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Cuidado de si em um grupo de convivência de idosas

Resumo

Objetivo:

Conhecer o significado que um grupo de mulheres idosas atribuiu ao compartilhamento dialogado de vivências com seus pares, relacionando os achados com o cuidado de si de Michel Foucault.

Método:

Pesquisa exploratória, descritiva, de cunho qualitativo, realizada com 28 idosas matriculadas na Oficina “Dialogando Emoções”, de um grupo de convivência vinculado a Universidade do interior do Sul do Brasil, por meio de entrevista e discussão sobre temas de suas vivências. O que emergiu das falas das participantes sofreu análise temática de conteúdo.

Resultados:

A extração de unidades de significância permitiu a elaboração de duas categorias temáticas que se entrelaçam: Vivências e fortalecimentos de envelhecer no grupo: a voz das idosas e O cuidado de si: olhando o eu e o outro.

Conclusão:

Constatou-se que houve valorização das relações grupais e essa experiência gerou o empoderamento das participantes diante dos desafios da vida, proporcionando novas possibilidades de superação de experiências subjetivas limitadoras. A interação com um espaço de escuta e de livre expressão contribuiu para o reencontro consigo mesmo, viabilizando novas formas de se fazer sujeito em um momento tardio da existência pessoal, o que em termos práticos, repercutiu em equilíbrio emocional e maior consciência de si, proporcionando alívio, motivação e determinação para enfrentar os desafios da longevidade.

Palavras-chave:
Envelhecimento; Subjetividade; Grupos de Convivência; Cuidado de Si; Foucault

Abstract

Objective:

to discover the meaning that a group of elderly women attributed to the dialogical sharing of experiences with their peers, and the way this was inserted in the process of living and aging, relating the findings with Care of the Self by Michel Foucault.

Method:

an exploratory, descriptive, qualitative study was carried out with 28 elderly women enrolled in the “Dialoguing Emotions” Workshop, a social group linked to a university in the countryside of the south of Brazil, through an interview and discussion based on the themes of their experiences. That which emerged from the interviews and discussions underwent content analysis.

Results:

the extraction of units of significance allowed the elaboration of two intertwining thematic categories: Experiences and strengths of aging in a group: the voice of the elderly and the care of the self: looking at myself and the other.

Conclusion:

an appreciation of the group relationships was identified, and this experience generated empowerment among participants when dealing with life challenges, providing new possibilities for overcoming subjective limiting experiences. The interaction with a space of listening and free expression, contributed to the rediscovery of oneself, enabled new ways to make oneself a subject in a late stage of personal existence, which in practical terms, has repercussions on emotional balance and greater awareness of the self, providing relief, motivation and determination to meet the challenges of longevity.

Keywords:
Aging; Subjectivity; Groups of Coexistence; Care of the Self; Foucault

INTRODUÇÃO

Fenômenos associados ao aumento da longevidade e a modificação dos papéis sociais da mulher em relação ao mercado de trabalho, bem como a emergência de novas configurações familiares, está impactando e modificando o estilo de vida das mulheres idosas. As idosas se deparam com um vasto campo de possibilidades de se fazer sujeito, que, por vezes, conflita com discursos limitadores ainda presentes na contemporaneidade. Se em outras épocas, a mulher precisava se adequar as normais sociais, culturais, sexuais e morais, tradicionalmente ancoradas no paradigma patriarcal, hodiernamente, há alternativas para um redimensionamento das experiências subjetivas, familiares, sociais e financeiras. Frente a essa transição, um dos espaços encontrados para canalizar, expressar e encontrar novas formas de ser e agir, são os grupos de convivência11 Moura MMD, Veras RP. Acompanhamento do envelhecimento humano em centro de convivência. Physis. 2017;27(1):19-39..

Os grupos de convivência, criados por órgãos governamentais e não governamentais, são compreendidos como espaços de comunicação e reconhecidos como suporte de apoio social e emocional para os idosos. Estes se configuram como estratégias importantes para melhorar a saúde e a qualidade de vida dessa parcela da população, ao possibilitar a afirmação da identidade e ao incentivar a participação, o que se expressa pelo protagonismo social da pessoa idosa. Viabilizam a qualidade de vida através da arte do bem viver e do cuidado de si 2.

O Cuidado de si, tematizado nas obras Hermenêutica do sujeito e História da sexualidade 3, do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), desenvolveram-se em torno da temática da subjetividade, distanciando-se da experiência derivada de relações de saber e poder historicamente instituidas e alvo de grande parte de seus estudos anteriores. Para isso, o autor mergulha na tradição helenística grega e romana, com ênfase nas filosofias epicurista, estoica e cínica dos dois primeiros séculos da era cristã, denominando-a de “era de ouro do Cuidado de Si”, empreendendo uma genealogia do sujeito a partir das práticas dirigidas a si. Sobre este contexto histórico-filosófico, afirma Foucault, “que todo o saber de que precisamos deva ser ordenado à tékhne toû bíou (à arte de viver), é um tema tanto estoico quanto epicurista ou cínico”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.. Assim, a função dessa filosofia é estimular a pessoa a praticar a arte de viver bem44 Lawlor L, Nale J. The Cambridge Foucault lexicon. New York: Cambridge University Press; 2014..

Para Foucault55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009., o cuidado de si, do grego epimeleia heautou, significa cuidar da alma, do eu. Consiste em almejar uma filosofia de vida que enalteça “as condições e as possibilidades indefinidas detransformação do sujeito”, capaz de descobrir um novo eu e impulsioná-lo em busca de si mesmo, moldando-o, porque é intrínseco e coextensivo à vida da pessoa conhecer e cuidar de si mesma66 White R. Foucault on the care of the self as an ethical project and a spiritual goal. Hum Stud. 2014;37(4):489-504..

Nesse sentido, a fim de compreender as experiências subjetivantes decorrentes da participação de mulheres idosas em um grupo de convivência, a pesquisadora participou de encontros realizados neste grupo e, junto às idosas, buscou identificar sentimentos e alternativas de vida emergentes dessas relações grupais estabelecidas. Diante disso, o objetivo do trabalho foi identificar o significado que um grupo de mulheres idosas atribuiu ao compartilhamento dialogado de vivências e experiências com seus pares. Os resultados foram discutidos à luz das problematizações em torno do cuidado de si de Foucault.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, do tipo exploratória, descritiva, realizada com um grupo de convivência, vinculado ao programa de extensão universitária, de uma Universidade do interior do Sul do Brasil. A população do estudo foi constituída por 28 idosas, matriculadas na Oficina “Dialogando Emoções”. Este conjunto representa o total de idosas matriculadas, não havendo exclusão nem perdas. Para a coleta das informações, realizada no ano de 2015, foi utilizada como estratégia a entrevista individual, seguindo o critério de inclusão gradual de participantes, denominado de amostragem teórica gradual, finalizada quando ocorreu a saturação teórica do tema a ser investigado. Portanto, as entrevistas contemplaram oito idosas selecionadas aleatoriamente e ocorreram em data, local e horário previamente combinados com as participantes. O instrumento utilizando foi o tópico guia que atendeu ao tema: conversas entre mulheres e seus significados na experiência do viver e envelhecer. Para a validação dos dados coletados na entrevista, o restante do grupo, constituído por 20 idosas, foi dividido em dois grupos de 10, que participaram de uma oficina temática de cada grupo, de aproximadamente 1h30min. As oficinas se valeram de recursos lúdicos e de auto expressão.

Os encontros originais da oficina oferecida no grupo de convivência, Dialogando Emoções, eram semanais, com duas horas de duração, com momentos de trocas e discussões sobre sentimentos, lembranças, vivências, saúde, corpo, mente, relacionamento com os pais, parceiros e filhos, amizades, sexualidade, profissão, experiências, crise da maturidade, enfim, com questões relativas ao viver e envelhecer, com o auxílio de textos de variados gêneros, como poesias, crônicas, contos, entre outros, bem como filmes, músicas e imagens.

As informações obtidas na entrevista e nas oficinas de validação das mesmas foram analisadas qualitativamente, utilizando-se a análise temática de conteúdo de Bardin77 Bardin L. Análise de Conteúdo. 4. ed. Tradução de Luís Augusto Pinheiro. São Paulo: Edições 70; 2016., na qual classificaram-se os elementos por características comuns e sua posterior categorização, cotejando os dados levantados com a perspectiva do cuidado de si de Foucault. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética com parecer n. 441.408, de acordo com a Resolução n. 466/12, mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. As participantes estão identificadas como I (Idosa), e a numeração arábica correspondente a ordem de realização das entrevistas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O que emergiu na voz das idosas desdobrou-se em categorias que se entrelaçam e complementam entre si. Assim, duas categorias foram constituídas: a) Vivências e fortalecimentos de envelhecer no grupo: a voz das idosas e b) O cuidado de si: olhando o eu e o outro.

A categoria vivências e fortalecimentos de envelhecer no grupo: a voz das idosas revelou que o grupo possibilitou o compartilhamento de experiências subjetivas, emergindo do falar de si uma identidade pessoal e familiar comum, que gerou uma experiência solidária e altruísta, de participação, de fortalecimento e de protagonismo social em relação aos sentimentos experimentados. As falas a seguir ilustram essa percepção:

“Eu descobri que não sou a única que tem problemas [...]. Que todas as famílias são iguais [...], que tem a mãe solteira, o alcoólatra, o separado, o escolarizado [...], o que ganha bem, tem o que não trabalha, que todo mundo passa pelas mesmas dores. Quando eu compartilhei, eu descobri assim que aqui tinha um monte de mães que tinham feito a mesma coisa, que tinham sofrido também, que tinha dado um bom resultado [...]. Então pra mim só um exemplo de que é assim mesmo com todo mundo” (I3).

“É porque a gente chega ali e vê que todo mundo tem problema, não é só a gente” (I1).

As participantes caracterizaram o grupo como “solidário”, como um espaço de inserção social para expressar seus problemas existenciais do cotidiano e que o processo de viver e envelhecer é acompanhado de desafios, como a necessidade de solidificar e renovar seus projetos de vida pessoais, sociais e culturais, suas condutas, temperamentos e comportamentos. Essas trocas recíprocas contribuíram para o entrelaçamento de ideias e pensamentos, de escuta, respeito, dignidade, com novas aprendizagens e sintetizando novos sentidos para o cuidado de si.

“Um dia sou escutada, no outro dia eu escuto” (I1).

“O maior significado desse grupo, ele me ensinou a escutar e a respeitar o pensamento do outro, porque [...] cada um tem o seu crescimento. Então é um grupo extremamente coeso, muito bom de se conviver, eu cresci muito” (I7).

“Olha! Eu admiro a variedade das pessoas, dos sentimentos das pessoas, a vida das pessoas, que tem gente bem diferente da gente. Então, pra mim, isto é muito interessante. Acho que tenho paciência, gosto de escutar” (I5).

Estes relatos indicam que as mulheres estruturaram um espaço renovador no campo do envelhecimento. Este cenário se revela propício para a formação de uma identidade social, ética, capaz de atender as necessidades biopsicossociais e culturais de mulheres que vivenciam a velhice.

Corroborando com as vivências, significados e interações sociais expressadas pelas idosas em relação ao compartilhamento de experiências, o cuidado de si de Foucault33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010. não se caracteriza como “uma simples preparação momentânea para a vida; é uma forma de vida”. Possui uma dimensão terapêutica, curativa e criativa, onde a pessoa mergulha na sua subjetividade, na sua alma, tornando-se dona de si mesma, capaz de gerar autonomia, independência, empoderamento, autogoverno44 Lawlor L, Nale J. The Cambridge Foucault lexicon. New York: Cambridge University Press; 2014.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009.,66 White R. Foucault on the care of the self as an ethical project and a spiritual goal. Hum Stud. 2014;37(4):489-504.. É um estilo de vida que procura, de forma contínua e progressiva, exercitar-se, experimentar-se, gerar atitude. É “desviar o olhar sobre as coisas do mundo para conduzi-lo a si”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.. O cuidado de si consiste em uma espécie de conversão “ética do sujeito definida pela relação de si para consigo mesmo”88 Dalbosco CA. Pragmatismo, teoria crítica e educação: ação pedagógica como mediação de significados. Campinas: Autores Associados; 2010..

Para os filósofos gregos e romanos, dentre os quais, Sócrates, Platão, Aristóteles, Diógenes de Sinope, Epicuro, Sêneca, Epicteto, Marco Aurélio, nunca é tarde ou cedo demais para conhecer e cuidar de si mesmo33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009.,66 White R. Foucault on the care of the self as an ethical project and a spiritual goal. Hum Stud. 2014;37(4):489-504.. Trata-se de um exercício contínuo, focado no autoconhecimento, autodomínio, tranquilidade, de como meditar ao levantar e deitar, projetar as atividades diárias e examiná-las como prática da vida cotidiana. De acordo com a fala a seguir, a participante busca diariamente refletir sobre sua existência e esse cuidado de si lhe traz motivação para enfrentar as atividades diárias:

“Eu sou uma pessoa que amo refletir. [...]. Quando chega de manhã, eu agradeço a Deus pelo dia, porque eu estou acordando, que ele me dê força, perseverança, para que todos os obstáculos que aparecerem eu consiga vencê-los da melhor forma possível, e quando eu chego a noite [também]” (I7).

Especificamente, “Foucault encontrou, no imperativo de ‘ocupar-se consigo mesmo’, uma possibilidade de elaboração de si como fim em si mesmo, isto é, encontrou, nos helenísticos, uma auto finalização do cuidado de si”99 Grabois PF. Práticas éticas de subjetivação e resistência política em Michel Foucault. ECOS Estud Contemp Subj. 2013;3(1):72-87.. Essa auto constituição, busca desenvolver um sujeito ético ativo, denominada de prática de si. É uma técnica que possibilita o sujeito, sozinho ou com a convivência com o outro, efetuar ações em torno do seu corpo, alma, sentimentos, pensamentos, atitudes, com intuito de alcançar a felicidade, a pureza da alma emancipada e soberana, a sabedoria, a tranquilidade frente a finitude existencial1010 Xavier LN, Sombra ICN, Gomes AMA, Oliveira GL, de Aguiar CP, Sena RMC. Grupo de convivência de idosos: apoio psicossocial na promoção da saúde. Rev Rene. 2015;16(4):557-66. As falas abaixo sinalizam nessa perspectiva, que consiste em uma tarefa nada fácil:

“No começo demorou um pouco, porque a gente [...] achava que não precisava falar de si. [...]. Na oficina consegui por pra fora, porque as vezes a pessoa fica doente porque não fala. [...]. Quando vejo uma amiga doente, eu falo: - Nossa! Você precisa frequentar [Oficina], falar, por pra fora” (I6).

“Era uma época que eu andava doente, nervosa, triste. Eu tinha perdido o meu irmão [...]. [A Oficina] me ajudou. A gente pode falar dos problemas da gente, dos sentimentos. [...]. Eu era uma pessoa muito fechada, extremamente infeliz, não tinha prazer pra nada” (I2).

Ouvir o outro é uma atitude de consideração e respeito, um meio de comunicação, de sedimentação de experiências1010 Xavier LN, Sombra ICN, Gomes AMA, Oliveira GL, de Aguiar CP, Sena RMC. Grupo de convivência de idosos: apoio psicossocial na promoção da saúde. Rev Rene. 2015;16(4):557-66. De acordo com as falas evocadas, a oficina gerou uma identidade social de sujeito, de caráter participativo e de cidadania, de protagonismo social. O outro, na visão de Foucault33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.,44 Lawlor L, Nale J. The Cambridge Foucault lexicon. New York: Cambridge University Press; 2014.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009.,66 White R. Foucault on the care of the self as an ethical project and a spiritual goal. Hum Stud. 2014;37(4):489-504. não pode ser ignorado para a constituição do cuidado de si, porque ele caracteriza o sujeito como pertencente à humanidade, ou seja, portador de sentido existencial com o qual se estabelecem ações e reações de um caráter preponderantemente político e ético. Como afirmam Wanderbroocke et al.22 Wanderbroocke AC, Wiedemann AMV, Bussolin C. Participação social e familiar de idosas vinculadas a um grupo de convivência de uma comunidade de baixa renda em Curitiba-PR. Salud soc. 2015;6(3):212-22., a partir de um estudo de revisão da literatura, sentimentos de identidade social de idosos, podem ser suscitados pela partilha em grupos de convivência, experimentados como atitudes de motivação e participação, confiança, justiça, interação, bem-estar, qualidade e satisfação com a vida, reduzindo experiências de solidão e isolamento.

Na categoria O cuidado de si: olhando o eu e o outro emergiram características específicas do processo de envelhecimento, constituídas em aparência, papéis sociais, grupo de amigos e vida familiar. Essas mudanças, que durante muito tempo foram vistas somente como perdas, agora propiciaram realizações subjetivas, porque as participantes sentiram-se livres dos compromissos tradicionais, tornando-se protagonistas de mudanças na representação da velhice, podendo refletir sobre suas escolhas e seus desejos, o que pode ser evidenciado nos excertos das falas a seguir.

“Eu procurei [ o grupo] com a intenção de encontrar recursos para melhorar o meu lado emocional, de viver com as situações, principalmente com os conflitos, que sempre me acompanharam e acho que acompanham as pessoas sempre, umas mais outras menos” (I4).

“Os textos eu gosto muito, porque se eu fosse lê em casa sozinha, não ia entrar dentro do texto, como a gente faz aqui” (I6).

“Fiquei assim muito chocada com a idade, eu não vi que tinha envelhecido. Eu estava meio desesperada na época. Daí comecei a frequentar este grupo, me conscientizar que todo mundo tem problema. [...]. De uma maneira ou de outra, então tem que procura enfrentar. O vínculo que eu tenho com elas [...] é uma afeição que a gente cria, um vínculo afetivo! É assim afetivo, digamos amplo, porque você tem confiança nas pessoas, no grupo, né!” (I2).

Nestes relatos, infere-se que a participação na oficina contribuiu para (re)encontro consigo mesmas. A experiência cotidiana irrefletida as mantinha atarefadas com as atribuições da vida familiar e profissional, fazendo com o cuidado de si ignorado ou esquecido.

Na perspectiva do cuidado de si proposta por Foucault33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009., se a vida de uma pessoa não for examinada, refletida e continuamente auto avaliada, o sujeito corre o risco de ser bruscamente surpreendido por algum acontecimento inesperado e ver sua vida desmontar-se em sua dimensão de papéis e de sentidos. A ausência de reflexão e autocuidado acarretam a perda de condições subjetivas de suporte emocional para o enfrentamento dos revezes da vida.

Na liberdade de fala (parrehsía), proposta e sustentada pelos grupos de apoio, emerge o sujeito em sua potencialidade de autoconstrução e assunção do desejo, rompendo com as contingências que os atrelavam a papéis estáticos historicamente constituídos, que se fazem débeis enquanto perspectivas de vida ao indivíduo senil:

“Você tem confiança, você pode falar, às vezes, você diz coisas que você sempre achou que nunca iria falar, porque é uma coisa que constrange, têm coisas na vida que a gente não quer falar [...], [porque] se torna de domínio público” (I4).

“Às vezes em casa a gente não comenta, não fala porque machuca os de casa, ficam enjoados todos os dias se queixando. E aqui a gente tem a liberdade de conversar, botar pra fora os problemas da gente, os sentimentos, por isto que eu estou frequentando até hoje” (I6).

“O meu sonho é ter um namorado” (I7).

Nestes relatos, ocorreu o retorno a si mesmo. Infere-se disso, que o espaço promovido pelo grupo para falar sobre as particularidades, fortaleceu o sujeito a olhar o mundo e os acontecimentos da vida com mais galhardia, com novas expectativas, novos projetos afetivos. Essa forma de cuidar de si, faz o sujeito, a pessoa idosa, constituir-se de um cabedal de recursos subjetivos, da alma, como coragem, moderação, tranquilidade, domínio de si (enkrateia) e dos seus desejos, moldando sua conduta para enfrentar os desafios pessoais e conviver melhor1111 Hadot P. La philosophie comme manière de vivre. Paris: Albin Michel; 2008.,44 Lawlor L, Nale J. The Cambridge Foucault lexicon. New York: Cambridge University Press; 2014.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009..

Por meio da convivência com o outro, com o diferente, as idosas conseguiram ver a si mesmas, suas atitudes, seus papéis sociais desempenhados no decorrer de suas vidas, aos quais foram moldadas a seguir por ordenamento social, cultural, religioso, moral, etc., de acordo com o referencial tradicional de família e velhice, para os quais a mulher deveria somente exercer a função de mãe, avó, serva do lar, do marido, muitas vezes, submissa até em sua eroticidade. O cuidado de si estimula o sujeito a estabelecer novas relações “com a mulher, com os outros, com os acontecimentos e com as atividades cívicas e políticas”66 White R. Foucault on the care of the self as an ethical project and a spiritual goal. Hum Stud. 2014;37(4):489-504.. Ora, o cuidado de si analisado por Foucault propõe que o sujeito desperte de si mesmo, com autonomia, responsabilidade, tranquilidade.

Trata-se da arte de viver bem, que significa moldar sua própria vida, por meio da imersão à subjetividade, aos valores da alma, instaurando um estilo de liberdade. “O sujeito do cuidado de si tem na liberdade sua condição primeira, configurando-se pelas práticas de si”1212 Silva NMA, Freitas AS. A ética do cuidado de si no campo pedagógico brasileiro: modos de uso, ressonâncias e desafios. Pro-Posições. 2015;26(1):217-33.. É assumir-se e reconhecer-se como sujeito, como partícipe de um mundo de possiblidades consigo mesmo e com os outros, como um ser no mundo. A estética da existência é uma escolha de existência. As falas abaixo sintetizam essa inserção num grupo e a imersão em si mesma:

“Participar do grupo foi o maior investimento que eu fiz [...]. Foi muito bom. Foi como se tivesse juntado as peças que estavam meio desconjuntadas e tivesse formado um novo ser, ou um ser mais inteiro. Então aqui, ele me deu uma outra visão, eu vejo como uma terapia” (I8).

“Sou meio fechada, eu gosto mais de escutar, então a experiência de um, de outro, serve pra mim também” (I6).

“Aqui a gente pode falar, botar as coisas pra fora e as pessoas escutam. As vezes eu acho que não vou expor isto na frente do grupo [...] mas aí a gente acabou criando este laço, que faz com que a gente fale, esta confiança que se criou entre a gente” (I4).

“É mais de 3 anos que estou na Dialogando. A gente vai aprendendo porque teve pessoas que também já passaram, te dão incentivo [...] as vez a gente pensa que é só a gente que tá passando, mas não é” (I8).

“Eu acho que é importante ter esses grupos, não só aqui pra nós, [...], mas todo mundo que pudesse participar, seria bom” (I3).

O cuidado de si centra-se no ocupar-se consigo mesmo. Essa postura inquietante de buscar a si mesmo tornou-se um princípio de conduta racional, moral no mundo do pensamento helenístico e romano e “um verdadeiro fenômeno cultural de conjunto”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010.. Nesse itinerário moral, o sujeito torna-se senhor de si mesmo, não na perspectiva de uma “lei universal, à qual cada um e todos deveriam se submeter; mas, antes de tudo como um princípio de estilização da conduta para aqueles que querem dar à sua existência a forma mais bela e mais realizada possível”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010..

O bem-estar, o cuidado de si proporcionado pela convivência das idosas em grupo, demonstrou que mergulhar nas profundezas da alma, compartilhando emoções, tornou-se um combustível, capaz de impulsionar para novos projetos, dando sentido à existência. Essa maneira de cuidar de si atua no pensamento, no sentimento, na percepção de si, nos outros e no mundo, gerando uma ação, uma transformação no jeito de ser do sujeito, formando um “um novo ser”, conforme o expresso nas falas abaixo.

“Eu descobri que não sou a única, que todo mundo é igual e passa pelas mesmas dores. A gente troca as ideias e vê que a gente tem como saí [...], que a gente é vencedora!” (I5).

“Eu quero sair daqui pra frente, eu não quero retroceder [...]. A família percebeu assim, uma mudança” (I3).

“Enquanto ser humano, cada um tem o seu crescimento, [...], seu entendimento. [...]. Eu acho que a pessoa tem que se dar conta o que é bom para ela, não quando impõe, porque quando se impõem, é muito difícil” (I7).

Corroborando, pode-se avaliar que “a existência de espaços coletivos para a troca de experiências, bem como os contatos informais do cotidiano, contribuem para aproximar os interlocutores11 Moura MMD, Veras RP. Acompanhamento do envelhecimento humano em centro de convivência. Physis. 2017;27(1):19-39.. Por isso, o cuidado de si é uma atitude, uma maneira de estar, agir e ser no mundo e com os outros44 Lawlor L, Nale J. The Cambridge Foucault lexicon. New York: Cambridge University Press; 2014.,55 Foucault M. História da sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal; 2009.,1313 Lynch R. Foucault's critical ethics. New York: Fordham University Press; 2016.,1414 Ramirez RH. Technology and self-modification: understanding technologies of s after Foucault. J Sci Technol Arts. 2017;9(3):45-57.. Essa atitude em relação a si, faz com que o sujeito “se toma a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se, obter a própria salvação, etc”88 Dalbosco CA. Pragmatismo, teoria crítica e educação: ação pedagógica como mediação de significados. Campinas: Autores Associados; 2010..

Para alcançar esse nível de desenvolvimento moral, ou seja, essa prática de si, o cuidado de si pode ser relacionado a parrhesía, que significa falar a verdade, franqueza, ser verdadeiro consigo mesmo, abertura de pensamento, assumindo-se, como “coragem da verdade”. [...]. A parrhesía envolveu uma série de elementos essenciais para se pensar as relações entre filosofia, ética, verdade, política e democracia na Antiguidade”88 Dalbosco CA. Pragmatismo, teoria crítica e educação: ação pedagógica como mediação de significados. Campinas: Autores Associados; 2010.. Ainda, parrhesía é uma “maneira de dizer, [...], uma ética da palavra [...]. É a abertura do coração, é a necessidade, entre os pares, de nada esconder um ao outro do que pensam e se falar francamente”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010..

“A gente vê que o outro, as vezes, tem problemas bem mais sérios do que aquele que a gente tá passando. Mas chegou uma altura que nada disso mais me dava aquilo que eu precisava. Estava cheio de conflitos. [...] Eram duas, três coisas dentro - sentimentos, emoções que brigavam dentro de mim” (I4).

Uma das formas de praticar a parrhesía é estabelecer e manter relações de amizade, principalmente na velhice, porque elas auxiliam e dão suporte emocional e motivacional, incluindo sentimento de pertencimento, confiança e encorajamento1313 Lynch R. Foucault's critical ethics. New York: Fordham University Press; 2016.,1414 Ramirez RH. Technology and self-modification: understanding technologies of s after Foucault. J Sci Technol Arts. 2017;9(3):45-57.,1515 Almeida M. As Relações de amizade entre pessoas idosas: significados, funções e intimidade. Atas Invest Qual Saúde. 2016;2:1340-5.,1616 Pinho LC. Michel Foucault e o conceito grego de parresia. Poiesis Rev Filos. 2015;12(1):34-43.. “A amizade era, em geral, centralizada em tomo de um personagem em relação ao qual alguns estavam mais próximos e [outros] menos próximos”33 Foucault M. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes; 2010., bem como, se situa como a única condição na qual pode-se suportar os riscos da franca enunciação do verdadeiro.

CONCLUSÃO

Para as mulheres deste estudo, compartilhar vivências em um grupo de convivência, tanto pela fala quanto pela escuta, teve um significado positivo. Os relatos das participantes demonstraram que nesse espaço ocorreram identificações e formações de vínculos significativos, surgindo novas demandas e perspectivas em um momento tardio do curso de vida. Logo, esse espaço de sociabilidade para idosos contribui para o equilíbrio emocional, mais condições para o enfrentamento de desafios da longevidade e maior capacidade para inserir-se em outros contextos de vida que se fazem necessários.

De acordo com as falas das participantes, as expressões que emergiram enaltecem a busca do cuidado de si, sendo recorrentes termos como: aprendizado, ajuda, acolhida, alegria, aliança, amizade, amor, colaboração, compartilhamento, confiança, comunicação, conhecimento, compreensão, convivência, cumplicidade, diálogo, dor, entendimento, entrosamento, família, felicidade, história, imaginação, ideias diferentes, lembranças, partilhar, relembrar, respeito, reviver, solidariedade e igualdade. Ora, a filosofia do cuidado de si requer vigilância, energia, aprender a viver e a dialogar. Todas estas expressões demonstraram um diálogo profícuo consigo e com o outro.

A oportunidade de compartilhar as alegrias e as tristezas, de falar de si, de sua identidade e subjetividade, fez com que as participantes desenvolvessem novas possibilidades de aprendizagens, imergindo numa relação pedagógica recíproca de ensinar e aprender, com capacidade de gerar mudança no estilo e nos projetos de vida individuais, uma espécie de educação gerontológica a partir da própria experiência. Esse “laboratório de sensibilidades” do cuidado de si que o grupo operacionalizou para as idosas, propiciou o empoderamento e o desenvolvimento global dessas mulheres, de forma integral, demonstrando que o desenvolvimento humano biopsicossocial pode ser um processo permanente, estendido a todas as etapas da existência humana.

Se o cuidado de si é um projeto para vida toda, os relatos das participantes demonstraram que o espaço de escuta, socialização e expressão de sentimentos, realizações, alegrias, angústias e tristezas contribuiu para formação de vínculos significativos, de acolhida, diálogo, de encontro consigo mesmo, de equilíbrio emocional, de solidariedade, proporcionando alívio, conforto, motivação e determinação para enfrentar os desafios da longevidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2018
  • Aceito
    13 Dez 2018
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