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Migração, relações interseccionais e cuidados domésticos transnacionais

MARCHETTI, Sabrina. Migration and domestic work. IMISCOE Short Reader, Springer, 2022. 94 p

O debate sobre os cuidados domésticos transnacionais nunca esteve tão presente na sociedade global contemporânea como agora. Após a crise sanitária impulsionada pela Covid-19, o cenário dos cuidados com idosos e pessoas dependentes ao redor do mundo tem sido parte do debate sobre a migração. Por conseguinte, assiste-se de igual modo a precarização desse setor laboral. A degradação das condições de vida e trabalho e a situação de vulnerabilidade social experienciadas pelas mulheres migrantes estão no centro do debate dos estudos populacionais.

Nesta empreitada, o livro Migration and domestic work, publicado em 2022 pela editora Springer, que recebeu financiamento do European Research Council (ERC) European Union’s Horizon 2020, em pesquisa realizada pelo Innovation Program (DomEQUAL),1 1 Cf.: https://domequal.eu/. oferece uma visão geral sistemática, rica e transparente do debate internacional sobre a importância do trabalho doméstico e do trabalho de cuidado remunerados nas migrações contemporâneas, tal como ele tomou forma nos últimos 20 anos. Como pode ser observado em suas páginas, o emprego de mulheres migrantes no trabalho doméstico de cuidados e limpeza é um exemplo paradigmático das fortes interligações entre os fenômenos relacionados ao gênero, ao trabalho e à migração, nos níveis individual e coletivo.

A autora Sabrina Marchetti mobiliza a discussão em torno dos eixos de gênero, classe, raça, trabalho e migração, reforçando a necessidade de se discutirem as desigualdades sob uma perspectiva das relações interseccionais. Esses debates têm se dado em franco diálogo com a teoria feminista, as críticas interseccionais, queer e decolonial, que transformaram indubitavelmente a temática gênero e trabalho, bem como, especificamente, a temática do trabalho das mulheres, do trabalho doméstico (remunerado e não remunerado) e o papel dos cuidados. Vale ressaltar que os cuidados, atualmente, encontram na internacionalização da teoria do care um fecundo campo de debate (MELLO; PÉREZ, 2017). Nesse sentido, o livro de 2022 amplia a análise sobre migração e trabalho doméstico. A obra se divide em seis capítulos. Marchetti inicia as discussões sobre as divergências do que é trabalho doméstico, para em seguida pontuar as relações entre o care, trabalho doméstico, migração e as desigualdades por ela definidas a partir da interseccionalidade.

No capítulo introdutório, a autora chama a atenção para a complexidade da definição do que é o trabalho doméstico e o de cuidado. Sua análise centra-se em diferentes tarefas remuneradas que variam de acordo com o país, podendo abranger os atos de cozinhar, limpar, lavar e passar roupa, cuidar de crianças, adultos, idosos e deficientes, cuidar do jardim ou de animais de estimação ou até mesmo dirigir o carro da família. Além disso, as mulheres podem trabalhar em tempo parcial, integral ou por hora, morando ou não na casa do empregador (MARCHETTI, 2022). Ou seja, as tarefas domésticas e de cuidado passam a ser externalizadas e comercializadas, abrindo um nicho laboral específico no mercado de trabalho para a contratação de mulheres migrantes. Sob essa lógica global, a definição de vínculo empregatício da trabalhadora doméstica migrante torna visível sua imprecisão e o trabalho doméstico e de cuidados é convertido na parte significativa da força de trabalho global como um dos mais vulneráveis.

Os estudos de cuidados transnacionais (HOCHSCHILD, 2000HOCHSCHILD, A. R. Cadeias globais de cuidado e mais-valia emocional. In: HUTTON, W.; GIDDENS, A. No limite: vivendo com o capitalismo global. Londres: Jonathan Cape, 2000. p. 130-146.;PARREÑAS, 2005PARREÑAS, R. S. Children of global migration: transnational families and gendered woes. Stanford University Press, 2005.; BALDASSAR; MERLA, 2014BALDASSAR, L.; MERLA, L. Famílias transnacionais, migração e circulação de cuidados: compreendendo a mobilidade e a ausência na vida familiar. Londres: Routledge, 2014.) referem-se a determinados elementos contextuais que levaram à difusão desta mercantilização. O aumento do serviço doméstico está ligado principalmente às necessidades de cuidados dos agregados familiares, inerentes ao envelhecimento da população, às mudanças na estrutura familiar e à crescente participação das mulheres no mercado de trabalho (MORÉ, 2018). Marchetti, no entanto, descreve o nexo entre migração e trabalho doméstico exigindo uma abordagem mais multifacetada. As condições desses trabalhadores migrantes, em sua maioria mulheres, são moldadas pela interseção de três regimes políticos diferentes, conforme descrito por Helma Lutz (2011LUTZ, H. The new maids: transnational women and the care economy. Zed Books, 2011.). No que diz respeito ao regime de migração, as políticas estatais influenciam fortemente o emprego de migrantes para o trabalho de cuidados e domésticos remunerados. Em relação ao regime de gênero, é importante considerar a relevância do trabalho de cuidado, doméstico e sexual para o emprego de todas as mulheres, não apenas das migrantes. Por fim, com relação ao regime de bem-estar, sabemos que diferentes sistemas de bem-estar, com uma infinidade de arranjos de cuidados e “mercados de cuidados”, levam a diferentes tipos de migração.

No segundo capítulo, intitulado “Care and domestic work”, Marchetti lança luz sobre questões políticas, sociais e econômicas dos cuidados domésticos transnacionais, argumentando que a globalização econômica levou a uma elevada procura de mão de obra barata nas zonas urbanas e no exterior do sul para o norte global e à feminização do setor dos cuidados. A consequente intensificação da mercantilização global do cuidado, fenômeno denominado como cadeia global do cuidado (CGC), tem nos trabalhos desempenhados principalmente por mulheres a intensificação da participação feminina na migração internacional (BENERÍA; DEERE; KABEER, 2012BENERÍA, L.; DEERE, C. D.; KABEER, N. Gender and international migration: globalization, development, and governance. Feminist Economics, v. 18, n. 2, p. 1-33, 2012.). Isso obriga muitas mulheres a ingressarem no mercado de trabalho de cuidados domiciliares em condições precárias e irregulares. As causas, segundo Barañano e Marchetti (2016BARAÑANO, M.; MARCHETTI, S. Perspectives on gender, migration and transnational work: joint work of social reproduction and care in Southern Europe. Investigaciones Feministas, v. 7, n. 1, p. 9-33, 2016.), estão no fato de a difusão desta atividade estar relacionada com a natureza cada vez mais internacional da divisão do trabalho por gênero.

Nesse sentido, o texto aponta que as mulheres migrantes sentem necessidade de políticas migratórias, redes sociais de apoio, empregabilidade, agências intermediárias e articulação coletiva - tanto por serem domésticas como por serem migrantes - para que o debate seja efetivado no âmbito das instituições e, assim, possam ser tratadas como trabalhadoras formais com direitos trabalhistas (BITENCOURT; ANDRADE, 2020BITENCOURT, S. M.; ANDRADE, C. B. O cuidado como trabalho: entre desafios e avanços. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-5, 2020.).

Uma das possibilidades de análise oferecidas por Marchetti no terceiro capítulo é a de que a migração deve se apoiar cada vez mais em políticas estatais. Tanto os países de origem quanto os de destino precisam adotar mecanismos para encaminhar os migrantes (especialmente as mulheres) para essa ocupação específica. O cenário orientado para o mercado de cuidados descrito anteriormente cria uma demanda crescente por uma força de trabalho migrante (feminina) empregada para trabalhar por mais horas e com salários mais baixos do que os trabalhadores locais. Esses/as trabalhadores/as migrantes do setor de cuidados são geralmente prejudicados por políticas que privilegiam a migração qualificada em detrimento da não qualificada, bem como pela legislação que nega autorizações de residência (de longo prazo) a pessoas empregadas no setor de cuidados. As políticas que dificultam muito o emprego regular de migrantes contribuem para a subvalorização desses empregos, que geralmente são atribuídos aos indivíduos mais vulneráveis e estigmatizados em cada contexto nacional (MARCHETTI, 2022).

Entretanto, é preciso compreender as estratégias coletivas de superação, como por exemplo as redes sociais. Assis (2007ASSIS, G. O. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, v. 15, p. 745-772, 2007.) evidenciou como migrantes mexicanos/as, chineses/as, salvadorenhos/as, brasileiros/as ou de outros grupos étnicos e nacionalidades, nos Estados Unidos, fizeram uso das redes de acordo com as normas de parentesco e de gênero estabelecidas em cada grupo. A tentativa foi examinar como as redes sociais configuram-se, articulam-se e modificam-se perpassadas pelos atributos de gênero e parentesco. Para a autora, as mulheres tanto utilizam quanto fornecem recursos para a manutenção das redes sociais. Elas assumem postura de articuladoras derivadas de uma certa autonomia adquirida em função da feminilidade e das relações afetivas, muito presentes na sua dedicação ao trabalho doméstico.

Embora não haja acordo sobre a definição de migração circular, a autora adere à conceituação proposta por Triandafyllidou (2013TRIANDAFYLLIDOU, A. (Ed.). Migração circular entre a Europa e a sua vizinhança: escolha ou necessidade? Oxford: Imprensa da Universidade de Oxford, 2013.), que a refere como uma migração internacional, temporária e repetitiva, realizada por razões econômicas. No entanto, a implementação desse sistema de contratação ainda carece de avaliações úteis e compartilhadas com base em um número adequado de casos. De fato, o cuidado circular é a opção frequentemente buscada pelas mulheres migrantes para equilibrar seu desejo pessoal de voltar para casa, a persistente dependência financeira de suas famílias e os cortes na seguridade social. Para as mulheres nessas circunstâncias muito específicas, a migração é um “sonho”, sendo relevante pensarmos no retorno que estas migrantes almejam. Como esse é um movimento cíclico, fica evidente que a migração circular é uma estratégia para minimizar o abandono dos filhos e o sofrimento das mulheres migrantes. Aqui, há um avanço nos estudos do trabalho e do cuidado domésticos remunerados de migrantes, apontando para análises das formas de resistências encontradas por essas mulheres.

Apoiada na dimensão da interseccionalidade como definidora para analisar as desigualdades que acometem essas mulheres migrantes, a autora, no quarto capítulo, não discute quais os efeitos metodológicos para a pesquisa com trabalhadoras domésticas migrantes. Essa ferramenta teórico-metodológica formulada por mulheres negras tem por finalidade compreender as múltiplas formas de opressão e dominação. Para além do campo teórico-metodológico, interseccionalidade também se encontra no campo das práxis das lutas anticoloniais, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista. A maior parte da literatura sobre trabalhadoras/es domésticas/os migrantes citada no livro baseia-se na compreensão de como suas condições de trabalho são afetadas pelas diferenças em sua experiência migratória, nacionalidade, cidadania, gênero e idade. Assim, é possível afirmar, talvez, que, a partir de uma perspectiva interseccional, entre pessoas que aparentemente partilham a mesma experiência, ou as mesmas condições sociais, também podem existir mais diferenças que oferecem pistas para a compreensão da oferta e demanda dos cuidados domésticos como fenômenos estratificados.

As desigualdades suscitadas por este padrão de cuidados em termos de gênero, classe social e etnia e o fato de entrar em conflito com a noção de sustentação da vida, que, segundo Pérez Orozco (2006), são as garantias das necessidades da vida e que mantêm vivo todo o sistema socioeconômico, também têm sido amplamente explicadas. Tratamos o trabalho de cuidado como aquele que está relacionado com a emissão de atenção, com o atendimento das necessidades das pessoas, ou seja, “podemos defini-lo como uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada que implica um sentido de responsabilidade à vida e ao bem-estar de outrem” (KERGOAT, 1996KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J.; MEYER, W.V. R. (Org.). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artmed, 1996. p. 19-27., p. 17). Além disso, sustenta respectivamente uma procura de prestadores de cuidados que são contratados em condições de trabalho precárias e com difícil acesso até mesmo aos direitos sociais básicos.

Por isso, a autora entende que grande parte da discussão apresentada no livro se vale da heterogeneidade da categoria e da compreensão de como suas condições de trabalho são afetadas pelas diferenças em sua experiência migratória, nacionalidade e status de cidadania, gênero, idade, raça, sexualidade, religião e assim por diante. Além disso, na análise das relações interseccionais, é preciso decompor as relações hierárquicas de dois sujeitos únicos e plurais ao mesmo tempo, que são mulheres subordinando outras. Portanto, o trabalho doméstico remunerado é um setor de gênero em relação não apenas aos empregados, mas também aos empregadores. A crítica de Gutiérrez-Rodríguez (2010) sobre a diferenciação e a hierarquia entre as mulheres envolvidas no trabalho reprodutivo se baseia em uma visão que considera essas tarefas mais “naturalmente” adequadas para os sujeitos mais vulneráveis e estigmatizados.

À medida que avança a discussão sobre as imbricadas relações desiguais de poder generificadas, Marchetti sinaliza para a abordagem decolonial, tendo a escravidão e o colonialismo como projeto político e econômico que foi acompanhado por um processo de categorização cultural, social e moral. Uma perspectiva pós-colonial, segundo a autora, pode enriquecer nossa compreensão da divisão do trabalho de assistência em nível global. Nesse contexto, são citados exemplos de racialização das diferenças sociais que ainda são evidentes nas sociedades contemporâneas e são de extrema importância na relação entre empregadora e empregada. Isso ocorre, por exemplo, quando a empregadora pertence à classe média urbana privilegiada e a empregada é uma mulher racializada de origem rural que vive na periferia de uma grande cidade, ou quando mulheres de origem indígena trabalham para famílias pertencentes à classe étnica/racialmente privilegiada.

Embora a autora alerte que a pós-colonialidade, nesse sentido, é uma relação de dupla face entre colonizados e colonizadores, oscilando entre um reconhecimento positivo e um laço estrangulador, podemos ver uma continuidade entre a colonização e a globalização, entre os regimes coloniais e o trabalho doméstico remunerado contemporâneo, na dicotomia entre a patroa branca colonial e a empregada negra, bem como entre as mulheres nativas e as migrantes na Europa de hoje.

Portanto, a leitura de todo conteúdo inserido na obra nos dá a chance de refletir sobre o pertencimento e cidadania em busca da institucionalização de seu status, direitos e prerrogativas legais. É nesse sentido que a cidadania constitui um objeto de negociação: é um campo no qual pessoas com diferentes posições e diferentes trajetórias executam suas estratégias para a aquisição de um status melhor e, assim, renegociam as fronteiras sociais entre elas. Por fim, também é importante mencionar o debate feminista sobre cidadania, que considera que todas as mulheres são excluídas segundo os conceitos de cidadania, justiça e democracia nos Estados nacionais modernos.

Em contextos de crise econômica, a autora aponta que a participação das mulheres no mercado de trabalho em épocas de recessão e redução de oportunidades parece ser bastante imprevisível, pois depende da configuração específica dos mercados de trabalho em cada contexto e do nível de complementaridade ou concorrência das mulheres com outros trabalhadores (homens, migrantes, etc.). A pandemia de Covid-19, em nível internacional e regional, demonstrou que os/as trabalhadores/as domésticos/as e de cuidados se tornaram uma das categorias mais afetadas. Esses/as trabalhadores/as se encontravam em uma situação bastante vulnerável, pois corriam risco tanto de contrair ou transmitir a doença no contato com as pessoas frágeis que assistiam quanto de perder o trabalho. Alguns países como França, Bélgica, Espanha e Itália aderiram aos subsídios como forma de manutenção dessa força de trabalho. Em resumo, a condição dos/as trabalhadores/as domésticos/as e cuidadores/as migrantes durante a pandemia pode ser vista como o resultado das diferentes maneiras pelas quais os campos das políticas de migração, por um lado, e de regulamentações do mercado de trabalho, por outro, se cruzaram em cada país.

Ao mesmo tempo, a crise sanitária e suas múltiplas consequências lançaram luz sobre os cuidados, tidos como invisíveis, sobretudo para a reprodução e sustento da vida. Como aponta Pautassi (2021PAUTASSI, L. A un año de la pandemia: los cuidados en el centro y en los márgenes. Desenvolvimento em Debate, v. 9, n. 1, p. 213-229, 2021.), foram momentos que demonstraram a centralidade do trabalho de cuidado. Além disso, a pandemia reconfigurou a mobilidade interna e internacional, em que os/as trabalhadores/as de cuidado (categoria sub-representada) foram reconhecidos/as como “essenciais”.

No quinto capítulo, denominado Rights, Marchetti abre espaço para pensar a mobilização dos direitos em relação ao trabalho doméstico migrante, direitos globais, lutas sociais, organização dos/as trabalhadores/as domésticos/as e a aliança entre movimentos sociais sindicais e grupos feministas. Essa estrutura normativa é fundamental para diminuir a vulnerabilidade do setor devido ao isolamento típico desse tipo de trabalho (especialmente para as trabalhadoras domésticas que moram no local). Vale ressaltar que a exploração das trabalhadoras domésticas migrantes passou a ser vista como um problema global, cuja governança é um desafio que ultrapassa as fronteiras nacionais, culminando na promulgação, em 2011, da Convenção n. 189 da Organização Internacional do Trabalho sobre Trabalho Decente para Trabalhadores Domésticos e a Recomendação n. 201 relacionada. Os dois documentos promovem não apenas a igualdade de tratamento dos/as trabalhadores/as domésticos/as no trabalho e no emprego, mas também a melhoria de sua condição social.

Ao finalizar o livro, a autora conclui que seu objetivo foi mesclar a apresentação dos resultados da pesquisa e a discussão de estudos de caso com percepções mais teóricas sobre a feminização da migração e a questão específica do trabalho doméstico migrante.

Consiste em alvo de crítica o fato de que a violência de gênero não é discutida no livro, como se as relações de poder não refletissem e reforçassem os assédios sofridos no local de trabalho, a escravidão doméstica contemporânea e o tráfico internacional humano. Deve-se levar em conta, por exemplo, que as trabalhadoras migrantes têm três vezes mais probabilidade de estar em trabalho forçado do que trabalhadores adultos não migrantes. Uma outra lacuna é a abordagem do trabalho doméstico infantil, sobretudo meninas e adolescentes pretas e pardas, realizando serviços domésticos com a pretensa justificativa de “ajuda” e “estudos”, realidade muito presente em famílias vulneráveis residentes no meio rural.

Embora de origem italiana, chamam a atenção a experiência da autora e a liberdade com que tratou o tema para manter o/a leitor/a informado/a, desvelando parte do processo de diferenciação sexuada e da agência feminina nos processos de deslocamento humano e nos espaços públicos e privados transnacionais, nas múltiplas configurações espaços-temporais dos cuidados e migração como um processo transnacional.

O que se pretende destacar aqui é a desigualdade geopolítica entre os países do sul e do norte globais, e entre os próprios países do sul, que está relacionada à exploração do trabalho de cuidado feminino. A autora expõe o caráter vulnerável e naturalizado do trabalho doméstico em contexto migratório que articula e reproduz múltiplas escalas de violência e desigualdades intersetoriais. Dessa forma, ela revela a relação contraditória entre a centralidade do cuidado para a reprodução da vida e suas recorrentes invisibilização e subvalorização.

Portanto, a obra pode ser considerada uma referência de leitura para cientistas sociais, demógrafos, gestores públicos que se interessam pelas temáticas ligadas a questões de gênero, trabalho de cuidados, migração e afins. Para os estudos populacionais, a obra contribui para a discussão sobre como as desigualdades de gênero e a divisão sexual do trabalho doméstico produzem e reproduzem relações interseccionais calcadas nas diferenças e opressões, as quais exigem abordagens e epistemologias específicas para as análises migratórias.

Referências

  • ASSIS, G. O. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, v. 15, p. 745-772, 2007.
  • BALDASSAR, L.; MERLA, L. Famílias transnacionais, migração e circulação de cuidados: compreendendo a mobilidade e a ausência na vida familiar. Londres: Routledge, 2014.
  • BARAÑANO, M.; MARCHETTI, S. Perspectives on gender, migration and transnational work: joint work of social reproduction and care in Southern Europe. Investigaciones Feministas, v. 7, n. 1, p. 9-33, 2016.
  • BENERÍA, L.; DEERE, C. D.; KABEER, N. Gender and international migration: globalization, development, and governance. Feminist Economics, v. 18, n. 2, p. 1-33, 2012.
  • BITENCOURT, S. M.; ANDRADE, C. B. O cuidado como trabalho: entre desafios e avanços. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 35, n. 104, p. 1-5, 2020.
  • GUTIÉRREZ-RODRÍGUEZ, E. Migration, domestic work and affect: a decolonial approach on value and the feminization of labour. Routledge, 2010.
  • HOCHSCHILD, A. R. Cadeias globais de cuidado e mais-valia emocional. In: HUTTON, W.; GIDDENS, A. No limite: vivendo com o capitalismo global. Londres: Jonathan Cape, 2000. p. 130-146.
  • KERGOAT, D. Relações sociais de sexo e divisão sexual do trabalho. In: LOPES, M. J.; MEYER, W.V. R. (Org.). Gênero e saúde. Porto Alegre: Artmed, 1996. p. 19-27.
  • LUTZ, H. The new maids: transnational women and the care economy. Zed Books, 2011.
  • MAHON, R.; ROBINSON, F. Feminist ethics and social policy: towards a new global political economy of care. UBC Press, 2011.
  • MELLO, S. C.; PÉREZ, I. Trabalho doméstico e de cuidados: abordagens interseccionais a partir do Cone Sul. Revista Feminismos, v. 5, n. 2/3, p. 67-70, 2018.
  • MORÉ, P. Cuidados y crisis del coronavirus: el trabajo invisible que sostiene la vida. Revista Española de Sociología, v. 29, n. 3, p. 737-745, 2020.
  • PARREÑAS, R. S. Children of global migration: transnational families and gendered woes. Stanford University Press, 2005.
  • PAUTASSI, L. A un año de la pandemia: los cuidados en el centro y en los márgenes. Desenvolvimento em Debate, v. 9, n. 1, p. 213-229, 2021.
  • PÉREZ OROZCO, A. Amenaza tormenta: la crisis de los cuidados y la reorganización del sistema económico. Revista de Economía Crítica, v. 1, n. 5, p.7-37, jan. 2006.
  • TRIANDAFYLLIDOU, A. (Ed.). Migração circular entre a Europa e a sua vizinhança: escolha ou necessidade? Oxford: Imprensa da Universidade de Oxford, 2013.
  • 1
    Cf.: https://domequal.eu/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2023
  • Aceito
    20 Nov 2023
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