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Epistemologias da Presença, teóricasvivências: a produção das mulheres em Performances Culturais

Les Épistémologies de la Présence comme théoriesvécues: la production féminine dans le domaine des Performances Culturelles

RESUMO

Este artigo revisita a produção teórica das mulheres no campo das Performances Culturais, evidenciando que as próprias estudiosas ainda se referem pouco às epistemologias construídas por mulheres. Demonstrase, no contexto desta discussão, a importância de se produzir teoria a partir de outros lugares de percepção que incluam tanto a corporeidade das pesquisadoras quanto a corporeidade do conhecimento articulado em suas pesquisas. Sendo a escrita teórica uma escrita performática, conclui-se que ela é presentificada no deslocamento dos códigos hegemônicos, em que pesquisa e prática, formulação teórica e experiência cotidiana se encontram.

Palavras-chave:
Performances Culturais; Mulheres Teóricas; Escrita Feminista; Autoteoria; Teóricasvivências.

RÉSUMÉ

Cet article revisite la production théorique des femmes dans le domaine des Performances Culturelles, en montrant que elles-mêmes, chercheuses en la matière, font encore peu référence aux épistémologies des théoriciennes. Dans le cadre de cette discussion, il est démontré l’importance d’une théorie à partir d’autres lieux de pensée qui incluent la corporéité des femmes chercheuses ainsi que des savoirs articulés au sein de leurs études académiques. Le article considère en conclusion l’écriture théorique comme une écriture performative fondée sur le déplacement des codes hégémoniques où la recherche et la pratique, la formulation théorique et l’expérience quotidienne se rencontrent.

Mots-clés:
Performances Culturelles; Femmes Théoriques; Écriture Féministe; Auto-Théorie.

ABSTRACT

This paper reviews women’s theoretical production in the field of Cultural Performances, evincing that these scholars themselves have still not sufficiently referred to other women theorists’ epistemologies. In this context, the work demonstrates how important it is for women scholars to make theory from other epistemological standpoints which include both their corporeality as researchers and the corporeality of knowledge in their studies. Being theoretical writing a form of performative writing, as a conclusion the paper considers this writing as founded on the shift of hegemonic writing codes in which academic research and practice, theory and everyday life experience work together.

Keywords:
Cultural Performances; Women Theorists; Feminist Writing; Autotheory; Theorexperience.

Como incômodo lancinante que passou a me acompanhar desde o primeiro ano do doutorado1 1 Desenvolvido entre 2017 e 2021 no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação da Profa. Dra. Alice Fátima Martins e com bolsa de doutorado concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). , a constatação de que a produção teórica das mulheres ainda é pouco referida no meio acadêmico chegou a mim como provocação inevitável que considerei, à época, basilar: estudar essa produção cada vez mais sem parcimônia. A tese doutoral2 que eu havia me proposto a defender era, afinal de contas, sobre mulheres-artistas-cidadãs-comuns dos interiores de um estado brasileiro (ele mesmo considerado como de interior), e a minha primeira decisão foi a de que eu precisaria, no mínimo, dialogar com referenciais teóricos outros que não aqueles sempre tidos como os mais recorrentes ou imprescindíveis para constarem em uma pesquisa em arte.

Embora, como pesquisadora, eu já tivesse assumido anos antes a tarefa de ler com mais afinco a produção teórica contemporânea, publicada sobretudo em periódicos nacionais e estrangeiros, começou daí, do meu processo de doutoramento, um rigor-meu de leitura direcionada às epistemologias de autoras mulheres - cujas contribuições fossem não apenas alinhadas ao campo da Cultura Visual, mas também estivessem localizadas em contextos variados de transdisciplinaridade.

Além de mapear a produção de teóricas que dessem conta, em suas análises, de contemplar a prática de mulheres artistas como aquelas com quem estive durante a elaboração da tese, também cartografei essa produção no intuito de olhar para as experiências imaginativas dessas outras fazedoras de sentidos partindo de um lugar de criticidade mais próximo de suas criações artísticas. Certo é que estava assim estabelecida a aproximação entre vivências visuais - que, na tese, chamo de “visuaisvivências” (em analogia manifesta com as escrevivências da escritora brasileira Conceição Evaristo, conforme evidencio mais adiante3 3 Cf. nota 59. ) - e vivências teóricas (aqui referidas como teóricasvivências). Eu, de fato, reservei-me ao direito de defender uma tese na esteira da metalinguagem, em que todas as referências, tanto artísticas quanto teóricas e metodológicas, haviam sido compostas/realizadas/elaboradas por mulheres.

Concluído o doutorado e já me preparando para iniciar o estágio pósdoutoral, a continuação dessa pesquisa de base foi tão logo projetada no campo dos Estudos da Performance, cujas epistemes eu já vinha mobilizando por mais de meia década.

O que me interessou de imediato foi a possibilidade de percorrer uma dúvida para comprovar ou não a minha preliminar hipótese: a de que não necessariamente a produção teórica nas Performances Culturais é de autoria majoritariamente masculina, mas, como em praticamente todas as outras áreas do conhecimento, as contribuições mais comumente referidas em nossa escrita pesquisante é a publicada por homens.

O presente artigo é um recorte desses estudos que realizei durante o estágio pós-doutoral, em que me dediquei a mapear as teóricas da performance por meio de um amplo levantamento bibliográfico, mas não prescindindo da análise crítica dessa produção que considero ainda parcamente referida na escrita científica. Partindo de um corpus delimitado em torno de quatro periódicos brasileiros Qualis A, apresento e discuto a seguir os resultados dessa pesquisa inédita sobre a produção teórica das mulheres nos Estudos da Performance e sua consequente recepção no meio acadêmico.

As performances culturais no horizonte do deslimite

Pelo menos desde a década de 1970, quando se estabeleceu como campo de estudo na academia, a performance tem sido analisada não apenas como forma artística imanente à esfera do teatro, mas também como prática cultural cotidiana, imiscuída em uma complexa matriz de poder que serve a interesses culturais diversos e que transita por territórios contestados, nos quais os sentidos são produzidos, compelidos, repelidos, (des)legitimados, demarcados ou pluralizados (Diamond, 1996DIAMOND, Elin. Introduction. In: DIAMOND, Elin (Ed.). Performance and Cultural Politics. London; New York: Routledge, 1996.)4 4 Elin Diamond leciona no Departamento de Estudos de Gêneros e Sexualida-des do Instituto de Ciências e Artes da Rutgers University (New Jersey, EUA). .

É assim que a performance, hoje em dia, nos parece próxima de um espaço de negociação e disputa das identidades, no qual é possível, cada vez mais, visualizar as práticas culturais em suas múltiplas e complexas heterogeneidades. Desse outro lugar de percepção, desalinha-se, afinal, aquela antiga noção de teatralidade que era presumida tão somente no âmbito da encenação artística, como se as artes pudessem estar apartadas dos constructos sociais ou não constituíssem apenas um dentre os múltiplos fenômenos de construção e mobilização imaginativas da experiência.

Em perspectiva semelhante, Jill Dolan5 5 Reitora da Princeton College, a escola de graduação da Universidade de Prin-ceton (New Jersey, EUA), e professora de teatro no Lewis Center for the Arts, na mesma instituição de ensino. Tem inúmeros trabalhos no campo dos Estudos da Performance, dos Feminismos e dos Estudos de Gêneros e Sexualidades. (2005DOLAN, Jill. Utopia in Performance: finding hope at the theater. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2005.) salienta que a performance se faz no encontro, na corporificação, na presença6 6 No original em inglês: “[…] performance provides a place where people come together, embodied and passionate, to share experiences of meaning making and imagination that can describe or capture fleeting intimations of a better world” (p. 2). . As variadas encenações que ela mobiliza não se restringem, portanto, às representações historicamente legitimadas que se instalam nos espaços da (auto)dita “arte universal” (europeizante, colonializante), mas constituem, antes disso e sobretudo, comportamentos expressivos das pessoas ou grupos de pessoas - digo melhor, de qualquer pessoa ou grupo de pessoas - envolvendo uma dupla motriz: a de realizar (performar) e a de se deixar afetar (pelo ato performático). Daí ser mais que impreterível que as dimensões da performatividade humana sejam abordadas sob um enfoque transcultural e transdisciplinar - dada a sua condição de prática fronteiriça nos múltiplos territórios do saber7 7 É oportuno ressaltar, neste caso, as interfaces dos Estudos da Performance com as Artes Visuais. Josette Féral, professora da Universidade de Quebec, explica que as práticas performáticas nunca foram uniformes nem inequívocas, não podendo, ainda hoje, ser cotejadas umas com as outras sem o risco de incorrermos em falsas verdades. Para ela, a performance tem diversas filiações - “tanto a do texto quanto a da imagem, do formalismo das artes visuais e da interpretação, [nem sempre sendo] fácil distinguir as influências e rupturas” (Féral, 2008, p. 208). Considerando o contexto brasileiro, Paula Darriba (2005, p. 134-135) alude a um “período de experimentalismo no campo das artes [incluídas as artes visuais/plásticas] que foi influenciado pela contracultura e pelo movimento hippie. O happening e a body-art se consolidavam em âmbito internacional e a fusão da linguagem cênica com as artes plásticas cristalizou novas formas de expressão e propostas conceitualmente mais elaboradas da arte performática” (tradução livre). Em complemento, Beth Lopes - diretora teatral, pesquisadora e colaboradora do grupo Performa - demonstra que, aqui no país, o campo dos Estudos da Performance ainda está bastante atrelado ao das Artes Visuais, o que contribui, em certa medida, segundo ela, para “[...] desfronteiriza[r] as linguagens, amplia[r] as noções espaciotemporais e fricciona[r] as relações entre o real e o ficcional incorporando estados emocionais, subjetividades e memórias, criando a sua poética particular” (Lopes, 2010, p. 135). , ou intercampos - mantendo-se em vista que são as interações entre os corpos (de quem performa e se deixa tocar pela performance), o espaço e o tempo que produzem o conhecimento transmitido, como identidade e memória, pelo/no ato performático.

Com o tempo, passamos também a criar novos parâmetros para compreender a interação entre textualidade e performatividade, desmantelando a lógica dicotômica entre a “cultura como texto” e a “cultura como performance”. Jurgita Staniškytė8 8 Teórica lituana e professora de Estudos Teatrais na Vytautas Magnus University. É autora de inúmeras publicações sobre a performance contemporânea, com enfoque nos aspectos performativos da cultura lituana pós-soviética. explica que tais mudanças começaram a se configurar ainda no cenário dos “impulsos modernistas direcionados às performances de vanguarda e às práticas da performance art que adentravam o território pós-moderno por meio dos Estudos Culturais e das teorias pósestruturalistas” (Staniškytė, 2021STANIŠKYTĖ, Jurgita. The Condition of Instability: Performative Turn and Con-temporary Lithuanian Theatre. Methis - Studia Humaniora Estonica, v. 22, n. 27-28, p. 115-133, 2021., p. 117, tradução livre)9 9 No original em inglês: “[…] the performative turn initiated by modernist impuls-es of historical avant-garde performances and performance art practices transferred into postmodern territory via cultural studies and post-structuralist theories and at present occupies the discursive area of post-postmodern realities”. . Para a autora, o que respaldou essa “virada performativa” foi, em especial, a noção (pósestruturalista) de “performatividade”. Segundo ela, as obras de Austin, Searle, Derrida e Judith Butler, assim como as reflexões daí advindas sobre a representação, tiveram um impacto inquestionável nas novas teorias da performance. Também foi o caso dos raciocínios desenvolvidos por Schechner na transição do século XX para o XXI, trazendo para o centro da análise a depuração dos processos performativos a fim de submetê-los a uma “desrepresentação” (de-representation) e ao necessário desmantelamento da lógica eurocêntrica arraigada ao texto e aos eventos teatrais da cultura hegemônica (Staniškytė, 2021STANIŠKYTĖ, Jurgita. The Condition of Instability: Performative Turn and Con-temporary Lithuanian Theatre. Methis - Studia Humaniora Estonica, v. 22, n. 27-28, p. 115-133, 2021.)10 10 Em resumo, a “virada” pode ser descrita como uma mudança paradigmática transdisciplinar em que passamos a compreender a performance como uma forma de conhecimento da realidade. No original em inglês: “Performative turn” can be generally described as paradigmatic transdisciplinary shift where performance as a form of knowledge making is confronted with representational forms of knowledge. Tantamount to a tectonic shift in the humanities and social sciences, performative turn encompasses various theoretical aspects and is developed, argued or critiqued by many scholars” (Staniškytė, 2021, p. 116). .

Erika Fischer-Lichte11 11 Uma das teóricas contemporâneas mais conceituadas nos estudos de teatro e artes performativas. É professora da Freie Universität de Berlim e diretora, na mesma instituição, do Centro de Investigação Internacional Interweaving Performance Cultures. Assim como para Elin Diamond (1996), para Erika Fischer-Lichte (2009) a performatividade ultrapassa a estética da representação, instaurando-se antes no plano da materialidade. (2009) também invoca a expressão “virada performativa”, para se referir a essa mudança, mais especialmente do início da década de 1990 em diante, na aceitação-validação do paradigma legitimador das culturas europeias (que se autoidentificaram como superiores por conta de sua aptidão para produzir textualidades e artefatos artísticos) e tão demarcador das não europeias (às quais as primeiras atribuíram um rol de inferioridades em razão de seu cariz ritualístico, naturalmente performático).

A potencialidade da performance se evidencia, neste e noutros inúmeros sentidos, como defende Lynette Goddard (2007)GODDARD, Lynette. Staging Black Feminisms: Identity, Politics, Performance. London: Palgrave Macmillan, 2007.12 12 Professora de Performances Negras no Departamento de Drama, Teatro e Dança da Universidade de Londres. Autora de inúmeros ensaios, artigos e livros sobre Teatro Contemporâneo e Práticas Performáticas de Mulheres. , tanto para rechaçar as representações simplistas e estereotipadas impostas às experiências das populações historicamente subalternizadas quanto para desestabilizar a ideia de que as microrresistências não constituem práticas emancipatórias com potência transformadora (Aston; Harris, 2007ASTON, Elaine; HARRIS, Geraldine (Ed.). Feminist Futures? Theatre, Performance, Theory. New York: Palgrave Macmillan, 2007.)13 13 Elaine Aston é professora emérita do Instituto de Artes Contemporâneas na Lancas-ter University (Lancaster, Inglaterra), onde leciona Práticas Teatrais Feministas e Arte Performática. Geraldine Harris também é professora emérita da mesma instituição de ensino, lecionando, atualmente, Drama e Artes Performáticas. .

Certo é que, embora o conceito de performance tenha surgido na encruzilhada14 14 Tomo emprestada a noção de encruzilhada nos termos de Hartmann e Langdon (2020, p. 1-2). Segundo as autoras, “[n]a encruzilhada (lugar de cruzamentos, influências, divergências, cisões, fusões, rupturas, multiplicidades) entre Antropologia e formas expressivas em performance, danças, cantos, músicas, narrativas, jogos, brincadeiras, procissões, dramatizações, festas e festivais, manifestações sociais e políticas, rituais de vida e de morte recebem especial atenção, não apenas pelas interpretações ou pelas leituras do social que possibilitam, mas, sobretudo, pelos aspectos simbólicos, expressivos, poéticos, estéticos, políticos e reflexivos que evocam e que produzem”. dos estudos sobre ritual, teatro e linguagem, como ressaltam Luciana Hartmann e Esther Jean Langdon (2020)15 15 Luciana Hartmann é professora no Departamento de Artes Cênicas da Univer-sidade de Brasília (UnB) e Esther Jean Langdon, no de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). , a noção de performance propriamente - esteja ela sob o crivo desta ou daquela sensibilidade analítica, neste ou naquele campo (interdisciplinar) de estudo - aponta, ainda hoje, para uma variedade de usos e conotações que desafiam a compartimentalização dos múltiplos domínios em que se inscrevem as práticas culturais.

Em um ensaio de 2006, Bonnie Marranca16 16 Radicada em Nova York, é autora de inúmeros trabalhos sobre performance, dentre os quais os livros Theaterwritings (PAJ Books, 1984), Ecologies of Theatre (PAJ Books, 1996), Conversations on Arts and Performance (PAJ Publications, 1999, em coautoria) e Performance Histories (PAJ Publications, 2008). É, ainda, a editora-fundadora da revista Performing Arts Journal: A Journal of Performance and Art. sublinha que a performance, na verdade, permeia hoje todo o pensamento contemporâneo sobre as pessoas e as coisas, não importando tanto mais se para descrever um evento ao vivo ou uma encenação orquestrada/roteirizada, ou se para referirse à história, a uma sessão de terapia, a um ritual de sepultamento, a uma peregrinação; sejam quais forem, as principais questões do nosso tempo podem ser delineadas nos termos ou vistas sob as lentes da performance (Marranca, 2006MARRANCA, Bonnie. Performance, a Personal History. PAJ: A Journal of Performance, v. 20, n. 1, p. 3-19, 2006., p. 3, tradução livre)17 17 No original em inglês: “The word ‘performance,’ whether it describes a live event or personal acting-out; the features of a car, a perfume, a sound system; and whether it refers to history or therapy or the act of mourning, now shapes contemporary thinking about people and things. Some of the chief preoccupations of our time-namely, spectatorship, identity, memory, the body-are framed within the terms of performance”. . A autora então apresenta e discute o trabalho de uma série de performers que, no início dos anos 2000, passaram a diluir as fronteiras entre vivência e prática performática; dentre as inúmeras alusões a que recorre, ela cita o exemplo de Linda Montano, artista estadunidense da chamada Living Art que testemunhou a morte do pai, no ínterim dos anos em que atuou como sua cuidadora, desvelando todo o processo ritualístico ali envolvido (Marranca, 2006MARRANCA, Bonnie. Performance, a Personal History. PAJ: A Journal of Performance, v. 20, n. 1, p. 3-19, 2006., p. 7, tradução livre)18 18 No original em inglês: “We have come so far from distinguishing between art and life, the personal and political. And yet, the performing body is real and it is really there. What we have been witnessing in the arts in recent years is, I believe, a return to authenticity-to the real, the documentary”. .

Autoras como Diana Taylor19 19 Professora no Departamento de Estudos da Performance da New York Univer-sity e diretora-fundadora do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em Nova York. e Elin Diamond20 20 Cf. nota 4. também deslocam, em suas formulações, as teatralidades (artísticas) outrora determinantes e limitadoras da noção de performance para situá-las mais perto do domínio da experiência (cotidiana), porque é nele, de fato, que se articula a transmissão do conhecimento como presença. Enquanto Elin Diamond (1996)DIAMOND, Elin. Introduction. In: DIAMOND, Elin (Ed.). Performance and Cultural Politics. London; New York: Routledge, 1996. se dedica a examinar os traços que toda performance incorpora de outras performances, desde convenções de gênero e narrativas raciais até tradições estéticas, políticas e socioculturais, cada qual contendo seus “rastros” de cenas cotidianas já desaparecidas,21 21 “Every performance, if it is intelligible as such, embeds features of previous performances: gender conventions, racial histories, aesthetic traditions - political and cultural pressures that are consciously and unconsciously acknowledged” (Diamond, 1996, p. 1). Diana Taylor (2003)TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: performing cultural memory in the Americas. Durham and London: Duke University Press, 2003. considera as performances como atos de transferência vitais que refletem a especificidade cultural e histórica existente tanto na encenação quanto na recepção - na medida em que eles atuam como correntes vivas de memória a transmitir um sentido de identidade; trata-se, pois, segundo a autora, de admitir que aprendemos e transmitimos o conhecimento por meio de práticas incorporadas, o que equivale, em especial, a dar corpo às nossas próprias vivências.

Nesse caso, além de constituir prática cultural, a performance também se abre como possibilidade epistêmica, atuando como “lente metodológica que permite que pesquisador[as/es] analisem eventos como performances” (Taylor, 2013TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução: Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013., p. 27). Como uma coreografia de sentidos, ela oferece um modo de conhecer, que varia de comunidade para comunidade, recobrando a importância daquele necessário-urgente dedo na ferida (aberta pelo eurocentrismo): para revisarmos constantemente as nossas metodologias por meio do encontro com outras pessoas-interlocutoras, fazedoras de outros (tantos) sentidos.

Frente a essa premência, nosso primeiro papel como pesquisadoras pode ser o de admitir que o conhecimento se produz na esteira de e em diálogo com outras tantas formas de estar presente no mundo. Associado a isso, o principal desafio é enxergar que os Estudos da Performance foram se desenvolvendo, à imagem e semelhança das demais áreas dos saberes humanos, em um contexto multifacetado - de construção e recepção do conhecimento. E é impossível retirar desse contexto o peso diário dos eixos interseccionais de subalternização da existência, esteja ela sendo observada em qualquer uma de suas esferas produtivas.

Não há, noutros termos, como pensar criticamente a construção de saberes (incluídos os teóricos, os culturais, os artísticos) sem se considerarem as opressões interseccionais de gênero, raça, classe, sexualidade, localidade e mobilidade, por exemplo, como parte da equação de poder que nos circunscreve a todas, todes e todos. Quando um estudo - qualquer estudo, em qualquer área do conhecimento, que se proponha sério e complexo, no limite mesmo do confronto e da restituição de humanidades dilaceradas por práticas e estudos prévios - negligencia isso, ou se permite desatento às opressões interseccionais que fazem circular a nossa vida, corre o enorme risco de representar uma despesquisa, de trazer a público uma descontribuição intelectual, continuando a reproduzir epistemicídios22 22 É de Sueli Carneiro (2005, p. 33 e 60) (filósofa, escritora, ativista do movi-mento social negro-brasileiro e autora de inúmeras publicações dedicadas a pensar o feminismo) esse conceito de epistemicídio, desenvolvido em sua tese de doutorado, ao qual aqui recorro. Segundo a autora, trata-se de “um instrumento operacional para a consolidação das hierarquias sociais por ele produzidas [...] manifesta[ndo-se] também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre [a pessoa negra], enquanto é legitimado o discurso [da pessoa branca] sobre [a negra]”. .

Em termos práticos e diretos: no mesmo contexto em que se (auto)definiam “os mais importantes autores” dos Estudos da Performance, já fervilhava uma série de estudos de teóricas e críticas da cultura, muitas das quais com suas publicações de longa data no campo interdisciplinar dos feminismos, em que as principais questões da performance eram abordadas e elaboradas. À guisa apenas de uma breve demonstração: quase uma década e meia antes da publicação de Performance Studies: An Introduction, de Richard Schechner, cuja primeira edição é de 2002, Sue-Ellen Case23 23 Professora na Escola de Teatro, Cinema e Televisão da University of Califor-nia, em Los Angeles, e diretora do Centro de Estudos da Performance. É autora de dezenas de livros sobre a prática performática e internacionalmente reconhecida no campo da teoria e crítica lésbica. (1988) já havia lançado o livro Feminism and Theatre, que, a despeito de não apresentar, especificamente desde o título, a palavra “performance”, era aberto com uma importante consideração sobre as performances das mulheres contemporâneas serem tidas como inéditas, quando, na verdade, elas já ressoavam as de outras performadoras de velha data. A mesma situação, segundo a autora, pode ser observada também quando se trata das vozes teorizadoras da performance, que permaneceram (como muitas ainda permanecem até hoje) inaudíveis24 24 A esse respeito, destaco ainda a explicação da autora sobre a forma como o pa-triarcado racista opera para escamotear as performances e narrativas das mulheres pobres brancas e racializadas, lésbicas e daquelas tidas como “não atraentes” ou “inovadoras/empoderadas”, que foram deixadas de fora da história das práticas teatrais e performáticas em razão dos códigos culturais hegemônicos/canônicos. Mesmo o trabalho das chamadas “mulheres de elite”, lembra a autora, foi parcamente documentado e é ainda hoje pouco referido. No original em inglês: “The performances and narratives of poor women, women of colour, lesbians, 'unattractive' women and innovative women, who may have experimented in forms suited to their own private world rather than those of the public patriarchal one, were not considered significant in the history of theatre by virtue of the dominant cultural codes. Yet even the work of the socalled 'elite' women is only scantily documented” (Case, 1988, p. 28). .

Nessa mesma perspectiva, outro exemplo que consigo, de fácil memória, citar é o livro organizado por Elin Diamond, Performance and Cultural Politics, de 1996, em que ela e outras teóricas essenciais dos Estudos da Performance - como Peggy Phelan (1988PHELAN, Peggy. A Ontologia da Performance: representação sem reprodução. Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, Edições Cosmos, 1988.; 1993PHELAN, Peggy. Unmarked: the politics of performance. London and New York: Routledge, 1993.),25 25 Teórica estadunidense e professora de Estudos da Performance na Stanford Uni-versity, Califórnia. Uma das fundadoras da Performance Studies International, associação criada em 1997 para promover o intercâmbio artístico e acadêmico entre profissionais e intelectuais dedicadas/os à performance. É autora de inúmeras publicações, entre livros e artigos dos mais referenciados, nas Performances Culturais. Lynda Hart (1993)HART, Lynda; PHELAN, Peggy. Acting Out: Feminist Performances. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1993.26 26 (1953-2000) Teórica dos Estudos da Performance, feminista e uma das impor-tantes vozes estadunidenses da Teoria Queer. Foi professora da University of Pennsylvania, ministrando o primeiro curso sobre Teoria Queer da instituição, Feminist Theory: Queering the Literary: Theories and Fictions, em 1995. e Rebecca Schneider (1997)27 27 Professora de Artes Teatrais e Estudos da Performance na Brown University e autora de inúmeras publicações no campo das performances. Seu primeiro livro, The Explicit Body in Performance, de 1997, aborda artistas feministas que usam seus próprios corpos como espaço-palco para suas performances, sublinhando que as práticas performáticas das mulheres, que ela também chama de ações incorporadas, não podem ser vistas como se estivessem apartadas dos preconceitos de gênero, raça e classe, senão como parte dessa engrenagem opressiva que estrutura a nossa ordem social. - já asseveravam a importância de as pesquisadoras feministas se reapropriarem da performance como episteme, uma vez que também eram delas, e também de velha data, muitas das problematizações cruciais nesse campo de pesquisa.

A esse respeito, chamo, ainda, a atenção para o trabalho de Daphne A. Brooks, professora de Estudos Afro-Americanos e Teatrais na Yale University, em Connecticut28 28 É também autora de dezenas de artigos sobre raça, gênero, performance e cultura. . Publicado no início dos anos 2000, Bodies in Dissent: Spectacular Performances of Race and Freedom, 1850-1910 apresenta e analisa a prática performática de inúmeras afroestadunidenses, ainda pouco conhecidas, desde meados do século XIX até a primeira década do século XX. Trata-se de uma pesquisa de base ampla, minudente e inédita que incorpora também a contribuição de teóricas do feminismo negro que “inauguraram novas formas de pensar a política de representação do corpo negro no imaginário cultural” (Brooks, 2006BROOKS, Daphne A. Bodies in Dissent: Spectacular Performances of Race and Freedom, 1850-1910. Durham; London: Duke University Press, 2006., p. 40, tradução livre)29 29 No original em inglês: “[My] study is inspired by the advances of black femi-nist theorists who have opened up new ways of considering the representational politics of the black body in the cultural imaginary”. .

Várias outras autoras se somam às aqui já mencionadas estudiosas da performance - seja como prática cultural ou lente metodológica. Suas pesquisas, a maioria das quais de longa data, além de numerosas, também transitam por diversas áreas do conhecimento inspirando abordagens interdisciplinares e se estabelecendo no limiar das múltiplas linguagens e transiências que encorpam as análises e teorias performáticas.

O que grande parte dessas pensadoras - senão todas elas - apresentam em comum é a forma como suas escritas se aproximam de nós, teóricaspesquisadoras. Suas contribuições são, noutras palavras, olhares para os atos performáticos da cultura contemporânea que teorizam sobre eles sem apartá-los das nossas vivências. Uma primeira explicação plausível para essa nossa percepção de proximidade vem decerto de uma necessidade ainda tão pulsante-de-acontecer nos sistemas de produção do conhecimento: a de decolonizar as epistemes, criando-esparramando outras. Falar em decolonizar é, sobretudo, falar de um movimento processual que vai da desfocalização (do olhar) à interrupção (dos sentidos do mundo), culminando na restituição das nossas humanidades. Desfocalizar, interromper e restituir estão, portanto, no cerne do que compreendemos como processo decolonizador ou decolonizante - das formas com que nos vemos no mundo e performamos nossas visibilidades dentro dele.

Lugares epistêmicos de produção nos Estudos da Performance

Respeitados os variados campos de estudo e suas respectivas abordagens sobre a noção de decolonialidade, uma ideia principal a circunscreve: a problematização da geopolítica do conhecimento e do lugar epistêmico de enunciação (nela envolvidas a criação, a circulação e a recepção das práticas culturais).

Irit Rogoff30 30 Professora do Departamento de Cultura Visual da Goldsmiths (Universidade de Londres). Tem sem fim de trabalhos dedicados à deslocalização do olhar sobre a cultura visual contemporânea e ao entendimento da produção de imagens como experiência cotidiana, não mais sob o crivo da História da Arte. , uma das teóricas da Cultura Visual mais atuantes hoje em dia nas discussões sobre a socialização do olhar, questiona o que seria possível enxergar, para além da superfície, na conhecida demarcação de visibilidades que compõe as “grandes narrativas”, fundadas sob uma ordem cultural que já herdamos pronta (ou seja: masculina, branca, abastada, heteronormativa e territorializada). No importante artigo Looking Away: Participations in Visual Culture, a principal resposta encontrada pela autora para tal questionamento demanda, sem dúvida, a desfocalização do que vemospercebemos. Em inglês, looking away significa, literalmente, desviar o olhar - deslocalizar, desfocalizar. O que a autora pretende é compreender como esta desfocalização pode ser, no âmbito da cultura contemporânea, não apenas um ato de resistência, mas uma forma alternativa de apropriação - a que ela também se refere como participação. “O que acontece quando desviamos o olhar [das formas hegemônicas]? Quando o redirecionamos para lugares e contextos nos quais devemos realmente concentrar nossa atenção? Vamos, ou não vamos, afinal, abrir um espaço de participação cuja dinâmica seremos nós mesmas/os/es a inventar?” (Rogoff, 2005ROGOFF, Irit. Looking Away: Participations in Visual Culture. In: BUTT, Gavin. After Criticism: new responses to art and performance. Oxford: Blackwell Publishing, 2005., p. 126, tradução livre)31 31 No original em inglês: “What is it that we do when we look away? When we avert our gaze in the very spaces and contexts in which we are meant to focus our attention? When we exploit the cultural attention and the spatial focus provided by, and insisted on, by museums, galleries, exhibition sites, and studios to cajole some other presence, some other dynamic in the space, into being? Are we producing the ‘affirmation through negation’ [...], or are we opening up a space of participation whose terms we are to invent?”. .

As reflexões da filósofa espanhola Marina Garcés (2013)GARCÉS, Marina. Un Mundo Común. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013. nos ajudam a compreender a importância da ruptura como aliada desse movimento de desvio descrito por Irit Rogoff: uma vez desfocalizada, nossa sensibilidade analítica precisa se dedicar a interromper as estruturas opressivas, e só conseguiremos isso com o que a autora propõe como prática de afeto32 32 Que se desdobra, infalível, em dois principais sentidos: como afeição e como relação (aquilo que nos diz respeito, que nos afeta). , ou seja, aquele gesto-movimento de nos deixarmos afetar pelo mundo, desreproduzindo as hegemonias que não nos envolvem, que não nos tocam, que não nos atingem. Descobrir, noutros termos, a potência que o olhar - decolonial(izante) - carrega, para, então, ser possível interromper o sentido do mundo, equivale a “[...] encontrar formas de intervenção que permitam ao nosso olhar desviar o foco - que o direciona e controla - de modo que ele consiga perceber e questionar o que escapa das visibilidades consensuais” (Garcés, 2013GARCÉS, Marina. Un Mundo Común. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2013., p. 111, tradução livre)33 33 No original em espanhol: “Necesitamos encontrar modos de intervención que apunten a que nuestros ojos puedan escapar al foco que dirige y controla su mirada y aprendan a percibir todo aquello que cuestiona y escapa a las visibilidades consentidas”. . Eis que este envolvimento afetuoso com o mundo é o que nos permitirá, segundo a autora, morder a realidade, pulando em cima com os nossos próprios sentidos.

Desfocalizando a forma de olhar para a complexa rede dos processos culturais contemporâneos - para, assim, interromper as experiências opressivas impostas às populações historicamente silenciadas-invisibilizadas - é o que proporcionará a restituição da nossa humanidade, a criação, enfim, das nossas próprias formas de ver e dar a ver, de conhecer e dar a conhecer, de construir e esparramar as nossas próprias epistemologias.

Em um primeiro movimento nessa direção, considerar as práticas culturais como performances cotidianas torna possível enxergá-las fora daquele já empoeirado ideal de humanidade produtora do conhecimento (que se assimila, em regra, como europeu) e mais intimamente como composição. O sentido de composição, neste caso, são essencialmente dois: a relação que a performance estabelece com o mundo (em termos formais e afetivos, no plano da vivência) e, ao mesmo tempo, a capacidade que ela tem, como lente metodológica e sensibilidade analítica, para despensar esse mesmo mundo (e aqui podemos imaginar o despensar como uma decomposição-feita-pararecompor).

Ora, é possível decompor-para-recompor: teatralidades, textualidades, sonoridades e visualidades, que integram, por assim dizer, as materialidades da experiência. Tal processo inclui abordar a complexidade do mundo sem reduzi-lo a um repertório imaginativo hegemônico (de formas fixas-deolhar) nem a uma ordem pasteurizada (que remonta a apenas algumas dentre as várias outras percepções possíveis). Pensar na experiência como composição quer dizer, em resumo, que as múltiplas e infindáveis performances que deflagramos ou testemunhamos não se limitam às formas (implícitas ou explícitas) de entendimento baseadas em parâmetros de decisão, julgamento e determinação que a “razão moderna” (leia-se: razão-colonialexpropriadora-de-culturas) outorgou a partir do século XVI e ainda outorga, em pleno século XXI.

Essa tese - da socióloga brasileira Denise Ferreira da Silva, atualmente professora da University of British Columbia, no Canadá - presume, como contrapartida ao sistema moderno das categorias, a aproximação a uma matéria, por assim dizer, em estado bruto ao analisarmos as performances da cultura. O caminho metodológico escolhido é, no campo da teoria e da crítica, o que ela chama de “ética-poética” (poethics, no original em inglês), com vistas a decompor-para-recompor o valor expropriado das terras colonizadas, dos corpos escravizados, das práticas culturais silenciadas, no âmbito das materialidades deixadas porta-afora do que é considerado como experiência cultural pelas modalidades kantianas de subjugação racial e colonial que operam com plena força no nosso presente global (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019., p. 46).

Tal perspectiva, segundo a autora, faz despontar a possibilidade de uma poética (de interpretação) material e decompositiva, como um tipo de re/de/composição que não mais mobilize os pilares onto-epistemológicos do pensamento moderno (Ferreira da Silva, 2019FERREIRA DA SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019., p. 48-49). O que isso quer dizer é que é impossível (no sentido de ser impraticável epistemologicamente, ou mesmo insustentável eticamente) que a atribuição de valor às performances culturais que circulam na contemporaneidade (“formas do objeto de arte ou da natureza”, nos termos kantianos recuperados pela autora) continue a se estabelecer sob a égide de uma determinabilidade baseada nessa razão dita moderna (leia-se de novo: colonial), como lugar de onde se outorga certa “universalidade subjetiva” para se chegar ao conhecimento, à apreciação e ao julgamento dessas práticas. Para se chegar, numa palavra, à sua legitimação.

No fim das contas, quando propõe decompor-para-recompor a visão ao analisar os atos performáticos da cultura contemporânea, a autora está propondo restituir da própria experiência incorporada, ali expressa na matéria da encenação sob análise, a sua humanidade - é assim que esses atos transmitem memórias, deflagram reivindicações políticas e/ou manifestam o senso de identidade de um grupo, como defende Diana Taylor (2013)TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução: Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013..

Onde estão as grandes teóricas mulheres nos Estudos da Performance?34 34 Fico sempre, em meus escritos, tentada a retomar a célebre pergunta feita meia década atrás pela historiadora da arte estadunidense Linda Nochlin (1971; 2016) - Por que não houve grandes artistas mulheres?. Com este subtítulo, reconfiguro, pois, esse mesmo questionamento no âmbito dos Estudos da Performance: afinal, por que não “existiram” - ou ainda hoje não “existem” - grandes teóricas mulheres?

Uma pergunta imediata que deriva da provocação contida no subtítulo acima é: por que, apesar de “também várias”, “também de longa data”, “também precursoras” e “também institucionalizadas” (como um breve transitar, nos itens anteriores deste artigo, pelas formulações teórico-críticas das autoras aqui mencionadas foi capaz de pelo menos sugerir), por que, enfim, essas autoras e outras inúmeras teóricas que também publicam ativamente ainda aparecem pouco em nossas reflexões e nos nossos textos sobre performance? Questionamento que se desdobra pelo menos em dois outros: como nossos planos de trabalho na universidade ainda não acolhem a produção feminina na mesma medida em que fazem constar a de autores cujas teorias são sempre tidas como “pioneiras”, ou “imprescindíveis”, ou “as mais relevantes”? Como, afinal, podemos dialogar mais com a produção teórica das mulheres nos Estudos da Performance, incorporando esta produção à nossa prática acadêmica e à nossa escrita científica?

Analisando localmente, como forma de trazer para perto o nosso contexto de produção epistêmica, um breve levantamento sobre a difusão dos saberes teóricos publicados por mulheres que atuam hoje em dia no campo das Performances no Brasil - ou em áreas tidas como afins, como a Antropologia, os Estudos Culturais, a Sociologia e a Cultura Visual - traz à cena um quadro no mínimo intrigante. Examinando, por exemplo, os artigos mais recentes publicados por mulheres nos periódicos mais bem avaliados no Qualis da Capes (A1, A2, A3 e A4), alinhados aos Estudos da Performance ou em diálogo com eles, é possível constatar que as próprias autoras, em seus estudos e escritos, ainda fazem poucas referências a elas mesmas, preferindo ou reforçar o cânone (composto, via de regra, por homens, brancos, europeus ou estadunidenses), ou basear suas análises, na maioria das vezes, nas formulações de pesquisadores, e não das pesquisadoras.

Dos dez artigos publicados por mulheres em 2022 na Revista Brasileira de Estudos da Presença (Qualis A1), periódico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul35, em apenas três a referência a autoras, em um mesmo texto, foi superior à de autores36 36 Para esse levantamento, o corpus foi composto de artigos em que apenas mulheres constavam como autoras. Coautorias foram consideradas somente quando se tratava de autoras escrevendo juntas; textos em que elas figuravam como coautoras em parceria com um ou mais pesquisadores foram desconsiderados. .

Panorama semelhante se observa na Revista de Antropologia (também Qualis A1), da Universidade de São Paulo:37 37 ISSN: 1678-9857. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/12182. Acesso em: 21 set. 2022. dos cinco artigos publicados em 2022 por mulheres, apenas dois dialogam mais com pesquisas de autoras que com a de autores.

Já na Fênix, Revista de História e Estudos Sociais (Qualis A2), periódico interdisciplinar do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura da Universidade Federal de Uberlândia38 38 ISSN: 1807-6971. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix. Acesso em: 21 set. 2022. , dos cinco textos de autoria feminina coletados para análise que se relacionam com os Estudos da Performance, todos de 2022, em apenas um houve mais referência a autoras que a autores.

Por fim, na última edição da revista Repertório (também Qualis A2), do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia,39 39 Apesar de editada no final de 2021, a referida edição foi publicada no site da revista em maio de 2022. ISSN: 2175-8131. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/issue/view/2253. Acesso em: 21 set. 2022. considerando os oito artigos de mulheres mais recentemente publicados, quatro apenas foram os textos em que mais referências a pesquisas de autoras foram feitas.

Felizmente, estamos diante de um panorama já melhor do que o observado, por exemplo, meia década atrás (Gráficos 1 e 2). Tendo em vista os mesmos periódicos examinados, de um total de 59 artigos de autoria feminina avaliados em 2017, em apenas 16 deles há mais referências a autoras do que a autores, o que corresponde ao percentual desolador de 27%,40 40 Embora ainda modesto, meia década depois, em 2022, esse percentual já é 11% maior. confirmando que mesmo as autoras que escrevem sobre performance referem-se pouco a elas mesmas, já que a maioria ainda fundamenta suas reflexões em teorias de autores.

Gráfico 1
Referências a autoras em 59 artigos selecionados para análise, todos publicados por mulheres, em quatro periódicos com avaliação A no Qualis da Capes - ano 2017. Fonte: Elaboração da autora.

Gráfico 2
Referências a autoras em 28 artigos selecionados para análise, publicados por mulheres, em quatro periódicos com avaliação A no Qualis da Capes - ano 2022. Fonte: Elaboração da autora.

Gráfico 3
Número de publicações de pesquisadoras em comparação com o de pesquisadores na última década, em quatro periódicos com avaliação A no Qualis da Capes (2012-2022)42 42 Cf. nota anterior. . Fonte: Elaboração da autora.

Pode-se cogitar, frente a esses dados, que mais autores têm publicado nos principais periódicos brasileiros alinhados ao campo das Performances Culturais, enquanto menos mulheres têm se dedicado à produção teóricocrítica. Paradoxalmente, quando analisamos as mesmas quatro revistas nacionais selecionadas aqui para exame, nelas é possível constatar que foram as mulheres que publicaram mais na última década. Entre 2012 e 2022, de um total de 2017 artigos, 1054 são de autoria feminina (o equivalente a 53%)41 41 Os dados coletados são das últimas 33 edições da Revista Brasileira de Estudos da Presença, das últimas 22 edições da Revista de Antropologia da USP e da Fênix - Revista de História e Estudos Sociais, todas publicadas entre 2012 e 2022. Como a Repertório lançou seu último número em 2021, projetei a coleta de dados entre os anos de 2011 e 2022. , atestando que pesquisadoras vêm publicando mais que pesquisadores.

Evidentemente, um estudo quantitativo interseccional mostraria nuances mais apropriadas e, portanto, ainda mais assoladoras. Isso significa que, além do gênero, seria essencial avaliar também sua intersecção com outras categorias de opressão, como raça, classe, sexualidade, localidade, filiação institucional, dentre outros marcadores sociais da diferença.

Mesmo assim, tendo em vista apenas o gênero como categoria de análise do presente estudo, é patente a desigualdade estrutural que ainda permeia a recepção das formulações teórico-críticas das mulheres. Assim como no campo da Antropologia parece “natural” aceitarmos, sem muitos questionamentos, a “grandeza” ou o “brilhantismo” ou mesmo a “produção mais abundante” de autores como Claude Lévi-Strauss, Malinowski, Clifford Geertz, Marcel Mauss e, no Brasil, de Darcy Ribeiro,43 43 Isso quando pouco, porque, quando muito, eles são referidos, sem nenhuma problematização ou pudor, como “pais da Antropologia”. também nos Estudos da Performance costuma-se elencar um rol análogo de “principais autores”, ou de “autores pioneiros”, e daí por diante.

Richard Schechner, Milton Singer, Victor Turner, Richard Bauman, John Dawsey, dentre dezenas de outros - não que não sejam autores importantes ou que suas contribuições teóricas não devam ser consideradas expressivas, relevantes, indispensáveis. É que, para além da capacidade de todos eles e da relevância de seus trabalhos, o que deve também nos interessar é, em um primeiro (imediato) momento, a problematização das territorialidades limitadoras de tais teorias - da genderização à racialização, até outras formas de aviltamento hierarquizado(r).

A importância da autoteoria como lugar de resistência e reparação histórica

Em um de seus memoráveis artigos, apresentado em 1975 no 1st International Symposium on Ethnopoetics44 44 O evento aconteceu na Universidade de Wisconsin, em Milwaukee, EUA. O título do artigo é “Ethno or Socio Poetics” (Wynter, 1976). e publicado no ano seguinte pela revista Alcheringa, a filósofa e crítica cultural estadunidense Sylvia Wynter45 45 Nascida em Cuba em 1928, é professora emérita da Stanford University, na Califórnia, EUA, e uma das principais intelectuais-ativistas do mundo anglófono-caribenho hoje em dia. Seus estudos teóricos se dedicam a refletir sobre os movimentos anticoloniais globais em associação com os estudos raciais e de gênero. É também romancista e dramaturga. reforça a importância de nos desvincularmos dos repertórios modernoscoloniais de conhecimento, propondo isso pelas vias de uma essencial rebeldia epistêmica46 46 Da qual, aliás, ela jamais abriu mão ao falar sobre praticamente tudo: desde poesia, psicanálise e etnografia até fatos jornalísticos, episódios cotidianos e eventos da cultura contemporânea. Sublinho, além disso, que, embora a autora tenha começado a formular o conceito de “rebeldia epistêmica” e a incorporálo na prática de seus escritos desde os idos da década de 1970, foi atribuída ao semiólogo argentino Walter Mignolo, um dos fundadores do grupo Modernidade/Colonialidade, a originalidade do conceito “desobediência epistêmica”. . A autora recobra, nesse artigo, o percurso colonial moderno, no curso do qual a Europa inventou, de si para si, um conceito de outridade para justificar a lógica de escravizar-e-dominar pessoas e culturas, o que basicamente incluiu: a separação entre a natureza e a noção de humano; a vinculação das pessoas não europeias à natureza, acompanhada de sua exclusão da noção de humanidade; e, finalmente, a criação de uma narrativa para naturalizar tal brutalidade (epistemicida)47 47 A referência aqui, uma vez mais, é à análise feita por Sueli Carneiro (2005) em sua tese doutoral sobre o epistemicídio, o que me faz sublinhar, uma vez mais, a importância dessa contribuição teórica no contexto da produção feminista no Brasil. A argumentação principal da autora se fundamenta nas práticas historicamente legitimadas de embranquecimento cultural e nas tentativas cada vez mais sofisticadas de branqueamento epistemológico direcionadas aos grupos subalternizados, inclusive as mulheres e especialmente as populações negras. .

Ora, se a linguagem legitimada como humana não foi a linguagem daquela outridade inventada e cuja dominação desde ali se autorizou, tampouco suas narrativas (envolvendo tudo: a vida, a cultura, as artes, os hábitos, os cotidianos, a história e a memória) de conhecimento do mundo são aquelas que dizem respeito a essa noção de humanidade. Sob esta perspectiva, Sylvia Wynter então conclui que nós não precisamos de uma etnopoética - já que, para ela, uma poética da outridade apenas reafirmaria a segregação entre nós e outrem, e esta será uma linguagem que continuará direcionando o nosso olhar para as experiências das outras pessoas como apartadas. Precisamos, em vez disso, de uma linguagem que nos relacione, que não segregue quem conhece e quem (se) dá a conhecer. Precisamos, pois, de uma poética (e a autora está falando tanto de uma poética de nomear, pela linguagem, como de uma poética de performar, com o corpo) que nos leve a romper com as formas de imaginar o mundo para inscrever nesse mesmo mundo outras formas - nossas próprias - de conhecê-lo.

Essa perspectiva vem sendo retomada, atualmente, por autoras que se dedicam a pensar a construção epistemológica como autoteoria. Para Lauren Fournier (2021)FOURNIER, Lauren. Autotheory as a feminist practice in art, writing, and criticism. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2021., por exemplo, a autoteoria é um conhecimento que floresce em espaços não usuais da produção escrita, fundindo pesquisa científica e narrativa pessoal. A autoteoria revela, neste sentido, “[...] a fragilidade das separações entre arte e vida, teoria e prática, produção e sujeita/e/o que produz, pesquisa e motivação, como, aliás, tanto as artistas quanto as teóricas feministas já vêm argumentando há muitas décadas” (Fournier, 2021FOURNIER, Lauren. Autotheory as a feminist practice in art, writing, and criticism. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2021., p. 12, tradução livre)48 48 No original em inglês: “Autotheory reveals the tenuousness of maintaining il-lusory separations between art and life, theory and practice, work and the self, research and motivation, just as feminist artists and scholars have long argued”. .

É nessa toada que compreendo a escrita das teóricas da performance como escrita incorporada, que se presentifica em um espaço no qual a pesquisa e a prática, a formulação teórica e a experiência cotidiana se encontram. Esta justaposição de estudo crítico com escrita de si49 49 Refiro-me aqui, por analogia, à “aventura de contar-se” proposta por Marga-reth Rago (2013). é, como lembra Sara Ahmed (2022)AHMED, Sara. Viver uma Vida Feminista. Tradução: Jamille Pinheiro Dias, Mariana Ruggieri e Sheyla Miranda. São Paulo: Ubu Editora, 2022.50 50 Nascida em Salford, Inglaterra, filha de pai paquistanês e mãe inglesa, Sara Ahmed migrou com a família para a Austrália no início da década de 1970, onde cresceu. É doutora em Teoria Crítica pela Adelaide University, tendo iniciado sua carreira acadêmica no Reino Unido, na Lancaster University, onde desenvolveu pesquisas na área dos Estudos de Mulheres entre 1994 e 2004. Autora de dezenas de livros sobre feminismos e interseccionalidade, é atualmente pesquisadora independente, atuando também como palestrante e organizadora de seminários e workshops. , o que nos permite, na condição de teóricas, produzir uma base de conhecimento fornecida por experiências vividas no corpo. Foi assim, aliás, conforme conta a autora, que ela decidiu, alguns anos atrás, que o trabalho teórico que gostaria vez por todas de desenvolver seria aquele em contato com o mundo, um trabalho que a colocasse mais próxima que nunca do cotidiano. Afinal de contas, se a teoria em si costuma ser considerada abstrata e se, por conseguinte, “abstrair é arrastar, separar, apartar ou desviar [...], talvez seja necessário arrastá-la de volta, trazer a teoria de volta à vida” (Ahmed, 2022AHMED, Sara. Viver uma Vida Feminista. Tradução: Jamille Pinheiro Dias, Mariana Ruggieri e Sheyla Miranda. São Paulo: Ubu Editora, 2022., p. 23).

Da autoteoria às teóricasvivências: o nosso (enfim) lugar de cura

Uma das mais extraordinárias ciladas da linguagem - em qualquer de suas manifestações - é a sua impossibilidade de ser neutra. Materializada ou ainda sonhada como imagem, palavra, ruído e além, a linguagem é coração vivo dentro do peito. Performa(-se na) e pulsa de mãos dadas com a história, escolhendo um lado da narrativa, tomando partido. E, então, ao se abrir reclamando presença, estará sempre em posição de contemporizar ou desobedecer, açoitar ou desoprimir. Política, poética, teórica, retórica, prosaica, artística - performática, a linguagem constrói epistemologias. E epistemologias não dizem respeito apenas aos paradigmas que validam o nosso conhecimento sobre o mundo, senão também - e talvez essencialmente - ao próprio mundo que criamos com a linguagem. Por isso, mais do que nunca precisamos saber falar a língua da emancipação que tanto reivindicamos. Falar exatamente. Diretamente. Em linguagem própria. Confrontando, na prática-que-se-quer-presença, as opressões que continuam a moldar a vida das pessoas, a nossa própria vida.

Pois-sim: não faz muito tempo, defendi minha tese de doutorado (Piva, 2021PIVA, Carolina Brandão. (as outras fazedoras de sentidos) imaginaturas e visuaisvivências das artistas de goiás. 2021. 388 f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Visual) - Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/11441/3/Tese%20-%20Carolina%20Brand%c3%a3o%20Piva%20%202021.pdf. Acesso em: 28 dez. 2022.
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), que, alinhada ao campo da Cultura Visual e na esteira dos estudos feministas negros e decoloniais, destinou-se tanto a ouvir as narrativas de mulheres do estado onde vivo atualmente quanto a ver-reconhecer suas criações artísticas como práticas sociais, também fazedoras de sentidos. (Para além, portanto, das configurações canônicas de visualização historicamente impostas pelo cisheteropatriarcado racista pasteurizador-europeizante).

Lembro novamente aqui que, àquela época, dentre as tantas leituras que eu fazia no ziguezague-dos-dias-correndo, fui ter com um dos mais bonitos livros (e o mais recente romance) da escritora afrocaribenha-canadense Dionne Brand51 51 Além de romancista, Dionne Brand é poeta, ensaísta, professora universitária, documentarista e produtora de cinema. Nasceu em Trinidad, ilha caribenha perto da Venezuela, em 1953, mudando-se para o Canadá (onde vive até hoje) ainda na adolescência. “Sapatona preta da diáspora”, como diz dela a poeta Tatiana Nascimento, uma de suas tradutoras no Brasil, Dionne Brand ganhou prêmios internacionais de relevo, como o Governor General’s Award for Poetry (com o livro Land to Light On, de 1997) e o Toronto Book Award (duas vezes, em 2006 e 2019, com os romances What We All Long For e Theory, respectivamente). . Theory traz à cena uma personagem que acredita no poder curativo do conhecimento; imersa na escrita de sua tese, perto dos seus já quarenta anos de idade, como eu mesma estava na época, a protagonista (deixada, propositadamente, sem nome pela autora e desconfinada, portanto, dos binarismos de gênero que integram também as nomeações) vive o seu processo de doutoramento enquanto performa, ela mesma, a sua tese (n)a vida-vida.

No ínterim dessa escrita, que já dura cerca de quinze anos, a narradora compartilha, tendo ocorrido cada qual em seu respectivo tempo, as experiências amorosas com três mulheres companheiras-de-viver: Selah, Yara e Odalys (que é, aliás, quem coloca nela o apelido Teoria)52 52 Que, além de significar teoria (constructo crítico-teórico), propriamente, também remonta, por sua raiz grega, à noção de espectador/a. A narradora está o tempo todo questionando a construção do conhecimento acadêmico, suas formas de validação e circulação. . Enquanto no romance se problematiza, diante dos nossos olhos e por meio de uma escrita nitidamente metalinguística, o gesto acadêmico de referenciar os mesmos autores (sim, em sua maioria homens, brancos, do alto de alguma zona luminosa de poder e prestígio), também ali se evidenciam duas aindaurgências na esfera da produção contemporânea do conhecimento: a ampliação do espaço para mulheres na academia, como produtoras de sentidos, e o desmantelamento da falsa dicotomia entre teoria e prática.

Principalmente sob este ângulo, é muito sensível e reverberante o teóricorromance de Dionne Brand. A começar pela nota inicial, “Occam’s razor”53 53 A expressão pode ser traduzida, literal e livremente, como “a navalha de Oc-cam”. Trata-se do conhecido “princípio da parcimônia”, ou “lei da parcimônia”, segundo o qual teorias mais simples devem ser preferidas até que apareça outra com um maior poder explicativo. No âmbito do conhecimento científico, a “navalha de Occam” é usada no romance de Dionne Brand a fim de ilustrar uma espécie de heurística para orientar cientistas no desenvolvimento de modelos teóricos. , em que a narradora destaca a necessidade de fazer uma pausa para pensar melhor a sua tese-vida - isto é, todo aquele processo de vivência da tese e de escrita dos dias nos dias. É preciso, segundo ela, admitir que o melhor a fazer é acertar logo, pelo menos de si para si, uma conta ainda cobrada dela de forma tão desproporcional, começando com aquela obrigação de assistir a seus insuportáveis colegas-pesquisadores, com apenas metade da sua inteligência, chegando mais longe que ela na vida.

No correr das páginas, Theory se vai tecendo como escrita performática54 54 Quando falo em escrita performática, estou pensando, especialmente, na lin-guagem como prática cultural imiscuída, como toda linguagem, em uma complexa matriz de poder que serve a interesses diversos. Noutros termos, estou imaginando basicamente: uma escrita que caminha por outros modos de percepção da realidade e que, com isso, presentifica-se como texto sob outras perspectivas; o caráter processual desse escrever, que, para mim, equivale tanto mais a inscrever(-se); o espaço que o cotidiano ocupa na linguagem e viceversa; e o deslocamento dos códigos hegemônicos da escrita (que, via de regra, afastam as possibilidades criativas da linguagem, inclusive da acadêmica). em que a pesquisa e a prática, a formulação teórica e a experiência cotidiana se encontram. É nesse atravessamento de vivências que borbotam os projetos da autora-protagonista para a criação de uma nova epistemologia (de modo que pesquisadoras como ela se façam visíveis no “mundo da ciência”), ao passo que também vemos intensificar-se a sua luta diária pela transformação desse mesmo mundo em um lugar ocupado por outras vozes e que possa ser considerado sob a perspectiva de outras sensibilidades analíticas; um lugar, afinal, onde múltiplas práticas incorporadas55 55 Aludo, sem dúvida, uma vez mais, às formulações da teórica estadunidense Di-ana Taylor, para quem, por serem práticas incorporadas (cujo potencial transformador está na presença), as performances transmitem memória e identidade cultural e, portanto, funcionam como “modos de conhecer”, revelando “o caráter mais profundo, mais verdadeiro e mais individual da cultura” (2013). Daí ser inviável, por exemplo, que sejam vistas sob a lógica binária (universalizante) de “uma verdade mais verdadeira” aqui, e outra menos ali. , que ao mesmo tempo ligam e fragmentam as nossas vivências, deem corpo aos variados fenômenos de mobilização imaginativa da experiência, neles incluída a performance acadêmica.

Esta escrita que cria novas formas (contra-hegemônicas) de ver o mundo é a mesma que performa um encontro imprescindível entre estética e política; que encara e procura rechaçar as contradições de uma “língua acadêmica” feita para segregar, em vez de conectar; e que luta para aproximar o “mundo lá fora” das nossas experiências práticas.

Falo aqui de uma escrita que, ao performar um repertório inobediente e já arredado daquela inventada precisão de “neutralidade/imparcialidade no discurso”, ensina novos mundos, como lembra bell hooks (2013)hooks, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013. em um de seus ensaios56 56 “A língua: ensinando novos mundos/novas palavras”. sobre a importância de outras escrituras; mundos, a propósito, situados muito além do colonialismo que ainda opera no âmbito da linguagem-que-se-pretende-episteme-conhecedora-universal-do-mundo. Para bell hooks, não há, enfim, como teorizar sem despojar a própria escrita dos vínculos historicamente impostos entre língua e dominação.

Em outro ensaio do mesmo livro57 57 “A teoria como prática libertadora”. , a autora se dedica especificamente a pensar a teoria como prática libertadora. Inicia o texto contando que chegou à teoria porque estava machucada, desesperada, ávida por entender o que acontecia “no mundo lá fora” e dentro dela mesma, isto é, em conexão com suas próprias vivências. Assim como para Dionne Brand, no romance aqui mencionado, para bell hooks a teoria ficou sendo um lugar de cura. “Um refúgio na teorização” é o que ela confessa ter encontrado, já que ali, naquele espaço em que desapareciam as hostilidades do “conhecimento não autorizado”, ela se viu pela primeira vez com a chance de imaginar futuros alternativos e muito mais próximos, de entender o que estava acontecendo diante dos seus olhos, de encontrar “um lugar onde a vida podia ser diferente”, e foi justamente nesse lugar de cura que ela acessou “essa experiência vivida de pensamento crítico, de reflexão e análise” (hooks, 2013hooks, bell. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p. 85). Numa palavra: a teoria.

Ora, pensar a teoria na esteira desse raciocínio, compreendê-la como prática social cotidiana em vez de tão só confinada aos meandros e melindres dos arquivos ou daqueles repertórios58 58 Aludo aqui a esses conceitos conforme são desenvolvidos por Diana Taylor (2013) no livro O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Segundo a autora, o arquivo remete à ideia de “materiais supostamente duradouros”, como textos escritos, documentos, edifícios, restos arqueológicos, ossos, filmes, CDs etc. Já o repertório corresponde a práticas/conhecimentos incorporados, a exemplo das performances - gestos, oralidade, danças, cantos, movimentos etc. Há, portanto, para Diana Taylor, uma notória correspondência entre arquivo e cultura letrada e entre repertório e cultura iletrada; ela também contextualiza tal dicotomia nos termos de outras possíveis dualidades: memória arquival x memória cultural, saber universal/eurocentrado/legitimado x saberes periféricos, conhecimento legitimado x epistemologias subalternizadas e, dentre outras, performances tradicionais/desincorporadas x performances incorporadas. já consagrados, que mal consideram que a experiência varia de contexto para contexto e de comunidade para comunidade; enxergar, afinal, a teoria como um dentre os vários atos de transferência vitais que impulsionam o conhecimento, eis o crucial em qualquer movimento de ver e dar a ver, de conhecer e dar a conhecer, de desejar e articular, com mãos próprias, as sensibilidades com as quais se toma parte do mundo em que se vive.

Como eu ia dizendo na abertura deste texto, estive recentemente dedicada a estudar as performances do cotidiano que nos levam a conhecer melhor as experiências imaginativas das pessoas, ocasião em que desenvolvi uma pesquisa doutoral que me aproximou das criações de quinze artistas goianas, cidadãs-comuns não legitimadas pelo sistema da arte. Não suas obras, senão suas visuaisvivências foram o que considerei como presentificações da imaginação, e partiu essencialmente daí a analogia com as escrevivências de Conceição Evaristo se fazendo presença no texto da tese59 59 Considerei como visuaisvivências as presentificações das nossas experiências de imaginar com imagens, em notória vinculação, como já sublinhei, com o termo-conceito escrevivências, cunhado por Conceição Evaristo e marcante em toda a sua obra. Falar em escrevivência é falar de uma tessitura ficcional e poética a partir da experiência; é recobrar a escrita de si e dar a conhecer uma escrita da vivência. Quando levei essa noção-conceito para o campo da Cultura Visual, propus, com isso, pensar que, assim como a ideia de escrevivência está relacionada com uma escrita que tem como aporte o plano da experiência para reverter a lógica escamoteadora e surrupiadora das narrativas das populações afrodescendentes (que a “memória oficial” e a “história única” brutal e covardemente não outorgaram como legítimas), também no plano da produção de imagens-visualidades é mais que imprescindível semelhante movimento de restituição. Trata-se de uma essencial justaposição amalgamada que compôs o corpo teórico da minha tese doutoral, por meio do que, aliás, fundou-se também toda a proposta metodológica da pesquisa. Falar em visuaisvivências naquele contexto significou elaborar um caminho para a desfocalização do olhar (hegemônico, colonializante), projetando a percepção de outras formas de conhecimento das práticas artísticas que pululam em cotidianos próprios nossos como formas de socialização. .

Ocorreu, então, que, mesmo antes de defender a tese, fui vontadeando revisitar também as formas como nós (mulheres-pesquisadoras-teóricas) produzimos - ou não, ou talvez ainda pouco - as nossas próprias epistemologias-de-olhar para as performances culturais na contemporaneidade.

Não se tratava deste nem daquele tipo de binarismo essencialista, como ouvi, recentemente, durante uma apresentação que fiz em um congresso em Portugal, um pesquisador se referir, sob o verniz de crítica produtiva, ao mapeamento de intelectuais mulheres que venho realizando nas áreas do conhecimento pelas quais transito e desde as quais escrevo; tampouco se trata de mera procura por semelhanças e dessemelhanças entre a produção de mulheres teóricas e os (muito mais conhecidos) teóricos da performance. É - este meu exercício intelectual - uma proposta de deslocalização do olhar, com a consequente (e igualmente necessária, para não dizer premente) dedicação-estudiosa às epistemologias produzidas por mulheres, no âmbito do que venho tomando a liberdade de cunhar como teóricasvivências.

Defendo como inadiável esse movimento no campo das Performances Culturais, já que nele também nos referimos pouco, bem menos, ou muito insatisfatoriamente ainda, às formulações das teóricas em comparação com as referências que fazemos aos escritos dos teóricos. Isso não acontece, como poderia ser (e já foi, aliás, muitas vezes) conjeturado, em razão de as mulheres escreverem menos, teorizarem menos ou publicarem menos, senão, propriamente, porque sua escrita teórica ainda não é devidamente referenciada, conhecida nem legitimada em comparação com a dos sem fim de “pais de tal-ou-qual noção”, “pioneiros em tal-ou-qual campo de estudo”, “cunhadores deste-ou-daquele conceito”.

Como sensibilidade analítica, a performance nos instiga a problematizar essa colonialidade arraigada às epistemes impostas como “universais”. Instiga-nos, ainda, a observar quão inviável é falar sobre as questões que nos afetam e interessam por meio de aproximações estranhas às nossas vivências, ou partindo de narrativas elaboradas por sujeitos descorporificados. Como aprendemos e transmitimos o conhecimento por meio de ações incorporadas (Taylor, 2003TAYLOR, Diana. The Archive and the Repertoire: performing cultural memory in the Americas. Durham and London: Duke University Press, 2003.), nos compete considerar também o papel do corpo fazedor na construção do conhecimento, tanto quanto a espacialidade e a temporalidade das epistemologias que criamos ou utilizamos como repertório nos Estudos da Presença.

Ora, “para sairmos d[a] cilada da episteme do conhecimento”, como defende Suely Messeder (2020MESSEDER, Suely. A Pesquisadora Encarnada: uma trajetória decolonial na construção do saber científico blasfêmico. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020., p. 165), “devemos implodir o mapa epistêmico, questionar os espaços privilegiados, as fronteiras, os fluxos e as direções que o estruturam dessa forma, cuja aparência é de uma lei natural”. E o papel que a universidade deve assumir nessa construção é irrefutável.

Em Producing Knowledges That Matter: Practicing Performance Studies Through Theatre Studies, Jill Dolan lança justamente luz sobre como a universidade pode fomentar ou obstruir certos conhecimentos. A autora elucida que, como intelectual, sua preocupação vai muito além de produzir um conhecimento “comercializável” hoje em dia como acadêmico; para ela, é fundamental vincular o conhecimento construído ao corpo, à história e à materialidade da vida, assim como a locais e contextos em que transitam tanto as nossas corporeidades quanto as ideias daí desenvolvidas (Dolan, 1996DOLAN, Jill. Producing Knowledges That Matter: Practicing Performance Studies through Theatre Studies. The Drama Review, Cambridge, Cambridge University Press, v. 40, n. 4, p. 9-19, winter 1996., p. 10, tradução livre)60 60 No original em inglês: “I'm concerned with how ideas extend somewhere out-side this marketplace. I'm concerned with linking knowledge to bodies and therefore to history and materiality, to specific locations and contexts in which bodies and ideas move”. I'm concerned with the contributions we make to producing knowledges that matter”. . É esta a nossa maior contribuição como estudiosas - produzir conhecimentos que importam.

Pensar, nesse contexto, a produção teórica como construção epistemológica condizente com as nossas vivências (na condição de mulheres a quem ainda se atribuem papéis mais ou menos secundários e uma atuação intelectual quase sempre “desvolumosa” ou “desimportante”) é enxergar a inevitabilidade do encontro entre pesquisa e prática, formulação teórica e experiência cotidiana; a inevitabilidade, afinal, de uma escrita performática que nos diga respeito; ou, nos termos de Suely Messeder (2020)MESSEDER, Suely. A Pesquisadora Encarnada: uma trajetória decolonial na construção do saber científico blasfêmico. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020., de uma escrita encarnada61 61 Para a autora, “[a] escrita encarnada é o momento do encontro entre a sujeita marcada por sua classe, raça, ato performativo de gênero, regionalidade, nacionalidade e a pesquisadora encarnada modulada cujas regras prescritas no fazer científico devem ser consideradas, mas também insurgidas [...]” (Messeder, 2020). que inclua não apenas a nossa corporeidade de pesquisadoras, mas também a corporeidade do próprio conhecimento produzido em nossas pesquisas.

É, finalmente, como teóricas encarnadas, que mais nos aproximamos desse horizonte - feminista - da produção de “epistemologias blasfêmicas e decoloniais” (Messeder, 2020MESSEDER, Suely. A Pesquisadora Encarnada: uma trajetória decolonial na construção do saber científico blasfêmico. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.). Do horizonte, enfim, das nossas teóricasvivências - e é nele, somente nele, que a teoria começa a ser o nosso lugar de cura.

Notas

  • 1
    Desenvolvido entre 2017 e 2021 no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás (UFG), sob orientação da Profa. Dra. Alice Fátima Martins e com bolsa de doutorado concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG).
  • 2
    Intitulada (as outras fazedoras de sentidos) imaginaturas e visuaisvivências das artistas de goiás, a tese se dedica a apresentar a prática artística de quinze mulheres de Goiás partindo de uma outra possibilidade metodológica para nos aproximarmos das experiências imaginativas da contemporaneidade. Recusando repertórios e categorizações que tendem a hegemonizar nossas abordagens visuais, olho para esta produção artística que se faz na vulnerabilidade necessária do afeto e nos deslimita em direção a uma outridade que deixa de ser convencionalmente “exótica” ou “excepcional” para se colocar diante de nós como uma outra que também nos afetaacolhendo-com-o-olhar. As artistas - que na tese chamo de “as outras fazedoras de sentidos” - são todas mulheres cidadãs-comuns que deflagram ações transformadoras em suas comunidades por meio da arte. Sua prática não conta com cancelas institucionais e se estabelece no que a artista e pesquisadora brasileira Renata Felinto chama de “urgências da vida”. A Cultura Visual é o lugar de teoria de onde partem os repertórios conceituais e analíticos que encorpam a tese, mas outras áreas do conhecimento são também colocadas em cena como aporte conceitualreflexivo. Trata-se, sem dúvida, de um trabalho sobre legitimidade, mas também de uma tentativa de apresentar, a contrapelo, outras epistemologias do olhar para nos aproximarmos das imagens artísticas que circulam em nossa Cultura Visual contemporânea (Piva, 2021PIVA, Carolina Brandão. (as outras fazedoras de sentidos) imaginaturas e visuaisvivências das artistas de goiás. 2021. 388 f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Visual) - Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/11441/3/Tese%20-%20Carolina%20Brand%c3%a3o%20Piva%20%202021.pdf. Acesso em: 28 dez. 2022.
    https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitst...
    ).
  • 3
    Cf. nota 59.
  • 4
    Elin Diamond leciona no Departamento de Estudos de Gêneros e Sexualida-des do Instituto de Ciências e Artes da Rutgers University (New Jersey, EUA).
  • 5
    Reitora da Princeton College, a escola de graduação da Universidade de Prin-ceton (New Jersey, EUA), e professora de teatro no Lewis Center for the Arts, na mesma instituição de ensino. Tem inúmeros trabalhos no campo dos Estudos da Performance, dos Feminismos e dos Estudos de Gêneros e Sexualidades.
  • 6
    No original em inglês: “[…] performance provides a place where people come together, embodied and passionate, to share experiences of meaning making and imagination that can describe or capture fleeting intimations of a better world” (p. 2).
  • 7
    É oportuno ressaltar, neste caso, as interfaces dos Estudos da Performance com as Artes Visuais. Josette Féral, professora da Universidade de Quebec, explica que as práticas performáticas nunca foram uniformes nem inequívocas, não podendo, ainda hoje, ser cotejadas umas com as outras sem o risco de incorrermos em falsas verdades. Para ela, a performance tem diversas filiações - “tanto a do texto quanto a da imagem, do formalismo das artes visuais e da interpretação, [nem sempre sendo] fácil distinguir as influências e rupturas” (Féral, 2008FÉRAL, Josette. Por uma Poética da Performatividade: o teatro performativo. Sala Preta, São Paulo, Universidade de São Paulo, v. 8, p. 197-210, nov. 2008. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57370. Acesso em: 28 dez. 2022.
    https://www.revistas.usp.br/salapreta/ar...
    , p. 208). Considerando o contexto brasileiro, Paula Darriba (2005DARRIBA, Paula. Fusión de Lenguajes. In: ALCÁZAR, Josefina; FUENTES, Fernando (Org.). Performance y Arte-acción en América Latina. Ciudad de México: Citru/Ex Teresa/Ediciones Sin Nombre, 2005., p. 134-135) alude a um “período de experimentalismo no campo das artes [incluídas as artes visuais/plásticas] que foi influenciado pela contracultura e pelo movimento hippie. O happening e a body-art se consolidavam em âmbito internacional e a fusão da linguagem cênica com as artes plásticas cristalizou novas formas de expressão e propostas conceitualmente mais elaboradas da arte performática” (tradução livre). Em complemento, Beth Lopes - diretora teatral, pesquisadora e colaboradora do grupo Performa - demonstra que, aqui no país, o campo dos Estudos da Performance ainda está bastante atrelado ao das Artes Visuais, o que contribui, em certa medida, segundo ela, para “[...] desfronteiriza[r] as linguagens, amplia[r] as noções espaciotemporais e fricciona[r] as relações entre o real e o ficcional incorporando estados emocionais, subjetividades e memórias, criando a sua poética particular” (Lopes, 2010, p. 135).
  • 8
    Teórica lituana e professora de Estudos Teatrais na Vytautas Magnus University. É autora de inúmeras publicações sobre a performance contemporânea, com enfoque nos aspectos performativos da cultura lituana pós-soviética.
  • 9
    No original em inglês: “[…] the performative turn initiated by modernist impuls-es of historical avant-garde performances and performance art practices transferred into postmodern territory via cultural studies and post-structuralist theories and at present occupies the discursive area of post-postmodern realities”.
  • 10
    Em resumo, a “virada” pode ser descrita como uma mudança paradigmática transdisciplinar em que passamos a compreender a performance como uma forma de conhecimento da realidade. No original em inglês: “Performative turn” can be generally described as paradigmatic transdisciplinary shift where performance as a form of knowledge making is confronted with representational forms of knowledge. Tantamount to a tectonic shift in the humanities and social sciences, performative turn encompasses various theoretical aspects and is developed, argued or critiqued by many scholars” (Staniškytė, 2021STANIŠKYTĖ, Jurgita. The Condition of Instability: Performative Turn and Con-temporary Lithuanian Theatre. Methis - Studia Humaniora Estonica, v. 22, n. 27-28, p. 115-133, 2021., p. 116).
  • 11
    Uma das teóricas contemporâneas mais conceituadas nos estudos de teatro e artes performativas. É professora da Freie Universität de Berlim e diretora, na mesma instituição, do Centro de Investigação Internacional Interweaving Performance Cultures. Assim como para Elin Diamond (1996)DIAMOND, Elin. Introduction. In: DIAMOND, Elin (Ed.). Performance and Cultural Politics. London; New York: Routledge, 1996., para Erika Fischer-Lichte (2009)FISCHER-LICHTE, Erika. Culture as Performance. Modern Austrian Literature, Austin, Austrian Studies Association, v. 42, n. 3, 2009. a performatividade ultrapassa a estética da representação, instaurando-se antes no plano da materialidade.
  • 12
    Professora de Performances Negras no Departamento de Drama, Teatro e Dança da Universidade de Londres. Autora de inúmeros ensaios, artigos e livros sobre Teatro Contemporâneo e Práticas Performáticas de Mulheres.
  • 13
    Elaine Aston é professora emérita do Instituto de Artes Contemporâneas na Lancas-ter University (Lancaster, Inglaterra), onde leciona Práticas Teatrais Feministas e Arte Performática. Geraldine Harris também é professora emérita da mesma instituição de ensino, lecionando, atualmente, Drama e Artes Performáticas.
  • 14
    Tomo emprestada a noção de encruzilhada nos termos de Hartmann e Langdon (2020HARTMANN, Luciana; LANGDON, Esther Jean. Tem um Corpo Nessa Alma: encruzilhadas da antropologia da performance no Brasil. Bib - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n. 91, p. 1-31, 2020. Disponível em: https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revista/article/view/496/472. Acesso em: 15 abr. 2021.
    https://bibanpocs.emnuvens.com.br/revist...
    , p. 1-2). Segundo as autoras, “[n]a encruzilhada (lugar de cruzamentos, influências, divergências, cisões, fusões, rupturas, multiplicidades) entre Antropologia e formas expressivas em performance, danças, cantos, músicas, narrativas, jogos, brincadeiras, procissões, dramatizações, festas e festivais, manifestações sociais e políticas, rituais de vida e de morte recebem especial atenção, não apenas pelas interpretações ou pelas leituras do social que possibilitam, mas, sobretudo, pelos aspectos simbólicos, expressivos, poéticos, estéticos, políticos e reflexivos que evocam e que produzem”.
  • 15
    Luciana Hartmann é professora no Departamento de Artes Cênicas da Univer-sidade de Brasília (UnB) e Esther Jean Langdon, no de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
  • 16
    Radicada em Nova York, é autora de inúmeros trabalhos sobre performance, dentre os quais os livros Theaterwritings (PAJ Books, 1984), Ecologies of Theatre (PAJ Books, 1996), Conversations on Arts and Performance (PAJ Publications, 1999, em coautoria) e Performance Histories (PAJ Publications, 2008). É, ainda, a editora-fundadora da revista Performing Arts Journal: A Journal of Performance and Art.
  • 17
    No original em inglês: “The word ‘performance,’ whether it describes a live event or personal acting-out; the features of a car, a perfume, a sound system; and whether it refers to history or therapy or the act of mourning, now shapes contemporary thinking about people and things. Some of the chief preoccupations of our time-namely, spectatorship, identity, memory, the body-are framed within the terms of performance”.
  • 18
    No original em inglês: “We have come so far from distinguishing between art and life, the personal and political. And yet, the performing body is real and it is really there. What we have been witnessing in the arts in recent years is, I believe, a return to authenticity-to the real, the documentary”.
  • 19
    Professora no Departamento de Estudos da Performance da New York Univer-sity e diretora-fundadora do Instituto Hemisférico de Performance e Política, em Nova York.
  • 20
    Cf. nota 4.
  • 21
    “Every performance, if it is intelligible as such, embeds features of previous performances: gender conventions, racial histories, aesthetic traditions - political and cultural pressures that are consciously and unconsciously acknowledged” (Diamond, 1996DIAMOND, Elin. Introduction. In: DIAMOND, Elin (Ed.). Performance and Cultural Politics. London; New York: Routledge, 1996., p. 1).
  • 22
    É de Sueli Carneiro (2005CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-ser como Fundamento do Ser. 2005. 339 f. Tese (Doutorado em Filosofia da Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 33 e 60) (filósofa, escritora, ativista do movi-mento social negro-brasileiro e autora de inúmeras publicações dedicadas a pensar o feminismo) esse conceito de epistemicídio, desenvolvido em sua tese de doutorado, ao qual aqui recorro. Segundo a autora, trata-se de “um instrumento operacional para a consolidação das hierarquias sociais por ele produzidas [...] manifesta[ndo-se] também no dualismo do discurso militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber sobre [a pessoa negra], enquanto é legitimado o discurso [da pessoa branca] sobre [a negra]”.
  • 23
    Professora na Escola de Teatro, Cinema e Televisão da University of Califor-nia, em Los Angeles, e diretora do Centro de Estudos da Performance. É autora de dezenas de livros sobre a prática performática e internacionalmente reconhecida no campo da teoria e crítica lésbica.
  • 24
    A esse respeito, destaco ainda a explicação da autora sobre a forma como o pa-triarcado racista opera para escamotear as performances e narrativas das mulheres pobres brancas e racializadas, lésbicas e daquelas tidas como “não atraentes” ou “inovadoras/empoderadas”, que foram deixadas de fora da história das práticas teatrais e performáticas em razão dos códigos culturais hegemônicos/canônicos. Mesmo o trabalho das chamadas “mulheres de elite”, lembra a autora, foi parcamente documentado e é ainda hoje pouco referido. No original em inglês: “The performances and narratives of poor women, women of colour, lesbians, 'unattractive' women and innovative women, who may have experimented in forms suited to their own private world rather than those of the public patriarchal one, were not considered significant in the history of theatre by virtue of the dominant cultural codes. Yet even the work of the socalled 'elite' women is only scantily documented” (Case, 1988CASE, Sue-Ellen. Feminism and Theatre. London: Macmillan, 1988., p. 28).
  • 25
    Teórica estadunidense e professora de Estudos da Performance na Stanford Uni-versity, Califórnia. Uma das fundadoras da Performance Studies International, associação criada em 1997 para promover o intercâmbio artístico e acadêmico entre profissionais e intelectuais dedicadas/os à performance. É autora de inúmeras publicações, entre livros e artigos dos mais referenciados, nas Performances Culturais.
  • 26
    (1953-2000) Teórica dos Estudos da Performance, feminista e uma das impor-tantes vozes estadunidenses da Teoria Queer. Foi professora da University of Pennsylvania, ministrando o primeiro curso sobre Teoria Queer da instituição, Feminist Theory: Queering the Literary: Theories and Fictions, em 1995.
  • 27
    Professora de Artes Teatrais e Estudos da Performance na Brown University e autora de inúmeras publicações no campo das performances. Seu primeiro livro, The Explicit Body in Performance, de 1997, aborda artistas feministas que usam seus próprios corpos como espaço-palco para suas performances, sublinhando que as práticas performáticas das mulheres, que ela também chama de ações incorporadas, não podem ser vistas como se estivessem apartadas dos preconceitos de gênero, raça e classe, senão como parte dessa engrenagem opressiva que estrutura a nossa ordem social.
  • 28
    É também autora de dezenas de artigos sobre raça, gênero, performance e cultura.
  • 29
    No original em inglês: “[My] study is inspired by the advances of black femi-nist theorists who have opened up new ways of considering the representational politics of the black body in the cultural imaginary”.
  • 30
    Professora do Departamento de Cultura Visual da Goldsmiths (Universidade de Londres). Tem sem fim de trabalhos dedicados à deslocalização do olhar sobre a cultura visual contemporânea e ao entendimento da produção de imagens como experiência cotidiana, não mais sob o crivo da História da Arte.
  • 31
    No original em inglês: “What is it that we do when we look away? When we avert our gaze in the very spaces and contexts in which we are meant to focus our attention? When we exploit the cultural attention and the spatial focus provided by, and insisted on, by museums, galleries, exhibition sites, and studios to cajole some other presence, some other dynamic in the space, into being? Are we producing the ‘affirmation through negation’ [...], or are we opening up a space of participation whose terms we are to invent?”.
  • 32
    Que se desdobra, infalível, em dois principais sentidos: como afeição e como relação (aquilo que nos diz respeito, que nos afeta).
  • 33
    No original em espanhol: “Necesitamos encontrar modos de intervención que apunten a que nuestros ojos puedan escapar al foco que dirige y controla su mirada y aprendan a percibir todo aquello que cuestiona y escapa a las visibilidades consentidas”.
  • 34
    Fico sempre, em meus escritos, tentada a retomar a célebre pergunta feita meia década atrás pela historiadora da arte estadunidense Linda Nochlin (1971NOCHLIN, Linda. Why Have There Been no Great Women Artists? In: GORNICK, Vivian; MORAN, Barbara (Ed.). Woman in Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness. New York: Basic Books, 1971.; 2016NOCHLIN, Linda. Por que Não Houve Grandes Mulheres Artistas? Tradução: Juliana Vacaro. São Paulo: Edições Aurora, 2016.) - Por que não houve grandes artistas mulheres?. Com este subtítulo, reconfiguro, pois, esse mesmo questionamento no âmbito dos Estudos da Performance: afinal, por que não “existiram” - ou ainda hoje não “existem” - grandes teóricas mulheres?
  • 35
    ISSN: 2237-2660. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/presenca/issue/view/3467. Acesso em: 21 set. 2022.
  • 36
    Para esse levantamento, o corpus foi composto de artigos em que apenas mulheres constavam como autoras. Coautorias foram consideradas somente quando se tratava de autoras escrevendo juntas; textos em que elas figuravam como coautoras em parceria com um ou mais pesquisadores foram desconsiderados.
  • 37
    ISSN: 1678-9857. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/12182. Acesso em: 21 set. 2022.
  • 38
    ISSN: 1807-6971. Disponível em: https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix. Acesso em: 21 set. 2022.
  • 39
    Apesar de editada no final de 2021, a referida edição foi publicada no site da revista em maio de 2022. ISSN: 2175-8131. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revteatro/issue/view/2253. Acesso em: 21 set. 2022.
  • 40
    Embora ainda modesto, meia década depois, em 2022, esse percentual já é 11% maior.
  • 41
    Os dados coletados são das últimas 33 edições da Revista Brasileira de Estudos da Presença, das últimas 22 edições da Revista de Antropologia da USP e da Fênix - Revista de História e Estudos Sociais, todas publicadas entre 2012 e 2022. Como a Repertório lançou seu último número em 2021, projetei a coleta de dados entre os anos de 2011 e 2022.
  • 42
    Cf. nota anterior.
  • 43
    Isso quando pouco, porque, quando muito, eles são referidos, sem nenhuma problematização ou pudor, como “pais da Antropologia”.
  • 44
    O evento aconteceu na Universidade de Wisconsin, em Milwaukee, EUA. O título do artigo é “Ethno or Socio Poetics” (Wynter, 1976WYNTER, Sylvia. Ethno or Socio Poetics. Alcheringa Ethnopoetics: a first international symposium, Boston, Boston University, v. 2, n. 2, 1976.).
  • 45
    Nascida em Cuba em 1928, é professora emérita da Stanford University, na Califórnia, EUA, e uma das principais intelectuais-ativistas do mundo anglófono-caribenho hoje em dia. Seus estudos teóricos se dedicam a refletir sobre os movimentos anticoloniais globais em associação com os estudos raciais e de gênero. É também romancista e dramaturga.
  • 46
    Da qual, aliás, ela jamais abriu mão ao falar sobre praticamente tudo: desde poesia, psicanálise e etnografia até fatos jornalísticos, episódios cotidianos e eventos da cultura contemporânea. Sublinho, além disso, que, embora a autora tenha começado a formular o conceito de “rebeldia epistêmica” e a incorporálo na prática de seus escritos desde os idos da década de 1970, foi atribuída ao semiólogo argentino Walter Mignolo, um dos fundadores do grupo Modernidade/Colonialidade, a originalidade do conceito “desobediência epistêmica”.
  • 47
    A referência aqui, uma vez mais, é à análise feita por Sueli Carneiro (2005)CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-ser como Fundamento do Ser. 2005. 339 f. Tese (Doutorado em Filosofia da Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. em sua tese doutoral sobre o epistemicídio, o que me faz sublinhar, uma vez mais, a importância dessa contribuição teórica no contexto da produção feminista no Brasil. A argumentação principal da autora se fundamenta nas práticas historicamente legitimadas de embranquecimento cultural e nas tentativas cada vez mais sofisticadas de branqueamento epistemológico direcionadas aos grupos subalternizados, inclusive as mulheres e especialmente as populações negras.
  • 48
    No original em inglês: “Autotheory reveals the tenuousness of maintaining il-lusory separations between art and life, theory and practice, work and the self, research and motivation, just as feminist artists and scholars have long argued”.
  • 49
    Refiro-me aqui, por analogia, à “aventura de contar-se” proposta por Marga-reth Rago (2013)RAGO, Margareth. A Aventura de Contar-se: feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Campinas: Editora da Unicamp, 2013..
  • 50
    Nascida em Salford, Inglaterra, filha de pai paquistanês e mãe inglesa, Sara Ahmed migrou com a família para a Austrália no início da década de 1970, onde cresceu. É doutora em Teoria Crítica pela Adelaide University, tendo iniciado sua carreira acadêmica no Reino Unido, na Lancaster University, onde desenvolveu pesquisas na área dos Estudos de Mulheres entre 1994 e 2004. Autora de dezenas de livros sobre feminismos e interseccionalidade, é atualmente pesquisadora independente, atuando também como palestrante e organizadora de seminários e workshops.
  • 51
    Além de romancista, Dionne Brand é poeta, ensaísta, professora universitária, documentarista e produtora de cinema. Nasceu em Trinidad, ilha caribenha perto da Venezuela, em 1953, mudando-se para o Canadá (onde vive até hoje) ainda na adolescência. “Sapatona preta da diáspora”, como diz dela a poeta Tatiana Nascimento, uma de suas tradutoras no Brasil, Dionne Brand ganhou prêmios internacionais de relevo, como o Governor General’s Award for Poetry (com o livro Land to Light On, de 1997) e o Toronto Book Award (duas vezes, em 2006 e 2019, com os romances What We All Long For e Theory, respectivamente).
  • 52
    Que, além de significar teoria (constructo crítico-teórico), propriamente, também remonta, por sua raiz grega, à noção de espectador/a. A narradora está o tempo todo questionando a construção do conhecimento acadêmico, suas formas de validação e circulação.
  • 53
    A expressão pode ser traduzida, literal e livremente, como “a navalha de Oc-cam”. Trata-se do conhecido “princípio da parcimônia”, ou “lei da parcimônia”, segundo o qual teorias mais simples devem ser preferidas até que apareça outra com um maior poder explicativo. No âmbito do conhecimento científico, a “navalha de Occam” é usada no romance de Dionne Brand a fim de ilustrar uma espécie de heurística para orientar cientistas no desenvolvimento de modelos teóricos.
  • 54
    Quando falo em escrita performática, estou pensando, especialmente, na lin-guagem como prática cultural imiscuída, como toda linguagem, em uma complexa matriz de poder que serve a interesses diversos. Noutros termos, estou imaginando basicamente: uma escrita que caminha por outros modos de percepção da realidade e que, com isso, presentifica-se como texto sob outras perspectivas; o caráter processual desse escrever, que, para mim, equivale tanto mais a inscrever(-se); o espaço que o cotidiano ocupa na linguagem e viceversa; e o deslocamento dos códigos hegemônicos da escrita (que, via de regra, afastam as possibilidades criativas da linguagem, inclusive da acadêmica).
  • 55
    Aludo, sem dúvida, uma vez mais, às formulações da teórica estadunidense Di-ana Taylor, para quem, por serem práticas incorporadas (cujo potencial transformador está na presença), as performances transmitem memória e identidade cultural e, portanto, funcionam como “modos de conhecer”, revelando “o caráter mais profundo, mais verdadeiro e mais individual da cultura” (2013). Daí ser inviável, por exemplo, que sejam vistas sob a lógica binária (universalizante) de “uma verdade mais verdadeira” aqui, e outra menos ali.
  • 56
    “A língua: ensinando novos mundos/novas palavras”.
  • 57
    “A teoria como prática libertadora”.
  • 58
    Aludo aqui a esses conceitos conforme são desenvolvidos por Diana Taylor (2013)TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: performance e memória cultural nas Américas. Tradução: Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. no livro O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Segundo a autora, o arquivo remete à ideia de “materiais supostamente duradouros”, como textos escritos, documentos, edifícios, restos arqueológicos, ossos, filmes, CDs etc. Já o repertório corresponde a práticas/conhecimentos incorporados, a exemplo das performances - gestos, oralidade, danças, cantos, movimentos etc. Há, portanto, para Diana Taylor, uma notória correspondência entre arquivo e cultura letrada e entre repertório e cultura iletrada; ela também contextualiza tal dicotomia nos termos de outras possíveis dualidades: memória arquival x memória cultural, saber universal/eurocentrado/legitimado x saberes periféricos, conhecimento legitimado x epistemologias subalternizadas e, dentre outras, performances tradicionais/desincorporadas x performances incorporadas.
  • 59
    Considerei como visuaisvivências as presentificações das nossas experiências de imaginar com imagens, em notória vinculação, como já sublinhei, com o termo-conceito escrevivências, cunhado por Conceição Evaristo e marcante em toda a sua obra. Falar em escrevivência é falar de uma tessitura ficcional e poética a partir da experiência; é recobrar a escrita de si e dar a conhecer uma escrita da vivência. Quando levei essa noção-conceito para o campo da Cultura Visual, propus, com isso, pensar que, assim como a ideia de escrevivência está relacionada com uma escrita que tem como aporte o plano da experiência para reverter a lógica escamoteadora e surrupiadora das narrativas das populações afrodescendentes (que a “memória oficial” e a “história única” brutal e covardemente não outorgaram como legítimas), também no plano da produção de imagens-visualidades é mais que imprescindível semelhante movimento de restituição. Trata-se de uma essencial justaposição amalgamada que compôs o corpo teórico da minha tese doutoral, por meio do que, aliás, fundou-se também toda a proposta metodológica da pesquisa. Falar em visuaisvivências naquele contexto significou elaborar um caminho para a desfocalização do olhar (hegemônico, colonializante), projetando a percepção de outras formas de conhecimento das práticas artísticas que pululam em cotidianos próprios nossos como formas de socialização.
  • 60
    No original em inglês: “I'm concerned with how ideas extend somewhere out-side this marketplace. I'm concerned with linking knowledge to bodies and therefore to history and materiality, to specific locations and contexts in which bodies and ideas move”. I'm concerned with the contributions we make to producing knowledges that matter”.
  • 61
    Para a autora, “[a] escrita encarnada é o momento do encontro entre a sujeita marcada por sua classe, raça, ato performativo de gênero, regionalidade, nacionalidade e a pesquisadora encarnada modulada cujas regras prescritas no fazer científico devem ser consideradas, mas também insurgidas [...]” (Messeder, 2020MESSEDER, Suely. A Pesquisadora Encarnada: uma trajetória decolonial na construção do saber científico blasfêmico. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.).

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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2022
  • Aceito
    29 Dez 2022
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