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Democracia e autocracia hoje

Democracy and Autocracy Today

RESUMO

O recente avanço político e eleitoral da extrema-direita e de sua perspectiva autoritária coloca em risco a democracia liberal justamente após o período de seu maior desenvolvimento e expansão. Para além de um fenômeno meramente conjuntural, em nossa avaliação a crise da democracia liberal é parte de profundas mudanças na própria ordem social do capital, que exacerba o exclusivismo de classe do Estado burguês e fortalece os elementos autoritários e fascistas contidos em seu interior. A partir do resgate histórico de sua trajetória, procuraremos discutir a evolução, os limites e as contradições da democracia liberal.

Palavras-chave:
Democracia liberal; autocracia; neoliberalismo

ABSTRACT

The recent political and electoral advance of the extreme right and its authoritarian perspective puts liberal democracy at risk just after the period of its greatest development and expansion. Beyond a merely conjunctural phenomenon, in my evaluation, the crisis of liberal democracy is part of deep changes in the social order of capital itself, which exacerbates the class exclusivism of the bourgeois state and strengthens the authoritarian and fascist elements contained within it. From the historical review of its trajectory, I will seek to discuss the evolution, the limits and the contradictions of liberal democracy.

Keywords:
Liberal democracy; Autocracy; Neoliberalism

INTRODUÇÃO

A crise da democracia liberal é um fenômeno presente no atual momento da história mundial, favorecendo a instalação de regimes ditatoriais abertos ou velados em diversos países, solapando os mecanismos democráticos em diversos outros e fortalecendo partidos, movimentos e lideranças de extrema-direita francamente antidemocráticos, quando não claramente fascistas. Nas avaliações deste fenômeno predominam as análises que atribuem a crise da democracia à sua incapacidade institucional de evitar seu solapamento “por dentro”, por forças políticas e sociais “de fora” da institucionalidade que a ameaçam, ou mesmo destroem, fazendo uso de seus próprios procedimentos para tal. Cabe, então, segundo essas avaliações, a necessária correção dessas “falhas” por meio do aperfeiçoamento do regime com a criação de salvaguardas políticas e institucionais que impeçam este processo (Rodrigues; Bellato, 2021RODRIGUES, Theófilo Machado; BELLATO, Caíque. A Crise da Democracia Liberal no Início do Século XXI: Duas Abordagens da Teoria Política. Agenda Política. Revista de Discentes de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, v. 9, n. 1, pp. 253-279, jan.-abr., 2021.; Levitsky; Ziblatt, 2018LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.). Em nossa perspectiva analítica trata-se de uma leitura abstrata, que absolutiza a democracia liberal como forma do regime político nas sociedades contemporâneas, não levando em conta o processo histórico de sua constituição e evolução e menos ainda a centralidade do processo da luta de classes em sua estruturação.

Consideramos que a atual crise da democracia está vinculada a um processo de exacerbação de seu caráter de classe (burguês) por conta da dinâmica capitalista recente, o que reforçou os elementos autoritários e fascistas contidos em sua própria ossatura institucional desde a Segunda Guerra, esvaziando a capacidade decisória do sufrágio universal e da soberania popular e gerando enorme descrédito para o próprio regime democrático liberal. Neste sentido, a crise da democracia liberal, vivenciada particularmente a partir da década de 2010, se vincula à própria crise capitalista, gerando reações antidemocráticas à direita e de radicalização democrática à esquerda, que revelam sua própria falência e incapacidade de renovação nas condições atuais.

1. DEMOCRACIA: DA REVOLUÇÃO SOCIAL À HEGEMONIA BURGUESA

A democracia liberal não surgiu imediatamente com a instituição do Estado moderno (burguês) e da ordem social capitalista e nem se constitui como um requisito incontornável para sua reprodução. Ao contrário, ela é o resultado de um longo conflito político e social, que se inicia ainda no século XVII e se desdobra em várias fases até a segunda metade do século XX, quando atinge seu ápice político e institucional. Com a emergência do trabalho livre e a generalização das relações sociais capitalistas, a democracia é posta como demanda político-social estratégica pelas classes subalternas, particularmente pelos trabalhadores, não pelas frações burguesas em luta contra o Antigo Regime, menos ainda pelos setores “esclarecidos” da nobreza. A luta democrática pela soberania política e pela participação dos pequenos proprietários, camponeses e proletários nas decisões governamentais se chocou desde cedo tanto com a perspectiva feudal-absolutista e contrarrevolucionária da nobreza decadente quanto com a perspectiva liberal e reformista da burguesia ascendente. Apesar das enormes diferenças entre si, ambas viam qualquer proposta de democracia como irracional e dotada de conteúdo inerentemente subversivo, caótico e/ou despótico. Dos levellers e diggers na Inglaterra da Revolução Puritana (séc. XVII) aos jacobinos na França Revolucionária (séc. XVIII), o “partido” da democracia sofreu a desqualificação ideológica e a repressão política mais brutal, porém, sua presença em ambos os processos determinou o desenlace revolucionário da crise do bloco histórico feudal-absolutista nos dois países em favor do bloco histórico capitalista-liberal (Del Roio, 1998DEL ROIO, Marcos. O Império Universal e seus antípodas: a ocidentalização do mundo. São Paulo: Ícone, 1998., pp. 65-111). Ao longo do século XIX, a perspectiva democrática alimentou a luta revolucionária pelo sufrágio universal e pelo estabelecimento de direitos políticos e sociais do mundo do trabalho, estando presente na luta dos cartistas ingleses e dos socialistas franceses e alemães na primeira metade do século XIX, nas revoluções de 1848, com o então chamado “partido social democrático” reunindo pequeno-burgueses e proletários, e no nascente movimento operário e socialista. Já com os cartistas, a luta pelo sufrágio universal e pela soberania popular democrática se insere na luta mais ampla por direitos trabalhistas, associando organicamente direitos políticos e direitos sociais numa combinação vigorante até hoje, visando controlar a movimentação do capital por meio da legislação e da ação sindical e parlamentar. No entanto, para além da conquista de direitos, a democracia carregava um conteúdo revolucionário, de conquista do poder pelas classes trabalhadoras. Na breve experiência da Comuna de Paris (1871), a perspectiva democrática dos trabalhadores se materializa como poder pela constituição de práticas de representação, deliberação e execução que combinavam a democracia representativa sob estrito controle popular com a democracia direta, avançando na constituição de um Estado de novo tipo, um Estado dos trabalhadores (Maciel, 2011MACIEL, David. Comuna de Paris e emancipação dos trabalhadores. In: PINHEIRO, Milton (Org.). 140 anos da Comuna de Paris. São Paulo: Outras Expressões, 2011. pp. 125-148.). Portanto, a democracia - ou seja, a universalização dos direitos políticos - não é um desdobramento necessário da constituição do Estado burguês e da cidadania burguesa, mas sim da luta dos trabalhadores pela ultrapassagem de tal cidadania. Isto porque, para o liberalismo, a cidadania burguesa não iria além dos direitos civis e dos direitos políticos para os indivíduos-proprietários, sob a mediação do voto censitário.

Isto tornou o novo Estado essencialmente antidemocrático e hostil à participação política dos despossuídos, uma vez que se fundava materialmente no despotismo burguês inerente às próprias relações de produção capitalistas, de acordo com o qual o capitalista define as condições de produção e a vigência do contrato de trabalho pelo simples fato de ser o proprietário de meios de produção. Como criador e garantidor do direito de propriedade e do estatuto da igualdade jurídica entre os homens livres, o Estado burguês fundamenta a subsunção formal do trabalho ao capital legalizando o contrato entre dois indivíduos juridicamente iguais, porém, desiguais social e economicamente. Além disso, ele também exerce uma função ideológica importante, pois, ao reconhecer a igualdade jurídica entre capitalista e trabalhador, confere à troca desigual entre trabalho e salário a aparência de uma troca de equivalentes, pois ambos são livres e igualmente dotados de capacidade subjetiva para realizar contratos, ocultando-se assim a extração da mais-valia e a própria exploração capitalista. Deste modo, o estatuto da cidadania jurídica é o que define o Estado burguês como um tipo particular de Estado, sendo o núcleo da correspondência entre Estado, despotismo burguês e liberdade de movimentação do capital, independente do caráter que venham a assumir historicamente o regime político e o governo. O estabelecimento da cidadania política do indivíduo-proprietário, mediada pelo voto censitário, foi fruto direto da luta contra o Antigo Regime e permitiu às classes burguesas constitucionalizar o poder, bem como participar do processo decisório governamental, por meio de sua própria representação política no governo e no parlamento, e influenciar as políticas governamentais em seu favor. No entanto, sem estender a cidadania política para o conjunto da população, ao contrário, anulando repressivamente a perspectiva democrática (Saes, 2003SAES, Décio. Cidadania e capitalismo: uma crítica à concepção liberal de cidadania. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo , n. 16, pp. 9-38, 2003.).

Porém, o caráter antidemocrático e antiproletário do Estado burguês se deve também à constituição de uma burocracia que ocupa segmentos inteiros do aparelho de Estado, alheada do direito de voto e das vicissitudes imediatas da dinâmica política. Isto se dá porque o estatuto da igualdade civil permitiu que o acesso à burocracia de Estado fosse progressivamente determinado por formas de recrutamento baseadas na meritocracia e na separação entre público e privado, tendendo a abolir o patrimonialismo e os privilégios estamentais que restaram como “desvios” em relação ao direito burguês, associados à corrupção, ao clientelismo, etc. Assim, se estabeleceu uma distinção formal entre grupo estatal-dirigente e classe economicamente dominante, que permite ao primeiro (burocracia propriamente dita) se apresentar como guardião da igualdade jurídica e como representante do conjunto dos cidadãos, identificados como “povo-Nação”, e não especificamente como representante das classes dominantes (as burguesias). Ao falar e agir em nome do “povo-Nação”, a burocracia dificulta a organização dos trabalhadores enquanto classe. Portanto, mesmo com o estabelecimento da esfera de representação política - voto censitário, controle constitucional sobre o poder Executivo, fortalecimento do poder decisório do parlamento, composição do governo e do Legislativo por escolha de um colegiado (restrito) de cidadãos -, segmentos importantes do aparelho de Estado e do próprio poder, como o Judiciário, as Forças Armadas, a polícia e os setores da administração - a chamada esfera de representação burocrática - mantiveram-se alheios à influência do direito de voto, mesmo do voto censitário limitado aos indivíduos-proprietários. Entre essas esferas de representação, a segunda se sobrepõe à primeira na medida em que funciona como uma espécie de “antídoto” diante das potencialidades “instabilizadoras” contidas no direito de voto, reforçando a correspondência entre o Estado burguês e a reprodução da ordem social burguesa para além das políticas de governo e das crises políticas. Se a primazia da esfera de representação burocrática funciona como um elemento de salvaguarda da ordem burguesa, mesmo no âmbito socialmente restritivo do voto censitário, que se dirá diante das potencialidades revolucionárias do sufrágio universal e da soberania popular? Este é o limite incontornável da perspectiva democrática dos trabalhadores e das classes subalternas nos marcos do Estado burguês e da ordem social capitalista, por mais que a democracia burguesa tenha se ampliado e aprofundado com a generalização do direito de voto e a incorporação de direitos trabalhistas e sociais à institucionalidade política ao longo do tempo (Saes, 2003SAES, Décio. Cidadania e capitalismo: uma crítica à concepção liberal de cidadania. Crítica Marxista, São Paulo: Boitempo , n. 16, pp. 9-38, 2003.). Assim, o regime liberal clássico nasce com um conteúdo fundamentalmente autocrático, não reconhecendo os trabalhadores como sujeitos políticos e favorecendo a organização de ditaduras bonapartistas e/ou combinações variadas entre legalidade liberal e resquícios feudal-absolutistas, como na Alemanha e na Áustria até a Primeira Guerra Mundial.

No entanto, o fortalecimento da luta democrática e mesmo da luta socialista dos trabalhadores impôs às classes dominantes velhas e novas e aos Estados burgueses a necessidade de incorporação de suas demandas políticas e sociais à própria ossatura estatal, abrindo caminho para a emergência do tipo liberal de democracia. Segundo Hobsbawm (1988HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios (1875-1914). Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., pp. 125-162), apesar da histeria causada pela Comuna de Paris entre os governantes e as classes dominantes na Europa, a partir da década de 1870 a democratização da política dos Estados tornou-se uma necessidade histórica, colocando a nu o dilema básico do liberalismo, qual seja, “constitucionalizar e controlar o poder político sem democratizá-lo”. Na França de Napoleão III, na Alemanha de Bismarck e nos EUA, as funções legitimadoras do sufrágio universal já tinham sido descobertas, mas, a partir de agora, diante da pressão popular pela democratização política, em diversos lugares foram tomados variados procedimentos para conter o potencial revolucionário do sufrágio universal e esvaziar seu conteúdo subversivo. Além da manutenção e do aperfeiçoamento da esfera de representação burocrática, cada vez mais determinada pela meritocracia e pela racionalidade instrumental própria do capital, foram adotados procedimentos como a limitação dos poderes das assembleias eleitas pelo sufrágio universal; câmaras “altas” compostas com base em privilégios e hereditariedade foram mantidas para contrabalançar as assembleias eleitas; o direito de voto baseado na propriedade e/ou na qualificação educacional foi mantido e ampliado; os distritos eleitorais foram manipulados em favor de determinados partidos; o clientelismo se manteve nas entranhas das relações entre público e privado; a elevação da idade mínima para o voto; a sabotagem pura e simples ao direito de voto e mesmo a “invenção das tradições” em torno da dignificação dos governantes. A democracia liberal constituída a partir de então passou a se basear na propaganda de massa e a forçar os políticos a se dirigirem diretamente ao eleitorado, além de conviverem com movimentos e partidos de massa, particularmente operários, com crescente força eleitoral e presença no Parlamento, porém, sem que isto colocasse efetivamente em risco a ordem social e o Estado burguês. A adoção de uma “política social”, com a concessão de direitos sociais e trabalhistas, ainda que limitados para padrões posteriores; a institucionalização de partidos e sindicatos de trabalhadores como partícipes do jogo político; a experiência de administração em governos locais por partidos de esquerda e o próprio crescimento da burocracia, abrindo os empregos governamentais para setores proletários das “novas classes médias”, permitiram aos governantes mais “lúcidos” efetuar um “abraço cordial” no movimento operário e socialista, esvaziando sua perspectiva anticapitalista e integrando-os crescentemente à ordem (Hobsbawm, 1988HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios (1875-1914). Tradução de Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988., pp. 125-162).

Este movimento transformista (Gramsci, 2002GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. Volume 5. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2002., pp. 62-86, 286-287, 316-319) exitoso contou ainda com o crescimento e a consolidação da sociedade civil burguesa, por meio de aparelhos privados de hegemonia capazes não só de construir o consenso em torno da perspectiva democrático-liberal e imperialista, mas de anular a perspectiva ideológica da revolução e do socialismo entre os trabalhadores. A educação tornou-se um alvo privilegiado da nova perspectiva de construção do consenso, com a substituição das escolas e entidades culturais do movimento operário por escolas públicas que promoverão campanhas de alfabetização em massa voltadas a preparar a mão de obra necessária aos novos padrões tecnológicos da Segunda Revolução Industrial e a fortalecer no trabalhador a identidade entre cidadania e povo-Nação (Abreu, 2008ABREU, Haroldo. Para além dos direitos. Cidadania e hegemonia no mundo moderno. Rio de Janeiro: Editoria UFRJ, 2008., pp. 117-209).

Esta primeira floração da hegemonia burguesa, identificada com a chamada Belle Époque, se encerra de maneira dramática durante a Primeira Guerra Mundial e com a eclosão da Revolução Russa, porém, para as classes dominantes, o conteúdo transformista da democracia liberal se configura desde agora como seu fundamento instrumental. Portanto, desde seu nascedouro, a democracia burguesa caracteriza-se por contra-arrestar a vontade popular manifesta pelo voto por meio do alheamento de importantes estruturas de poder do aparelho de Estado, bem como por meio de uma série de limitações institucionais que estabelecem mediações entre a demanda popular e o resultado eleitoral. A democracia burguesa igualmente passou a ocupar papel fundamental na construção do consenso burguês, exercendo um forte movimento transformista sobre as organizações e as lutas dos trabalhadores, atrelando-as à perspectiva de ampliação da cidadania nos marcos da ordem burguesa.

2. DEMOCRACIA LIBERAL, HEGEMONIA E CONTRA-REVOLUÇÃO

O período histórico aberto com a Revolução Russa e encerrado com o final da Segunda Guerra Mundial marca uma situação de crise da hegemonia burguesa e de esvaziamento da democracia liberal em favor de perspectivas abertamente autoritárias e/ou fascistas, de um centralismo decisório estatal que esvaziou ainda mais a força política do voto popular, apesar da sua crescente ampliação a partir da década de 1920, com o estabelecimento do voto feminino em diversos países, e do crescimento exponencial dos aparatos estatais submetidos às exigências da acumulação capitalista (Hobsbawm, 1995HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., pp. 113-143). Sob os influxos da onda revolucionária desencadeada a partir de 1917 surgem os primeiros governos liderados pelos partidos social-democratas e socialistas, como nos países escandinavos, na França e na Grã-Bretanha, com o surgimento das primeiras experiências do que mais tarde viria a ser chamado de Estado de Bem Estar Social, porém, operando nos marcos da democracia liberal e como alternativa a esta mesma perspectiva revolucionária.

A derrota do nazifascismo, a constituição do chamado bloco socialista, a consolidação da URSS como uma potência militar, econômica e política, a Guerra Fria, a eclosão de revoluções anticolonialistas e antiimperialistas na África, na Ásia e na América Latina e o próprio avanço político e organizativo do movimento operário, não só nos países centrais, mas também na periferia, obrigaram as classes dominantes burguesas a repor a democracia liberal como mecanismo central para a anulação da perspectiva revolucionária e a construção de sua hegemonia. O que demandou a ampliação e a institucionalização de direitos sociais e trabalhistas numa escala não vista antes ou depois, a incorporação definitiva dos partidos e das organizações corporativas do mundo do trabalho à institucionalidade e o reconhecimento de seus aparelhos de hegemonia como parte da sociedade civil burguesa, conferindo uma nova qualidade à democracia liberal e aprofundando sua funcionalidade transformista. Por outro lado, a transnacionalização do capital monopolista sob a forma de um imperialismo crescentemente capitalista exigiu que o Estado assumisse novas funções no plano econômico, ampliando ainda mais os aparatos tecnocráticos voltados à intervenção econômica e criados na formação do capitalismo monopolista, reforçando a esfera de representação burocrática. Dá-se então o período de apogeu da democracia liberal entre meados dos anos 1940 e os anos 1980, com a constituição do que Fernandes conceitua como Estado democrático-burguês, ou democrático liberal, concluindo a superação de sua configuração autocrática nos países capitalistas centrais. Nele, os trabalhadores são plenamente reconhecidos como sujeitos políticos dotados de direitos e autonomia política, porém, sua perspectiva política deve abdicar da superação revolucionária da ordem social e da ruptura com o Estado, devendo mobilizar suas lutas no âmbito das “reformas dentro da ordem” (Fernandes, 1979FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a Teoria do Autoritarismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979., pp. 19-58).

A consolidação da democracia liberal na era das transnacionais e da contra-revolução em escala mundial exige que este mesmo Estado assuma de maneira crescente funções de legitimação, instrumentalizando a democracia e o sufrágio universal numa perspectiva transformista para legitimar a ordem do capital, custeando bens e direitos sociais, mas também funções de acumulação. Funções que favoreçam a concentração/centralização de capital, a expansão imperialista e a internacionalização econômica numa escala ainda não vista, ampliando o gigantismo estatal por meio do planejamento econômico permanente, da agressividade externa e do combate manu militari à subversão. Isto cria uma contradição com as funções de legitimação baseadas na democracia liberal e no bem estar social, pois reforça no interior do Estado os elementos autoritários próprios do despotismo burguês, exercido na relação entre capital e trabalho no interior das empresas; elementos agora incorporados ao modus operandi da tecnocracia e em sua relação com a sociedade, além dos elementos de vigilância, repressão e violência política próprios do fascismo. Assim, o Estado democrático-burguês mantém e funcionaliza formas políticas autoritárias e fascistas ao lado das formas democrático-liberais, criando o que Fernandes chama de uma “democracia forte” nos países capitalistas centrais, que se irradia nos países periféricos na forma de um Estado autocrático-burguês moldado para combater a revolução e o “inimigo interno”, garantindo a integração subordinada à dinâmica imperialista. Nos Estados autocrático-burgueses, os elementos democráticos, quando existem, são claramente subordinados aos elementos autoritários e fascistas, pois não cabe aos trabalhadores o reconhecimento e a condição de sujeitos políticos. Nestas condições, quando presente em sua estrutura formal (rotina eleitoral, pluralidade partidária, liberdade sindical, etc.), e a depender da dinâmica da luta de classes e da integridade de suas instituições, a democracia liberal funciona como uma “democracia restrita”, voltada para acomodar os conflitos interburgueses, ou como uma “democracia de cooptação”, voltada à integração passiva dos trabalhadores e às suas organizações à ordem (Fernandes, 1979FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a Teoria do Autoritarismo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979., pp. 19-58). A partir do segundo pós-guerra, enquanto a democracia liberal se expandia pelos países capitalistas centrais, na periferia capitalista pontificavam variações da autocracia burguesa como os regimes oligárquicos, o populismo, as ditaduras militares e os regimes fascistas ou proto-fascistas sobreviventes à derrota do nazi-fascismo.

3. EXPANSÃO E CRISE DA DEMOCRACIA LIBERLAL

A partir dos anos 70/80, com a crise do Estado de Bem Estar Social e do “desenvolvimentismo” terceiro mundista, além do colapso da URSS e do bloco socialista há o estabelecimento de um novo bloco histórico capitalista, baseado na unidade contraditória entre neoliberalismo, pós-fordismo, acumulação flexível, mundialização do capital (a chamada “globalização”) e pós-modernismo (Hobsbawm, 1995HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos (1914-1991). Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., pp. 393-420). Nesta nova situação há um processo de esvaziamento dos mecanismos políticos democráticos definidos pelo sufrágio universal e pela soberania popular em favor do reforço da burocracia/tecnocracia não-eleita e da privatização direta ou indireta dos órgãos responsáveis pelas funções de acumulação e de legitimação assumidas pelo Estado. No entanto, este é o período de maior expansão da democracia liberal em toda sua história, com sua instalação não apenas nos países do antigo bloco socialista, mas em diversos países recém-democratizados na periferia capitalista, como no sul da Europa, na América Latina, na África e no Leste Asiático, pondo fim a ditaduras militares e regimes autoritários de variados tipos.

Este processo de “mundialização” da democracia liberal ocorreu num momento em que as funções de acumulação e legitimação exercidas pelo Estado burguês diante do capital sofriam um processo de radical redefinição e redimensionamento, alterando drasticamente o conteúdo político-social da própria institucionalidade democrática. Isto porque a combinação entre reestruturação produtiva pós-fordista, acumulação flexível, mundialização do capital através de abertura comercial e financeira avassaladora, prevalência do programa neoliberal de eliminação do planejamento e do intervencionismo estatais, privatização de empresas, recursos públicos e bens sociais, desemprego estrutural e flexibilização/eliminação de direitos sociais e trabalhistas alterou dramaticamente não apenas o processo de produção e reprodução do capital, mas seu padrão de acumulação, a composição social do mundo do trabalho e a própria correlação de forças entre as classes sociais.

A adoção do programa neoliberal por governos de direita (liberais e conservadores) e de esquerda (socialistas e social-democratas) pelo mundo afora significou uma vitória incontestável das classes dominantes sobre as classes subalternas no plano internacional e no plano interno de cada país, bem como a imposição de uma perspectiva francamente autocrática no funcionamento do Estado e nas suas relações com a sociedade. Isto porque, por mais variadas que sejam as políticas neoliberais adotadas de país para país, seu núcleo estruturante gira em torno da eliminação dos controles políticos sobre a movimentação do capital, particularmente os mecanismos de controle arduamente impostos pelos trabalhadores ao longo de sua luta por direitos políticos, trabalhistas e sociais (Netto, 1993NETTO, José Paulo. Crise do socialismo e ofensiva neoliberal. São Paulo: Cortez, 1993., pp. 66-88). Ou seja, a defesa doutrinária e prática do livre mercado, numa situação em que a economia mundial é regida de maneira estrita pelo capital monopolista das grandes corporações internacionais e em que as funções de acumulação exercidas pelo Estado se tornaram incontornáveis, significa, na prática, o reforço do despotismo burguês em todas as esferas da vida social, para além do universo das empresas. Isto porque se o acesso a bens, serviços e direitos passa a ser regido estritamente pela lógica da mercadoria, as relações substantivamente desiguais entre proprietários de capital e detentores de força de trabalho se generalizam para muito além das relações de produção, afetando todas as esferas da vida social. Em termos institucionais, o reforço do despotismo burguês significa, na prática, o reforço dos elementos autoritários e fascistas presentes no Estado democrático-burguês após a Segunda Guerra, em detrimento dos elementos propriamente democráticos. Ou seja, prevalecem a razão tecnocrática no exercício das funções de acumulação, a repressão política e a violência policial no controle do conflito político e social, além da total supremacia patronal, particularmente das grandes corporações capitalistas, diante de um universo cada vez maior de trabalhadores sem direitos e sem poder de pressão no plano das relações de produção, em detrimento do poder decisório da soberania popular e do sufrágio universal (Demier, 2017DEMIER, Felipe. Depois do golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017., pp. 35-52).

As novas demandas exigidas do Estado pela dinâmica do capital implicaram na eliminação progressiva do setor produtivo estatal e dos instrumentos de planejamento e controle econômico, mas não de sua função como avalista geral da acumulação privada, por meio da dívida pública, da regulação do câmbio e dos juros, da privatização de setores produtivos e de serviços, e nem de sua ação político-diplomática e/ou militar na conquista de mercados externos. Isto tornou os órgãos estatais vinculados à política econômica e às funções gerais de acumulação ainda mais subsumidos aos imperativos do capital e à pressão das grandes corporações, que passaram a lhes controlar quase que diretamente através do mecanismo da “porta giratória” - segundo o qual os gestores transitam do setor privado para o setor público e vice-versa sem grandes mediações -, e/ou da entrega da agências “públicas” que regulam determinados setores econômicos para as próprias empresas. Esta situação reconfigura o papel ideológico cumprido pela esfera de representação burocrática, pois os critérios meritocráticos que regem o acesso a determinados cargos públicos de grande poder decisório passam a depender do interesse imediato das empresas privadas e de sua força política, não de qualquer mecanismo universal e público de seleção, quebrando a capacidade dessas frações da burocracia se apresentarem como representantes do Povo-nação, como “servidores públicos”. Além dessa redefinição interna nos órgãos voltados para as funções de acumulação, há que se considerar o poder de pressão exercido a partir de fora, por agências e instituições internacionais sem qualquer relação de representação com o conjunto do povo-Nação, como FMI, Banco Mundial, OMC, Comissão Europeia, Banco Central Europeu, etc., sobre as políticas econômicas adotadas por governos e agencias reguladoras (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Cia das Letras, 2007., pp. 138-151). Esta situação gera o que muitos chamam de “subordinação da política à economia”.

Paralelamente, as funções de legitimação exercidas pelo Estado também são reconfiguradas, pois o ataque neoliberal aos direitos sociais e às organizações dos trabalhadores, ao eliminar os sistemas de proteção social em nome da “liberdade de escolha” dos indivíduos empreendedores e consumidores e pretensamente combater o corporativismo, a corrupção e a improdutividade, enfraquece sua legitimidade como benfeitor e promotor de “seguridade social”, classicamente construída no auge da democracia liberal. Aqui avançamos a hipótese de que, ao transferir para o mercado a “oferta” e o acesso a bens sociais e públicos, o neoliberalismo deslocou o papel do Estado burguês para sua condição tradicional de garantidor da lei e da ordem. Mesmo considerando que, em diversos países, parte destas tarefas foram privatizadas, com a proliferação de empresas militares e de segurança que atuam no lugar de polícias e forças armadas oficiais, isto só é possível porque o Estado lhes concede esta função pública (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Cia das Letras, 2007., pp. 97-115). Assim, suas funções de legitimação passam a se reconfigurar em favor de sua antiga condição de “Estado guarda-noturno”, promotor de “segurança pública”, avalista da ordem e da propriedade privada.

Nas últimas décadas, o crescimento da violência privada e estatal, da criminalidade, da “rudeza” e da crueldade nas relações interpessoais criou um sentimento de medo e incerteza que favoreceu a demanda por segurança junto ao Estado. Daí o reforço dos aparatos policial-militares (estatais e privados), a ampliação e o endurecimento da legislação penal/criminal e das sentenças judiciais, a expansão do sistema prisional, o aumento dos gastos militares, o crescimento geométrico da repressão e a reinvenção permanente de um “inimigo” onipresente o tempo todo e em todos os lugares (“terroristas”, imigrantes, traficantes, “baderneiros” e as “classes perigosas” de sempre) (Silva Filho; Moraes, 2012SILVA FILHO, Edison Benedito da; MORAES, Rodrigo Fracalossi de. Dos “Dividendos da Paz” à Guerra Contra o Terror: Gastos Militares Mundiais nas Duas Décadas Após o Fim da Guerra Fria - 1991-2009. Texto para discussão. Brasília; Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 2012.; Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Cia das Letras, 2007., pp. 138-151). Ora, esta reconfiguração das funções do Estado leva ao reforço dos elementos autoritários e fascistas no interior do Estado democrático-burguês, favorecendo o autoritarismo tecnocrático, o clientelismo nas relações entre público e privado, o privatismo, o militarismo, a criminalização das lutas sociais e das organizações do mundo do trabalho e a própria violência estatal. Garantir a segurança pública diante da “desordem”, do “caos” e das ameaças às “instituições sagradas” (família, propriedade, religião, “identidade nacional”) passou a ser o critério de legitimação do Estado burguês, particularmente diante da massa de trabalhadores crescentemente desorganizados. Este processo tendeu a “autocratizar” o Estado burguês, levando para o centro do sistema capitalista características presentes anteriormente na periferia e redimensionando a própria hegemonia burguesa.

Esta reconfiguração das funções do Estado tornou a democracia liberal crescentemente impermeável às demandas dos trabalhadores e das classes subalternas em geral, ao mesmo tempo em que se subordinou ainda mais às demandas do capital, particularmente do grande capital internacional, num cenário global de concentração e centralização do capital, de aumento da desigualdade social, empobrecimento, precarização do trabalho, crise ambiental e crescimento da violência estatal. Apesar de sua gravidade e abrangência, a crise econômica mundial de 2008 não só não reverteu estas tendências autocráticas como as aprofundou em nome do imperativo do capital, gerando reações distintas, algumas até mesmo antagônicas, mas todas elas críticas da democracia liberal. Em termos gerais prevalece o descrédito com a institucionalidade política (governos, parlamentos, partidos, etc.), com a grande mídia e com a própria democracia, expressa no crescimento do absenteísmo eleitoral, na queda dos índices de identificação partidária e filiação sindical e na recusa da ação política, criando um senso comum favorável à “antipolítica” e às soluções “messiânicas” e espontaneístas, mas também uma perspectiva de radicalização democrática (Hobsbawm, 2007HOBSBAWM, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. Tradução de José Viegas. São Paulo: Cia das Letras, 2007., pp. 97-115).

À esquerda crescem as lutas sociais antineoliberais, antiglobalização, anti-institucionais e até anticapitalistas, em geral mobilizadas a partir das redes sociais, que propugnam a ultrapassagem da democracia liberal e o estabelecimento de formas diretas e horizontais de discussão e deliberação. Numa perspectiva antiautocrática clara, que mobilizou segmentos proletários importantes - particularmente aqueles melhor qualificados em termos educacionais, singularmente vitimados pela precarização e pelo rebaixamento salarial -, eclodiram movimentos e iniciativas de contestação na Grécia, nos EUA, na Espanha, em diversos países árabes, no Chile, no Brasil, etc., dando origem a novos partidos, movimentos e experiências de luta, alternativos à “esquerda institucional”. No entanto, em muitos casos esta perspectiva de radicalização da democracia convive com uma visão espontaneísta e mesmo ingênua da luta política, visão de caráter pós-moderno, que despreza a mediação da institucionalidade no encaminhamento e na execução de suas propostas e demandas e desconsidera a força do aparato repressivo no seu desbaratamento, privilegiando a organização “em nuvem” e/ou as ações performáticas de disputa do discurso e das representações, fragilizando sua propositura e capacidade de enfrentamento (Bihr, 2013BIHR, Alain. Da Puerta del Sol à Wall Street. Lutas Sociais, São Paulo, v. 17, n. 31, pp. 75-86, jul.-dez. 2013.; Harvey, 1992HARVEY, David. A condição pós-moderna. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992., pp. 45-68).

Mas é à direita que o descrédito e a crise da democracia liberal geram mais frutos, favorecendo particularmente o avanço político e institucional da extrema-direita nas últimas décadas. Como mencionamos acima, apesar da derrota político-militar na Segunda Guerra Mundial, o nazi-fascismo sobreviveu como perspectiva política através da incorporação de diversos de seus procedimentos e técnicas de tratamento do conflito social e político à própria estrutura dos Estados democrático-burgueses. Além disso, em diversos países, partidos e organizações de perfil fascista - vários deles herdeiros de organizações anteriores - adaptaram seu discurso aos novos tempos e se inseriram legalmente na institucionalidade política, participando de eleições, fazendo alianças e conquistando mandatos, como o Movimento Social Italiano, o Movimento Nacional Socialista britânico, o Partido Nacional Democrático alemão, a Frente Nacional francesa, a Frente Nacional Britânica e o Partido da Representação Popular no Brasil. Paralelamente, mas com graus variados de conexão com as organizações “oficiais”, o fascismo também sobreviveu como uma espécie de corrente ideológica “subterrânea”, bastante ativa a partir dos anos 1980, voltada para o culto e a divulgação do ideário, dos símbolos e dos mitos históricos fascistas. Mobilizando principalmente jovens em torcidas de futebol, grupos de rock, entidades culturais, etc., tais grupos atuam como gangues, promovendo atos de violência física e simbólica, como os hooligans, os skinheads ou os Carecas do ABC (Silva et al., 2014SILVA, Adriana Brito da et al. A extrema-direita na atualidade. Serviço Social & Sociedade, n. 119, pp. 407-445, 2014.).

Nas últimas décadas, a extrema-direita de inspiração fascista ou proto-fascista adquiriu grande força política e eleitoral, atualizando sua perspectiva conservadora, desigualitária e hierárquica ao combinar de modos variados ultranacionalismo, xenofobia, racismo (étnico e “cultural”), sexismo, fundamentalismo religioso (cristão, muçulmano, hindu) e, em geral, neoliberalismo. No bojo da crise social capitalista e do enorme descrédito da democracia liberal, a extrema-direita buscou “falsificar a ira” popular, capturando um senso comum favorável às soluções messiânicas, retomando o tradicional discurso “antissistêmico” de combate à corrupção e de negação da política, prometendo a depuração das instituições, particularmente em relação às forças de esquerda, e a refundação do Estado. Além disso, tirou proveito da hegemonia cultural do relativismo pós-moderno e de uma “crise da ordem significante” (Bihr, 1998BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa: o movimento operário europeu em crise. Tradução de Wanda Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo, 1998., pp. 163-181) expressa no descrédito de valores como cidadania universal, racionalidade, progresso, bem-estar, etc. e na emergência de um hiper-individualismo narcisista. Este hiper-individualismo alimenta as redes sociais diuturnamente e anula a privacidade e a própria identidade do “eu”, cuja singularidade se perde na homogeneização dos gostos, costumes e hábitos, causada por sua própria superexposição, reproduzindo um “eu sempre igual”. Daí a exploração consciente do relativismo cultural, do irracionalismo e do fundamentalismo religioso pelas forças de extrema-direita para alimentar o discurso de ódio, o negacionismo histórico e científico, o culto da violência e a proposta de refundação de uma comunidade imaginária (o “cidadão de bem”) contraposta ao vazio do eu narcisista e sempre igual e assentada na perspectiva desigualitária e hierárquica indicada acima. Neste ambiente geral de desalento e anomia política, a extrema-direita recupera o sentimento de pertencimento, mobilizando sua base social em torno do radicalismo e de líderes providenciais, os “salvadores da pátria”.

Esta onda extremista de direita emerge com bastante força nas sociedades do antigo Leste Europeu já nos anos 90, muito em função da derrota política e ideológica do chamado socialismo real, mas se espalha rapidamente pelo resto do globo a partir dos anos 2000, principalmente depois da crise econômica de 2008. Em diversos lugares, a extrema-direita torna-se uma das três principais forças eleitorais, seja com a ascensão das antigas siglas, como a Frente Nacional francesa, ou com o surgimento de novas organizações e agrupamentos como a Liga Norte (Itália), o Tea Party nos EUA, a Alternativa para a Alemanha (AfD), a Aurora Dourada (Grécia), o Vox (Espanha), etc. Guardadas as condições históricas distintas do cenário geral exposto aqui, também podemos considerar que determinados partidos e movimentos jihadistas que emergiram com bastante força nas últimas décadas, como a Al Qaeda, o Taleban e o Estado Islâmico esposam uma perspectiva de extrema-direita e mesmo fascista, segundo determinadas avaliações (RGPIC, 2020RGPIC - Grupo de pesquisa Poder Global, Desigualdade e Conflito. Seriam os fundamentalistas islâmicos fascistas? 02 dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/direita-assanhada/seriam-os-fundamentalistas-islamicos-fascistas/ . Acesso em: 24 jan. 2022.
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).

Nos últimos anos, em diversos países lideranças e organizações de extrema-direita assumiram o poder e passaram a promover processos de fechamento político e de “autocratização” ainda maior do Estado, preservando, em muitos casos, a carapaça “democrática” do regime, porém, radicalizando os elementos autoritários e fascistas do Estado burguês, por meio da perseguição ou da eliminação de adversários, da manipulação do processo eleitoral, da submissão do legislativo e do judiciário ao arbítrio do governo, da criação de leis discricionárias e da ampliação da repressão política e social (Levitsky; Ziblatt, 2018LEVITSKY, S.; ZIBLATT, D. Como as democracias morrem. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.). Os casos de Trump (EUA), Putin (Rússia), Orbán (Hungria), dos irmãos Kacsinsky (Polônia), Erdogan (Turquia), Modi (Índia), Duterte (Filipinas), Uribe (Colômbia), Taleban (Afeganistão) e de Bolsonaro (Brasil) são apenas os mais conhecidos de uma constelação bastante significativa de governantes de extrema-direita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atual crise da democracia liberal expressa muito mais do que lacunas e desajustes em sua formatação institucional ou ainda problemas políticos oriundos dos problemas econômicos e sociais da sociedade contemporânea nas últimas décadas. Ao contrário, ela está diretamente associada a mudanças que afetam todas as esferas da vida social: das relações entre capital e trabalho nos planos nacional e mundial, com evidentes desdobramentos nas relações internacionais, às formas de sociabilidade, sensibilidade e compreensão do mundo, passando pelo processo político e pelo próprio papel do Estado. Se o argumento que apresentamos aqui está correto, o processo de formatação do Estado burguês num sentido mais ou menos democrático sempre esteve determinado pelo processo da luta de classes, especialmente pela capacidade de os trabalhadores ameaçarem a ordem do capital no sentido da sua superação e/ou de estabelecerem limites políticos e institucionais à movimentação do capital. Nos casos em que as classes burguesas foram capazes de integrar à institucionalidade, ainda que de maneira condicionada, as organizações políticas, corporativas e ideológico-culturais do mundo do trabalho, bem como de atender suas demandas - mesmo que parcialmente -, a dominação de classe do capital adquiriu nova qualidade, reforçando-se a sua hegemonia sob o formato da democracia liberal. Onde isto não ocorreu, ou se deu numa versão bastante restrita e sob tutela estatal, a autocracia burguesa se enrijeceu ainda mais, com regimes aberta ou veladamente ditatoriais (regimes oligárquicos, ditaduras militares, “populismos”, etc.).

Ao mesmo tempo em que é um desdobramento dos processos de concentração de renda, precarização do trabalho e eliminação de direitos sociais, a atual crise da democracia acirra as tendências antidemocráticas, exclusivistas e antipopulares presentes no Estado burguês desde seu início, e nunca completamente abolidas pela democracia liberal, mesmo em seu auge entre os anos 1940-1980. O processo hodierno de “autocratização” do Estado burguês, inclusive nos países capitalistas centrais, evidencia não só a debilidade do mundo do trabalho em se contrapor à ofensiva burguesa, mas a própria dificuldade crescente das classes dominantes em impor sua dominação de maneira consensual. A crise internacional pontificada pela Guerra na Ucrânia e pelas sanções econômicas contra a Rússia sugere uma tendência de intensificação da disputa interimperialista, do militarismo e a adoção de políticas econômicas cada vez mais autárquicas e protecionistas, o que favorece o nacionalismo xenófobo e o controle repressivo sobre o conflito político e social, indicando que o processo de autocratização pode se aprofundar.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    21 Abr 2022
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