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Ridícula incoerência?: raça e escravidão na imprensa ilustrada da corte - 1884-1886

Ridiculous Incoherence?: Race and Slavery in the Court’s Illustrated Press - 1884-1886

RESUMO

A imprensa ilustrada da corte da segunda metade do século XIX, além de divertir os leitores, participava do debate político. Mas como fazia isso? Este artigo oferece uma resposta a essa pergunta por meio da análise de uma única imagem, a qual, publicada na Revista Illustrada em julho de 1884, comenta os debates parlamentares sobre o projeto Dantas. Defendo que, por meio de uma bem urdida composição de elementos, a estampa produz um argumento falso, uma mentira deliberada. Com tal procedimento, faz um autoelogio visando distinguir o gênero de periodismo que praticava e seus autores, gente branca e alinhada com uma vertente do abolicionismo.

Palavras-chave:
Imprensa Ilustrada; Rio de Janeiro; raça; escravidão; mentira

ABSTRACT

The illustrated press of the court in the second half of the Nineteenth century, besides entertaining its readers, participated in the political debate. But how did it do so? This article offers an answer to that question through the analysis of a single image, which, published in the Revista Illustrada in July 1884, comments on the parliamentary debates about the Dantas project. I argue that, through a well-woven composition of elements, the print produces a false argument, a deliberate lie. With such a procedure, it makes a self-praise aiming to distinguish the kind of periodism it practiced and its authors, white people and aligned with a strand of abolitionism.

Keywords:
Illustrated Press; Rio de Janeiro; Race; Slavery; Lie

“Por isso vivo a rir!

Rio do mal como do erro, da hipocrisia como do crime.

E sou franco!”

(Mephistopheles, 1874MEPHISTOPHELES, Rio de Janeiro, n. 01, p. 02, 27 jun. 1874., p. 02).

1. TERRENO ABSTRATO

No dia 12 de maio de 1871, o Ministro da Agricultura apresentou projeto do governo imperial sobre a emancipação dos escravos. Nas palavras de Perdigão Malheiro, “jamais questão igual e de tal magnitude se tratou no parlamento brasileiro.” (Malheiro, 1871MALHEIRO, Perdigão. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, pp. 113-124, 12 jul. 1871., pp. 113-124). Os ânimos estavam exaltados. Nesse clima, o mesmo Perdigão Malheiro, reconhecida autoridade sobre a escravidão no Brasil e parlamentar por Minas Gerais naquela legislatura, subiu à tribuna da Câmara dos Deputados. Na sua fala, resumiu, de forma surpreendentemente explícita, o que estava em jogo para boa parte dos congressistas.

Segundo o jurista, “não se trata de resolver a questão da emancipação unicamente por um princípio de humanidade e de caridade”. Afinal, “não há hoje pessoa alguma que negue ser a escravidão contra os direitos dos homens, contra a humanidade, contra a religião de Cristo”. Por essa razão, concluiu que “neste terreno abstrato, a questão está vencida, é uma conquista da civilização [...] é uma conquista do cristianismo.” (Malheiro, 1871MALHEIRO, Perdigão. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, pp. 113-124, 12 jul. 1871., pp. 113-124. Grifo meu).

Malheiro estava satisfeito com a solução teórica. Ir além implicaria em “ofensa à propriedade”, o que iria gerar “falta de segurança, sobretudo na classe agrícola” (Malheiro, 1871MALHEIRO, Perdigão. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, pp. 113-124, 12 jul. 1871., pp. 113-124). Assim, ele dava forma nova à doutrina antiga: os direitos à propriedade e à segurança da elite branca prevaleciam sobre o alegado direito à liberdade de homens e mulheres negras1 1 A premissa senhorial de que o direito costumeiro à escravização ilegal deveria se sobrepor ao texto da lei de 07 de novembro de 1831 é uma das formas da mesma doutrina. Conferir Chalhoub (2012). . Uma coisa era reconhecer a desumanidade da escravidão; coisa distinta era tornar realidade este princípio:

Figura 1
Revista Illustrada, 1885REVISTA ILLUSTRADA , Rio de Janeiro, n. 424, p. 8, 31 dez. 1885., p. 08.

Apesar dos esforços retóricos de Malheiro, a lei do Ventre Livre passou. O pressuposto de que o direito positivo dos brancos deveria prevalecer sobre o direito natural dos negros, contudo, seguiu firme. A estampa acima, publicada no final de 1885, pouco após a aprovação de nova lei sobre o elemento servil2 2 Refiro-me à lei 3240, de 28 de setembro de 1885, mais conhecida como Lei dos Sexagenários. , é expressão contundente de que soluções teóricas para o problema da escravidão seguiam gerando tensões sociais e políticas. A sobrevivência da doutrina Malheiro contribuiu para tornar mais tensas as já bastante intensas relações entre escravos e senhores.

Mas imagens como essa são, por princípio, ambíguas. Por um lado, são traduções caricaturais de acontecimentos/debates concretos, por outro, permitem leituras que extrapolam referências mais imediatas (Hart, 2016HART, Katherine. James Gillray, Charles James Fox, and the Abolition of the Slave Trade: Caricatura and Displacement in the Debate over Reform. In: ROSENTHAL, Angela; BINDMAN, David; RANDOLPH, Adrian W. B. No Laughing Matter: Visual Humor in Ideas of Race, Nationality, and Ethnicity. Hanover: Dartmouth College Press, 2016. pp 76-103.). Neste caso, a piada dizia respeito a um plano de insurreição escrava arquitetado em oito fazendas de São Paulo marcado para explodir no próximo dia 26 de dezembro. O conluio, todavia, fora descoberto e logo abafado: “Conspiração sabida, é conspiração sufocada” (Crônica da semana, 1885CRÔNICA DA SEMANA. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 1, 27 dez. 1885., p. 1). Ainda assim, o Ministros da Agricultura, em parceria com o Presidente da província de São Paulo, enviou homens para garantir a segurança da região. A iniciativa seria, desta feita, tão desnecessária quanto descabida. Desculpa esfarrapada, segundo o cronista da Gazeta de Notícias, visando interferir nas eleições, marcadas para 15 de janeiro.

Para além da referência mais imediata do desenho, ele expressa preocupação constante de autoridades, políticos e senhores. A doutrina de Perdigão Malheiro e o esforço pertinaz de manutenção da escravidão e da precarização da vida de escravos, libertos e negros livres gerava tensões que assombravam a mente e atormentavam o coração da elite branca. Ao fazer troça com uma revolta escrava “sufocada”, a imagem punha em evidência que rebeliões escravas, uma preocupação e um perigo constantes, podiam servir a propósitos diversos, sendo por esta razão argumento aceitável para manobras políticas. Fosse preocupação real ou desculpa esfarrapada, elas estavam na cabeça de políticos e da classe senhorial3 3 O século XIX foi a época das revoltas escravas, que marcaram a experiência histórica dos habitantes do Brasil imperial, sendo fontes de preocupação e medo constantes das autoridades públicas. Conferir Reis e Gomes (2021). .

Mais do que informar historiadores sobre debates do passado, tais imagens eram parte ativa dos acontecimentos de seu tempo. Elas nos ensinam que a imprensa criava e alimentava polêmicas, levando para as ruas o que se passava no parlamento e em outras instâncias do Estado imperial. Eram múltiplas as formas como jornais e revistas interferiam nas discussões em curso. Em 1871, Andrade Figueira, escravocrata tenaz e incansável, reclamou em plenário da forma como parte de uma sessão da Câmara dos Deputados fora publicada no Jornal do Commercio. Segundo Figueira, a folha não cumprira o contrato firmado com o parlamento, de dar publicidade a “um resumo fiel do quanto se passa em cada sessão” (Figueira, 1871FIGUEIRA, Andrade. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, p. 40, 03 ago. 1871., p. 40). Os Deputados do império, como os de hoje em dia, tinham um olho em seus pares e o outro na imprensa. Além de travar batalhas entre si, a eles interessava que o “resumo fiel” dos acontecimentos lhes fosse de alguma forma favorável.

Outra história agitou a sessão da mesma Câmara do dia 20 de julho de 1885. O deputado Bezerra de Menezes denunciou o que qualificou de um “caso sério”, a requerer “providencias prontas em vista da sua gravidade.”. Segundo Bezerra, o gerente da folha do “partido abolicionista” Vinte e cinco de Março fora severamente agredido, “achando-se ferido gravemente na cabeça”. Para piorar, salientou que “a polícia se opõe ao inquérito”, ou seja, não tinha intenção de investigar. Seguiu-se acalorado debate. Para Francisco Belisário Soares de Souza, aquele era um tipo de acontecimento “muito comum no Brasil”, argumento encampado e engrossado por Felicio dos Santos, para quem a violência contra a imprensa era “ossos do ofício”. Bezerra de Menezes interpretou o descaso dos colegas: para eles, “[...] não faz mal matar um abolicionista.” (Menezes, 1885MENEZES, Bezerra. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, p. 08, 20 jul. 1885., p. 08). Esta pendenga revela como, naquele tempo, os riscos subjacentes ao trabalho na imprensa eram proporcionais à importância dela. Por isso, não eram incomuns atentados como o denunciado por Bezerra de Menezes, sendo alguns fatais (Kraay; Castilho; Cribelli, 2021KRAAY, Hendrik; CASTILHO, Celso Thomas; CRIBELLI, Teresa. Press, Power, and Culture in Imperial Brazil. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2021., p. 08).

A historiografia sobre a imprensa no Brasil dos Oitocentos busca, já faz tempo, desvendar as formas e os sentidos da sua participação política (Neves; Morel; Ferreira, 2006NEVES, Lúcia Maria Bastos P.; MOREL, Marco; FERREIRA, Tania Maria Bessone da C. História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A; FAPERJ, 2006.). Esta abordagem inevitavelmente nos leva à pergunta do como: Como a imprensa participava e dava forma aos debates e acontecimentos? Como selecionava seu conteúdo? Como o organizava? Sem a pretensão de responder definitivamente tais questões, neste artigo analiso um tipo específico de publicação periódica do império: os jornais de caricatura. Procuro participar do debate do como por meio de um exercício metodológico centrado em uma única imagem. Intrigante e enigmática, como eram aqueles desenhos, parte do modus operandi da imprensa caricata da corte emerge da imagem estudada. Minha tese é a de que a estampa falseou a realidade, mentiu deliberadamente. Fez parte do debate, portanto, através de uma calculada estratégia de dissimulação.

2. “ELES ABRAÇAM ESSA LEI COM ENTUSIASMO!”

Figura 2
Revista Illustrada, 1884REVISTA ILLUSTRADA , Rio de Janeiro, n. 387, p. 4, 31 jul. 1884., p. 04.

Publicada no número 387, edição de 31 de julho de 1884, da Revista Illustrada, o sentido desta imagem não é nada evidente. Há um conjunto amplo de dimensões e questões por ela propostas: Quem são o encasacados homens abraçados à enorme seringa? Por que, ao fundo, figuram agitados representantes da lavoura? Por que a seringa foi escolhida para representar a lei do Ventre Livre? Por que os escravos sustentam nos ombros os dois homens brancos? Por que os escravos estão seminus? E, finalmente, qual seria a “ridícula incoerência” afirmada na legenda?

Comecemos buscando respostas historiográficas. No Brasil, como no exterior, têm crescido o número de pesquisas sobre jornais ilustrados do século XIX, devotados ao humor ou não. Se há importantes avanços nos estudos sobre essa fonte, muitos dos seus enigmas e complexidades seguem a merecer mais atenção. Há estudos interessados em desvendar a lógica, as formas e os sentidos da sátira (Nery, 2011NERY, Laura. Os sentidos do humor: Henrique Fleyuss e as possibilidades de uma sátira bem-comportada. In: KNAUSS, Paulo et al. Revistas Ilustradas: modos de ler e ver no segundo reinado. Rio de Janeiro: Mauad, 2011. pp. 173-187.; Martins, 2011MARTINS, Ana Luiza. Desenho, letra e humor: estereótipos na caricatura do Império. In: LUSTOSA, Isabel (Org.). Imprensa, Humor e Caricatura: A questão dos estereótipos culturais. Rio de Janeiro; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011. pp. 519-534.; Saliba, 2002SALIBA, Elias Thomé. Raízes do Riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras , 2002.), ao passo que outros procuram desvendar os diálogos políticos e as dimensões sociais das caricaturas (Balaban, 2009BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888). Campinas: Ed. Unicamp, 2009.; Telles, 2010TELLES, Angela Cunha da Motta. Desenhando a nação: revistas ilustradas do Rio de Janeiro e de Buenos Aires nas décadas de 1860-1870. Brasília: Funag, 2010. ). Também o ofício dos caricaturistas interessa aos estudiosos (Romon, 2022ROMON, Aline Dell’Orto Carvalho. Être caricaturiste: le métier de dessinateur de presse à Rio de Janeiro (1844-1888). Paris: Le Poisson Volant, 2022. ), que têm revelado todo um complexo universo por detrás das folhas ilustradas, um dos índices do novo e do moderno no Oitocentos.

O caráter combativo dos jornais ilustrados, definidos nesta perspectiva como arma política, concentra outro conjunto de investigações (Maringoni, 2011MARINGONI, Gilberto. Angelo Agostini: a imprensa ilustrada da Corte à Capital Federal, 1864-1910. São Paulo: Devir Livraria, 2011.; Lopes, 2009LOPES, Aristeu Elisandro Machado. O Império do Brasil nos traços do humor: política e imprensa ilustrada em Pelotas no século XIX. Almanack Braziliense, São Paulo, n. 10, pp. 98-114, nov. 2009.; Vasconcelo, 2018VASCONCELO, Mônica. A campanha abolicionista na Revista Illustrada (1876-1888): Angelo Agostini e a educação do povo. Curitiba: Appris, 2018.). Esta é uma abordagem arriscada, uma vez que os estudos que seguem esse caminho por vezes cedem ao encanto da fonte. Ao darem muito crédito à forma como os semanários se autodefiniam, os autores reproduzem e sancionam a premissa resumida na epígrafe deste artigo. E havia muitas versões dela. Decerto a mais conhecida era a máxima latina ridendo castigat mores - rindo, castigar os costumes. Esse tipo de premissa conferiria duplo atributo àqueles semanários: um moral, o outro heurístico.

De um lado, jornais de caricatura seriam uma espécie de refúgio no qual princípios humanistas e cristãos - segundo os termos utilizados no tempo - ganhavam forma. Ao fazer do riso uma arma, teriam função política importante. Com o fito de criticar a corrupção, a desumanidade da escravidão e tantos outros desvios sociais, aquelas folhas seriam uma espécie de repositório de valores civilizacionais. Poderiam, nesse sentido, ser definidas como uma lente por meio da qual males seriam expostos e desvios revelados. Por isso, seriam um caminho para a verdade, uma evidência reveladora dela, dado terem um compromisso tanto com a precisão factual quanto com o significado mais profundo dos acontecimentos. Assim, a noção de que aqueles jornais travavam o bom combate os distinguiria em meio a uma sociedade e a uma imprensa corruptas e hipócritas.

Por isso, a qualidade de revelar a verdade seria característica conspícua dessa fonte. No caso da epígrafe deste texto, verdade se confundia com franqueza e honestidade, elementos distintivos, capazes de conferir honra àquelas folhas. Assim, do ponto de vista metodológico, entender a piada, interpretar corretamente as imagens seria caminho direto, sem desvios, de acesso ao mundo tematizado nos desenhos. Por ser tarefa ardentemente perseguida pelas folhas, elas seriam uma fonte confiável.

Acreditar no modo como as fontes se definiam não é procedimento de todo ruim, tampouco desprovido de bons fundamentos teóricos. Neste caso, vejamos o que a imagem em tela nos diria. A lei de 1871 teria se tornado bandeira política de escravocratas. Por essa razão, no lugar de concorrer para a gradual emancipação dos escravos, seria a nova forma de manutenção da escravidão. Por isso os dois políticos se agarram tão fortemente a ela.

O homem de barba era Andrade Figueira, aquele importante líder conservador e conhecido escravocrata que ralhou contra a suposta imprecisão do Jornal do Commercio páginas atrás. Militava no parlamento fazia tempo, sempre a apresentar resistência renhida a qualquer lei emancipacionista. O outro é Antônio Moreira de Barros, político liberal e presidente da Câmara naquela legislatura. Ambos se opuseram ao Projeto Dantas, apresentado ao parlamento em julho de 1884, buscando libertar sem indenização cativos de 60 anos ou mais e dar novo rumo ao processo de extinção do elemento servil. Os dois também defendiam a tese de que a lei do ventre livre havia resolvido o problema da escravidão, sendo por isso desnecessário e perigoso debater uma nova lei. Por esse motivo, o namoro dos diletos políticos com a lei do ventre livre seria uma “ridícula incoerência”, porque ambos se opuseram a ela na época em que estava sendo debatida no parlamento.

E pimba, o sentido do movimento dos dois Deputados emergiria: ao abraçarem a lei por eles outrora combatida, estariam sendo incoerentes, ridículos e hipócritas. E mais, faziam da lei do ventre livre um instrumento escravocrata, dissimulando a defesa renhida da escravidão em amor emancipacionista. A interpretação não é descabida, tampouco incorreta. No entanto, ela não esgota as possibilidades de interpretação da imagem, muito menos responde a todos os enigmas por ela suscitados. Numa palavra, essa nada confiável e escorregadia fonte escondia sentidos nada alvissareiros: ao mesmo tempo em que tripudiava de escravocratas, era uma das formas de produção e reprodução do racismo do tempo. Sigamos a escavação acadêmica.

A historiografia internacional é vasta. Dois aspectos interessam particularmente aos propósitos deste artigo: os estudos centrados na ideia de cultura visual, fortemente impactada pelo surgimento da imprensa ilustrada, e os usos e sentidos políticos de caricaturas, definidas como potentes instrumentos de produção e reprodução de discriminações sociais, e em especial raciais.

Com relação ao primeiro aspecto, muitos autores convergem para o argumento de que a imprensa ilustrada foi uma espécie de divisor de águas, alterando, em escala global, o modo como pessoas de estratos sociais diversos consumiam, entendiam e se relacionavam com imagens4 4 Para se ter uma ideia, em 1842 a tiragem da Illustrated London News era de 23 mil exemplares, ampliando-se para 130 mil em 1855. . Esse fenômeno, iniciado em fins do século XVIII e robustecido nas primeiras décadas do XIX, resultou em uma importante consequência: por terem se tornado objetos de desejo acessíveis, caricaturas e outros tipos de estampa passaram a constituir um acervo visual comum. Isso acontecia, em grande medida, porque uma mesma imagem era muitas vezes publicada em periódicos diversos, de países variados. De outro lado, havia formas semelhantes de produção das imagens. Mesmo não sendo iguais, eram semelhantes, formando um padrão visual comum e, como parte deste processo, um conjunto de referências semânticas da mesma forma próximo. E assim, públicos distintos, de várias partes do globo, se alimentavam de mesmas figuras, ou de figuras notadamente parecidas (Smits, 2020SMITS, Thomas. The European Illustrated Press and the Emergence of a Transnational Visual Culture of the News, 1842-1870. London; New York: Routledge 2020. ; Mainardi, 2017MAINARDI, Patricia. Another World: Nineteenth-Century Illustrates Print Culture. New Haven; London: Yale University Press, 2017.).

Este fenômeno está cada vez mais bem demonstrado. Entre suas muitas consequências, uma merece ser aqui destacada. Estudos buscam demonstrar como estampas, em especial as humorísticas, foram responsáveis por reproduzir, ampliar e até mesmo criar distinções e preconceitos sociais. É o caso das caricaturas de negros, judeus e outros grupos desenhados segundo critérios raciais do tempo (Odumosu, 2017ODUMOSU, Temi. Africans in English Caricature 1769-1819 - Black Jokes White Humour. London: Harvey Miller Publishers, 2017.; Swaminathan, 2019SWAMINATHAN, Srividhya. A World Inverted: Political Satire and the Proslavery Argument. Slavery and Abolition: A Journal of Slave and Post-Slave Studies, v. 41, n. 2, 10 jul. 2019, pp. 256-274. ; Rosenthal; Bindman; Randolph, 2016; Wood, 2013WOOD, Marcus. Black Milk: Imagining Slavery in the Visual Cultures of Brazil and America. Oxford: Oxford University Press, 2013.). Esse tipo de caricatura teria se espalhado pelo mundo, reforçando e criando estereótipos raciais, se tornando, assim, um poderoso aliado do processo de produção de desigualdades sociais e do racismo. Os modos através dos quais o humor caricato contribuía para diferenciar as pessoas pela via de argumentos raciais variava. Ora entravam em cena argumentos da ciência do tempo, notadamente o racismo científico, ora aspectos mais específicos, locais, ganhavam espaço. No que dizia respeito aos estereótipos raciais, tais distinções eram de certo modo naturalizadas. Mas, se as estampas eram comparáveis, decerto não eram iguais. Antes, cada uma guardava especificidades próprias do seu tempo e lugar. Sendo assim, como nossa imagem pode ser analisada à luz dos estudos produzidos fora do Brasil?

O desenho opera com um conjunto relativamente estável de referências visuais. Diria, sem receito de errar, que os leitores da Revista Illustrada reconheceriam sem esforço os elementos que o compõem. E mais, além de reconhecerem Andrade Figueira e Moreira de Barros, não tardariam a relacionar a figura dos políticos ao universo do cômico, do ridículo, de pessoas de pouca honra ou honra nenhuma. Sobre a enigmática seringa, a ausência de explicação revela ser ela também uma referência, visual ou não, conhecida do público dos semanários. Ao contrário de leitores do início do século XXI, eles provavelmente entenderam imediatamente a piada.

Com relação aos personagens negros5 5 Ao me referir às imagens de negros, não busco isolar a categoria raça, somente definir um tipo de imagem em particular. Cada vez mais os estudos inspirados pela interseccionalidade vêm demonstrando que isolar categorias de análise é procedimento simplificador e perigoso. Se a cor é categoria de análise fundamental, ela não pode ser trabalhada sem serem observadas classe, gênero, idade e condição - para o caso de sociedades escravistas. Para um panorama sobre os estudos da interseccionalidade, ver Henning (2015). , a mensagem, neste caso, é oposta ao sentido atribuído aos políticos. Apesar de pisados, injustiçados, mantinham postura firme, mas sofrida, seguindo com dignidade o difícil calvário da vida em cativeiro. E, apesar de honrados, a despeito de demonstrarem alguma consciência da injustiça sofrida, a despeito da superioridade física frente aos magricelas políticos mal equilibrados sobre seus ombros, seguem inertes, sendo aparentemente incapazes de alterar seu destino. Nesse sentido, a tristeza, quiçá revolta, dos escravizados seria evidência inequívoca de inferioridade. Mas sua presença, central na caricatura, esconde e reúne um conjunto amplo de questões e enigmas. Com eles entra em cena o complexo tema da raça, e do racismo.

3. O FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO

A edição 387 da Revista Illustrada é uma peça abolicionista. Nem sempre os números de jornais ilustrados eram assim. Via de regra, eram desconexos, sem tema majoritário, sem que necessariamente as imagens dialogassem entre si, ou com os textos. Mas aquele era um número especial, feito com um propósito específico. Diferente dos demais, veio com quatro páginas de suplemento, todas preenchidas com desenhos.

Em meio a anedotas sobre temas variados, notícias sobre a publicação de livros, resenhas de peças teatrais, alguma poesia, um tema predominou na edição: a abolição da escravidão. O motivo do enfoque, além da explícita orientação abolicionista da Revista, foi o desdobramento recente do debate parlamentar do projeto Dantas. Após muito imbróglio e vários atrasos, o Imperador fez uso do poder moderador e dissolveu a Câmara. A revista exultou diante da decisão de Pedro II, interpretada como uma vitória de Dantas sobre os “negreiros” do parlamento:

Virou o feitiço contra o feiticeiro, e saíram os trunfos às avessas à Câmara dos Srs. Deputados.

O governo acaba, com efeito, de alcançar a mais brilhante vitória sobre a Câmara que tantos Ministros tem enterrado; o Sr. Presidente do conselho venceu o minotauro insaciável; e dominou enfim essa nova Margarida de Bourgogne, triunfando completamente na luta (Dast, 1884DAST, Julio. Correio Fluminense. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 387, 31 jul. 1884, p. 02., p. 02).

Entre o Minotauro, o “insaciável” devorador de gente, a mitológica figura antropozoomórfica presa em seu inescapável labirinto6 6 No Brasil do século XIX era comum o uso de referências a figuras históricas, bem como de referências mitológicas para a construção de metáforas políticas, ambas integrando o acervo cultural do público. Sobre o Minotauro, conferir Hard, 2004, pp. 336-377. , e a rainha adúltera da França do século XIV, a Câmara dos Deputados é a imagem do descrédito, da traição, da falta de virtude, do perigo. Logo, é inimiga da boa causa, um tremendo obstáculo supostamente vencido por Dantas, Teseu moderno abrindo caminho para, finalmente, deitar por terra a odiosa instituição servil.

Aquele seria um momento épico, um instante de ruptura histórica, de uma grande vitória da virtude. Tal expectativa, contudo, logo foi frustrada, se tornou amarga derrota. Após muitas idas e vindas, quem acabou caindo foi Dantas, e o texto aprovado, a lei 3270 de 28 de setembro de 1885, foi um triunfo da adúltera (Mendonça, 1999MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp , 1999. ). Mas, naquela altura dos acontecimentos, o semanário de Agostini, quer acreditasse na vitória, quer não acreditasse, fez seu papel: exagerou ao associar a dissolução da Câmara ao avanço iminente e irrefreável da abolição:

Figura 3
Revista Illustrada, 1884REVISTA ILLUSTRADA, Rio de Janeiro, n. 387, p. 01, 31 jul. 1884., p. 01.

Como mencionado, aquela era uma edição especial. Veio com 12 páginas, quatro a mais do que as oito de costume. Destas, oito eram desenhos, o dobro dos quatro usuais, sendo quatro qualificadas como suplemento, posicionadas no meio do número, nas versões digitais consultadas7 7 Consultei duas versões digitais, uma da Hemeroteca Digital Brasileira, a outra do Museu Imperial. A ordem das páginas é rigorosamente a mesma. . De qualquer forma, todos os desenhos estão ligados por um tema e contam uma história. Na sequência da capa aparece a imagem analisada neste artigo. Ela não é descrita como suplemento, não foi feita para completar a edição. Todas, de qualquer forma, estavam ligadas pelo debate da abolição. Assim, nossa imagem é uma espécie de capítulo, compõe uma curta narrativa visual, estando os seus significados ligados às demais. Por isso, parte do ridículo atribuído à posição dos dois políticos agarrados à lei de 28 de setembro de 1871 se explica pela enorme pedra “Abolição” da imagem da capa. Eles e o escravismo estariam prestes a serem esmagados pela abolição. Em seguida, na versão digital, estão as páginas chamadas de suplemento. A primeira é uma imagem sobre o partido conservador. Derrotado pela abolição, uma mulher branca de barrete frígio, muito semelhante à clássica representação feminina da liberdade, três políticos estão prestes a cair do alto da “rocha Tarpeia do descrédito”, em mais uma referência à antiguidade clássica. Entre eles, figura novamente o nosso velho conhecido Andrade Figueira. A seguir vem a crônica visual, presente na maioria dos números da Revista e de outras folhas ilustradas. Aqui, contudo, ela integra o suplemento. Nesta breve narrativa dos acontecimentos, feita por textos em diálogo com desenhos, a dissolução da Câmara domina a cena, na qual tanto o Imperador como Dantas são exaltados. Tece ainda homenagens à “imprensa diária, a verdadeiramente livre e independente”, delimitando assim um panteão de heróis da grande causa. Depois dela vem um desenho no qual uma mulher índia de seios expostos carrega uma bandeira com a palavra “Livre”. A mulher representa a província do Amazonas, recém-declarada território livre da escravidão, fato debatido na imprensa diária e no parlamento. As duas últimas interpretam os dias 28 e 30 de julho. Na primeira, o Senador Dantas aparece no alto de uma árvore armado com uma espingarda, com a qual protege um escravizado sexagenário posicionado no galho logo acima dele. A árvore é seu projeto sobre o elemento servil, a espingarda a dissolução. No chão, porcos selvagens, a oposição, ameaçam e acuam o Presidente do conselho e o escravizado de 60 anos. A imagem seguinte é a reprodução quase fiel da primeira, com a diferença de que Dantas dispara sua arma, tiro de “pólvora seca”, o que bastou para afugentar os “ferozes escravocratas”.

Que lição tiramos disso tudo? A principal é metodológica. Retirar imagens da imprensa ilustrada do seu suporte, as revistas, pode ser procedimento desastroso. Se é possível isolar cada desenho, é arriscado estudá-los desassociando-os inteiramente do seu contexto primeiro, a revista. Importa observar inclusive o lugar ocupado pelas imagens no interior das edições. Após ver a imagem da capa, e quem sabe dar uma boa risada dela, o leitor simpático à ideia de abolição depara-se com uma sátira sobre o apego de alguns políticos à lei de 28 de setembro de 1871. Abraçados, quase grudados na enorme seringa, os políticos são a imagem acabada do atraso e da derrota. Afinal, a capa trata a abolição como um quase fato consumado, dado o seu avanço inevitável, solapando a lei de 1871, que seria na imagem a nova face do escravismo. Esse apego seria a ruína do partido conservador, lançado ao precipício com o triunfo do abolicionismo. Com o golpe da dissolução, a liberdade que já imperava na distante província do Amazonas não tardaria a se espalhar para o restante do país. E os porcos da oposição negreira, mesquinhos e covardes, são vencidos por um tiro de pólvora seca, incapaz de ferir, mas suficiente para espantar os opositores do projeto. Porcos mesquinhos e covardes, qualidades associadas a Andrade Figueira e a Antônio Moreira de Barros.

Os diálogos internos, neste caso, são fundamentais. E não se limitam à conexão sequencial das estampas. Eles acontecem ainda com os textos. O artigo que abre a edição, assinado por Julio Dast, debocha da Câmara, exalta a atuação do Imperador, elogia Dantas, seu projeto e sua postura, além de fazer pouco caso de figuras como Andrade Figueira. Insere, portanto, detalhes ao que é sugerido pelas imagens, traduzindo, por meio do relato dos acontecimentos - relato nada imparcial, vale lembrar -, o conteúdo das caricaturas. O pacote, assim, é completo. Uma bem acabada peça abolicionista produzida pela interpretação e um posicionamento em relação ao ato do Imperador: “Dissolução neles, é o melhor meio de convencê-los.” (Dast, 1884DAST, Julio. Correio Fluminense. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 387, 31 jul. 1884, p. 02., p. 02).

4. UM BAITA DESAFORO

A seringa é elemento central e inquietante, difícil de interpretar. Trabalho que comentou a imagem argumenta se tratar de representação de uma vacina “que previne o fim da escravidão aos cativos sexagenários” (Pereira apud Vasconcelo, 2018VASCONCELO, Mônica. A campanha abolicionista na Revista Illustrada (1876-1888): Angelo Agostini e a educação do povo. Curitiba: Appris, 2018., n.p.). A explicação, ainda que plausível, soa um tanto especulativa e simplista. Afinal, seringas serviam a propósitos diversos. O tratamento da gonorreia era feito com o uso dela. Instrumento manipulado basicamente por médicos, não era necessariamente ou diretamente associado a vacinas. Além disso, os procedimentos de aplicação de vacinas, e mesmo o sentido delas, variavam no século XIX. Vacinas como a da varíola eram cercadas de desconfiança por parte da população, pé atrás não raro açulado pela imprensa. Na própria Revista Illustrada, edição do dia 01 de outubro de 1881, Ego reclama do Chefe de Polícia por ele ter emitido ordem aos subdelegados para intimar os cidadãos não vacinados de suas freguesias para receberem sua dose. Segundo o desconfiado cronista, vários médicos apontavam não ser a tal vacina eficaz, enquanto outros defendiam tese contrária. E conclui: “[...] não é uma questão bastante esclarecida para que entregue o meu braço à lanceta carregada de pus pestilento do facultativo.” (Ego, 1881EGO. Pequena Crônica. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 267, p. 06, 01 out. 1881., p. 6). Para Ego, tornar obrigatória a vacinação seria medida, no mínimo, exagerada, postura que, vale a ressalva, até fazia sentido naquele tempo, dada a ausência de evidências históricas e científicas - que, ao contrário, abundam nos dias de hoje - sobre a capacidade das vacinas de salvar vidas e controlar epidemias8 8 A própria medicina era assunto polêmico no século XIX, havendo distintas concepções de doenças e cura entre a classe médica e a população (Chalhoub et al., 2003; Queiroz, 2021). . Ressalte-se ainda o método da vacinação: no lugar da seringa, uma “lanceta carregada de pus”, imagem decerto repugnante para leitores do século XXI, que afasta qualquer relação direta entre vacina e seringa. A enorme seringa, portanto, é objeto inquietante, capaz de despertar leituras variadas nos leitores da Revista, mas a vacina não é uma delas.

Era, por essa razão, objeto talhado para a sátira:

À polícia, que tanto se tem incomodado com os requebros do ator Correa e com as alusões aos agentes da ordem, peço que dê providências sobre o maior escândalo da peça e em que até hoje ninguém pensou. Refiro-me à forma caricata por que são representadas as comissões sanitárias, a quem o Rio de Janeiro deve importantíssimos serviços e que são ali metidas ao maior ridículo. Aquela seringa especialmente é dum desaforo, que só nesta terra se consentiria (Um membro duma comissão sanitária, 1884UM MEMBRO DUMA COMISSÃO SANITÁRIA. Publicações a Pedidos - Do inferno a Pariz. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, p. 02, 25 abr. 1884, p. 02., p. 02. Grifo meu).

A peça que motivou a nota começou a ser encenada no Teatro das Novidades no dia 19 de abril. De autoria de Souza Bastos, a ópera fantástica Do Inferno a Pariz vinha fazendo tanto sucesso quanto produzindo polêmicas. Uma delas envolveu o aludido ator Correa, preso após a apresentação do dia 21 de abril, em razão de seus “movimentos quando cantava a Araúna”. Após ter sido avisado pelas autoridades policiais para diminuir os requebros, ele não somente teria se recusado a acatar a ordem, como “antes pelo contrário rebolara mais.” (Bastos, 1884BASTOS, Souza. Publicações a Pedidos - Do Inferno a Pariz. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, p. 03, 22 abr. 1884., p. 03. Grifo no original).

Assinada por “Um membro de uma comissão sanitária”, a reclamação informa ser a seringa objeto utilizado para fazer caricatura de médicos e da comissão sanitária. As opiniões sobre os integrantes dessas comissões, presentes em cada freguesia da cidade, não deviam ser as melhores. Afinal, aqueles senhores viviam a azucrinar a vida de moradores e donos de cortiços e hospedarias. Sempre a exigir todo tipo de medidas voltadas para melhorar as condições de higiene e salubridade das habitações populares, ordenavam desinfecções de cômodos ou latrinas, pinturas e outras pequenas obras. Isso para não mencionar os casos de fechamento de quartos ou até de estabelecimentos inteiros. Não parece descabido imaginar serem os tais integrantes das comissões pessoas temidas e odiadas, logo, alvos preferenciais de pilhérias a correrem à boca pequena pelas ruas da cidade. Por isso, não espanta que a paródia sobre os integrantes das comissões tenha caído nas graças do público (Primeiras representações, 1884PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES - Teatro das Novidades - Do inferno a Pariz. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, p. 02, 21 abr. 1884., p. 2), alimentando ainda mais a ira do autor da nota acima reproduzida. Sua atenção, de qualquer modo, voltou-se para a seringa e para o “desaforo” por ela provocado. Infelizmente, não posso entrar em detalhes sobre isso, posto não ter localizado a peça. De qualquer forma, o objeto serviu para criar uma cena ridícula, uma caricatura capaz de indignar o anônimo integrante da comissão. A tal seringa, assim, não era ela própria o alvo da piada, mas uma forma de ridicularizar integrantes da comissão sanitária. Era um símbolo a informar a desconfiança da população a respeito de médicos e dos agentes de saúde.

Na imagem aqui analisada, a enorme seringa, da mesma forma, serve para caricaturar os Deputados que se agarram de forma um tanto atrapalhada, mas vigorosa, a ela. Serve para fazer mofa àqueles que dela se enamoravam. O tamanho exagerado, recurso comum em desenhos daquele tipo, evidencia a intenção cômica e sugere ser a lei ali representada meio ineficaz contra a doença da escravidão. Com isso, estimula a suposta desconfiança, quiçá ira, da população, com relação àqueles peculiares “agentes da cura”. A cena mistura e confunde políticos e médicos quando associa o instrumento dos doutores da saúde aos Deputados. Procura, com isso, contaminar os últimos com o mesmo tipo de escárnio devotado aos primeiros.

Relação estabelecida, restava provar ser a lei de 1871 inimiga da emancipação. A cena foi montada com este fito. Os dois escravizados estão presos ao instrumento. No lugar de inocular o remédio capaz de combater a doença, derrotar a escravidão, a lei/seringa seria uma espécie de pelourinho estilizado a manter atados o homem e a mulher negra aos grilhões do cativeiro. Não à toa, os políticos se abraçam ao corpo da seringa, enquanto o êmbolo mantém os escravizados presos e é impedido de se mover justamente por suas cabeças. O lugar no qual os escravizados e os políticos estão colocados em relação à lei, portanto, explica a ineficácia de tal lei. Tudo está às avessas na imagem.

Ademais, a relação entre doença e escravidão era algo bastante comum. Desde pelo menos o final da década de 1840, época em que se debatia o fim do tráfico atlântico de escravizados, os dois universos se confundiam. Alguns médicos acreditavam que a febre amarela, doença epidêmica que vitimou a população da corte sistematicamente a partir da década de 1850, foi trazida pelos africanos amontoados nos porões pútridos dos tumbeiros (Chalhoub, 2020CHALHOUB, Sidney. Posfácio. In: REGO, José Pereira. História e descrição da febre amarela epidêmica que grassou no Rio de Janeiro em 1850. São Paulo: Chão Editora, 2020.). À medida que o século avançava, abolicionistas definiam a instituição da escravidão como um cancro, doença que marcava e manchava a face da nação. Tudo isso parecia estar misturado na gigantesca seringa, objeto que permitia ao leitor optar em meio a um conjunto amplo de significados possíveis.

Assim, a seringa, quer representasse uma lei insuficiente ante o avanço irrefreável do abolicionismo ou a nova forma do escravismo, direciona a atenção para os personagens da cena: os políticos e os escravizados. Comecemos com os políticos.

4.1. Ridícula incoerência?

Se uma qualidade não poderia ser negada à classe senhorial brasileira, era a coerência. Foi tenaz, ousada e, por vezes, criativa na defesa intransigente da instituição servil. E seguiu decidida esse desiderato até o último suspiro do escravismo. Por isso, soa incoerente atribuir incoerência à postura de Andrade Figueira e Antônio Moreira de Barros.

O debate parlamentar que resultou na lei de 28 de setembro de 1871 foi tenso e acalorado, como já mencionado no início do artigo. Dele participou intensamente Andrade Figueira, que combateu o projeto do governo com unhas, garras e dentes. Nesse sentido, o lápis do autor da imagem foi preciso9 9 As imagens publicadas no número 387 da Revista Illustrada não foram assinadas. Isso era prática relativamente comum em jornais ilustrados. Os significados dela são algo incertos. No caso da imagem analisada neste artigo, a ausência de assinatura impede qualquer conclusão a respeito da sua autoria, dado que o principal artista e proprietário da Revista geralmente assinava seus trabalhos com a letra A, grafada em maiúscula, via de regra, posicionada no canto inferior direito da página. O que é possível afirmar, como boa dose de certeza, é que o conteúdo das imagens foi sancionado por Agostini, que pode inclusive ser o autor delas, uma vez que o teor das estampas é coerente com os desenhos assinados por Agostini e o estilo do traço também é condizente com o do artista italiano. . Vejamos os argumentos levantados por Figueira.

Na sessão da Câmara dos Deputados do dia 18 de julho, o Sr. Luiz Carlos argumentou em favor do aspecto central do projeto do governo: a liberdade do ventre. Defendeu o projeto afirmando que, ao libertar o ventre, o projeto não atentava contra a propriedade, pois libertava somente “os frutos que ainda estão na massa dos possíveis”. Atento, preciso e ferino, Figueira de imediato contra-atacou: “Matão a seiva.” (Figueira, 1871FIGUEIRA, Andrade. Anais da Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, p. 190, 18 jul. 1871., p. 190). A escravidão, nesse argumento, iria sangrar, perder força, padecer com a aprovação do projeto de Rio Branco, colega de partido de Andrade Figueira. Poucos dias antes, na sessão do dia 14 de julho, outra intervenção de Figueira. Discursava o Presidente do Conselho. Rio Branco apelava para a humanidade dos “nossos proprietários agrícolas”, que não iriam abandonar crianças somente por elas nascerem livres. Mais ainda, defendeu que acolher o fruto livre de mãe escrava era mais do que uma virtude; era um “preceito moral” de interesse da classe senhorial. Argumento astuto, esforço retórico assaz ousado, desses capazes de dar nó em pingo d’água. Mas Andrade Figueira não caiu na armadilha e emendou resposta curta e certeira: o projeto do governo converteria “caridade individual em caridade oficial”. Como isso, a virtude atribuída aos proprietários seria tornada “obrigação jurídica.”.

O que estava em questão, para Andrade Figueira e para a classe senhorial em geral, era a manutenção de uma prerrogativa. Deveria caber, segundo essa lógica, aos senhores, não ao Estado, a decisão sobre a liberdade dos escravos. Tornar a liberdade uma “obrigação jurídica”, um dever, uma imposição do Estado, faria com que parte importante do poder de mando dos senhores fosse reduzida. Afinal, o destino dos cativos estaria nas mãos do Estado. Numa palavra, a força moral do senhor feneceria. E, assim, a “seiva” do escravismo se enfraquecia, estaria mortalmente comprometida.

Naquela altura dos acontecimentos, a leitura de Figueira era precisa. O esforço retórico de Rio Branco não o convenceu. Mais do que isso, ele se empenhava em desmontar o edifício argumentativo do Presidente do conselho, tratando de expor o sentido e as consequências do projeto do governo para a classe senhorial. Importava, nesse sentido, menos a filigrana da lei, mas a defesa intransigente da escravidão, em especial do seu caráter privado, ou seja, sem qualquer tipo de intromissão estatal.

Anos depois da derrota de 1871, Figueira seguiu tenaz defensor do escravismo. Foi figura destacada no combate ao chamado projeto Dantas. Fez de um tudo no parlamento para impedir a tramitação do projeto do governo, sempre com seu estilo agressivo, cirúrgico e irônico. O texto apresentado pelo Presidente do Conselho, Manuel Pinto de Sousa Dantas, dava novo encaminhamento à emancipação dos escravos e definia, logo no seu artigo 1º, que o cativo de 60 anos ou mais “adquire ipso facto a liberdade”. Ou seja, liberdade sem indenização, um tipo de abolição, portanto. Alguns jurisconsultos chegaram a interpretar o projeto como um decreto do fim da escravidão, dado o princípio do statu liber, pelo qual a liberdade seria direito garantido pela lei, restando aos cativos apenas cumprir a condição de completar 60 anos (Pereira, 1887PEREIRA, J. Baptista. Da condição actual dos escravos especialmente após a promulgação da lei 3270 de 28 de setembro de 1885. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1887.).

Durante a tramitação na Câmara dos Deputados da proposta de Dantas, Figueira teria proferido, “em aparte”, uma “frase solene”: “- A lei de 28 de Setembro de 1871 foi a que legalizou a escravidão no Brasil” (O dia parlamentar, 1884O DIA PARLAMENTAR. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, p. 01, 25 jul. 1884., p. 01). A frase foi publicada na sessão “O dia parlamentar”, da Gazeta da Tarde, folha conhecidamente abolicionista. A passagem teria sido, segundo a folha, um ato-falho do chefe conservador, uma “confissão”, “verdade” dita “sem consciência disso e contra sua própria vontade” (O dia parlamentar, 1884O DIA PARLAMENTAR. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, p. 01, 25 jul. 1884., p. 01). O trecho foi então usado como uma espécie de bordão explorado na folha de Agostini e em declarações de abolicionistas para confirmar a ideia de que a lei de 1871 seria o novo pilar de sustentação da escravidão no Brasil.

O outro deputado da caricatura, o conselheiro Antonio Pereira de Barros, se destacou no início da tramitação do projeto Dantas. Liberal como o Presidente do Conselho, ocupava a presidência da Câmara. Logo após o projeto emancipacionista ser lido, no dia 15 de julho de 1884, apresentou sua demissão. Na lógica parlamentar do tempo, o pedido tinha significado claro: buscava dar forma a um voto de desconfiança. Caso a demissão fosse rejeitada, o gabinete estaria em apuros, pois seria sinalização inequívoca de que os Deputados não apoiavam o Presidente do Conselho e o seu projeto. Caso os colegas de Pereira Barros acatassem seu pedido, isso daria fôlego ao gabinete. Foi exatamente isso o que aconteceu, mas o placar foi extremamente apertado. Em uma Câmara de maioria liberal, era vitória a ser celebrada com parcimônia.

No discurso no qual apresentou a justificativa do pedido de demissão, Moreira de Barros ressaltou sua discordância com o polêmico art. 1º. E sua discordância não parava por aí. Entendia que a simples apresentação do projeto tinha “efeitos funestos”. Afinal, a solução para o problema do elemento servil já estava em curso nas províncias. Proibição do tráfico interprovincial, construção de estradas de ferro, criação de fundos de emancipação e incentivo à imigração, entre outras medidas, estavam sendo adotadas em São Paulo, todas com o apoio de Moreira de Barros. Mas, sobretudo, a sua província havia empenhado o montante “de 100.000.000$ na confiança do respeito à lei de 28 de setembro” (Barros, 1884BARROS, Antônio Moreira de. Anais da Câmara do Deputados, Rio de Janeiro, p. 167, 15 jul. 1884., p. 167). Eureka! O autor da imagem acertou de novo. A oposição de Antonio Moreira de Barros se fundava na defesa da lei do ventre livre.

A atuação de Moreira de Barros, sua oposição sistemática ao projeto Dantas, rendeu-lhe a pecha de negreiro:

S Ex. o ilustre Sr. Conselheiro Antonio Moreira de Barros, antes de sua partida para a corte, mandou averbar na coletoria desta cidade a liberdade que concedera a mais 9 de seus escravos de nomes Custódio, Patricio, Maria Rosa, Joaquina, Josepha, Luiz Mina, Vicencia, Anastacio e Venancia.

Ascende ao número de 37 os escravos libertados nestes último (sic) tempos pelo benemérito estadista Sr. Conselheiro Dr. Antonio Moreira de Barros.

É por atos desta natureza que S. Ex. costuma responder aos seus acusadores, e aos que põe (sic) em dúvida os seus elevados sentimentos patrióticos e a pureza de suas intenções. [...] (O Sr. Moreira de Barros, 1885O SR. MOREIRA DE BARROS. Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, s.n. 27. fev. 1885., s.p).

A notícia apareceu primeiro no Paulista do dia 25. Logo repercutiu na corte. Nota eminentemente política, visava dar credibilidade ao Presidente da Câmara no início de mais um ano parlamentar. Afinal, a “pureza de suas intenções” não poderia ser mais evidente. Amigo da liberdade, restaria a seus acusadores o silêncio. Mais importante do que conceder liberdade aos seus escravizados, era tornar seu gesto público. Dissimular sobre a defesa intransigente do escravismo era estratégia para a defesa dele.

Quero crer que a estratégia de Moreira de Barros não convenceu muita gente. A imagem aqui analisada é evidência disso. Também a agressão por ele sofrida em maio daquele mesmo ano corrobora a interpretação (Publicações a Pedido, 1885PUBLICAÇÕES A PEDIDO - Nossa posição. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, p. 03, 02 mai. 1885., p. 03). Com os ânimos bastante acirrados, naquele instante qualquer defesa da lei de 28 de setembro de 1871 seria interpretada por abolicionistas como defesa renhida da escravidão:

A lei de 28 de Setembro de 1871, que os nobres Deputados hoje erguem como seu escudo, como garantia da ordem e liberdade, sofreu neste recinto os estigmas mais duros, mais estrondosos que se podem impor a um ato legislativo. Chamaram-na lei do infanticídio, lei do morticínio e do roubo, lei da conflagração e da miséria, lei da improbidade e da bancarrota, lei do servilismo proclamando a liberdade.

Agora estão claras as nossas posições: inspiram-se cada um na sua discrição e no seu patriotismo. Acompanhem os nobres Deputados, se o quiserem, as bandeiras negras do escravismo intransigente (Barbosa, 1884BARBOSA, Ruy. Anais da Câmara, Rio de Janeiro, p. 360, 28 jul. 1884., p. 360).

Nessa frase, o orador foi interrompido. O taquígrafo registrou “reclamações, sussurro” no plenário da Câmara, enquanto apartes eram trocados. A fala do deputado Ruy Barbosa aconteceu no dia 28 de julho de 1884BARBOSA, Ruy. Anais da Câmara, Rio de Janeiro, p. 360, 28 jul. 1884.. O leitor atento a datas há de ter notado que ela precede em apenas 2 dias a publicação da edição da imagem analisada neste artigo. Logo, o contexto político da fala era o da iminente dissolução do parlamento. A lembrança da lei de 1871 e o combate que sofreu no parlamento era, portanto, meio de defender o projeto Dantas, bem como o gabinete por ele presidido. Ao apontar semelhanças na tramitação de ambas as leis, Ruy Barbosa defendia a importância da primeira no início dos anos de 1870 e a relevância do novo projeto no meio da década de 1880.

De certo modo, é também isso que faz a imagem. A fala de Ruy Barbosa com certeza serviu de inspiração para o artista responsável pelo desenho aqui analisado. Há uma sutileza na imagem e no discurso que é preciso sublinhar. Tanto em 1871 como em 1884 o “escravismo intransigente” se opôs a qualquer forma de intervenção estatal nas relações privadas da escravidão. E mais, em ambos os instantes se defendeu renitentemente a escravidão. Se os meios não eram exatamente os mesmos, eram por certo semelhantes. Logo, como afirmei na abertura dessa parte do texto, sobrou coerência na atuação dos defensores da escravidão, quer fossem eles do partido liberal, quer fossem do conservador. O princípio seguiu o mesmo: combater novas leis que ampliassem a intervenção do Estado nas relações da escravidão. Em 1884, seguir esse desiderato era abraçar com força a lei de 1871. Assim, aquilo que o autor da imagem chama de “ridícula incoerência” nada mais é do que um comportamento esperado, robustamente coerente. E quero crer que nosso artista estava plenamente ciente dessa operação, ou seja, ele mentiu deliberadamente.

Se alguém está convencido desse argumento, resta tentar entender o porquê da mentira.

5. DOIS ATLAS NEGROS

Um último detalhe da imagem precisa ser trabalhado. Os dois escravizados, uma mulher e um homem, ocupam um lugar estratégico. Presos à enorme seringa, sustentam sobre os ombros os ridículos Deputados. Estes, apesar de agarrados à seringa/lei, dependem, para permanecer de pé, dos dois cativos. São a base de sustentação, o chão dos dois políticos. Não sei dizer se o ridículo é construído mais pela dependência dos cativos ou pelo abraço apaixonado à enorme seringa. O leitor que chegue às suas próprias conclusões. Mas sei que o contraste entre os escravizados e os Deputados constrói boa parte do sentido da cena.

Outra vez temos mais de uma interpretação possível. Um leitor com alguma erudição em referências clássicas quiçá poderia ver nos cativos uma versão estilizada da figura do deus Atlas, aquele que fora por Zeus condenado a sustentar o mundo nas costas. Afinal, ali o mundo da escravidão era literalmente sustentado pelos escravizados. Além disso, podemos ver nesses personagens a ideia acabada da virtude e da força. Além de corpos fisicamente robustos, com músculos bem desenhados, ambos estão firmes em seus postos, a sustentar os responsáveis por seu cativeiro. Cientes da situação, como fica evidente pela cabeça baixa da mulher e o olhar firme do homem, não arredam o pé, mesmo detendo o poder de derrubar os Deputados com um simples movimento de corpo. Copos seminus, como na arte clássica, outro elemento da oposição entre eles e os Deputados.

Construir a imagem do escravo fiel e pacífico era estratégia abolicionista conhecida. Dependia, em grande medida, da certeza de que os negros eram confiáveis, ou seja, poderiam viver em liberdade sem que isso significasse a destruição do Estado, o argumento de parte dos abolicionistas (Nabuco, 1883NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Londres: Typographia de Abraham Kingdon e Ca., 1883.). Numa palavra, era esta uma das premissas fundamentais da luta para transformar a vitória “abstrata” celebrada em 1871 por Perdigão Malheiro em realidade. Defender que o direito à liberdade dos negros não era menos importante do que o direito à liberdade, à segurança e à propriedade da classe senhorial era movimento ousado, dependente da garantia de que os cativos eram merecedores deste direito e de que o fim da escravidão não seria a ruína da lavoura. Assim, a nobreza dos escravizados garantiria a possibilidade do encaminhamento seguro do fim da escravidão. Por isso também importava expor os sentimentos dos escravizados: estivessem cansados, revoltados, tristes ou desiludidos, os dois personagens negros da imagem expressam sentimentos, revelando assim alguma consciência. É verdade que expressam sentimentos distintos: o homem mantém a cabeça firme, com um olhar altivo para o vazio, ao passo que a mulher tem a cabeça baixa, como que derrotada. No modo de entender as coisas do artista, a passividade de um homem negro era sinal de força e tenacidade, ao passo que, para uma mulher negra, expressava fragilidade, reação quiçá apropriada, segundo nosso dileto desenhista, para uma mulher. Neste caso, a cor e a condição são categorias que unem os personagens, enquanto o gênero os diferencia. E essa diferença, mesmo que distorcida pelo artista italiano, segundo a miopia característica dos olhares brancos sobre pessoas negras, foi registrada na estampa. De qualquer modo, importa salientar que, a despeito dos seus sentimentos, eles não derrubam os Deputados, permanecem firmes, diria mesmo fiéis, aos seus lugares.

Mas a imagem vai além. Como uma espécie de tapa na cara dos escravistas, tapa sem luva de pelica, os personagens negros são desenhados como sujeitos melhores dos que os escravocratas brancos. O racismo implícito nessa relação chama a atenção. Afinal, a suposta superioridade dos negros do desenho fazia deles pessoas melhores do que os defensores da escravidão. Estes eram pessoas detestáveis e ridículas, de maneira que não era lá uma grande vantagem serem os escravizados pessoas melhores do que gente daquele jaez. Ao mesmo tempo, por serem o oposto do ridículo, incapazes de violência, mesmo detendo o poder para isso, os dois escravizados seguem dependentes de alguém para lhes guiar o caminho. E assim, submissos que eram, submissos seguiriam. À liberdade concedida corresponderia gratidão e subalternidade.

E essa não era a única forma como personagens negros apareciam na Revista Illustrada, ou na imprensa ilustrada em geral. Via de regra, jornais de caricatura eram brancos. A esmagadora maioria dos personagens estampados naquelas páginas não eram negros. Para se ter uma ideia, localizei apenas 287 imagens com personagens negros nas páginas da Revista entre 1875 até 1898. Dessas, em 260 casos personagens negros ocupam lugar destacado, como na imagem aqui analisada. Esses números, apesar de imprecisos, são expressivos. Numa conta simples, para o período da sua existência, o semanário publicou cerca de 4416 imagens, logo, em somente 6,4% figuravam personagens negros. Esse cálculo, por várias razões, é precário. O número de personagens negros da Revista não era estável, oscilando de acordo com as circunstâncias, aumentando, por exemplo, quando algum tema relacionado à escravidão ganhava relevo. Na década de 1880, quando a propaganda abolicionista se intensifica, 186 imagens pipocaram, 64% do total, portanto. Ainda assim, a desproporção seguiu como regra, e, sempre é bom lembrar, estamos falando de um hebdomadário que se gabava abolicionista. De outro lado, o Rio de Janeiro era uma cidade negra. O censo de 1872 contou 122.253 não brancos divididos, na classificação racial do tempo, entre pretos e pardos. Os livre brancos e caboclos totalizavam 103.780. Mais da metade da população, portanto, era composta por pardos e pretos. Para além da baixíssima representatividade, a forma como os personagens negros eram desenhados variava. Em muitos casos, eram perigosos e incivilizados, outras vezes apareciam como vítimas de uma violência brutal. A nobreza associada aos dois escravizados do desenho foi, portanto, pensada, orientada por racionalidade política precisa.

E assim chegamos a uma síntese possível do procedimento de jornais ilustrados, em especial da Revista Illustrada. Eles manipulavam minuciosamente os dados à sua disposição. Atribuíam sentido de forma um tanto ousada e algo dissimulada. Mentiam dizendo a verdade, dado que nada do que está na imagem é propriamente falso. Mas a composição constrói um significado distorcido. O que a imagem aparentemente busca fazer é desacreditar tanto os liberais como os conservadores que se opunham ao projeto Dantas. Assim, fazem deles figuras ridículas, merecedoras do riso e do escárnio. Brancos piores do que negros. Talvez essa fosse das ofensas mais fortes em uma sociedade tão arraigadamente racista, como era a do Brasil do Oitocentos. Assim, buscavam desacreditar os Deputados escravocratas. Assim, defendiam o projeto emancipacionista que tramitava no parlamento. E assim reafirmavam, de forma um tanto arrevesada, a autoafirmada superioridade de alguns brancos, aqueles que buscavam fazer da causa dos negros a sua causa, se arvorando agentes da liberdade. Por isso o desenhista mentiu. Com essa bem urdida farsa produzia uma espécie de hierarquia moral da sociedade, na qual os detestáveis escravocratas ocupavam a base, no meio figuravam os escravizados e no ápice, os abolicionistas, entre os quais estava Agostini, proprietário da Revista e possível autor da imagem.

* * *

Caricaturas, como apontam muitos analistas, são um tipo profundamente sugestivo de arte. Por isso, os melhores estudos, aqui e alhures, usam e abusam do condicional. O personagem poderia ser isso, teria a intenção de fazer aquilo, iria reagir assim, ou assado. Desta feita, caricaturas possuem um conjunto sempre amplo, ainda que não ilimitado, de sentidos. Com isso em mente, resta perscrutar, sempre no condicional e à guisa de conclusão, a turba de agitados fazendeiros, com seus chapéus nas mãos, elevados acima das cabeças, e o pequeno repórter que observa sobranceiro a cena.

Senhores de terras e de gente, defensores intransigentes da instituição servil, cercam a seringa e os personagens a ela ligados. Numa postura ambígua, podem estar tanto acenando entusiasmados para os Deputados escravocratas, com sua infatigável disposição para lutar por seus interesses, como ralhando com eles. Confesso ter mudado de impressão sobre isso uma pá de vezes enquanto escrevia o artigo. Por um lado, me parece se tratar de ambiguidade intencional, mas cada vez mais creio que as feições dos representantes da lavoura não sugerem júbilo, antes protesto. Estariam, assim, insatisfeitos com o ridículo da cena, descontentes com a incapacidade dos Deputados de defender seus interesses. Se abolicionistas entendiam que a lei de 1871 não bastava para resolver o problema do elemento servil, a lavoura não acreditava que se agarrar à mesma lei era medida suficiente para salvar o escravismo. Por integrarem a cena, sua postura irascível seria mais um indício a confirmar que a onda abolicionista não tardaria a lavar todo o país.

Por outro lado, o repórter, personagem símbolo da revista, observa a cena com satisfação. Braços cruzados, lápis a tiracolo, riso sardônico no rosto. Um misto de sensação de dever cumprido se mistura com uma postura resoluta e um tanto distante. Do alto do morro, está distante da confusão e tem dela uma visão privilegiada. Do alto do morro, contempla orgulhoso o que seria a derrocada do escravismo e se distingue de todos os demais personagens. Confiante, é o único personagem branco da cena a ostentar postura digna. Arrogante, aparenta ter a certeza de ocupar papel importante no processo e de ser, como o lugar que ocupa na cena, superior a todos os demais integrantes dela e à sociedade da qual faz parte.

REFERÊNCIAS

  • BALABAN, Marcelo. Poeta do lápis: sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil imperial (1864-1888). Campinas: Ed. Unicamp, 2009.
  • BARBOSA, Ruy. Anais da Câmara, Rio de Janeiro, p. 360, 28 jul. 1884.
  • BARROS, Antônio Moreira de. Anais da Câmara do Deputados, Rio de Janeiro, p. 167, 15 jul. 1884.
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  • 1
    A premissa senhorial de que o direito costumeiro à escravização ilegal deveria se sobrepor ao texto da lei de 07 de novembro de 1831 é uma das formas da mesma doutrina. Conferir Chalhoub (2012CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).
  • 2
    Refiro-me à lei 3240, de 28 de setembro de 1885, mais conhecida como Lei dos Sexagenários.
  • 3
    O século XIX foi a época das revoltas escravas, que marcaram a experiência histórica dos habitantes do Brasil imperial, sendo fontes de preocupação e medo constantes das autoridades públicas. Conferir Reis e Gomes (2021REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Revoltas Escravas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras , 2021.).
  • 4
    Para se ter uma ideia, em 1842 a tiragem da Illustrated London News era de 23 mil exemplares, ampliando-se para 130 mil em 1855.
  • 5
    Ao me referir às imagens de negros, não busco isolar a categoria raça, somente definir um tipo de imagem em particular. Cada vez mais os estudos inspirados pela interseccionalidade vêm demonstrando que isolar categorias de análise é procedimento simplificador e perigoso. Se a cor é categoria de análise fundamental, ela não pode ser trabalhada sem serem observadas classe, gênero, idade e condição - para o caso de sociedades escravistas. Para um panorama sobre os estudos da interseccionalidade, ver Henning (2015).
  • 6
    No Brasil do século XIX era comum o uso de referências a figuras históricas, bem como de referências mitológicas para a construção de metáforas políticas, ambas integrando o acervo cultural do público. Sobre o Minotauro, conferir Hard, 2004HARD, Robin. Legends of Crete and Athens. In: HARD, Robin. The Routledge Handbook of Greek Mythology. London; New York: Routledge, 2004. pp. 336-377., pp. 336-377.
  • 7
    Consultei duas versões digitais, uma da Hemeroteca Digital Brasileira, a outra do Museu Imperial. A ordem das páginas é rigorosamente a mesma.
  • 8
    A própria medicina era assunto polêmico no século XIX, havendo distintas concepções de doenças e cura entre a classe médica e a população (Chalhoub et al., 2003CHALHOUB, Sidney, et al. Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. ; Queiroz, 2021QUEIROZ, Vanessa de Jesus. Um termômetro vivo da civilização: higiene pública e cólera-morbo na Gazeta Médica da Bahia (1866-1870). São Paulo: Editora Dialética, 2021.).
  • 9
    As imagens publicadas no número 387 da Revista Illustrada não foram assinadas. Isso era prática relativamente comum em jornais ilustrados. Os significados dela são algo incertos. No caso da imagem analisada neste artigo, a ausência de assinatura impede qualquer conclusão a respeito da sua autoria, dado que o principal artista e proprietário da Revista geralmente assinava seus trabalhos com a letra A, grafada em maiúscula, via de regra, posicionada no canto inferior direito da página. O que é possível afirmar, como boa dose de certeza, é que o conteúdo das imagens foi sancionado por Agostini, que pode inclusive ser o autor delas, uma vez que o teor das estampas é coerente com os desenhos assinados por Agostini e o estilo do traço também é condizente com o do artista italiano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2021
  • Aceito
    18 Mar 2022
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