Acessibilidade / Reportar erro

Síndrome antifosfolípide e gestação: tratamento com heparina e aspirina em doses baixas

Antiphospholipid syndrome and pregnancy: treatment with heparin and low-dose aspirin

Resumos

Objetivos: determinar a eficácia e a segurança do tratamento de gestantes com síndrome antifosfolípide com a heparina associada à aspirina em baixas doses, e determinar possíveis fatores agravantes da síndrome. Métodos: 17 pacientes portadoras da síndrome antifosfolípide foram submetidas a rigoroso acompanhamento pré-natal. A heparina foi utilizada na dose de 10.000 UI/dia e a aspirina na dose de 100 mg/dia. Foram analisados resultados perinatais e maternos, mediante a utilização do teste do chi² e do teste exato de Fischer. Resultados: o índice de recém-nascidos vivos foi de 88,2% nas gestações tratadas dessas pacientes contra 13,3% nas gestações prévias não-tratadas dessas mesmas pacientes. Foi alta a incidência de complicações gestacionais: oligoidrâmnio (40%), sofrimento fetal anteparto (33,3%), crescimento intra-uterino retardado (33,3%), diabetes mellitus gestacional (29,4%), pré-eclâmpsia (23,5%) e prematuridade (60%). A presença do lúpus eritematoso sistêmico foi indicação de mau prognóstico. Nenhum efeito colateral significativo foi observado durante o tratamento. Conclusões: o tratamento adotado se mostrou efetivo na obtenção de maior índice de recém-nascidos vivos, seguro, mas incapaz de impedir a alta incidência de complicações maternas e perinatais associadas à síndrome. O lúpus eritematoso sistêmico se mostrou um fator agravante da síndrome antifosfolípide.

Síndrome antifosfolípide; Anticorpos antifosfolípides; Doenças auto-imunes; Aborto habitual; Lúpus eritematoso sistêmico


Purpose: to determine the effectiveness and the safety of treatment with heparin and low-dose aspirin in pregnant women with antiphospholipid syndrome, and to determine possible deteriorating factors for this syndrome. Methods: 17 patients with antiphospholipid syndrome were submitted to a rigorous antenatal care. Patients were treated with a fixed dose of heparin (10,000 IU/day) associated with low-dose aspirin (100 mg/day). We analyzed perinatal and maternal results, using chi² test and Fischer's exact test. Results: the overall live birth rate was 88.2% in treated pregnancies of these patients versus 13.3% of their previous nontreated pregnancies. The incidence of adverse pregnancy outcomes was very significant: oligohydramnios (40%), fetal distress (33.3%), fetal growth retardation (33.3%), gestational diabetes (29.4%), preeclampsia(23.5%), and preterm delivery (60%). The presence of systemic lupus erythematosus was an indication of poor prognosis. No significant side effects were observed during the treatment. Conclusions: this treatment was effective to improve live birth rate, safe, but it was not able to avoid adverse pregnancy outcomes associated with antiphospholipid syndrome. Systemic lupus erythematosus was a deteriorating factor for this syndrome.

Antiphospholipid syndrome; Antiphospholipid antibodies a Recurrent pregnancy loss


Trabalhos Originais

Síndrome Antifosfolípide e Gestação: Tratamento com Heparina e Aspirina em Doses Baixas

Antiphospholipid Syndrome and Pregnancy: Treatment with Heparin and Low-Dose Aspirin

Marcelo de Amorim Aquino, Venina Isabel Poço Viana Leme de Barros, Soubhi Kahhale, Andrea de Castro Lucena, Marcelo Zugaib

RESUMO

Objetivos: determinar a eficácia e a segurança do tratamento de gestantes com síndrome antifosfolípide com a heparina associada à aspirina em baixas doses, e determinar possíveis fatores agravantes da síndrome.

Métodos: 17 pacientes portadoras da síndrome antifosfolípide foram submetidas a rigoroso acompanhamento pré-natal. A heparina foi utilizada na dose de 10.000 UI/dia e a aspirina na dose de 100 mg/dia. Foram analisados resultados perinatais e maternos, mediante a utilização do teste do c2 e do teste exato de Fischer.

Resultados: o índice de recém-nascidos vivos foi de 88,2% nas gestações tratadas dessas pacientes contra 13,3% nas gestações prévias não-tratadas dessas mesmas pacientes. Foi alta a incidência de complicações gestacionais: oligoidrâmnio (40%), sofrimento fetal anteparto (33,3%), crescimento intra-uterino retardado (33,3%), diabetes mellitus gestacional (29,4%), pré-eclâmpsia (23,5%) e prematuridade (60%). A presença do lúpus eritematoso sistêmico foi indicação de mau prognóstico. Nenhum efeito colateral significativo foi observado durante o tratamento.

Conclusões: o tratamento adotado se mostrou efetivo na obtenção de maior índice de recém-nascidos vivos, seguro, mas incapaz de impedir a alta incidência de complicações maternas e perinatais associadas à síndrome. O lúpus eritematoso sistêmico se mostrou um fator agravante da síndrome antifosfolípide.

PALAVRAS-CHAVE: Síndrome antifosfolípide. Anticorpos antifosfolípides. Doenças auto-imunes. Aborto habitual. Lúpus eritematoso sistêmico.

Introdução

Os anticorpos antifosfolípides constituem um grupo de auto-anticorpos dirigidos contra fosfolipídios de carga negativa. Embora sua presença esteja associada a uma série de eventos ominosos, o diagnóstico da chamada síndrome antifosfolípide se baseia em critérios bem estabelecidos. Ela é definida como a presença desses anticorpos em combinação com um dos seguintes achados: perda gestacional de repetição, trombose arterial ou venosa e trombocitopenia10.

Apesar dos estudos iniciais enfatizarem a associação da síndrome antifosfolípide com doenças auto-imunes, estudos subseqüentes confirmam sua existência de forma isolada10. Nas pacientes portadoras dessa síndrome, a perda gestacional ocorre em 50 a 97% das gestações não-tratadas6,18. Quando os anticorpos antifosfolípides estão presentes, até mesmo casos de gestações tratadas e bem sucedidas são de alto risco para a ocorrência de complicações, como pré-eclâmpsia, crescimento intra-uterino retardado (CIUR), sofrimento fetal anteparto e parto prematuro4. O mecanismo fisiopatológico envolvido na perda gestacional observada em pacientes portadoras da síndrome antifosfolípide permanece desconhecido, embora diferentes teorias tenham tentado explicar as extensas áreas de infarto observadas em suas placentas14.

Vários tratamentos têm sido propostos na tentativa de se prevenir as complicações verificadas nas pacientes portadoras da síndrome antifosfolípide. A aspirina, a prednisona e a heparina têm sido utilizadas de forma isolada ou combinadas entre si. A morbidade associada ao tratamento com a prednisona e a suspeita de que a perda gestacional observada na síndrome antifosfolípide seja decorrente de lesões trombóticas no leito placentário, deram subsídios para o uso da heparina no tratamento dessas pacientes. Recentes estudos têm demonstrado ser ela tão efetiva quanto a prednisona na prevenção da perda gestacional, com a vantagem de apresentar menor morbidade materna e menor incidência de prematuridade6.

A eficácia desses tratamentos, no entanto, ainda é motivo de grande controvérsia. Os estudos são, em sua maioria baseados em pequeno número de casos e diferem entre si quanto aos critérios adotados na seleção das pacientes. Dessa forma, estimulados pelas controvérsias existentes sobre o tema e encontrando subsídios em um serviço de pré-natal diferenciado, para o qual pacientes com a doença em enfoque são referidas, vislumbramos a oportunidade de realizar um estudo prospectivo com o objetivo precípuo de testar um protocolo de atendimento a esse grupo de gestantes.

Pacientes e Métodos

Foram acompanhadas as gestações de pacientes portadoras da síndrome antifosfolípide, no período de julho de 1992 a junho de 1997, na Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). Este foi um estudo prospectivo, longitudinal, não-aleatório, que obedeceu o protocolo assistencial adotado na referida clínica.

Todas as pacientes incluídas nesse estudo preencheram os critérios utilizados para o diagnóstico da síndrome antifosfolípide: 1) presença de um ou de ambos os anticorpos antifosfolípides (anticoagulante lúpico e anticorpo anticardiolipina) e 2) presença de um ou mais dos seguintes achados clínicos: a) perda gestacional de repetição; b) trombose arterial ou venosa; c) trombocitopenia. Como perda gestacional de repetição considerou-se: 1) três ou mais abortamentos precoces (até a 10a semana gestacional) consecutivos, ou 2) dois ou mais abortamentos tardios (acima de 10 semanas gestacionais) e/ou óbitos fetais consecutivos.

Foram afastadas outras possíveis causas de perda gestacional de repetição mediante a realização de estudo do cariótipo e bandeamento cromossômico do casal, exames ultra-sonográficos e pesquisa de micoplasma e clamídia, quando houve indicação. Todas as pacientes assinaram termo de consentimento pós-informação, de acordo com as normas da Comissão de Ética Médica para Análise de Projetos de Pesquisa-CAPPesq da Diretoria Clínica do HCFMUSP, manifestando a sua vontade quanto a sua participação no estudo. Foram excluídas do mesmo as pacientes que iniciaram o seguimento pré-natal após a 28a semana gestacional e os casos de gestações múltiplas.

O anticorpo anticardiolipina foi pesquisado por meio de uma técnica de imuno-ensaio enzimático (ELISA). Nessa metodologia foi utilizada a última padronização publicada por Harris et al.9. Os resultados foram expressos de forma semiquantitativa9, sendo considerados como negativos, se menores que 10 unidades GPL ou MPL/ml, ou positivos, quando maiores ou iguais a 10 unidades GPL ou MPL/ml. Os resultados positivos, por sua vez, foram subdivididos em baixos, entre 10 e 19 unidades GPL/ml ou entre 10 e 19 unidades MPL/ml, moderados, entre 20 e 80 unidades GPL/ml ou entre 20 e 50 unidades MPL/ml, e altos, acima de 80 unidades GPL/ml ou acima de 50 unidades MPL/ml. Uma unidade GPL ou MPL foi considerada como correspondendo à atividade de ligação de um µg/ml do anticorpo anticardiolipina IgG ou IgM, respectivamente.

A presença do anticoagulante lúpico foi determinada por meio da demonstração, na mistura do plasma do paciente com plasma normal, de um TTPA (tempo de protrombina parcial ativada) aumentado. Nessa metodologia foi utilizada a padronização publicada por Rosove et al.17, sendo os resultados considerados como positivos (anticoagulante lúpico presente) quando superiores a 0,17.

As pacientes com síndrome antifosfolípide foram tratadas com heparina em baixas doses associada à aspirina, também em baixas doses. A aspirina foi utilizada na dose de 100 mg/dia, via oral, em dose única diária, a partir da primeira consulta do pré-natal, tão logo uma gestação tópica, potencialmente viável, fosse documentada por exame ultra-sonográfico. Essa medicação foi utilizada de forma ininterrupta até a 36a semana gestacional11.

A heparina foi introduzida na mesma época que a aspirina. A dose preconizada foi de 10.000 UI/dia (5.000 UI a cada 12 horas), via subcutânea, administrada pela própria paciente, após a devida orientação pela equipe de enfermagem11. Utilizada durante toda a gestação, foi suspensa quando iniciado o trabalho de parto, se espontâneo, ou 12 horas antes da interrupção da gestação, quando foi possível programá-la. Foi reintroduzida seis horas após o parto, na mesma dose, e substituída após três dias por anticoagulante oral, o qual era mantido por mais seis semanas.

Uma suplementação com carbonato de cálcio (500 mg/dia) foi administrada a essas pacientes, profilaticamente, visando prevenir possível osteopenia induzida pela heparina7. Nas pacientes portadoras de lúpus eritematoso sistêmico (LES), independentemente do uso da aspirina e da heparina, foi introduzida a prednisona na dose necessária para o controle clínico da doença.

As consultas de pré-natal foram realizadas, desde o momento em que a gestante procurou o serviço, até o parto, sendo repetidas a intervalos de 15 dias, da primeira consulta até a 28a semana e semanalmente, a partir desse período até o final da gestação. Todas as pacientes foram, ainda, acompanhadas por um período de seis meses após o parto. Alguns exames, como hemograma completo, coagulograma, cálcio, fósforo e fosfatase alcalina foram realizados a cada 15 dias, visando a monitoração do tratamento da síndrome antifosfolípide. O crescimento fetal foi monitorado por meio de exames ultra-sonográficos, realizados, no mínimo, uma vez por mês.

Foram analisados parâmetros perinatais (idade gestacional no parto, peso dos recém-nascidos, evolução dos partos, via dos partos e intercorrências perinatais) e maternos (intercorrências maternas e efeitos colaterais dos medicamentos). As associações entre as diversas variáveis e os índices de recém-nascidos vivos foram analisadas pelo teste do (c2), quando foi possível a sua utilização, ou pelo teste exato de Fischer, tendo sido adotado o nível de significância de 0,05 (p = 5%).

Resultados

O perfil epidemiológico das 17 pacientes no início do estudo é mostrado na Tabela 1. A média de idade das pacientes foi de 29,1 ± 5,7 anos e a idade gestacional média no início do seguimento pré-natal, de 16,2 ± 4,6 semanas. Treze pacientes (76,5%) não tinham nenhuma outra doença auto-imune concomitante, tendo sido classificadas como portadoras de síndrome antifosfolípide primária. Quatro pacientes (23,5%) foram classificadas como tendo síndrome antifosfolípide secundária por serem portadoras de LES. Dessas, três apresentaram atividade clínica da doença em algum período da gestação. Duas delas já se apresentavam em atividade lúpica no início da gestação, e uma desenvolveu exacerbação da doença na 24a semana.

As 17 pacientes tinham tido, em conjunto, 60 gestações prévias. Dessas, 52 tinham resultado em perdas gestacionais (86,7%) e apenas oito (13,3%), em recém-nascidos vivos (Figura 1). Nenhuma das pacientes era primigesta, mas apenas sete delas (41,2%) tinham tido ao menos um recém-nascido vivo. A perda gestacional média era de 3,1 ± 1,8 por paciente.


Dezesseis pacientes (94,1%) apresentavam história de perdas gestacionais de repetição. Treze pacientes (76,5%) apresentavam pesquisa positiva para o anticoagulante lúpico, ao passo que o anticorpo anticardiolipina foi detectado em outras 13 (76,5%). Em todas pacientes nas quais a pesquisa para os anticorpos anticardiolipina se mostrou positiva, esses anticorpos estavam presentes em títulos baixos (entre 10 e 19 unidades GPL/ml ou MPL/ml).

Dentre as 17 pacientes tratadas, 15 (88,2%) obtiveram sucesso e duas (11,8%) apresentaram óbitos fetais (Tabela 2). Entre as 15 pacientes com gestações bem sucedidas, a idade gestacional no parto variou entre 28 e 38 semanas, com uma média de 34,6 ± 3,2 semanas. Dentre elas, seis (40%) entraram em trabalho de parto espontâneo, ao passo que as outras nove (60%) tiveram seus partos antecipados por indicações diversas: sofrimento fetal anteparto (quatro casos), pré-eclâmpsia (quatro casos) e descolamento prematuro da placenta (um caso). A via de parto utilizada foi a vaginal em dois casos (13,3%) e a abdominal, nos 13 restantes (86,7%).

As gestações bem sucedidas apresentaram elevada incidência de prematuridade (60%), embora a maior parte desas pacientes (66,6%) tenha tido seu parto após a 34a semana gestacional. O peso médio dos recém-nascidos foi de 2.141,7 ± 812,9g. Ainda entre as gestações bem sucedidas, foram observados, oligoidrâmnio em seis casos (40%) sofrimento fetal anteparto em cinco (33,3%) e CIUR em outros cinco (33,3%). Uma paciente apresentou amniorrexe prematura e outra DPP (Figura 2).


Entre as 17 pacientes acompanhadas, cinco (29,4%) desenvolveram diabetes gestacional e quatro (22,2%) pré-eclâmpsia (sendo um caso de pré-eclâmpsia superajuntada). Sempre que esteve presente, a pré-eclâmpsia foi a indicação da antecipação do parto, uma vez confirmada a maturidade fetal, fato que ocorreu antes de completada a 37a semana gestacional nos quatro casos.

Quinze gestações (88,2%) obtiveram sucesso e resultaram no nascimento de 15 recém-nascidos que receberam alta hospitalar. Duas gestações (11,8%) resultaram em óbitos fetais. Não houve nenhum abortamento ou óbito neonatal. Nenhum caso de malformação fetal foi observado. Os óbitos fetais ocorreram com 22 e 25 semanas gestacionais, tendo os recém-nascidos pesado, respectivamente, 510 e 400 g. As duas pacientes eram portadoras de LES (Tabela 3). Ao passo que a primeira já se encontrava em atividade da doença desde o início da gestação, a outra desenvolveu atividade na 24a semana. Em ambos os casos as pacientes entraram em trabalho de parto espontâneo pouco depois do óbito fetal.

Não foram observados sangramentos significativos que requeressem a suspensão dos medicamentos. Algumas pacientes apresentaram pequenos hematomas no local da aplicação da heparina, sem maiores repercussões. Não houve casos de fraturas ósseas nem foram observadas alterações importantes no coagulograma.

Discussão

O risco de perda gestacional subseqüente em mulheres com síndrome antifosfolípide é desconhecido, mas acredita-se estar entre 50 e 97%6,18. Quando os anticorpos antifosfolípides estão presentes, mesmo as gestações viáveis podem ser complicadas por acidentes tromboembólicos, prematuridade, CIUR, sofrimento fetal anteparto e pré-eclâmpsia4,18.

Na tentativa de melhorar os resultados perinatais, vários tratamentos têm sido propostos para a síndrome antifosfolípide. Dessa forma, a aspirina, a prednisona, a heparina e, mais recentemente, a imunoglobulina humana, têm sido utilizados de forma isolada ou combinadas entre si, com sucessos e falhas. O tratamento ideal da síndrome antifosfolípide permanece, todavia, indefinido.

A aspirina, inibindo a produção do tromboxana A2, corrige a deficiência no balanço prostaciclina-tromboxana causado pelos anticorpos antifosfolípides e previne a trombose dos vasos placentários15. A facilidade, o baixo custo e a segurança desse tratamento fizeram com que ele fosse adotado em alguns estudos, com relatos de índices de gestações bem sucedidas em até 55% dos casos12.

O uso da corticoterapia no tratamento da síndrome antifosfolípide, baseia-se no argumento de que, suprimindo-se os níveis dos anticorpos circulantes, alcançar-se-iam melhores resultados perinatais. Apesar dos altos índices de recém-nascidos vivos (cerca de 60%12), a maior incidência de complicações maternas e perinatais, como prematuridade, pré-eclâmpsia, amniorrexe prematura e diabetes mellitus gestacional6, fez com que esse esquema terapêutico caísse em desuso, estando praticamente restrito àquelas pacientes portadoras de outras doenças auto-imunes, sobretudo o LES.

A heparina, por sua ação anticoagulante, passou a ser utilizada no tratamento da síndrome antifosfolípide, a partir do momento em que foi considerada a possibilidade de que a perda gestacional fosse devido à trombose nos vasos útero-placentários. A heparina produz seu maior efeito anticoagulante por meio de sua ligação aos sítios de lisina, na antitrombina III, induzindo uma alteração na conformação do centro reativo da arginina e convertendo a antitrombina III em um rápido inibidor das enzimas da coagulação. Além disso, a heparina liga-se aos anticorpos antifosfolípides, protegendo os fosfolipídios do trofoblasto, em estágios precoces da gestação, de um ataque direto por parte desses anticorpos e promovendo implantação embriônica bem sucedida16.

Embora qualquer um desses esquemas terapêuticos pareça melhorar os resultados maternos e perinatais nas pacientes com anticorpos antifosfolípides e perdas gestacionais de repetição, resultados mais significativos têm sido obtidos com o uso da heparina em combinação com a aspirina em baixas doses11,13,16,18. Segundo Kutteh et al.12 esse tratamento permite a obtenção de um índice de recém-nascidos vivos de cerca de 75%. A heparina tem sido, pois, o tratamento mais empregado em gestantes com síndrome antifosfolípide, utilizada em doses que variam de 10.000 a 36.000 UI/dia. Nas séries mais recentes, no entanto, vem sendo utilizada em doses menores, entre 10.000 e 20.000 UI/dia. Tais publicações indicam que, mesmo baixas, essas doses são efetivas, e diminuem de certa forma os riscos de hemorragia, osteopenia e trombocitopenia, complicações que estão associadas ao emprego de doses mais altas11.

Os riscos potenciais do uso da heparina seriam sangramentos e osteoporose. Os sangramentos são raros e geralmente contornáveis. A osteopenia é reversível com a suspensão do tratamento e embora haja relatos de casos de fraturas patológicas de vértebras, essas são quase restritas àquelas pacientes que fizeram uso concomitante de corticóide.

Além do maior índice de gestações bem sucedidas, a menor incidência de efeitos colaterais, quando comparado com o tratamento com a prednisona, contribuiu para a adoção desse tratamento. Pelo mesmo motivo, escolhemos a utilização da heparina, associada à aspirina, para o tratamento das gestantes por nós acompanhadas nesse estudo. Optamos, também, pela utilização da heparina em baixas doses, porque acreditamos que o uso de doses maiores da medicação não proporcione melhores resultados maternos ou perinatais, além de expor as pacientes a um risco desnecessário.

As pacientes desse estudo apresentavam em seus antecedentes obstétricos, em conjunto, 60 gestações prévias não-tratadas, das quais 52 (86,7%) tinham resultado em perdas gestacionais e apenas oito (13,3%), em recém-nascidos vivos. Com o tratamento, obtivemos sucesso em 15 das 17 gestações acompanhadas, o que significa um índice de recém-nascidos vivos de 88,2%, comparável aos obtidos por outros estudos4,11,18.

Uma comparação das 17 gestações tratadas no presente estudo com as gestações prévias não-tratadas dessas mesmas pacientes sugere que o tratamento por nós adotado foi efetivo (Tabela 2). Para validar essa correlação não se alienaram as limitações de se comparar resultados gestacionais prévios com resultados atuais, embora ocorressem no mesmo grupo de pacientes. Pela impossibilidade de se obter um grupo controle de pacientes não-tratadas, por razões éticas, não se pôde excluir por completo a possibilidade de que outros aspectos relacionados aos cuidados obstétricos dispensados às pacientes, além do tratamento, tenham sido benéficos, influenciando nos nossos resultados. Portanto, é plausível afirmar que a terapia adotada, em combinação com um rigoroso acompanhamento pré-natal, proporcionou às gestantes dessa pesquisa melhores resultados perinatais.

Esse estudo confirma, também, os relatos existentes na literatura acerca da alta incidência de complicações gestacionais em mulheres com síndrome antifosfolípide, a despeito do tratamento adotado4,13. Conforme já foi bem definido, um freqüente achado em gestantes com síndrome antifosfolípide é a prematuridade, em virtude da antecipação do parto se mostrar imperativa em muitos casos, devido a alterações na vitalidade fetal ou a complicações maternas4. Nesse estudo, a prematuridade foi o evento mais freqüentemente observado, acometendo nove das 15 gestações bem sucedidas (60%). Apenas em dois desses casos as pacientes entraram espontaneamente em trabalho de parto; nos outros sete, a interrupção da gestação teve indicações formais.

As gestantes portadoras da síndrome antifosfolípide são, ainda, de alto risco para o desenvolvimento de outras complicações gestacionais, como CIUR, oligoidrâmnio e sofrimento fetal anteparto1. Essas complicações são decorrentes de um estado de insuficiência placentária, no qual a perfusão útero-placentária, diminuída em decorrência de lesões estenóticas, já não supre as necessidades do feto5. Quando analisamos exclusivamente as gestações bem sucedidas, essas complicações estiveram presentes nesse estudo na seguinte proporção: oligoidrâmnio, em 40% dos casos, sofrimento fetal anteparto e CIUR, em 33,3%, cada um.

A maioria dos estudos tem sugerido uma forte associação entre a síndrome antifosfolípide e a pré-eclâmpsia8. No presente estudo, a incidência de pré-eclâmpsia foi de 23,5% das gestações tratadas, a qual, embora bem abaixo da descrita por outros autores13, foi bem superior à encontrada em gestantes de baixo risco. Em todos os casos por nós acompanhados, a pré-eclâmpsia terminou por indicar a antecipação do parto antes de completada a 37a semana, embora todas essas gestações tenham resultado em recém-nascidos vivos.

Um surpreendente achado, nesse estudo, foi a alta incidência de diabetes mellitus gestacional. Nos diversos trabalhos publicados, essa patologia incide em cerca de 10 a 15% das gestações, sendo uma complicação praticamente restrita àquelas pacientes que fizeram uso da prednisona11. Nesse trabalho, das 17 pacientes tratadas, cinco (29,4%) desenvolveram diabetes mellitus gestacional. Dessas, apenas duas eram portadoras de LES e fizeram uso de prednisona, uma droga sabidamente diabetogênica, em doses necessárias ao controle da doença.

A idade da paciente, a raça, a idade gestacional no início do seguimento pré-natal, a co-existência de hipertensão arterial crônica, o número de perdas gestacionais prévias e os critérios clínicos e laboratoriais utilizados para o diagnóstico da síndrome antifosfolípide não mostraram correlação com os resultados maternos e perinatais.

É muito freqüente a associação dos anticorpos antifosfolípides com doenças auto-imunes, sobretudo LES. Calcula-se que cerca de 30% das pacientes com LES tenham pesquisa para os anticorpos antifosfolípides positiva1. Mulheres com LES já se constituem num grupo diferenciado de pacientes, com risco aumentado de complicações gestacionais. A prematuridade atinge, nessas gestantes, índices tão altos quanto 50%2,3. Estudos nessas gestantes têm sugerido que a presença concomitante dos anticorpos antifosfolípides aumenta, sobremaneira, a morbidade materna e perinatal3,6. Esta pesquisa confirmou esses achados: quatro das nossas pacientes (23,5%) eram lúpicas, das quais três apresentaram atividade da doença em algum momento da gestação; dois desses casos (40%) resultaram em perdas gestacionais, e os outros dois, em partos prematuros.

Embora a gestação, por si só, seja um fator de risco para o tromboembolismo e a presença dos anticorpos antifosfolípides aumente ainda mais esse risco, não observamos eventos trombo-embólicos em nenhuma das nossas pacientes. Essa observação diverge da maioria dos estudos, nos quais complicações trombóticas atingem quatro a 12% das gestações de pacientes com anticorpos antifosfolípides, mesmo sem antecedentes de trombose13,16.

Apesar das inúmeras pesquisas relatando os possíveis efeitos adversos da utilização da heparina em gestantes, em nosso estudo nenhuma paciente apresentou efeitos colaterais que pudessem ser a ela atribuídos, à exceção de pequenos hematomas no local de aplicação da droga, o que nos faz concluir ser esse tratamento seguro.

Em suma, o tratamento de gestantes com síndrome antifosfolípide com heparina associada à aspirina, ambas em baixas doses, mostrou-se seguro e efetivo na obtenção de um maior índice de recém-nascidos vivos. No entanto, apesar do alto índice de gestações bem sucedidas proporcionado pela terapêutica por nós adotada, satisfazendo na maioria dos casos ao anseio das pacientes de obter um recém-nascido vivo, o problema representado pela síndrome antifosfolípide, está longe de ser solucionado. O tratamento em questão se mostrou incapaz de impedir a alta incidência de complicações maternas e perinatais associadas à síndrome. Por sua vez, o LES se revelou fator agravante do quadro clínico dessas pacientes.

SUMMARY

Purpose: to determine the effectiveness and the safety of treatment with heparin and low-dose aspirin in pregnant women with antiphospholipid syndrome, and to determine possible deteriorating factors for this syndrome.

Methods: 17 patients with antiphospholipid syndrome were submitted to a rigorous antenatal care. Patients were treated with a fixed dose of heparin (10,000 IU/day) associated with low-dose aspirin (100 mg/day). We analyzed perinatal and maternal results, using c2 test and Fischer's exact test.

Results: the overall live birth rate was 88.2% in treated pregnancies of these patients versus 13.3% of their previous nontreated pregnancies. The incidence of adverse pregnancy outcomes was very significant: oligohydramnios (40%), fetal distress (33.3%), fetal growth retardation (33.3%), gestational diabetes (29.4%), preeclampsia(23.5%), and preterm delivery (60%). The presence of systemic lupus erythematosus was an indication of poor prognosis. No significant side effects were observed during the treatment.

Conclusions: this treatment was effective to improve live birth rate, safe, but it was not able to avoid adverse pregnancy outcomes associated with antiphospholipid syndrome. Systemic lupus erythematosus was a deteriorating factor for this syndrome.

KEY WORDS: Antiphospholipid syndrome. Antiphospholipid antibodies a Recurrent pregnancy loss.

Referências

Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Correspondência: Marcelo de Amorim Aquino

Rua Marquês de Itú, 545/71 - Vila Buarque

01223-001 - São Paulo - SP

  • 1. Arnout J, Spitz B, Van Assche A, Vermylen J. The antiphospholipid syndrome and pregnancy. Hypertens Pregn 1995; 14: 147-78.
  • 2. Barros VIPVL. Correlações anátomo-clínicas de placentas de pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Dissertação (Mestrado) São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1994.
  • 3. Barros V I P V L. Estudo comparativo anátomo-clínico das alterações placentárias de gestantes com lúpus eritematoso sistêmico e formas graves de hipertensão arterial. Tese (Doutorado) São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, 1997.
  • 4. Branch DW, Silver RM, Blackwell JL, Reading JC, Scott JR. Outcome of treated pregnancies in women with antiphospholipid syndrome: an update of the Utah experience. Obstet Gynecol 1992; 80: 614-20.
  • 5. Branch DW. Thoughts on the mechanism of pregnancy loss associated with the antiphospholipid syndrome. Lupus 1994: 3: 275-80.
  • 6. Cowchock FS, Reece EA, Balaban D, Branch DW, Plouffe L. Repeated fetal losses associated with antiphospholipid antibodies: a collaborative randomized trial comparing prednisone with low-dose heparin treatment. Am J Obstet Gynecol 1992; 166: 1318-23.
  • 7. Dahlman T, Sjöberg HE, Ringertz H. Bone mineral density during long-term prophylaxis with heparin in pregnancy. Am J Obstet Gynecol 1994; 170: 1315-20.
  • 8. Dekker GA, Vries JIP, Doelitzsch MS, Huijgens PC, Von Blomberg BME, Jakobs C, et al. Underlying disorders associated with severe early-onset preeclampsia. Am J Obstet Gynecol 1995; 173: 1042-8.
  • 9. Harris EN, Gharavi AE, Patel SP, Hughes GRV. Evaluation of the anticardiolipin antibody test: report of an international workshop held 4 April 1986. Clin Exp Immunol 1987; 68: 215-22.
  • 10. Hughes GRV, Harris EN, Gharavi AE. The anticardiolipin syndrome. J Rheumatol 1986; 13: 486-9.
  • 11. Kutteh WH. Antiphospholipid antibody-associated recurrent pregnancy loss: treatment with heparin and low-dose aspirin is superior to low-dose aspirin alone. Am J Obstet Gynecol 1996; 174: 1584-9.
  • 12. Kutteh WH, Stovall DW, Scott JR. The immunologic diagnosis and treatment of recurrent pregnancy loss. Infertil Reprod Med Clin North Am 1997; 8: 267-87.
  • 13. Lima F, Khamashta MA, Buchanan NMM, Kerslake S, Hunt BJ, Hughes GRV. A study of sixty pregnancies in patients with the antiphospholipid syndrome. Clin Exp Rheumatol 1996; 14: 131-6.
  • 14. Out HJ, Kooijman CD, Bruinse HW, Derksen RHWM. Histopathological findings in placentae from patients with intrauterine fetal death and antiphospholipid antibodies. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol 1991; 41: 179-86.
  • 15. Peaceman AM, Rehnberg KA. The effect of aspirin and indomethacin on prostacyclin and thromboxane production by placental tissue incubated with immunoglobulin G fractions from patients with lupus anticoagulant. Am J Obstet Gynecol 1995; 173: 1391-6.
  • 16. Rai R, Cohen H, Dave M, Regan L. Randomised controlled trial of aspirin and aspirin plus heparin in pregnant women with recurrent miscarriage associated with phospholipid antibodies (or antiphospholipid antibodies). Br Med J 1997; 314: 253-7.
  • 17. Rosove MH, Ismail M, Koziol BJ, Runge A, Kasper CK. Lupus anticoagulants: improved diagnosis with a kaolin clotting time using rabbit brain phospholipid in standard and high concentrations. Blood 1986; 68: 472-8.
  • 18. Rosove MH, Tabsh K, Wasserstrum N, Howard P, Hahn B, Kalunian KC. Heparin therapy for pregnant women with lupus anticoagulant or anticardiolipin antibodies. Obstet Gynecol 1990; 75: 630-4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2007
  • Data do Fascículo
    Maio 1999
Federação Brasileira das Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3421, sala 903 - Jardim Paulista, 01401-001 São Paulo SP - Brasil, Tel. (55 11) 5573-4919 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: editorial.office@febrasgo.org.br