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O Corpo e o Espaço: real e imaginário - Reflexões sobre site-specific

Le Corps et l’Espace : réel et imaginaire - Réflexions sur des sites spécifiques

RESUMO

Este artigo discute uma história pessoal de performances em que o foco é o corpo e suas diversas relações com o espaço. Destaque para as experiências da Cia. Domínio Público, um grupo de pesquisa experimental contemporânea, estudos em site-specific e a cultura dos murais na Filadélfia. A discussão percorrerá temas que tratam da arte pública, performance site-specific e intervenção em espaços públicos urbanos. Na medida em que o artigo explora novas estratégias de potencialização do trabalho performativo em espaços não tradicionais, o espaço é considerado um parceiro no processo criativo.

Palavras-chave:
Site-Specific; Cultura dos Murais; Performance; Corpo; Ar Livre.

RÉSUMÉ

Cet article traite d'une histoire personnelle de performances où le corps et ses divers rapports à l'espace sont mis en avant. L'accent est mis sur les expériences de Cia. Domínio Público, un groupe de recherche expérimentale contemporaine, qui étudie la culture in situ et murale à Philadelphie. La discussion traversera des thèmes traitant de l'art public, de la performance in situ et de l'intervention dans les espaces publics urbains. Alors que l'article explore de nouvelles stratégies pour potentialiser le travail performatif dans des lieux non traditionnels, et l'espace est considéré comme un partenaire dans le processus de création.

Mots-clés:
In Situ; Culture Murale; Performance; Corps; Le Grand Air.

ABSTRACT

This article discusses a personal history of performances in which the focus is the body and its various relationships to space. Emphasis is given to the experiences of Cia. Domínio Público, a contemporary experimental research group, studies in site-specific and mural culture in Philadelphia. The discussion will traverse themes dealing with public art, site-specific performance, and intervention in public urban spaces. As the article explores new strategies for potentializing performative work in nontraditional venues, space is considered a partner in the creative process.

Keywords:
Site-Specific; Mural Culture; Performance; Body; Open-Air

Introdução

Na última metade do século XX, a dança começou a fazer experimentos com ambientes espaciais que se tornaram parte intrínseca da descoberta da maneira como locais não convencionais de performance e, consequentemente, diferentes formas de ser espectador, motivavam o corpo de um performer.

Motivados por sua necessidade de romper com a estrutura tradicional de produção de dança, artistas da dança como Anna Halprin, Trisha Brown, Merce Cunningham e Yvonne Rainer, juntamente com outros artistas do Judson Dance Theatre, para nomear apenas alguns durante o fim da década de 1950 e a década de 1960, desafiaram os modelos de dança por intermédio de sua experimentação com o espaço, sem teatralidade ou envolvimento emocional.

Em Trio A: The Mind is a Muscle, de Yvonne Rainer, os performers não olham para o público. Ao deslocar seu foco dos gestos da dança, ou daquilo que aprendera ao estudar dança, Rainer incluiu os corpos, principalmente o dela mesma, como “[...] contrastando os marcos da arte e da cultura com a experiência corporal real. Os corpos dos dançarinos eram reais, mas também opacos” (Robertson, 2016, p. 135-136).

A década de 1960 aproximou suas danças de imagens de pedestres, de perspectivas comuns, e de uma infinidade de maneiras de enxergar o corpo em movimento ao usar várias estratégias para encontrar o movimento sem o acabamento do bailado. A época deu as boas-vindas a performances experimentais que capturavam questões que variavam do interesse de Anna Halprin por ativismo social e comunitário, eventos que exploravam a percepção e a cooperação de performers e localidades, inclusive as pessoas presentes, ao trabalho de Cage e Cunningham, que incluía “[...] o desejo de colaborações interdisciplinares, o uso de objetos utilitários e o espírito de coletividade”. O ponto de encontro para tais ideias era o Black Mountain College na Carolina do Norte, onde a influência da Bauhaus, especificamente Walter Gropius, estimulava o cultivo de inter-relações entre diferentes áreas (Bennahum; Perron; Robertson, 2016BENNAHUM, Ninotchka; PERRON, Wendy; ROBERTSON, Bruce (Ed.). Radical Bodies: Anna Halprin, Simone Forti, and Yvonne Rainer in California and New York, 1955-1972. Berkeley: University of California Press, 2016.).

Esses modos de abrir o espaço de performance oportunizaram papeis diferentes a objetos e pessoas no espaço, de performances no palco até o público sentado nos escuros recintos de um teatro.

Anna Halprin adotou a “materialidade do corpo em espaço natural, aberto” que adquiriu com suas visitas ao Black Mountain. Isso preparou o cenário para que no fim os artistas ingressassem em projetos maiores de espaço aberto, dissolvendo a separação entre o espectador e o performer. Quando a porta está aberta, a forma do que está por vir depende não do fato de que os limites estejam borrados ou até mesmo fissurados, mas de como e o que fazer a seguir.

Em 2010, quando os teatros de Campinas fecharam devido à necessidade de renovação urgente, a Cia. Domínio Público saiu para as ruas. A descoberta pelo grupo de como o espaço agia sobre a performance e os performers motivou uma investigação que descobriu a vida de um lugar e das pessoas que o frequentavam regularmente, trazendo o corpo do performer e do espectador para um lugar de discurso artístico.

A performance de rua consiste em decidir o que fazer no momento em que ocorre. Mesmo que o lugar seja familiar, o que nele acontece não é previsível. Ferdman afirma em seu livro Off Sites que “Site specificity tornou-se tão comum, tão banal que não necessariamente a rotulamos como tal. Mesmo assim, existem abundantes abordagens à performance site-specific com infinitas possibilidades de revigorar o teatro e a performance e pressionar as fronteiras disciplinares” (Ferdman, 2018FERDMAN, Bertie. Off Sites: Contemporary Performance Beyond Site-Specific. Carbondale: Southern Illinois University Press, 2018., p. 5). Isso se resume ao modo como o espectador irá processar uma performance, pois ele capta o cenário inteiro, incluindo odores, luz e movimento dos transeuntes.

A cultura mural11 Cultura mural: obras que os artistas pintam diretamente em uma parede e cujo conteúdo preserva o patrimônio cultural de um lugar ou de uma comunidade. me fascinava não apenas pelas imagens que projetava, plenas da história de uma comunidade ou da energia que emana de um lugar, mas que, curiosamente, em comparação, ninguém parecia prestar muita atenção a ela. As pessoas caminhavam e raramente tomavam conhecimento do mural. Isso me incomodava porque, por mais impressionantes que fossem as imagens, a única maneira pela qual as pessoas pareciam enxergá-las era por meio de passeios pelo bairro oferecidos pela organização dos murais.

A visita guiada da Muralart.org abordava o conteúdo do mural, contextualizando-o e discutindo o envolvimento do artista com a comunidade. Em seu livro Making Site-Specific Theatre and Performance, Phil Smith (2019SMITH, Phil. Making Site-Specific Theatre and Performance. New York: Red Globe Press, 2019., p. 3) diz que um local “[...] é muito mais do que, digamos, ‘um espaço’ ou ‘um lugar’. Sugere que uma escolha humana já definiu suas fronteiras, sentido e identidade. Um local é sempre o local de algo… um tipo de recipiente para aquilo que for importante”.

Como a memória atua sobre o espectador? O performer é o agente da cultura com a qual está fundamentalmente conectado? Ao discutir referências cruzadas entre improvisação, site-specific, performance e arte pública, a experiência do autor se propõe a oferecer um discurso mais franco entre artista, local e espectador.

Interface com o Passado

Philip Corner, antigo membro do grupo de performance Fluxus e compositor e músico residente do Judson Dance Theater, meu intuitivo e extraordinariamente inventivo professor de música do Ensino Médio durante a década de 1970, dizia para seus estudantes, “vão lá fora e escutem a grama crescer”. Por mais engraçado que parecesse então, todos nós escutávamos, e acredito que cada um de nós ouvia a grama crescer. Pelo menos era o que queríamos. Corner estava nos ensinando a pensar abstratamente, a abandonar a prova absoluta das coisas na vida, e que nem tudo era explicável e justificável. Era sua maneira de nos dizer para olhar além do ordinário e enxergar o extraordinário.

Eu suspeitava que eu soubesse desde sempre que os espaços não convencionais fossem meu elixir para a performance e criação. Minha primeira experiência de estar em sintonia com a natureza errática de cidades e espaços públicos foi a consciência de espectadores acidentais que inspiravam uma nova vida naquilo e onde quer que eu estivesse dançando. Quanto menos tradicional o local, melhor. Era emocionante não estar inteiramente no controle. Como eu não estava em um teatro, a surpresa mantinha meu nível de atenção elevado. A troca da energia que flui entre um corpo em modo de performance e seu ambiente é eletrizante e se soma à prática de comunicar uma ideia em tempo real quando sujeita a algumas transformações rápidas. Eu adorava aqueles dias em que um transeunte interrompia nossa performance bem elaborada e a transformava em algo diferente, o que usualmente ficava muito mais interessante, muito mais autêntico.

A reação espontânea era minha base para criação. Uma reação não é uma ação ensaiada. Uma resposta imediata pertence ao momento, para tomar decisões imediatas. Eu sentia como se estivesse aprendendo outra habilidade, saindo da norma. Não esqueci toda minha formação. Deixei de lado as cumplicidades da performance no palco. Iria apenas me permitir não estar no controle.

No entanto, a emoção de “estar lá” foi interrompida durante a pandemia, forçando-me a abandonar a experiência in loco e mergulhar no mundo bidimensional do Zoom. Essa ruptura com minha predileção por “tudo pode acontecer” em um ambiente a céu aberto ou não tradicional desafiou meus pensamentos sobre a arte e o processo de performance. Precisei reinventar o que eu rapidamente dera como garantido e estar ciente do fato de que eu não poderia ir a lugar algum em termos físicos. Fui obrigada a criar um currículo para um curso de graduação remoto no qual os estudantes iriam estudar as muitas áreas diferentes utilizadas pelo site-specific.

No período pré-pandemia, ainda estávamos lecionando em sala de aula. Com a finalidade de atrair os estudantes para o ambiente da matéria, solicitei que alterassem imediatamente o espaço da sala de aula e movessem objetos ao redor cada vez que entravam na sala. Duas semanas mais tarde, a universidade fechou e ouvimos falar da plataforma Meet (pré-Zoom), que inicialmente eu pensava que era um site de namoro (rapidamente descartamos o Skype, porque tornou-se obsoleto).

Quando introduzi um processo pedagógico aos meus estudos SiteSpecific para meus estudantes de graduação, jurei que nunca o faria, pois considerava a natureza do Site-Specific como uma arte espontânea. Estava preocupada com o fato de que lecionar um currículo iria reprimir a inteligente prontidão do performer/estudante. Tinha medo de institucionalizar esse espírito espontâneo. Como algo não codificado se encaixa em um currículo? Percebi que eu estava desenvolvendo um formato transformacional e metodizado ao organizar estratégias e ensinar a premissa de que espaços não-convencionais resultam em respostas não automáticas. Ao observar meus estudantes de dança, percebi que a site performance não é apenas se mover através de uma área específica, mas sim recuperar um tipo de conhecimento interno.

Em Site-Specific, eu ensinava que o movimento emergia em resposta às paisagens e às características do ambiente. O que determinado espaço oferece tanto ao performer como ao espectador em termos de informação visual? O que reúne performer e espaço? Qual é o seu terreno em comum? Os corpos encontram novas sensações quando o performer se envolve em um lugar onde algo mais está acontecendo além da performance.

O que destrava a criatividade de um dançarino? O que se transforma em uma manifestação visual de imaginação da dança, e como é construída? Durante uma improvisação, os dançarinos não repetem frases ou sequências codificadas, mas aproveitam imagens e sensações profundamente dentro de si. O uso do tempo e do espaço é uma decisão espontânea em uma improvisação. Eu prestava atenção até ao não-intencional. Quando um de meus dançarinos fazia algo acidentalmente, eu gostava de manter o erro. Eu chamava isso de decisão cósmica, porque o acidente parecia um movimento muito mais orgânico e original e se originava de algum lugar dentro do performer.

Em seu artigo Creativity as evidence of having persisted through time, Joy Hendry (2005HENDRY, Joy. Creativity is evidence of having persisted through time. Cambridge Anthropology, v. 25, n. 2, p. 36-49, 2005. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23820747. Acesso em: 11 mar. 2021.
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, p. 36) discute a criatividade como uma maneira de “[...] demonstrar um tipo de continuidade com o passado e uma confirmação de que as pessoas cuja cultura material é exibida, não se extinguiram”. Hendry (2005HENDRY, Joy. Creativity is evidence of having persisted through time. Cambridge Anthropology, v. 25, n. 2, p. 36-49, 2005. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/23820747. Acesso em: 11 mar. 2021.
https://www.jstor.org/stable/23820747...
, p. 41) diz, “[...] artistas podem ser inovadores e, ao mesmo tempo, aproveitar ideias inspiradas por seus antepassados. Embora isso não precise ser reconhecível por um espectador desinformado”.

A performance em lugares não tradicionais começou com intervenções e improvisações pequenas com as pessoas e os objetos identificados com um local, tentando não chamar muita atenção para o performer. Ao contrário, pouco a pouco o performer se entrelaça ao ritmo desse lugar, conectando-se com as atividades comuns vinculadas ao local e propiciando intervenções graduais. Os performers poderiam começar uma sequência de ações que poderiam facilmente ser transformadas, o tempo todo escutando, vendo e respondendo aos sinais uns dos outros enquanto estes se movimentam do artista para o espaço e para o espectador como um tipo de colaboração tripartite.

Em um ambiente urbano, as medidas de ritmo, tempo e velocidade inundam o corpo do performer com elementos provocantes, transformando suas ações e movimentos. É uma sinfonia de devires, encontros e intermediações entre o performer e tudo que veem, cheiram e ouvem. Um observador pode se identificar com muitas imagens em torno da apresentação. Na arte, as pessoas podem ser levadas de volta a um conhecimento visceral profundo. Uma vez, um espectador comentou que o movimento parece uma cobra procurando por alimento em um deserto. As imagens de animais são primordiais e são imediatamente reconhecíveis e identificáveis. As imagens como fonte de material ajudam um performer a obter um movimento original, com o qual ele não tenha se conectado em nenhuma atividade ou dança previamente aprendida.

Minha dança é uma autobiografia escrita em minha pele. Uma memória indelével de eventos tecidos em meu corpo. Tudo se transforma em marcas.

Todas as marcas em poética.

(Albertarelli apudSiddique, 2021SIDDIQUE, Esther. Spoken Poem by Anna Albertarelli. In: THE ALCHEMY AND EFFORT OF RESTAGING DANCE, 2021, New York, New York University. Online Symposium. New York: New York University, 3 Mar 2021.).

Cia. Domínio Público

O movimento original vem de respostas a ambientes ou estímulos novos e não familiares. Cada local tem uma identidade e uma dinâmica, como andar rapidamente em uma rua da cidade em comparação com caminhar à vontade no campo. Reconhecemos como diferentes lugares nos afetam ao ler o corpo e reconhecer códigos comportamentais, identificar o tipo de energia expressa em um movimento ou em um gesto, sua relação com seu espaço, intencionalidade e contato físico com algo ou alguém. Embora fossem peças muito estruturadas, tanto Posso dançar pra você? (Cia. Domínio Público, 2015CIA. DOMÍNIO PÚBLICO. Posso Dançar Pra Você?. Portfólio da obra. 2015. Disponível em: https://www.ciadominiopublico.com.br. Acesso em: 15 abr. 2021.
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) como Suportar eram danças que alteravam sua configuração a cada performance, em tempo real. Os performers faziam adaptações sempre que encontravam novos lugares e pessoas, atuando como catalisadores para explorar outros procedimentos em meio ao processo de decidir abandonar ou não sua narrativa.

A Cia. Domínio Público, criada em 1995, era um grupo de pesquisa em dança contemporânea que procurava desenvolver e aprofundar novas expressões de linguagem corporal e almejava desenvolver diferentes modos de criação em dança e performance, produção e circulação de trabalho artístico no Brasil todo. A companhia foi assim chamada porque sua missão era de que pessoas de qualquer idade, classe social ou região tivessem acesso à dança. Nesse sentido, a companhia buscava cada vez mais romper barreiras entre o artista e o espectador, abrindo-se à experimentação do corpo em diferentes espaços. Pretendia, dessa forma, não apenas estabelecer novas possibilidades de intercâmbio e conexão com as pessoas que utilizam esses espaços, mas também proporcionar novas formas de criação e de fazer arte.

Para a Cia. Domínio Público, a dança sempre foi informada pelo espaço. Definíamos estratégias de jogo que permitiam aos performers se envolver com coisas típicas encontradas em espaços públicos. Isso desencadearia uma relação dinâmica entre o que é visto e não visto, presente e ausente. A diversão também é essencial porque permite aos performers mudar o curso em um instante, reagir a um pedestre ou a um objeto, e modificar a trajetória da performance às vezes para uma direção inteiramente diferente. Como essas ideias ressoam para um grupo de performance contemporânea? Posso dançar pra você e Suportar são trabalhos que intervêm diretamente com os lugares e as pessoas que os frequentam. Os dançarinos se posicionam em lugares como uma praça, um parque ou outros espaços públicos e observam as pessoas, a arquitetura e a dinâmica. Considerando que cada local possui uma dinâmica ou um pulsar específico, observamos como o som também ocupa o espaço e é perceptível. A seguir, os performers se apropriam de elementos no lugar, mesclando-se indiscriminadamente com o público.

Um lugar nos oferece muita informação e ensina a um dançarino não apenas onde irá se movimentar, mas também como irá fazê-lo. O período de observação e de apropriação do espaço de performance antes de começar uma peça é fundamental para incorporar o lugar como um elemento transmutável no processo criativo. O corpo de um performer abandona a responsabilidade de apresentar uma coreografia com precisão da mesma maneira a cada vez. Até mesmo uma partitura que indique uma sequência de ações está inteiramente sujeita à interferência pública.

Mesmo sem conhecer a história específica de um espaço, o performer poderia estar imerso por seu contato com as estruturas arquitetônicas ao seu redor, com o transeunte e com o ritmo ou o pulso contido em um lugar.

Conforme já foi mencionado, muitos fatores são provocações para inovação, como a velocidade com que as pessoas caminham, o ruído, o tráfego e as vozes que permeiam o espaço sonoro no local. Todos esses elementos organizam a resposta de um performer. Não são performers em um palco, então o corpo reage, independentemente de qual itinerário a ser trilhado, não é repetível como em uma sequência coreográfica. Sempre existe algo ou alguém interveniente que altera o design, a direção ou a intencionalidade das ações do performer.

A memória é um arquivo misterioso profundamente enraizado no corpo do performer, uma predisposição ao movimento. O corpo do performer atua com o mundo físico em um tipo de arena inerte. A ferramenta está na memória muscular do performer. Pode ser calma e sutil ou explosiva como gritos vindo dos telhados.

Atualmente a dança oferece uma perspectiva e uma atenção profética para nossa época. O que é deixado para trás não é uma memória tangível, como uma escultura, um manuscrito, ou uma partitura musical, mas uma experiência sensorial, intocavelmente profunda e expressivamente dinâmica. Quando improvisamos, acessamos um arquivo arcaico; a informação flui para o corpo e é liberada como movimento ou gesto. O conhecimento da dança transpira de uma fonte imensurável de história carregada no corpo de cada performer.

Em uma das muitas turnês da Cia. Domínio Público, a dançarina Sara Mazón descreve em um diário algumas de suas sensações durante as performances. Comenta como às vezes o público é positivo, mas também muitas vezes negativo. Há fatores reais envolvidos nessas apresentações, como os riscos da interação com alcoolistas ou pedestres irritados, vulnerabilidade às condições climáticas, doenças oriundas de fezes de pombos e outros animais, e assim por diante. Os comentários a seguir foram feitos em seu diário durante sua turnê, que envolvia viagem e apresentação em uma ou duas cidades diferentes a cada dia. A turnê foi patrocinada pelo Programa de Ação Cultural (PROAC), por meio de um edital lançado pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, que promove a dança na área de circulação do projeto (Cavrell, 2016CAVRELL, Holly Elizabeth. A intimidade de apresentações em espaços públicos. In: CONGRESSO ABRACE, 9., 2016, Uberlândia. Anais [...]. Uberlândia, 2016., p. 7-8).

Eu compreendo o tempo.

Catanduva, SP 28 de julho de 2015, terça-feira, 12:15. Praça da República.

O nariz e a garganta estavam secos. A vontade era de tomar banho no chafariz no centro da praça, como fazia um mendigo que vivia ali. Seu abrigo estava cheio de uma calma assustadora, o tempo estava suspenso. Era ótimo estar lá para ser vista, e lá ficamos, em fila, durante muito tempo. Havia um calçadão bonito, as ruas eram estreitas, muitos bares e um vendedor de pipoca. Eu ainda estava de pé quando Lineker me abraçou, eu queria ficar lá, mas a vontade de ficar não era tão grande quanto a necessidade de habitar o espaço. Gradativamente começamos nossa dança, apoiando e dando apoio.

Bebedouro SP (performance número 100)

Até agora, a praça mais vazia de todas. Poucas pessoas passaram por aqui. De acordo com os moradores, é fim de mês e, com a crise, ninguém sai para comprar nada. Caminhamos em torno da praça inteira tentando imaginar qual seria o melhor ponto para parar e começar a trabalhar. Estamos procurando por uma esquina, mais larga, com espaço para nos movimentarmos ao redor. Às vezes, isso é um problema porque, às vezes, sentimos que não existe espaço suficiente para fazer todos os movimentos. Como em Barretos, SP, decidimos começar direto em pares, abraçando-nos uns aos outros. Observamos que, de novo, funcionava melhor intervir para gerar uma imagem mais clara. Consideramos que havia muito estranhamento em relação à nossa apropriação22 Apropriação é uma preparação que os dançarinos usam para observar o local antes da performance em si - o espaço, o transeunte, o ambiente físico, a dinâmica, tentando recolher tudo sobre o espaço de modo que, ao entrarem, sejam parte do local como se sempre tivessem frequentado aquele lugar.. Éramos vistos mais com repulsa do que bem-vindos. O estranhamento faz parte das características deste trabalho, mas não repulsa e rejeição.

Durante nosso movimento em pares, algumas pessoas logo paravam e as vendedoras saíam das lojas - a maioria estava vazia por causa da crise, lembram? E logo se estabelecia um clima agradável para dançar. Eu sentia uma grande calma, conseguia passar pelas pessoas, olhá-las nos olhos e trocar sorrisos.

Está na hora de convidar alguém para dançar. É sempre o momento em que tento parar, olhar e escolher alguém para compartilhar minha dança. Esse momento sempre é muito intuitivo. A pessoa que está sorrindo nem sempre é a mais aberta e disponível para receber nossa dança, mas acredito que algo me conduz a cada uma delas.

Interessante, logo depois da apropriação, conseguíamos perceber a vibe do lugar, um lugar que parecia ser um desafio para dançar.

No fim, dancei para o homem que vendia balões. Ele usava um boné e ficou extremamente tímido com meu pedido. Embora tenha dito sim, parecia querer dizer não. Mesmo assim, dancei. Ele mal conseguia olhar nos meus olhos, mantinha sua cabeça baixa a maior parte do tempo, seus olhos escondidos por seu boné, parecia enxergar apenas meus pés.

O tempo não nos pertence, não existe espaço para cultivar relações, para que surjam espontaneamente… (Sara Mazón, 2015).

Sara reinventava constantemente seu roteiro, a sequência de ações predeterminadas, mas que a permitia escolher novos movimentos. Esse espírito de incerteza dá uma vantagem às escolhas da performer, capturando em tempo real as novas circunstâncias que encontra. Torna-se uma experiência imersiva e transformadora tanto para quem faz como para quem assiste. Os performers trabalham com o ambiente e se integram ao entorno e, ao trabalharem com um espaço, de certa maneira se tornam parte da comunidade, especialmente quando retornam várias vezes ao mesmo lugar. Havia dias que, ao retornarem à mesma praça, os lojistas participavam durante diversas seções. Algumas vezes até os sem-teto varriam o espaço com antecedência. Nem sempre era acolhedor. Ocasionalmente, encontrávamos fanáticos religiosos que perseguiam os performers afirmando que seus movimentos vinham do diabo.

Pouco a pouco, a finalidade de levar a arte ou o teatro às ruas assumia um novo significado. Em um espaço aberto não existe nenhuma orientação frontal como a do espaço do teatro. Os performers abrem itinerários espaciais diferentes para visualização. Martha Bowers, em entrevista divulgada no livro Site Dance part 4, Civic Interventions: Acessing Community, comenta que

[…] facilmente o movimento pode ser tolhido pela enormidade do espaço ou perdido entre os muitos tipos de movimento já no local. É preciso uma paleta de movimentos diferentes. Uma frase de movimento que parecia extremamente rápida e lindamente detalhada no estúdio pode parecer apenas como muitos se debatendo na rua. Quero trabalhar para ecoar a cultura da comunidade… O trabalho na rua consegue provocar perguntas que não estejam sendo feitas, nos incentivar a despertar de novo nossa análise crítica de circunstâncias sociais e rumar para a ação? (apud Kloetzel; Pavlik, 2009KLOETZEL, Melanie; PAVLIK, Carolyn. Site Dance - Choreographers and the Lure of Alternative Spaces. Gainesville: University Press of Florida, 2009., p. 287-289).

O que me interessa é enxergar como os performers navegam espaços públicos, como uma confluência de lugar, história, intervenção artística, espectadores e, especialmente, reconhecimento de identidade comunitária e social.

Figura 1
Claudia Millás e Ivan Gomes, da Cia. Domínio Público, dançando Suportar na Rodoviária de Campinas, SP, em 2015. Fonte: Foto de Marco Flávio.

Figura 2
Acervo privado da Cia. Domínio Público. Sara Mazón, Talita Florêncio, Gustavo Valezi e Linker, da Cia. Domínio Público, dançando Posso Dançar pra Você? na Praça do Rosário. Fonte: Foto de Coronel Mostarda do Acervo privado da Cia. Domínio Público.

Arte Mural

Os murais parecem ser uma tendência natural desde as pinturas rupestres (Muralarts.org)

‘As pessoas em uma cidade moderna são como ratos em um labirinto. Os experimentos de E.C Tolman sobre o comportamento de ratos em labirintos, realizados na década de 1940, comprovaram que, tanto homens como animais, criam um mapa mental e tentativo para reconhecer e aprender relacionamentos ambientais.

Precisam de uma ferramenta de reconhecimento do espaço para se familiarizar com o ambiente no qual foram forçados a viver. Historicamente, as cidades deviam sua singularidade às profundas raízes na tradição local’. Por exemplo, ‘… a praça do mercado central constituía o coração da cidade’. ‘A descoberta de Tolman, do processo de construção e acumulação de conhecimento espacial, lançou uma nova luz sobre a percepção do espaço urbano. O método de mapeamento mental também permitiu descobrir que tipo de atenção as pessoas prestavam a determinados lugares e que papel as obras de arte desempenhavam no reconhecimento e na identificação do espaço urbano’ (Januchta-Szostak, 2010JANUCHTA-SZOSTAK, Anna. The Role of Public Visual Art in Urban Space Recognition. In: PERUSICH, Karl (Ed.). Cognitive Maps. London: IntechOpen, 2010. Disponível em: https://www.intechopen.com/chapters/6752. Acesso em: 2 nov. 2022.
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, p. 1-3; p. 7).

Em geral, as cidades são projetadas para desempenhar uma gama de funções comerciais e/ou residenciais. Isso faz parte de como os distritos são construídos e pode representar como e onde as identidades dos bairros estão concentradas e sustentadas em comunidades em desenvolvimento. A modernização, embora importante para a renovação urbana, pode eliminar as origens de uma comunidade ou erradicá-la por razões econômicas, como a gentrificação e o redesenvolvimento onde as zonas mais pobres forem compradas, os aluguéis aumentarem e pessoas mais ricas substituírem as comunidades. A cultura mural, apesar de precária no estabelecimento de laços e estratégias de sustentabilidade de uma cidade, devido às dificuldades para obtenção de licenças e brechas burocráticas, é uma maneira astuciosa e ilustrativa de acolher uma cultura social.

Figura 3
Muralarts.org. Fonte: Foto do acervo privado, Filadélfia, PA 30/04/2022.

Conheci pela primeira vez a riqueza da arte pública por meio de murais em julho de 2021, quando acompanhei minha filha à Filadélfia para ajudá-la a se estabelecer e passar um ano na Universidade da Pensilvânia (UPenn). Ao caminharmos pelas ruas, fiquei muito ciente das pinturas murais em diferentes bairros. Comecei a investigar quem era a pessoa e o movimento por trás da ONG que eu via nos murais. Entendi que a fagulha inicial por trás desse movimento era a pichação, que, na Filadélfia, havia causado uma severa degradação da cidade.

Os prédios, o transporte público e muitos locais públicos estavam sujeitos às pichações desses artistas aleatórios. Consequentemente, Jane Golden, uma professora de Artes, levou suas aulas para as ruas e começou a transformar a pichação em obras de arte, criando uma rede antipichação ao reimaginar a arte pública e, mais tarde, envolver a comunidade para pintar uma memória coletiva do espaço. Em muitas situações, o coletivo derivava de um grupo dos artistas e membros da comunidade que estavam pintando uma história narrativa do lugar. A fim de recuperar o que era desconhecido, desenvolveu conteúdo através de pesquisa, imaginário cultural popular, experiências de vida e metáforas coletivas, consultando tanto profissionais como não profissionais. O projeto se infiltrou em outras áreas. Como experiência educativa, a arte pública ajudou a desenvolver a cidadania a partir do instante que houve murais; não havia mais pichação, porque havia um senso de apropriação e colaboração. É considerada uma aprendizagem baseada em projeto. Os voluntários para a pintura mural podem ser oriundos de centros de trauma, instituições para dependentes de álcool e outras drogas e presidiários se reinserindo na sociedade (Muralarts.org).

Um exemplo é o projeto Porch Light, um anexo da Muralarts.org com a cidade da Filadélfia que objetiva introduzir uma ligação importante com a comunidade por intermédio de exposições de estigmas sociais em torno de problemas de bem-estar emocional e mental. Esse projeto de um ano de duração transforma jornadas pessoais, pessoas que querem recriar e transformar seus traumas, em maneiras pelas quais um bairro enfrenta suas lutas. Intencionalmente, vai além das intenções estéticas puras ao oferecer mensagens restauradoras para recuperar um bairro carregado de dificuldades. Os objetivos são reconstruir a autoestima e educar a juventude ao trabalhar não apenas para fins pessoais, mas junto com artistas reconhecidos oriundos tanto da Filadélfia como internacionais. Para ajudar o público a melhor compreender as paisagens murais da Filadélfia, Muralarts.org oferece visitas guiadas em que o espectador aprende sobre a história, o contexto social e os artistas envolvidos em sua criação. Os murais são mapas simbólicos que mostram o sentido por trás de cada projeto.

De que Maneira a Cultura Mural ilustra a Memória Pública

Diversas perguntas parecem orientar as escolhas de lugar e conteúdo dos murais. Como alguém se orienta em exposições de arte pública com memória compartilhada? De quem é a história relembrada? De quem é a história contada? Como uma manifestação tradicional se relaciona com o contexto dos dias de hoje? Como alguém consegue que as pessoas observem os murais de maneira regular e criem continuamente pontes entre a comunidade e a cidade? Ao pensar sobre o que deveria estar em um espaço público, qual tipo de arte é relevante promover, o que a arte pública significa para uma cidade? Possivelmente um aspecto é que criar e manter a arte pública ensinará as pessoas sobre apropriação, preservação e conservação de seus espaços.

Ao entrevistar Judy Hellman33 Entrevista com Judy Hellman, diretora de projetos especiais, Muralarts.org. 21 de abril de 2022. Ambas estavam na Filadélfia, mas falaram remotamente através da plataforma Zoom., diretora de projetos especiais da Muralarts.org, aprendi como um grupo de artistas e líderes comunitários desenvolveu a maioria dos projetos. A dinâmica de fazer um mural é semelhante a uma dança, um movimento coreografado. Mesmo que haja pontes entre a comunidade e a cidade, ainda existe muita animosidade contra a criação de murais. Considerando que a ideia de arte pública é socialmente significativa, deve haver uma separação entre a arte pública sem fins lucrativos e os candidatos políticos querendo ter seus rostos colados em um uma parede. Muitas barreiras políticas e sociais impedem a criação de mais murais. Às vezes, resume-se a quem controla os gastos. Muitos contratos são cancelados e financiamentos importantes são retirados ou realocados para outras áreas.

Figura 4
Muralarts.org. Fonte: Foto do acervo privado, Filadélfia, PA, 30/04/2022.

Performance Site-Specific

Assim como os murais, os corpos dos performers deveriam ativar seus ambientes. Um espectador observará mais do que o performer apenas, até mesmo reimaginando o espaço do performer. O espectador passa a conhecer a cidade de maneira diferente, ao observar os corpos em performance em espaços públicos.

Ricardo Mesquita, um estudante meu, comentou em seu projeto final, “Eles têm de sair”:

Naquele momento, eu só queria estar lá… no outro lado

Movido por uma força que levou toda minha história; toda minha valise junto comigo… Mesmo assim, imaginei o que estava lá… qual era o limite além daquilo que meus olhos conseguiam enxergar? Quais eram os sabores? Quais eram as texturas? Como um animal que não sabe que está fora da caverna... Um espaço do conforto mesmo dentro de seus riscos…

Fecho meus olhos e me movimento… E então fico cego pela energia daquilo que toco agora…

Desse encontro… respiramos de novo… existimos hoje outra vez… Escutamos, sim,

Que a ‘arte em espaços não convencionais’ já não era nova para ninguém… mas quem é alguém? Encontramos obstáculos que fortalecem o sentido de que a arte está cercada por um ambiente específico, próprio da arte… resistimos.

Propusemos descaracterizar alguma lógica preconcebida inicialmente em nós. Encontramos esse espaço de construção constante em nós mesmos; esse espaço de desejo por aquilo que será mas não é… esse devir (Cavrell, 2016CAVRELL, Holly Elizabeth. A intimidade de apresentações em espaços públicos. In: CONGRESSO ABRACE, 9., 2016, Uberlândia. Anais [...]. Uberlândia, 2016., p. 3-4).

Figura 5
Eles têm que sair, 2016, Nicolli Tortorelli e Ricardo Mesquita.

Quando se escolhe um lugar, de acordo com Miwon Kwon (2004)KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific art and locational identity. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT press paperback edition, 2004. em seu livro One place after another, imagina-se que um lugar não seja simplesmente uma posição geográfica ou um ambiente arquitetônico, mas uma rede de relações sociais, uma comunidade, e o artista deve idealizar a obra de arte como uma extensão integral da comunidade, ao invés de uma contribuição intrusiva de outro lugar qualquer (Kwon, 2004KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific art and locational identity. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT press paperback edition, 2004., p. 6). Mas uma comunidade é uma formação social coesa e unificada? Kwon (2004KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific art and locational identity. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT press paperback edition, 2004., p. 7) propõe a “[…] ideia de comunidade como um espectro de pensamento necessariamente instável e inoperante além das prescrições estereotipadas de comunidade para se abrir para um modelo completamente diferente de coletividade e pertencimento”. Assim, essas variações indicam a extensão em que o próprio conceito de comunidade continua ambíguo e problemático na arte pública hoje em dia. Ao olhar para diferentes lugares de performance, pense em como sua memória afeta suas ideias sobre presença, ausência, distância e proximidades, e rupturas de tempo e espaço. O lugar permite um diálogo contínuo e intercambiável entre o performer e o espectador.

Muitas vezes somos confortados pelo pensamento de que um lugar é nosso, que pertencemos a ele, até mesmo somos originários dele e, portanto, estamos presos a ele de alguma maneira fundamental. Alguns lugares reafirmam nosso senso de eu, refletindo uma identidade básica ou fundamentada. Miwon diz que esse tipo de relação continuada entre um lugar e uma pessoa é aquilo que muitos consideram estar perdido e ser necessário na sociedade contemporânea. Pensa-se que um lugar está errado quando alguém não se sente pertencente a ele - algum lugar estranho, desorientador ou até mesmo ameaçador. Entretanto, uma relação estressante com um espaço é ruim ou podemos pensar sobre um lugar errado de uma maneira totalmente nova? Estamos ligados exclusivamente às realidades físicas de um lugar. Observar como a vida continua a se apresentar em camadas que saltam do objetivo para o subjetivo e vice-versa de fato se torna uma ferramenta para o performer, equilibrando os estímulos internos e externos enquanto improvisa.

Kwon (2004)KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific art and locational identity. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT press paperback edition, 2004. diz que o movimento textualiza espaços e espacializa diálogos e que essa experiência não é um mapa, mas um itinerário, uma sequência de eventos e ações fragmentárias através do espaço, uma narrativa nômade cujo trajeto é articulado pela passagem do artista. Operar como um itinerário permitirá que os performers escolham entre os contextos sociais, políticos e econômicos que habitam seu processo como performers (Kwon, 2004KWON, Miwon. One Place After Another: Site-Specific art and locational identity. Cambridge, Massachusetts; London, England: MIT press paperback edition, 2004.). Essa experiência triangular que envolve o performer, o lugar e o espectador cria pontos de observação onde presença e ausência representam o lugar. Apesar de os atributos físicos de uma paisagem nutrirem imaginativamente o performer, a relação de trabalho exige a presença de um observador para que o trabalho aconteça. Todos os elementos se reúnem na mente do espectador.

Escrever sobre performance e Considerações Finais

Como se traz o mesmo tipo de energia desequilibrada para o texto, tanto em termos literais como figurados? Durante a improvisação, o performer descobre novos movimentos e sensações mesmo que o corpo tenha sido programado para repetir o que parece bom. Cada vez que improvisar, a tendência é procurar por aquela dinâmica familiar ou qualidade de movimento. Assim, a ideia é como não fazer cópias da experiência anterior. Ou seja, romper com o modelo tradicional de repetir sequências de movimento familiares e favoritos. Recondicionar a experiência e permitir que isso recarregue uma experiência textual. Revisitar e reinventar a experiência comum a fim de produzir o extraordinário. Isso também irá nutrir a experiência textual. A prática de alguém deriva da pesquisa e a pesquisa deriva da prática.

A permutabilidade de extrair da arte para a escrita e de esclarecer, por meio de palavras, o que uma prática artística significa é uma troca importante de mentalidades. A performance não é uma narrativa, embora contenha muitas narrativas mescladas. Além disso, a mente do espectador não é uma lousa em branco. O espectador traz uma infinidade de informações e de história pessoal que mescla com o lugar e com todos os elementos que o constituem. Como isso é traduzível para o texto e como se dá ao leitor uma ideia dos trabalhos internos de uma improvisação? Uma solução é que o leitor também seja um participante e seja responsável pelas escolhas que faz. Misture o texto e deixe as seções ficarem aleatórias. Afinal, quando se entra em um espaço que não é um palco, com suas dimensões e delimitações de luz calculadas, não existe controle sobre o que irá acontecer. Não se pode controlar como o espaço irá permitir-se aparecer para um observador. Algo mais é criado ao alterar a percepção de um espaço tradicional. O que enxergamos? O foco é basicamente no artista ou a performance é uma experiência compartilhada?

Público + Lugar se transforma na linha de base sustentada na experiência do performer. Por trás de cada ação, aparentemente descontrolada e ilógica, existe uma construção lógica, apesar de não na maneira como a pensamos. Uma coesão de partes em prol de permitir que a VIDA afete o que acontece. Exatamente como John Dewey (1980)DEWEY, John. Art as Experience, Tarcher Perigee. New York: Berkley Publishing, 1980. escreveu em Art as Experience.

Minha opinião: aprenda novos comportamentos ao experimentar o tempo e o espaço de uma maneira mais aleatória e perceptiva. Marina Abramović oferece indícios para alcançar novos níveis de percepção e eliminar os hábitos mais antigos que regularmente compõem nossas escolhas. Seu método consiste em atividades mentais e físicas simples, como:

Beba um copo de água o mais lentamente que puder. Sirva-se de um copo de água pura e observe o líquido pelo maior tempo possível. Em câmera lenta, leve o copo aos seus lábios. Beba com os menores goles possível. Em câmera lenta, devolva o copo vazio ao seu lugar. Repita: múltiplas vezes por dia. A água nunca fluirá duas vezes da mesma maneira, tampouco você (Abramović, 2022ABRAMOVIC, Marina. The Marina Abramovic Method: Instructions to reboot your life, Text and Images. London: Publishing Group Ltd; Victoria Embankment, 2022., Water Study(b)).

Não importa onde estejamos ou qual a nossa idade, é imperativo aprender novos comportamentos. Os exercícios de Marina, diz ela, ensinam resistência, concentração, percepção, autocontrole, força de vontade e a confrontar os próprios limites físicos e mentais. As escolhas que fazemos em espaços públicos dependem de quão cientes estamos de tudo ao nosso redor e do reconhecimento de que assimilar novas estratégias libera e conecta o mundo em torno de nós.

Quando alguém leva sua arte para espaços públicos, inconscientemente envia uma mensagem poderosa que irradia para quem quer que esteja prestando atenção. Entretanto, existem perguntas que continuam em aberto: minha arte pode criar a mudança? Minhas palavras ao escrever sobre performance suscitam a mesma responsividade que o meu corpo em performance e são tão poderosas quanto meus movimentos?

As escolhas que fazemos podem parecer ocultar nossa lógica inata. A partir das experiências da Cia. Domínio Público, é visível um fio para fazer performance em espaços públicos, aplicar um rol de abordagens à improvisação e, finalmente, para a cultura mural. Às vezes não existe nenhuma ideia estrita proposta sobre um espaço, enquanto noutras vezes uma paisagem distinta de memória do lugar ou do evento está espacialmente gravada em uma performance. O lugar tornou colaborativa a experiência de performance.

Expanda sua imaginação e sentidos. O que o leva a lugares que você não pode visitar fisicamente? O que desencadeia a memória? Os odores, o som, a luz?

Eu começaria escutando a grama crescer.

Notas

  • 1
    Cultura mural: obras que os artistas pintam diretamente em uma parede e cujo conteúdo preserva o patrimônio cultural de um lugar ou de uma comunidade.
  • 2
    Apropriação é uma preparação que os dançarinos usam para observar o local antes da performance em si - o espaço, o transeunte, o ambiente físico, a dinâmica, tentando recolher tudo sobre o espaço de modo que, ao entrarem, sejam parte do local como se sempre tivessem frequentado aquele lugar.
  • 3
    Entrevista com Judy Hellman, diretora de projetos especiais, Muralarts.org. 21 de abril de 2022. Ambas estavam na Filadélfia, mas falaram remotamente através da plataforma Zoom.

Referências

  • ABRAMOVIC, Marina. The Marina Abramovic Method: Instructions to reboot your life, Text and Images. London: Publishing Group Ltd; Victoria Embankment, 2022.
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Editado por

Editor responsável: Gilberto Icle

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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