ou reconstrói imaginários, numa confluência indissociável entre arte, educação e política.

Notas

  • Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do periódico.
  • 1
    A discussão sobre o conceito de encruzilhada é realizado a partir de Leda Maria Martins (1997)MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo: Perspectiva, 1997.
  • 2
    Cf.: Silva (2010SILVA, Renata de Lima. O Corpo Limiar e as Encruzilhadas: a capoeira angola e os sambas de umbigada no processo de criação em dança brasileira contemporânea. 2010. Tese (Doutorado em Artes) - Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.; 2012)SILVA, Renata de Lima. Corpo Limiar e Encruzilhada: processo de criação em dança. Goiânia: Ed. UFG, 2012..
  • 3
    Temática da tese de doutorado Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade (Lima, 2016LIMA, Marlini Dorneles de. Entre raízes, corpos e fé: trajetórias de um processo de criação em busca de uma poética da alteridade. 2016. Tese (Doutorado em Artes) - Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília, Brasília, 2016.) em desenvolvimento na ocasião da escrita do artigo publicado em 2014.
  • 4
    Inaicyra Falcão dos Santos e Graziela Rodrigues.
  • 5
    Projeto de extensão vinculado a UFG que organiza um grupo de pessoas para em meio a uma caminhada realizar trocas culturais com comunidades tradicionais.
  • 6
    Cf. Burnier (2001)BURNIER, Luis Octávio. A arte do ator: da técnica à representação. Campinas: Ed. Unicamp, 2001.; Ferracini (2006)FERRACINI, Renato. Café com queijo: corpos em criação. São Paulo: Ed. Fapesp, 2006..
  • 7
    Disponível em: <http://www.lumeteatro.com.br/o-grupo>. Acesso em: 5 de abr. 2020.
  • 8
    “A ideia afrocêntrica refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar. Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na África e sua diáspora. Começamos com a visão de que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos” (Asante, 2009ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. P. 93-110., p. 93).

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Editado por

Editora-responsável: Celina Nunes de Alcântara

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    29 Set 2020
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