Resumos
O artigo tem por objetivo conhecer as estratégias e a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante o governo Goulart. Os comunistas tiveram diferentes posturas nesse período: na fase parlamentarista de governo, o partido demonstrou distanciamento crítico em relação ao presidente da República. A seguir, durante todo o ano de 1963, o PCB foi opositor de Goulart, recusando a estratégia presidencial de aliar o PTB ao PSD para alcançar maioria no Congresso Nacional. Por fim, de fins de 1963 até o golpe militar no ano seguinte, os comunistas tornaram-se aliados do presidente. A mudança foi motivada pela decisão de Goulart de romper com o PSD e governar com o apoio político das esquerdas.
Partido Comunista Brasileiro; governo João Goulart; crise política de 1964
This article intends to identify the Brazilian Communist Party's (PCB) strategies and its performance during João Goulart's government. Communists held different positions in that period: during the government's parliamentary phase, the party showed critical distance from the President. Later, in 1963, the PCB opposed Goulart, rejecting the presidential strategy of making an alliance between PTB and PSD to hold the majority in the National Congress. Finally, from late 1963 and up to the military coup the following year, communists became the President's allies. This change was motivated by Goulart's decision of breaking up with the PSD and ruling with left-wing parties' political support.
Brazilian Communist Party; João Goulart's government; 1964 political crisis
DOSSIÊ: INCLUSÕES E EXCLUSÕES
O Partido Comunista Brasileiro e o governo João Goulart1
The Brazilian Communist Party and João Goulart's Administration
Jorge Ferreira
Universidade Federal Fluminense (UFF), Departamento de História. Pesquisador do CNPq. jorge-fer@uol.com.br
RESUMO
O artigo tem por objetivo conhecer as estratégias e a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) durante o governo Goulart. Os comunistas tiveram diferentes posturas nesse período: na fase parlamentarista de governo, o partido demonstrou distanciamento crítico em relação ao presidente da República. A seguir, durante todo o ano de 1963, o PCB foi opositor de Goulart, recusando a estratégia presidencial de aliar o PTB ao PSD para alcançar maioria no Congresso Nacional. Por fim, de fins de 1963 até o golpe militar no ano seguinte, os comunistas tornaram-se aliados do presidente. A mudança foi motivada pela decisão de Goulart de romper com o PSD e governar com o apoio político das esquerdas.
Palavras-chave: Partido Comunista Brasileiro; governo João Goulart; crise política de 1964.
ABSTRACT
This article intends to identify the Brazilian Communist Party's (PCB) strategies and its performance during João Goulart's government. Communists held different positions in that period: during the government's parliamentary phase, the party showed critical distance from the President. Later, in 1963, the PCB opposed Goulart, rejecting the presidential strategy of making an alliance between PTB and PSD to hold the majority in the National Congress. Finally, from late 1963 and up to the military coup the following year, communists became the President's allies. This change was motivated by Goulart's decision of breaking up with the PSD and ruling with left-wing parties' political support.
Keyworks: Brazilian Communist Party; João Goulart's government; 1964 political crisis.
O Partido Comunista do Brasil, depois renomeado como Partido Comunista Brasileiro (PCB), é, na historiografia brasileira, o partido político que mais recebeu atenção dos estudiosos. Inicialmente foram os próprios militantes comunistas que escreveram a história do partido. Depois, historiadores, sociólogos e cientistas políticos dedicaram seus esforços para conhecer o PCB e sua atuação na política brasileira.
Muito se escreveu e publicou sobre o partido. A começar pela sua primeira década, nos anos 1920, a participação dos comunistas nos eventos que resultaram na insurreição de 1935, o período da legalidade entre 1945 e 1947 e a fase que se abriu com a cassação do registro do partido e resultou no "Manifesto de Agosto de 1950".
Algo, no entanto, é curioso: após a mudança que ocorreu no partido com a "Declaração de Março de 1958" e a chamada 'nova política', o interesse pela história do partido diminui sensivelmente. A própria produção historiográfica sobre o período é menor se comparada com períodos anteriores.
Mas, se o interesse pela história do PCB declina após 1958, torna-se escasso durante o governo do presidente João Goulart. Nesse período, o PCB é citado de maneira superficial. Além de expressões generalizantes que o apontam como fazendo parte das 'esquerdas' da época, o PCB ainda sofre com as interpretações demeritórias de sua atuação na política brasileira. Não são poucas as interpretações que definem a 'nova política' de 'guinada à direita', 'reformismo', 'pacifismo', 'reboquismo', política de 'conciliação de classes', 'passividade', opção pelo 'eleitoralismo', postura 'pacifista' e tendência para 'imobilização' da classe operária, entre outros qualificativos próprios do jargão esquerdista. Todos esses 'erros' teriam contribuído para o desastre de março de 1964, com o golpe militar.
O objetivo deste artigo é conhecer as opções políticas e a atuação dos comunistas brasileiros durante o governo de João Goulart. Para isso, recorri ao jornal Novos Rumos, publicado pelo PCB, como fonte privilegiada para a pesquisa.
O PCB E A 'NOVA POLÍTICA'
Na avaliação de José Antonio Segatto, entre 1954 e 1958 o PCB viveu uma série de experiências que culminaram em reorientação teórica, política e organizativa. Foram três experiências importantes: o impacto do suicídio de Vargas, o desenvolvimentismo do governo Kubitschek e os debates provenientes do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética. O PCB, diz o autor, "inicia um processo de renovação e formulação daquela que ficou conhecida e reconhecida, pelo seu núcleo dirigente, como uma 'nova política'".2 A "Declaração de Março de 1958" foi o principal documento que orientou as mudanças políticas dos comunistas brasileiros.
Muito resumidamente, o documento reconhecia que o capitalismo estava se desenvolvendo no país de maneira irreversível, o que favorecia a luta pela democracia. Nesse sentido, era necessário dar resolução a duas contradições: a primeira, entre a nação e o imperialismo; a segunda, entre o avanço das forças produtivas e as relações de produção semifeudais no campo. Desse modo, "a contradição entre o proletariado e a burguesia, expressa em várias formas de luta de classes, continuava existente", avalia José Antonio Segatto, "mas não exigia uma solução imediata e radical na presente etapa".3 A revolução brasileira, nesse sentido, seria anti-imperialista, antifeudal, nacional e democrática. No processo revolucionário brasileiro haveria aliança com a burguesia e com outras classes em uma Frente Única, mas, à frente do processo, estaria o proletariado. A Frente deveria ter propostas como a reforma agrária, a política externa independente e a ampliação das liberdades democráticas, entre outras, resultando em um governo nacionalista e democrático. Com essa plataforma, a "Declaração de Março" reconhecia a "possibilidade e a viabilidade do caminho pacífico para a revolução brasileira", ocorrendo dentro da legalidade democrática e constitucional.
A nova orientação política foi um marco na história do PCB, permitindo a abertura do partido para a sociedade. A aliança com os trabalhistas nos meios sindicais, por exemplo, resultou na tomada da diretoria de vários sindicatos, federações e confederações, bem como na fundação de inúmeras intersindicais, culminando na criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). O partido cresceu, alcançando expressão na política brasileira.
O partido defendia o 'caminho pacífico ao socialismo' motivo para várias críticas posteriores ao golpe militar de 1964. Criou-se a imagem, equivocada, do partido que abandonou o projeto 'revolucionário', abraçando o 'reformismo'. É necessário considerar, no entanto, que a opção pela via 'pacífica ao socialismo' adotada pelo PCB não excluía, absolutamente, a alternativa da revolução armada. Em artigo publicado em Novos Rumos, em fins de 1961, a questão era explicada aos militantes:
Os comunistas brasileiros, ao defenderem a viabilidade do caminho pacífico, em hipótese alguma são unilaterais. Consideram justo e necessário preparar as massas para levar a cabo a revolução social pacificamente, ou não. O que desejamos é fazer a revolução. Caso as forças reacionárias imponham ao nosso povo a luta armada, sendo as condições objetivas e subjetivas favoráveis, não vacilaremos em nos colocar à frente do povo e, através da insurreição armada, lutar para conquistar o poder, como já fizeram os comunistas em várias partes do mundo.4
Argumentos como esses foram explorados em diversas edições de Novos Rumos até março de 1964. O 'pacifismo' do PCB foi muito mais expressão depreciativa de seus opositores de esquerda do que uma prática efetiva do partido. A via pacífica não excluiu a opção pela explosão revolucionária.
O PCB, nesse sentido, apoiava as reformas de base, programa das esquerdas e defendido por João Goulart. Os comunistas as chamavam de 'reformas estruturais da sociedade'. Elas se tornaram a grande bandeira de luta de comunistas, trabalhistas, nacionalistas e outras forças de esquerda. A reforma agrária era a exigência central, mas delas também faziam parte a reforma urbana, administrativa, bancária e universitária, bem como a extensão do voto aos analfabetos e subalternos das Forças Armadas e a legalização do Partido Comunista. Mas como os comunistas interpretavam as reformas de base e qual horizonte elas apontavam?
Os comunistas compreendiam que havia um processo de polarização política no país. No embate entre as forças de direita e esquerda estava a disputa pelo poder. Em julho de 1962, Giocondo Dias, integrante da Comissão Executiva do Comitê Central do PCB, escreveu em Novos Rumos:
Em um momento como o atual, quando ... se generaliza a convicção de que é necessário um novo Poder, acelerando-se assim o processo revolucionário, é perfeitamente compreensível que se acirrem a luta e as divergências ideológicas e políticas. É que vai se tornando cada dia mais sensível o problema do poder. De um lado, as forças caducas da sociedade procuram encontrar os meios para conservar em suas mãos o poder. De outro, as forças progressistas e revolucionárias se empenham em buscar os caminhos que levem à instauração de um novo poder político, que sirva à nação e ao povo. Entre esses dois sistemas de forças existe, naturalmente, um completo antagonismo.5
Tempos depois, em janeiro de 1964, Giocondo Dias escreveu outro artigo alertando os militantes do partido. O título era sugestivo: "Sentido revolucionário da luta pelas reformas".6 Para o dirigente partidário, a importância das reformas de base já tinha sido compreendida por milhões de brasileiros, mas ainda causava dúvidas na militância partidária, resultando em dois desvios. Havia no PCB aqueles que compreendiam as reformas como o "objetivo final" do partido. Para Giocondo, esses militantes não consideravam as reformas de base "como um momento ou uma fase do processo revolucionário, cuja culminação será o triunfo do socialismo". Os que pensam que as reformas de base são um fim em si mesmo, continua o dirigente, integram a "tendência de direita, profundamente nociva: o reformismo".
Outros, no entanto, demonstram dúvidas sobre "o conteúdo revolucionário da luta pelas reformas". Para eles, trata-se de luta de caráter "reformista". Giocondo Dias qualifica esses militantes de "uma tendência sectária", cuja ortodoxia não permite que eles vejam com "clareza o processo revolucionário em curso no país". Giocondo Dias critica os companheiros do partido, mas também os aliados, "sobretudo entre a juventude e a intelectualidade" que distinguem "entre as reformas e a revolução". Trata-se de erro profundo, em suas palavras, comparar os dias atuais com os da Revolução de Outubro de 1917, na Rússia. Para Giocondo Dias, as reformas de base permitirão
acabar com o domínio de nossa economia pelos imperialistas norte-americanos, extinguir o monopólio da terra e, com ele o poder dos latifundiários como classe, elevar substancialmente os padrões de vida das grandes massas trabalhadoras e, assim, sobre a base de uma ampliação verdadeira dos direitos democráticos do povo, que lhe permita influir decisivamente na condução da vida política do país ... Para as classes trabalhadoras as reformas de estrutura devem representar um elo no processo revolucionário que culminará com o advento e a construção do socialismo.
A efetivação das reformas de base, portanto, apontava para o socialismo. As reformas eram revolucionárias. Para Giocondo Dias era necessário criticar aqueles que insistiam em "contrapor as reformas à revolução quer para considerá-las um fim em si, como fazem os reformistas, quer para negar-lhes qualquer papel no processo revolucionário, como fazem os fraseólogos ultraesquerdistas". As reformas de estrutura, nesse sentido, eram as condições para a realização da "revolução brasileira".
O PARTIDO COMUNISTA E AS ESQUERDAS
Nos poucos estudos sobre as esquerdas no governo Goulart, é muito comum a citação de alguns partidos e organizações que atuaram no período: o PCB, a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-Polop), a Ação Popular (AP), o Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR-T) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Essas organizações são compreendidas como 'as esquerdas' da época.
O PCB era o grande partido de vertente marxista da época. Desde 1958, quando abandonou a política sectária e de ultraesquerda que adotou desde 1947, o partido cresceu e, até o golpe militar de 1964, viveu período de grande vitalidade. Adquiriu importância na sociedade brasileira, exercendo forte influência no sindicalismo urbano, atuando nas organizações camponesas, participando de diversos movimentos sociais e com prestígio entre a intelectualidade brasileira.
Não era o caso do PCdoB, surgido em 1962 de uma dissidência do PCB. Tratava-se de organização ainda muito embrionária naquele momento. O mesmo se pode dizer do POR-T, partido definido por Marcelo Ridenti como "minúsculo agrupamento trotskista-posadista" (Ridenti, 1993, p.27). A Polop e a AP tinham maior expressão, mesmo assim no meio estudantil não entre os operários e o movimento sindical.
Existiram diversos partidos, organizações, movimentos e frentes de esquerda que atuaram no governo Goulart, mas que receberam escassas referências na bibliografia especializada. A começar pelos nacional-revolucionários que, no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), seguiam a liderança de Leonel Brizola. Também no PTB atuava o Grupo Compacto, parlamentares independentes das lideranças de Goulart ou Brizola e que defendiam as reformas de base, sobretudo a agrária. Outra organização muito importante para a época foi a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), reunindo parlamentares comprometidos com o nacionalismo e as reformas. Partido pequeno, mas que atuava no campo das esquerdas era o Partido Socialista Brasileiro (PSB).
Diversas organizações defendiam projetos reformistas. A começar pelo CGT, central sindical sob a liderança de trabalhistas e comunistas que organizava os trabalhadores urbanos. Os estudantes estavam representados na União Nacional dos Estudantes (UNE) e na União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), ambas sob direção da AP e do PCB. Entre os militares, os sargentos das três Forças Armadas e marinheiros e fuzileiros da Marinha de Guerra engajaram-se nos movimentos nacionalistas e de esquerda. As lutas camponesas ganharam expressão com o surgimento das Ligas Camponesas e a liderança de Francisco Julião. No Nordeste, o governador Miguel Arraes alcançou grande prestígio entre as esquerdas.
Existiam, portanto, partidos, movimentos, frentes e organizações de diversas variações, sendo muito difícil reduzir o conjunto das esquerdas apenas ao PCB e à AP, bem como a pequenos partidos políticos, como o PCdoB, o POR-T e a Polop.
Com imenso prestígio entre as esquerdas, Leonel Brizola, no início de 1963, uniu diversos partidos, grupos e movimentos de esquerda na Frente de Mobilização Popular (FMP). No dizer de Ruy Mauro Marini, a FMP agia como um "parlamento das esquerdas".7 Participavam da frente o CGT, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), o Pacto de Unidade (PUA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito (Contec); a UNE e a Ubes; o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), os subalternos das Forças Armadas, como sargentos, marinheiros e fuzileiros navais por meio de suas associações; facções das Ligas Camponesas; grupos de esquerda revolucionária como a AP, o POR-T, os nacional-revolucionários que seguiam a liderança de Leonel Brizola e segmentos de extrema-esquerda do PCB; a Frente Parlamentar Nacionalista; parlamentares do Grupo Compacto do PTB, do PSB e do Partido Social Progressista (PSP). Miguel Arraes e seu grupo político também integravam a frente, embora mantivessem posições de independência em relação a Brizola.
A FMP pressionava João Goulart para que decretasse imediatamente as reformas de base, afastando-se do Partido Social Democrático (PSD) e entrando em confronto direto com os grupos de direita. Leonel Brizola e as esquerdas reunidas na FMP ainda se apresentavam como força de esquerda que poderia viabilizar as reformas no lugar do PCB, partido interpretado como moderado diante das lutas sociais da época.
OS COMUNISTAS E O GOVERNO PARLAMENTARISTA
É muito comum a referência ao governo Goulart como um mesmo período, sem diferenciações. No entanto, há que distinguir a fase parlamentarista da presidencialista. Durante o período parlamentarista, entre setembro de 1961, quando ele tomou posse na presidência da República, até janeiro de 1963 com a vitória do plebiscito que o investiu de poderes presidencialistas , Goulart não governou o país. Tratava-se de regime de gabinete. Portanto, as direitas não podiam denunciar Jango pela ameaça de 'comunização' do país, nem as esquerdas acusá-lo por não efetivar as reformas de base.
Na fase parlamentarista, o PCB adotou política deliberada em relação ao presidente da República: o silêncio e a hostilidade. Nos dois primeiros meses de 1962, não há, no jornal semanal Novos Rumos, órgão oficial do PCB, uma única referência ao presidente João Goulart. Sequer uma fotografia. O jornal do PCB ignorava sua existência. Somente na edição de março de 1962 Goulart foi citado pelo jornal, mesmo assim para ser duramente criticado por sua iniciativa de visitar os Estados Unidos.8
No início de abril, surgiu outra crítica. O motivo foi o discurso presidencial na Câmara de Comércio Americana durante sua viagem aos Estados Unidos. O tema tratava das nacionalizações de empresas norte-americanas realizadas pelo governador gaúcho Leonel Brizola. Para Novos Rumos, Goulart comprovou sua "capitulação ao imperialismo norte-americano". Segundo editorial de primeira página em Novos Rumos:
O presidente da República portou-se como ardoroso advogado dos interesses dos monopólios ianques. Reconheceu que os serviços públicos em geral 'funcionam mal, funcionam inadequada e insuficientemente'. Criam-se, assim, largas áreas de atrito e fricção entre a opinião pública e as empresas concessionárias ... Se os serviços vão mal, são inadequados e insuficientes, é porque as concessionárias não cumprem com a principal obrigação dos seus contratos ... Vem agora o sr. João Goulart e propõe nada menos do que premiar os nossos exploradores ... O discurso do sr. João Goulart merece a repulsa de todos os patriotas.9
Goulart aparecia de maneira muito superficial em Novos Rumos: ora com notícias depreciativas, ora apoiando causas defendidas pelos comunistas. Ainda em abril, foi publicada denúncia de que Jango e Lacerda se uniram para beneficiar a empresa norte-americana de telefonia no estado da Guanabara. Em maio, o nome de Jango foi citado no jornal pelo seu apoio a um congresso pela paz organizado pelos comunistas em Helsinki. Somente no mês seguinte o presidente novamente foi citado, mas pelo mesmo motivo: apoio a causas defendidas pelos comunistas. Neste caso, Goulart defendia o incremento do comércio com a União Soviética.10
Durante o regime parlamentar, Goulart era cobrado por suas opções políticas. Em junho de 1962, com a renúncia do gabinete de Tancredo Neves, Novos Rumos publicou em sua primeira página: "Em todo o país é unânime a exigência das massas: um governo nacionalista".11 Os comunistas queriam que Goulart nomeasse um primeiro-ministro de esquerda. O jornal do PCB publicou, no mês seguinte, manchete em sua primeira página: "Greve geral! Milhões de trabalhadores exigem de João Goulart: Gabinete nacionalista!". Na mesma página, sob o título "Nenhuma conciliação com os inimigos do povo". Luís Carlos Prestes fez duras críticas a Jango: "Os fatos ... estão mostrando, após nove meses de Gabinete Tancredo Neves, não apenas o fracasso desse governo, mas também a falência da política de conciliação com as forças que representam os interesses do latifúndio e do imperialismo".12
Goulart voltou a ser citado em Novos Rumos em setembro. Uma nota lembrava que, em agosto de 1960, ele havia defendido a legalidade do PCB. Em novembro ele reaparece ao defender a autodeterminação dos povos, referindo-se a Cuba.13
Até o plebiscito ocorrido em 6 de janeiro de 1963, os comunistas trataram Jango com distanciamento. Ignorar a existência do presidente da República, citá-lo quando convinha aos seus interesses ou criticá-lo com agressividade desmentem as imagens que definem o PCB como 'linha auxiliar' de Jango, estando a seu 'reboque'.
Muito diferente era a maneira como Novos Rumos tratava Leonel Brizola. Suas declarações eram noticiadas com destaque. Sua presença em Novos Rumos era constante, sobretudo quando defendia medidas nacionalistas, recusava alianças com o PSD e criticava Goulart por não realizar as reformas de base. Outra liderança de esquerda também prestigiada por Novos Rumos era Miguel Arraes. Ambos interessavam aos comunistas como aliados na formação de uma Frente Única de Esquerda. Não era o caso de Francisco Julião. Concorrentes dos comunistas na mobilização dos trabalhadores rurais, nas páginas de Novos Rumos Julião e as Ligas Camponesas surgiam raramente, mas para sofrerem duras críticas.
Após o plebiscito de janeiro de 1963, quando Goulart passou a governar em regime presidencialista, o PCB e a Frente de Mobilização Popular, fundada naquele mês, formaram as duas grandes organizações de esquerda.
Inicialmente, as relações entre elas eram tensas. Leonel Brizola fundou a FMP para disputar diretamente com o PCB a liderança entre as esquerdas. Brizola, desde a Campanha da Legalidade, competia com Goulart pela liderança do movimento reformista e do PTB. Mas no início de 1963, também entrou em concorrência com o próprio Prestes.
Os comunistas, no entanto, tinham postura diversa. A direção do PCB percebeu a amplitude da FMP e a capacidade de liderança de Leonel Brizola. Mesmo antes de ele fundar a FMP, os comunistas o prestigiavam, sendo citado constantemente nas páginas de Novos Rumos. Propositadamente evitavam conflitos com Brizola e esforçavam-se para estabelecer aliança com a FMP. Em setembro de 1963, texto publicado em Novos Rumos marcava a posição do PCB em relação à frente liderada por Brizola:
Os comunistas consideram que a FMP, surgida na luta pelas reformas de base, representa um passo importante no sentido da coordenação das forças da frente única nacionalista e democrática. As dificuldades nesse terreno são compreensíveis. As divergências são naturais. Mas o indispensável é que divergências e dificuldades sejam enfrentadas com espírito unitário, para que possam ser ultrapassadas e a luta comum prossiga avançando.14
Para alcançar a unidade das esquerdas na Frente Única, os comunistas esforçavam-se para ter a FMP como aliada. Contudo, as esquerdas unidas na FMP ignoravam o PCB. Nas páginas de Panfleto. O jornal do homem do povo, editado pelo grupo nacional-revolucionário e porta-voz da FMP, o PCB e Luís Carlos Prestes nunca receberam uma única menção.
OS COMUNISTAS E O GOVERNO PRESIDENCIALISTA DE GOULART
Ao assumir a presidência da República, Jango escolheu a estratégia de obter maioria no Congresso Nacional reforçando a aliança do PTB com o PSD. Ele repetia, desse modo, a coalizão parlamentar que deu estabilidade política a Juscelino Kubitschek. A aliança de centro-esquerda teria de chegar a acordos e compromissos para a aprovação das reformas. Elas seriam aprovadas por vias institucionais e, para isso, ter maioria parlamentar com a aliança PTB-PSD no Congresso Nacional era fundamental na estratégia do presidente (ver Ferreira, 2011; Figueiredo, 1993).
No entanto, a opção política de Goulart sofreu sistemática oposição das esquerdas. Esse foi um sério problema enfrentado por seu governo. Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes, Miguel Arraes e Francisco Julião eram contra a aliança com o PSD. Também se opunham o CGT, a UNE e as Ligas Camponesas. As esquerdas reunidas na FMP repudiavam a estratégia presidencial de obter maioria no Congresso Nacional em aliança com o PSD.
Os comunistas também eram críticos contundentes da estratégia de Goulart. O PCB fazia coro com a FMP, recusando a opção política de Jango de buscar aliança com os pessedistas. A opção de aliança partidária com o PSD era chamada na época, pelas esquerdas, de 'política de conciliação'. Algo interpretado como muito negativo.
As críticas a Jango por querer o PSD como aliado eram comuns em Novos Rumos. Para os comunistas, Goulart necessitava "romper com a política de conciliação que vem seguindo, de desfazer a aliança com a cúpula retrógrada do PSD, de recompor o sistema de forças que o constitui".15 Editorial publicado em setembro de 1963 dizia:
O Sr. João Goulart tem conciliado exatamente com os inimigos que cumpre combater, com os representantes e defensores do latifúndio e do imperialismo ... Unidade é uma coisa. Conciliação é outra. E as exigências das lutas nacionalista e democráticas indicam que é necessário fortalecer a unidade de todos os que se encontram nessa trincheira exatamente para desenvolver com maior vigor o combate à política de conciliação e derrotá-la, a fim de isolar e golpear os principais inimigos de nosso povo.16
A alternativa defendida pelos comunistas era a mesma da Frente de Mobilização Popular: o rompimento com o PSD e a formação de um governo exclusivo das esquerdas a Frente Única.
Jango deveria romper com o PSD e nada esperar do Congresso Nacional, instituição vista como reacionária. As reformas de base não seriam aprovadas pela via parlamentar, afirmavam as lideranças de esquerda. Tanto o PCB e seu líder Luís Carlos Prestes quanto Leonel Brizola falando em nome da FMP defendiam a mesma alternativa política: Goulart deveria constituir um governo exclusivamente com nomes de esquerda.
Se Goulart rompesse a aliança com o PSD e outros partidos de centro, como queriam as esquerdas, ele perderia a maioria no Congresso Nacional e a oposição ao seu governo cresceria entre os parlamentares. Mas para o PCB e a FMP o problema seria contornado com a pressão popular nas ruas sobre o Congresso Nacional. Segundo texto publicado em Novos Rumos,
será por esse caminho que o Sr. João Goulart poderá contar com o apoio da esmagadora maioria da Nação, daquelas forças efetivamente decisivas, cuja ação coordenada terá também influência sobre o próprio Parlamento, sendo capaz de romper sua resistência reacionária e conquistar as reformas de base e as emendas constitucionais necessárias.
Com as esquerdas unidas na FMP aliadas ao PCB, ao CGT e ao grupo político de Miguel Arraes, as reformas seriam arrancadas do Congresso Nacional com a mobilização do povo no espaço público.
Os comunistas admitiam, no entanto, que havia uma "defasagem entre o avanço no país do movimento de massa, de sua organização e unidade, e a situação da cúpula, das lideranças". Tais líderes, "apesar dos esforços representados pela Frente de Mobilização Popular, ainda não superaram os embaraços que se opõem a uma ação unitária e convergente". Em outras palavras, tratava-se da disputa de Leonel Brizola com Luís Carlos Prestes pela liderança do movimento reformista. Daí que os comunistas pregavam a necessidade do "fortalecimento da frente única", ou seja, a formação de uma frente entre o PCB e a FMP. Nesse sentido, os comunistas tinham projeto idêntico ao da FMP Goulart deveria romper com o PSD e formar um governo exclusivo das esquerdas. Segundo texto publicado em Novos Rumos:
a formação de um novo governo, apoiado nas forças nacionalistas e democráticas e formado por homens a elas vinculados é, hoje, uma exigência irrefreável da esmagadora maioria da Nação. Só um governo desse tipo, armado com um programa de firme inspiração patriótica e progressista, e contando com o decidido apoio das grandes massas do povo, terá condições de converter em realidade as reformas de estrutura, golpear a espoliação imperialista e suprimir odiosos privilégios que estão levando o nosso povo a uma situação cada dia mais aflitiva.17
OS COMUNISTAS E A CRISE DO GOVERNO GOULART
Os comunistas apoiaram a rebelião dos sargentos em Brasília, em 12 de setembro de 1963. A tomada da capital da República por cerca de seiscentos sargentos e fuzileiros navais foi interpretada como luta 'democrática' e 'patriótica' dos militares de baixa patente. O título de Novos Rumos era: "Sargentos são nossos irmãos".18
A rebelião dos sargentos fragilizou o governo Goulart. As direitas ficaram assustadas com o episódio. Se um grupo de sargentos e fuzileiros navais tomou a capital da República e prendeu os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, o que não poderia fazer a ala janguista do Exército, com seus generais e oficiais de média patente com comando de tropa? Segundo Alzira Alves Abreu, a revolta dos sargentos foi o "momento de inflexão da posição da imprensa em relação ao governo Goulart".19 No entanto, os comunistas mantinham-se otimistas.
Nova crise ocorreu no dia 1o de outubro, quando a Tribuna da Imprensa publicou a entrevista de Carlos Lacerda ao jornal Los Angeles Times. Lacerda insultou Goulart, pediu a interferência do governo dos Estados Unidos no processo político brasileiro e ainda afirmou que as Forças Armadas dariam um golpe de Estado.
Os ministros militares, indignados com a atitude de Lacerda, pediram ao presidente a instauração do estado de sítio. O objetivo era prender Lacerda. Goulart enviou mensagem ao Congresso Nacional solicitando autorização para decretar o estado de sítio no país. Os parlamentares de direita, de esquerda e os liberais foram contra. O PCB e a FMP também se opuseram à medida.
Com a manchete "O Sítio era contra o povo", Novos Rumos informou que Leonel Brizola em nome da FMP, Sérgio Magalhães representando a FPN, Miguel Arraes e o movimento sindical cerraram fileiras contra o estado de sítio. Ainda segundo Novos Rumos, no dia 6 o presidente da República "reuniu-se com uma delegação da Frente de Mobilização Popular, representando as diversas organizações do movimento nacionalista, sindical e estudantil". Ao final Goulart prometeu retirar do Congresso o pedido de estado de sítio e "imprimir uma orientação ao seu governo, de acordo com as reivindicações formuladas pelas forças nacionalistas".20
Isolado e fortemente pressionado por diversas forças políticas, Goulart recuou. A partir daí, os ataques das direitas e das esquerdas ao presidente aumentaram de tom. Os comunistas reiteraram a proposta de formação da Frente Única de Esquerda. Em manifesto publicado em Novos Rumos, logo após a derrota de Goulart ao pedir o estado de sítio ao Congresso Nacional, a direção do PCB declarou:
As forças nacionalistas e democráticas, derrotando a tentativa de implantação do estado de sítio, alcançaram importante vitória política. Os fatos revelaram que a unidade da frente única atingiu um nível mais alto e que sua amplitude é maior, crescendo, consequentemente, sua influência na vida do país ... Os fatos mostram a necessidade premente de ser adotada uma nova política, que dê solução às questões imediatas e se encaminhe no sentido das reformas de base. Um governo como o atual, que se baseia no compromisso com a cúpula retrógrada do PSD e com outras forças reacionárias, não realizará essa política. Impõe-se, portanto, uma recomposição do sistema de forças que constitui o atual governo, com a substituição dos setores distanciados das aspirações do povo por representantes das correntes políticas e sociais que estejam dispostas, no Parlamento e nas ruas, a dar apoio a essa nova política.21
Os comunistas insistiam na proposta política de formação de um governo exclusivo das esquerdas, com a exclusão do PSD. Para isso, era necessário que Leonel Brizola aceitasse a proposta dos comunistas e formasse a Frente Única de Esquerda união do PCB e da FMP para governar o país. Mas que Goulart também aceitasse formar um ministério somente com integrantes da Frente Única.
A questão voltou ao debate político em dezembro de 1963, quando Goulart propôs reforma ministerial. As esquerdas reunidas na Frente de Mobilização Popular exigiram que o ministério da Fazenda fosse entregue a Leonel Brizola, com o apoio do PCB. Segundo Novos Rumos, "como esperar reformas de base, de um governo que é produto da aliança com a cúpula retrógrada do PSD?". Para os comunistas, a nomeação de Brizola para o ministério da Fazenda significaria a "constituição de outro sistema de forças, nacionalista e democrático ... e possibilitará enfrentar e derrotar a resistência da reação, inclusive dentro do Parlamento, e esmagar a conspiração entreguista".22
Para a FMP e o PCB, a nomeação de Brizola para o ministério da Fazenda expressaria a formação de um novo governo, exclusivamente das esquerdas. Contudo, significaria, também, que o homem forte do governo seria Leonel Brizola. Goulart estaria, na prática, entregando o governo para ele. Algo que o presidente não poderia fazer. Ao nomear Nei Galvão, um funcionário de carreira, para o ministério da Fazenda, Jango tentou, mais uma vez, unir o PTB ao PSD, mas sua iniciativa resultou no aumento da hostilidade da FMP contra ele.
A aproximação entre o PCB e a FMP tornou-se crescente. A frente liderada por Brizola, noticiou Novos Rumos, teve sucesso político porque foi criada "levando em conta a realidade do movimento de massas democrático". Na avaliação dos comunistas, a Frente de Mobilização Popular, ao invés de ser uma estrutura artificial, aglutinou "o que já existe organizado, como o movimento operário, estudantil, de intelectuais, o camponês e também a Frente Parlamentar Nacionalista e os militares nacionalistas". Para Novos Rumos, "a FMP pode desempenhar a função do núcleo mais combativo e radical da Frente Única".23
Miguel Arraes apontava o mesmo caminho. Em depoimento publicado em Novos Rumos, ele apoiou a decisão da FMP de formação de um governo de esquerda: "A nota que a Frente de Mobilização Popular divulgou, para fixar sua posição em relação à crise nacional e tendo em vista a necessidade de uma nova política econômica e social, tem todo o meu apoio".24
Em fins de 1963, Luís Carlos Prestes à frente do PCB estava de acordo com as teses de duas grandes lideranças das esquerdas do país: Leonel Brizola e Miguel Arraes. Goulart deveria romper com o PSD e governar com eles, formando um governo exclusivo das esquerdas.
OS COMUNISTAS E A FRENTE PROGRESSISTA
O governo Goulart chegou ao final de 1963 com a situação econômica em descontrole. O PIB registrou 1% de crescimento, enquanto a inflação alcançou o patamar de 78%. O empresariado não acreditava na capacidade do governo de conter o descontrole financeiro, enquanto o aumento dos preços e o desabastecimento de mercadorias castigavam os trabalhadores. O PSD, assustado com a radicalização do PTB e das esquerdas, aproximava-se da UDN no Congresso Nacional. Após o episódio frustrado de Goulart em obter poderes excepcionais com o estado de sítio, as direitas golpistas passaram a conspirar abertamente contra o governo, enquanto as esquerdas reunidas na FMP, com o apoio do PCB, aumentaram as críticas ao presidente de maneira agressiva. Goulart chegara ao final de 1963 isolado politicamente. Tratava-se de algo preocupante para a estabilidade do regime democrático.
O deputado trabalhista San Tiago Dantas, muito prestigiado nos meios políticos, percebeu o perigo que a radicalização política poderia causar para a estabilidade do regime. Com o objetivo de isolar a direita golpista, particularmente os grupos liderados por Carlos Lacerda e Ademar de Barros, e a esquerda radical agrupada na FMP e seu líder Leonel Brizola, San Tiago Dantas propôs a formação da Frente Progressista de Apoio às Reformas de Base.25 Dantas queria reagrupar as forças de centro-esquerda e isolar a conspiração direitista civil-militar. A base parlamentar da Frente Progressista seria o PTB, que não seguia a liderança de Brizola, o PSD e outros partidos de centro. As esquerdas cortejadas por Dantas para ingressar na Frente Progressista eram o PCB, Miguel Arraes e sindicalistas afastados da linha política do CGT.
Isolar a esquerda radical, desarticular a direita golpista e formar um forte grupo de apoio político de centro-esquerda garantiriam a continuidade do processo democrático e ainda permitiriam a aprovação das reformas de base. Essas eram as propostas políticas de San Tiago Dantas.
Leonel Brizola, em nome da FMP, rechaçou com veemência a proposta de Frente Progressista. Miguel Arraes preferiu apoiar a FMP. Concordando com Brizola, Arraes adotou a estratégia da pressão popular nas ruas sobre o Congresso Nacional para a aprovação das reformas. Além disso, ele concordava com as teses de Brizola e Prestes: Goulart deveria romper com o PSD e formar um governo exclusivo das esquerdas.26
Para que a Frente Progressista fosse de centro-esquerda, restava a adesão do PCB. Afinal, tratava-se do grande partido de esquerda marxista. No dia 18 de janeiro de 1964, os comunistas manifestaram-se sobre o programa proposto por San Tiago Dantas. Inicialmente, os dirigentes do PCB se mostraram céticos. Para participar da Frente Progressista seria necessária "uma recomposição do sistema de forças que constitui o atual".27 Diferente de Miguel Arraes, de Leonel Brizola e da FMP, os comunistas abriram negociações sobre a possibilidade de integrar a Frente Progressista.
No entanto, no início de março de 1964, Luís Carlos Prestes publicou texto em Novos Rumos. Afirmou ter mantido entendimentos com San Tiago Dantas, mas que, em termos programáticos, o PCB estava muito próximo das teses defendidas pela FMP. Para integrar a Frente Progressista, o PCB exigia a reforma agrária sem indenizações; a suspensão da remessa de lucros para o exterior e os pagamentos das dívidas com credores externos; estatização das empresas estrangeiras que atuavam nos ramos dos moinhos, fábricas de leite em pó e indústria farmacêutica; monopólio do câmbio pelo Banco do Brasil e das exportações do café; reajustes salariais pelos índices da inflação e participação dos sindicatos na indicação de diretores das empresas estatais; política externa independente, além da revogação de artigos da Lei de Segurança Nacional, reforma eleitoral, anistia aos sargentos que tomaram Brasília e a legalização do PCB, entre outras questões.28 Muitas das exigências de Luís Carlos Prestes implicavam modificações na Constituição, o que dependia do Congresso Nacional e não apenas da vontade de Goulart. As reivindicações de Prestes, na prática, inviabilizavam a participação do PCB na Frente Progressista.
Naquele momento, o líder comunista e Goulart já tinham entrado em entendimentos políticos. O comício de 13 de março na Central do Brasil estava sendo preparado. Como é consenso na bibliografia, o comício significou a aliança do presidente da República com as esquerdas (PCB, FMP e Miguel Arraes) e o movimento sindical (CGT). A proposta política do PCB de formação da Frente Única foi vitoriosa.
O GOVERNO DAS ESQUERDAS
Percebendo que a radicalização política impediria acordos entre o PTB e o PSD, Goulart optou pela estratégia exigida pelas esquerdas organizadas na FMP, pelo PCB, o CGT e por Miguel Arraes: o rompimento do governo com o PSD e a formação de um governo exclusivo das esquerdas. Organizado por um grupo de sindicalistas, o anúncio do comício de 13 de março de 1964 expressava a aliança do presidente da República com as esquerdas e o movimento sindical. Hércules Corrêa, representante do PCB no CGT, escreveu artigo em Novos Rumos: no comício, os "representantes das diversas correntes democráticas" exigiriam do presidente da República os seguintes pontos: reforma agrária, reforma bancária, reforma eleitoral, fortalecimento da Petrobrás, direito de voto aos analfabetos, soldados, cabos e marinheiros e anistia aos sargentos rebelados em setembro de 1963, entre outras medidas.29 As reivindicações de Hércules Correa demonstravam que as negociações entre as esquerdas (PCB, FMP e CGT) e João Goulart ainda estavam em andamento.
Desde dezembro, mas sobretudo nos primeiros meses de 1964, a posição do PCB mudou em relação a João Goulart. De forte opositor, tornou-se aliado. O presidente, finalmente, aceitou os termos do PCB, da FMP, do CGT e do grupo político de Miguel Arraes de formar um novo governo e promover uma 'nova política'. Em texto publicado em fins de fevereiro, Novos Rumos não escondia as conversações com Goulart sobre o governo de esquerda e o programa reformista: "É partindo dessa posição que os comunistas encaram os entendimentos políticos que hoje se processam no país ... para a formação de uma frente progressista".30
Os comunistas confirmavam os 'entendimentos políticos' com o presidente da República. Foi nessa conjuntura política, de aliança de Goulart com as esquerdas reunidas na FMP, o CGT e o PCB que o discurso anticomunista ganhou amplitude e repercussão na sociedade. A campanha anticomunista cresceu e encontrou ressonância na sociedade porque Jango estava, de fato, aliando-se às esquerdas.
No dia 17 de março, Luís Carlos Prestes falou na Associação Brasileira de Imprensa para cerca de mil pessoas. Sua análise da conjuntura política brasileira, 4 dias após o comício da Central do Brasil, permite conhecer a posição política dos comunistas em momento de grande polarização entre direitas e esquerdas. Para Prestes, o comício foi um acontecimento de grande e profundo significado para o país. "A significação política desse comício será verificada na prática nos próximos meses, talvez mesmo nas próximas semanas ou nos próximos dias".31 Segundo ele, as pessoas foram ao comício para "perguntar ao presidente da República se está disposto a colocar-se à frente do processo democrático e revolucionário que avança". A luta era pelas reformas, mas no horizonte estava o socialismo:
Nós, comunistas, desde 1961, temos sistematicamente lutado contra a sua política de conciliação, de compromissos com os imperialistas e o latifúndio. E justamente por isso, porque temos firmemente lutado contra a política de conciliação, não podemos deixar de manifestar nosso apoio a gestos do presidente da República que significam golpear a política de conciliação ... Hoje, lutar pelo socialismo é lutar pela vitória da revolução nacional e democrática, e acabar com os obstáculos que impedem o progresso de nosso país, é lutar pela expulsão de nossa terra dos monopólios imperialistas, é lutar pela revolução agrária. Temos consciência que é assim que estamos lutando pelo socialismo.
Depois de criticar a atuação do seu próprio partido pelo radicalismo esquerdista adotado desde 1947, Prestes afirmou que, a partir de 1958, com a "viragem política", o Partido Comunista elaborou "tática para chegarmos realmente ao poder revolucionário que almejamos". Desse modo, a meta dos comunistas "é o poder revolucionário", expulsando do Brasil as empresas norte-americanas e realizando a reforma agrária. Estas eram "as tarefas da revolução na etapa atual, porque levar ao fim as tarefas da revolução atual é abrir caminho para a etapa seguinte, é abrir o caminho para o socialismo em nosso país". Para Prestes, "é isso que chamamos de caminho pacífico". Ele alegou que é do interesse dos trabalhadores "chegar, sem insurreição e sem guerra civil, através das lutas de massas ... ao governo e ao poder revolucionário".
Prestes elogiou as iniciativas de Goulart na política externa e no apoio às lutas dos trabalhadores. Mas não poupou críticas à sua insistência em aliar-se ao PSD.
Parece, no entanto, que, a partir do fim do ano passado, o presidente Goulart começa a compreender que por esses caminhos não tem êxito, que sua política de conciliação, a sua preocupação de manter no governo representantes da cúpula reacionária do PSD, visando a ter maioria no Congresso, não leva a nada de positivo, porque essa maioria não lhe assegura nenhuma reforma, não lhe facilita nenhum avanço, nenhum passo adiante na solução dos problemas brasileiros.
A mudança de Jango veio em dezembro de 1963, afirmou Prestes, quando foi procurado pelo "coordenador político do presidente Goulart com o objetivo de organizar uma frente ampla". Prestes, publicamente, admitia que o presidente da República buscou entendimentos com os comunistas. Embora a frente proposta por San Tiago Dantas não fosse adiante, para Prestes o resultado foi a unificação das forças de esquerda no comício da Central do Brasil.
Os entendimentos para unificar as forças "patrióticas e democráticas" do país foi processo "demorado e difícil". Mas, de acordo com sua percepção, a "estruturação orgânica da frente única" de esquerda na política brasileira surgiu com
a Frente de Mobilização Popular, que agrupa as forças mais consequentes da frente única, da classe operária até aos militares patriotas, a intelectualidade, os camponeses, os estudantes. A FMP constitui como que um núcleo dessas forças mais consequentes e é possível que em torno dela, ampliando-a, outras forças se agrupem.
Prestes reconheceu a força política da FMP e sua importância na formação de uma Frente Única de Esquerda. Para ele,
a frente única avança, tende a se consolidar, esboçam-se já os elementos de uma certa estruturação para essa unidade, porque, depois dos entendimentos havidos, parece que chegamos a uma plataforma unitária que pode ser aceita desde o presidente Goulart, o deputado Brizola, o governador Arraes e as outras forças da frente única, até os comunistas.
O resultado desse processo de união das forças de esquerda foi o comício da Central do Brasil. Mas Luís Carlos Prestes reconheceu que o país, naquele momento, vivia sob crescente radicalização política entre direitas e esquerdas:
O comício determinou um aguçamento da contradição entre as forças patrióticas e democráticas, que estão com o presidente Goulart nas posições que assumiu, e as forças reacionárias e entreguistas que, efetivamente, tendem a unir-se. Estamos, portanto, diante de um processo de polarização de forças, e o presidente Goulart, que se apoiou nas massas para tomar essa atitude, diante da unificação das forças reacionárias, do desespero que será crescente dos reacionários, mais do que nunca necessitará do apoio do povo, do apoio popular para enfrentar a reação.
Prestes não desconhecia a crescente de radicalização política em curso e admitia a provável reação das direitas. Mas com o apoio popular, tentativas de golpe seriam derrotadas. Mais um motivo, portanto, para a formação de um governo exclusivo das esquerdas:
precisamos, efetivamente, de um outro governo. Justamente porque avança o processo de polarização entre patriotas e nacionalistas, de um lado, e reacionários e entreguistas, de outro, mais do que nunca é indispensável um governo ... apoiado na frente única, um governo constituído pelos dirigentes políticos dessa frente única.
Luís Carlos Prestes falava sobre acordos estabelecidos anteriormente com João Goulart e outros líderes de esquerda. Na edição de Novos Rumos da semana anterior ao golpe militar, o jornal defendia Goulart dos ataques vindos das direitas e informava aos leitores entendimentos ocorridos em Brasília e na Guanabara. Após reuniões com Goulart, o "Comando Geral dos Trabalhadores, a Frente Parlamentar Nacionalista, o PTB, os 'agressivos' do PSD, a 'bossa nova' da UDN, a Ação Popular, a UNE, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais, além de outras entidades, concordaram entre si no que se refere à formação da Frente Popular".32 Ainda segundo Novos Rumos, "participaram desses entendimentos o governador Miguel Arraes e o deputado Brizola". As conversações visavam a formação do programa da Frente Popular e recompor o governo: "Impor as reformas e constituir um novo Ministério, sem conciliações com os sabotadores das reformas, são problemas inseparáveis".
Ao final do governo Goulart, a proposta política dos comunistas foi vitoriosa. A Frente Única de Esquerda, nomeada de Frente Popular, passaria a governar o país, excluindo as forças políticas de centro, como o PSD. Mesmo sem maioria no Congresso, a Frente Popular realizaria as reformas pressionando os parlamentares com mobilizações populares comícios, greves e passeatas, entre outras ações.
O comício de 13 de março na Central do Brasil foi o primeiro de outros sete marcados para o mês de abril e que seriam realizados nas cidades de Santos, Santo André, Salvador, Ribeirão Preto, Belo Horizonte e Brasília. O último foi marcado para o dia 1o de maio na capital paulista, dando início a uma greve geral cujo objetivo era pressionar o Congresso Nacional a aprovar as reformas de base.
PALAVRAS FINAIS
Ao longo do governo Goulart, os comunistas elegeram suas estratégias e tiveram posições distintas. Na fase parlamentar do governo, o PCB ignorava o presidente da República. A João Goulart, os comunistas, mais do que críticos, expressavam desprezo e, por vezes, hostilidade. Na fase presidencialista do governo, os comunistas continuaram na oposição, mas passaram a cobrar dele o afastamento do PSD e a formação de um governo exclusivo das esquerdas, agrupando o próprio PCB, a FMP, o CGT e o grupo político de Miguel Arraes na Frente Única. A resistência de Goulart ao rompimento da aliança com o PSD provocou, nos comunistas, posições bastantes críticas.
O terceiro momento do PCB durante o governo Goulart teve início quando o presidente, desde fins de 1963, aproximou-se das esquerdas e se aliou a elas. A proposta de Frente Única dos comunistas foi vitoriosa. A partir desse momento, os comunistas passaram a apoiar o governo Goulart.
O golpe militar ocorrido nos dias 31 de março e 1º de abril interrompeu o processo em curso, resultando em ditadura. As primeiras iniciativas do governo militar, não casualmente, foram as de perseguir as esquerdas, particularmente trabalhistas e comunistas, e o movimento sindical.
NOTAS
Artigo recebido em 29 de julho de 2013.
Aprovado em 20 de setembro de 2013.
Referências bibliográficas
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- _______. Esquerdas no Panfleto. A crise política de 1964 no jornal da Frente de Mobilização Popular. Anos 90, Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, n.29, jul. 2009.
- _______. História e biografia: as escolhas de João Goulart. Cadernos AEL, Trabalho e política, Campinas (SP): Unicamp/IFCH/AEL, v.17, n.29, 2010.
- _______. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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- GOMES, Angela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: _______. (Org.) Vargas e a crise dos anos 50 Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
- RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira São Paulo: Ed. Unesp, 1993.
- SEGATTO, José Antonio. Reforma e revolução: as vicissitudes políticas do PCB (1954-1964). Rio de Janeiro, 1995.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Fev 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
29 Jul 2013 -
Aceito
20 Set 2013