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Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da memória

Resumos

Este texto foi apresentado como conferência de abertura do XXVI Simpósio Nacional de História, ocasião em que se comemoravam os 50 anos de fundação da Anpuh-Brasil - Associação Nacional de História. Ao mesmo tempo em que analisa os vários sentidos do comemorar, trata da relação entre as práticas de comemoração e o trabalho do historiador, faz uma reflexão sobre a relação entre memória, temporalidade e rituais de comemoração, e se apresenta também como um texto comemorativo, por isso sujeito às mesmas ambiguidades e antinomias que aponta em todo gesto de comemoração. Ele constitui, ainda, uma análise das práticas de comemoração e um texto comemorativo. Texto, portanto, fronteiriço e antinômico.

comemoração; tempo fronteiriço; memória


This paper was presented at the opening conference of the XXVI National Symposium of History, which commemorated the fiftieth anniversary of the founding of ANPUH: Brazil - the National History Association. At the same time as analyzing the various senses of celebrating, dealing with the relationship between the practices of commemoration and the work of the historian, which is a reflection on the relationship between memory, temporality and rituals of commemoration, this text is also a commemorative text, and thus subject to the same ambiguities and antinomies that it highlights in every gesture of celebration. It is at the same time, an analysis of the practices of commemoration and a commemorative text, and thus both border and antinomian.

celebration; border time; memory


MEMÓRIA

Conferência - Ritual de Aurora e de Crepúsculo: a comemoração como a experiência de um tempo fronteiriço e multiplicado ou as antinomias da memória

Ritual of Dawn and Dusk: celebration as an experience of a border and multiplied time or the antinomies of memory

Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Campus Universitário. BR 101, Km 1, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. durvalaljr@gmail.com

RESUMO

Este texto foi apresentado como conferência de abertura do XXVI Simpósio Nacional de História, ocasião em que se comemoravam os 50 anos de fundação da Anpuh-Brasil – Associação Nacional de História. Ao mesmo tempo em que analisa os vários sentidos do comemorar, trata da relação entre as práticas de comemoração e o trabalho do historiador, faz uma reflexão sobre a relação entre memória, temporalidade e rituais de comemoração, e se apresenta também como um texto comemorativo, por isso sujeito às mesmas ambiguidades e antinomias que aponta em todo gesto de comemoração. Ele constitui, ainda, uma análise das práticas de comemoração e um texto comemorativo. Texto, portanto, fronteiriço e antinômico.

Palavras-chave: comemoração; tempo fronteiriço; memória.

ABSTRACT

This paper was presented at the opening conference of the XXVI National Symposium of History, which commemorated the fiftieth anniversary of the founding of ANPUH: Brazil – the National History Association. At the same time as analyzing the various senses of celebrating, dealing with the relationship between the practices of commemoration and the work of the historian, which is a reflection on the relationship between memory, temporality and rituals of commemoration, this text is also a commemorative text, and thus subject to the same ambiguities and antinomies that it highlights in every gesture of celebration. It is at the same time, an analysis of the practices of commemoration and a commemorative text, and thus both border and antinomian.

Keywords: celebration; border time; memory.

Encontramo-nos todos, aqui, para comemorar. Estamos em plena noite, noite cheia de vida e de alegria. Mas nem todos se encontram aqui, nem todos puderam comparecer a esta comemoração. Se esta é uma noite de presenças festejadas e festivas, é também uma noite de ausências lamentadas e sofridas. Estamos em plena noite, e ela nos traz, além da presença nítida da vida, a presença fantasmática da morte. Viemos todos para um ritual que requer para sua efetivação a presença de uns e de outros. Na própria etimologia da palavra comemoração está presente a raiz latina comes, que significa companheiro, ou seja, a comemoração não é apenas trazer à memória, fazer recordar e lembrar algo ou alguém, é fazê-lo com um companheiro, com alguém. A comemoração é de saída um ato coletivo, uma ação que só se pode realizar acompanhado, uma ação que convoca e exige a presença de um outro. No entanto, a comemoração é também marcada por uma dupla ausência. A ausência de muitos companheiros que já não podem mais vir à comemoração e a ausência daquilo mesmo que se comemora, pois só sua ausência, que se busca tornar presente mediante o ato comemorativo, justifica a existência da própria comemoração. Estamos em plena noite, suspensos, pois, entre o passado e o presente, entre um passado que se quer fazer presente e um presente que, nesse mesmo gesto, tenta se fazer passado. Estamos no meio da noite, nos equilibrando na tênue linha que separa o lembrar e o esquecer. Só há comemoração se conseguimos esquecer, se não os mortos, pelo menos a dor da morte. Mas também só há comemoração se nos lembramos dos mortos e, ao deles lembrar, lembrarmos que a própria morte existe.

Viemos para um ritual que convoca e obriga a lembrança. A palavra comemoração vem do latim commemoratione, declinação de commemoratio, que remete, por sua vez, ao verbo memorare, que significa trazer à memória, fazer recordar, lembrar. A palavra comemoração tem, no entanto, um sentido quase imperativo, ou seja, o lembrar, o recordar ganha aí um sentido de necessidade, quase de obrigação. A comemoração seria a necessária evocação de uma memória, ela estaria ligada a fatos, a atos e a pessoas memoráveis, atos ou pessoas não só dignos de serem trazidos à lembrança, mas que deveriam ser lembrados, que não poderiam ou não podem deixar de ser recordados. Mas descobrimos todos, nesta noite, que seria impossível comemorar sem esquecer. Onde iríamos buscar a necessária alegria, o indispensável júbilo, como iríamos subjetivamente nos dispormos à comemoração sem que esquecêssemos a tristeza pela ausência dos colegas idos, sem que esquecêssemos o que essa comemoração significa de forma mais profunda: a passagem inexorável do tempo, a finitude de tudo e de todos, a perda como dimensão trágica do nosso existir?

Embora estejamos em plena noite, a comemoração é um ritual que tem similitude com a aurora ou com o crepúsculo. Ela instaura um tempo de exceção, ela constitui uma temporalidade em que luzes e sombras se encontram e se misturam. A comemoração instaura uma temporalidade fronteiriça, múltipla e indecisa entre a alegria e a tristeza, entre a vida e a morte, entre a lembrança e o esquecimento, entre o ser e o não ser, entre a presença e a ausência. Comemorar é instalar-se numa temporalidade em que raios luminosos e brumas espessas vêm disputar, numa espécie de bailado cósmico, a sua prevalência. Tendemos a pensar o ato comemorativo como aquele que deve lançar luzes sobre algo que está esquecido, recolhido ou alojado sob a zona opaca do passado. Mas nenhum ritual de comemoração pode evitar que, ao evocar e avocar, para o presente, seres, eventos e coisas do passado, eles tragam consigo fiapos de sombras, certo negror, uma nuvem escura que antepondo-se ao feérico do comemorativo, instaure um tempo indeciso e indecidível entre a claridade e a escuridão. Se tanto nas memórias, como na história, poderíamos construir tempos de claridade e tempos de escuridão, tempos de riso e tempos de pranto, o tempo da comemoração parece sempre estar no limite ou no liame entre a luz e a sombra, a alegria e a dor. É comum que as lágrimas aflorem em meio ao riso quando comemoramos. A sensibilidade comemorativa parece oscilar entre o efusivo do reencontro e a melancolia do desencontro. Pois comemorar é nos propormos a reencontrar o que já foi um dia, é nos dispormos a esse encontro com o outro que nos chama do passado, mas também é a constatação da impossibilidade desse encontro, é a afirmação de uma distância que não se pode transpor, distância temporal, espacial, cultural etc. Por isso mesmo, o ato de comemorar pode ter os tons de um raiar do dia, pode ser banhado progressivamente pela luz branca e brilhante que traz a abertura para um novo tempo, que vem cheia de promessas de um novo vir a ser, que ilumina um horizonte e o enche de expectativas a serem realizadas nesse novo tempo que se abre para a vida e se fecha para a morte. Mas pode também ganhar os tons do final do dia, do entardecer, pode ser banhado pela luz dourada e esmaecida que traz como única promessa o mergulho na noite, na escuridão, céu raiado de sangue que parece, em hemorragia, escorrer na abóbada do céu, talvez para lembrar os grandes crimes que, com certeza, em mais esse dia, em algum lugar, os homens cometeram. A comemoração pode ter o mesmo sentido que o do encerramento de mais um dia na vida, que reduz e por fim faz desaparecerem os horizontes, trazendo mais angústias que expectativas, quando tudo o que se pode desejar é o sono e o sonho, uma forma de morrer vivo e a única maneira de afirmar a vida enquanto se espera a sorte de um novo dia. Podemos dizer que a comemoração é um ritual que instaura certo estado de espírito, que convoca certa disposição da alma, que pode oscilar entre as alegrias da aurora e as melancolias e tristezas do crepúsculo, que os pode entrecruzar e baralhar, não deixando de reconhecer que a beleza, critério máximo com o qual deveríamos julgar a vida, está presente em cada um deles.

As comemorações são feitas de memórias, de lembranças e esquecimentos, mas também são feitas de sonhos, de esperanças e de investimentos no presente visando o futuro. A ligação entre comemorar e lembrar, entre comemoração e memória é não só de natureza etimológica, como de natureza política ou mesmo de natureza ética, desde a própria formulação da palavra na antiguidade. A comemoração está relacionada diretamente com os usos sociais, culturais e políticos da memória, é uma das modalidades não só de sua veiculação, mas de sua elaboração, de sua produção. O ato comemorativo não só se constitui num momento em que se instaura um dever de memória, não só se constitui num momento em que a lembrança é voluntariamente convocada, mas também se constitui num momento privilegiado para a proliferação de memórias, para a elaboração de versões daquilo ou daquele que se comemora. Pois o ato de lembrar é sempre realizado no presente, mas traz consigo uma expectativa de futuro. O que fazemos hoje, ao recordarmos a criação, há 50 anos, da Associação dos Professores Universitários de História, hoje a Anpuh-Brasil – Associação Nacional de História, não visa somente presentificar aquele momento. Com esta rememoração queremos construir significados que possam servir de inspiração e estímulo para que a entidade sobreviva mais 50 anos.

Entidade cinquentenária que, no entanto, desde os seus começos já prometia sua eterna juventude, pois já nasceu como moção. Sim, a Associação dos Professores Universitários de História (Apuh) nasceu de uma moção apresentada pelo professor José Roberto do Amaral Lapa quando da realização do I Simpósio de Professores de História do Ensino Superior, promovido pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e realizado na cidade de Marília, no período de 15 a 20 de outubro de 1961. Poderíamos dizer que Marília é o nome da mãe e José Roberto o nome do pai da moça, ou melhor, do moção. Moça apressada, pois como se pode ver, tratou de comemorar seu aniversário antes da data, trouxe para o inverno a comemoração de seu nascer primaveril, talvez para lembrar que em sua trajetória nem tudo foram flores, houve dias de frio e tempestades. Diz o nosso documento fundador, que neste ato e neste texto assume o lugar de monumento, pois será citado para servir como um artefato, como um aparato que visa provocar através da presença uma dada memória, uma dada herança, uma dada lembrança:

Considerando o isolamento em que trabalham os professores universitários de História, uns em relação aos outros.

Considerando a importância que, em nossos dias, assume o diálogo para os cientistas.

Considerando o êxito que, no gênero, têm logrado outras iniciativas, submeto à apreciação desta Mesa Redonda a proposta da criação de uma entidade que possa congregar os professores universitários de História. 1 1 Ata de fundação da Associação dos Professores Universitários de História (Apuh). Marília, 20 out. 1961. (Acervo da Anpuh- Brasil – Associação Nacional de História).

Ato fundador que parece já convocar a sua própria comemoração, pois se para comemorar se exige a presença de companheiros, o documento que convocava a criação de uma entidade para congregar os professores universitários de História já trazia como primeira justificativa o que seria a solidão desses profissionais, o seu isolamento. A depois nomeada de Associação Nacional dos Professores Universitários de História, que recebeu a sigla que a acompanha até hoje (Anpuh), apesar de ter se tornado posteriormente Associação Nacional de História, pois passou a congregar profissionais de História militantes nos ensinos fundamental e médio, já nascia como um espaço de encontro, de diálogo, diagnosticado, na ocasião, como fundamental para a prática dos cientistas, que os historiadores almejavam ser. Mas, paradoxalmente, comemorar hoje esse nascimento contra a solidão não é, ao mesmo tempo, a constatação de que ela não deixa de continuar presente entre nós? O ato de comemorar exige companhia, exige o estar juntos, mas ao comemorarmos algo que ocorreu no passado não convocamos ausências, não instauramos em nosso presente povoado a lacuna daqueles que nos deixaram? Aquela entidade cujas reuniões cabiam em uma sala hoje congrega verdadeiras multidões em seus Simpósios bianuais, e, se as somarmos com aqueles que acorrem aos encontros estaduais, diremos que efetivamente cumpriu a sua meta de retirar os historiadores do isolamento. Mas será que ao reunirmos quase 8 mil pessoas estamos menos solitários, menos individualistas, mais solidários? Não será mais dolorida a solidão em meio à tão densa população? Será que os nossos encontros não se tornaram desencontros?

Mas é inegável que os encontros patrocinados pela Anpuh se configuraram e se configuram como oportunidades de fazermos amigos e companheiros. Em seus Simpósios vemos os nomes que povoam as bibliografias e as bibliotecas da área ganharem rosto e corpo, se materializarem. Neles podemos abraçar e apertar as mãos de nossas referências bibliográficas, podemos almoçar e conversar com nossas notas de rodapé. Do mesmo modo que o discurso da história constrói figurações dos personagens do passado, os recria para usos do presente, os simula através da narrativa, os eventos da Anpuh têm esse condão de materializar, de dar carne e gesto à nossa erudição. Neste evento, no meio desta noite, como que por efeito de uma máquina enlouquecida do tempo, vejo diante de mim toda uma biblioteca, várias camadas de tempo, inúmeras versões do passado dispostas e disponíveis neste espaço. Aqui estão corpos e mentes que contam a história da Anpuh, aqui estão mãos e braços que se empenharam em sua construção, aqui há companheiros que valem por testemunhos, não são apenas documentos, mas monumentos de nossa entidade. Suas vidas e seu trabalho são inseparáveis da história da instituição, seus nomes estão fusionados com o da Anpuh. Com que alegria temos aqui, hoje, entre nós, um daqueles que viram nascer esta Associação, ele vem trazer não só o seu brilho como intelectual, mas um fiapo luminoso da aurora de nossa entidade: Francisco José Calazans Falcon. Se comemorar é reinventar auroras, é inventar começos, é construir marcos para as memórias, o professor Falcon, com seu testemunho, será fundamental para tornar possível nossa comemoração. Daquela reunião inicial, continuam ainda entre nós, embora não possam estar aqui esta noite, nomes referenciais em nossa historiografia que merecem ser reverenciados, já que a comemoração também remete a uma dimensão religiosa, sagrada, possui uma dimensão de culto, de celebração de algo ou alguém memorável, algo ou alguém que não se pode ou não se deve esquecer, que traz uma dada memória ao presente para ser objeto de reinscrição, de reinvenção consagradora, embora ela também remeta a uma dimensão dessacralizadora, profanadora, na medida em que convoca a se festejar: nomes como o de Aydil Ferreira de Carvalho Preis, Ataliba Teixeira de Castilho, Manoel Lello Bellotto, Maria Yedda Linhares, Norma de Góes Monteiro e Sônia Aparecida Siqueira devem ser ao mesmo tempo cultuados e festejados, pois lembram que a prática historiográfica se efetiva no fio da navalha entre o reverenciar e o dessacralizar. Aqui estão vários ex-presidentes e integrantes de várias diretorias. Outros não puderam comparecer, mas eles também são responsáveis por fazer esta entidade renascer a cada dia, a todos devemos nossa gratidão. E já que estamos falando de auroras, não poderia deixar de homenagear aquela que é pura luz, o calor acolhedor do fogo, a fagulha que sempre animou nossa entidade, que nos momentos de maior dificuldade colocou sua energia inigualável, como coloca até hoje, à disposição da construção de nossa Associação, aquela que, se comemorar só é possível entre companheiros, e se comemorar é festejar, ela não poderia faltar, pois é a nossa grande companheira: Ismênia de Lima Martins.

Outros, no entanto, tão importantes para a existência desta Associação e para a própria historiografia brasileira, já se perderam para além do crepúsculo. Na ata de fundação da Anpuh constam nomes de pessoas que se constituíram em pilares de sustentação da entidade e que foram decisivos para que a historiografia brasileira alcançasse a qualidade e o vigor que tem hoje: Eurípedes Simões de Paula, que presidiu e sustentou a instituição, muitas vezes às suas próprias expensas, auxiliado direta e permanentemente por sua esposa, Maria Regina da Cunha Rodrigues, durante 10 anos, a ele que é justamente designado como seu Patrono, a nossa mais viva homenagem; Alice Piffer Canabrava, Déa Ribeiro Fenelon, Eduardo d'Oliveira França, Francisco Iglésias, Hélio Vianna, Nícia Vilela Luz, Sérgio Buarque de Holanda e tantos outros a quem lembramos como nomes monumentais, que se impõem quase como monólitos, por tudo que fizeram para a institucionalização do saber histórico no Brasil, mas que não deixam de vir até nós nesta noite como um grande vazio, uma grande lacuna, impossível de vir a ser preenchida. Embora clichê e lugar comum, o discurso da comemoração não pode deles escapar, porque o comemorar trata justamente de construir narrativamente, pois toda comemoração implica a elaboração de um enredo, de um ritual, de uma articulação de signos que visam à produção de um dado significado, um lugar comum para todos os que comemoram habitar. O comemorar não só exige companhia, mas exige a construção de um espaço próprio e comum àqueles que comemoram. Não há comemoração sem partilha de sentidos, embora o comemorar também permita a divergência e o conflito. Pode-se tomar a comemoração por aquilo que ela é, um discurso, um texto que, como é comum a todos eles, não pode evitar a contradição e a possibilidade de diferentes leituras. Estou fazendo apenas uma leitura possível da memória de nossa entidade, em que dados personagens são escolhidos para entrar em cena, para ver o sol nascer, outros permanecem nas sombras, porque assim também procedemos quando escrevemos história, não podemos contar tudo, não podemos falar de todos. O nosso olhar e o nosso falar que são perspectivos, situados, colocados em dado lugar, fazem escolhas, privilegiam dados personagens e deixam outros submersos no silêncio e no esquecimento. A comemoração afronta a mesma tarefa e a mesma impossibilidade da historiografia, falar de algo ausente, pretender dizê-lo todo, mas sabê-lo fragmentado e fragmentário. Discursos que querem falar do real, mas que têm no real o seu limite. Nesses discursos o real é justamente o que permanentemente se esquiva e, ao mesmo tempo, convoca o dizer. Sedutor, ele nos convida, incita e excita a dizê-lo, ele nos provoca, mas como parceiro ou parceira caprichosos, ele se retrai, ele se distancia, ele se furta ao discurso que busca dizê-lo definitivamente. Embora se imponha como a lei do nosso discurso, dizer o real, falar do real, dizer a verdade do real, se a ele chegássemos seria a sua morte, seria o seu túmulo e seu enterro. Colocado no lugar de Deus, aquele que foi durante muito tempo o limite e o Ilimitado, o Real, a Verdade, é aquilo que ao mesmo tempo limita e torna ilimitado o discurso historiográfico e o discurso da comemoração, gêneros distintos da cultura histórica e distintos usos da memória. Só a possibilidade de dizer, sempre de forma distinta, o real, somente a possibilidade de matar versões do real para fazer nascer outras é o que permite que o discurso historiográfico prolifere indefinidamente. Perdoem-me, pois, aqueles que teriam outra versão da verdade e da realidade do passado de nossa entidade para contar, fiquem felizes, pois minha narrativa, como de qualquer historiador, é aurora, não crepúsculo dos tempos, ela abre a possibilidade de que novas narrativas venham a ser feitas, ela não tem a pretensão de encerrar, de fechar todas as entradas e saídas do passado, de deter a propriedade da luz, que se extinguiria para todos os outros que não partilhassem de sua claridade. Ela, como todo texto de historiador, acende uma vela em meio à escuridão dos tempos.

Se o real é, para nós humanos, essa escavação ao infinito, ele também é o inapelável, o irrecorrível, aquele do qual só podemos nos defender por meio da simbolização, da imaginação, da ficção, do sonho, da utopia, da atividade criadora. Inapelavelmente é real que o tempo, essa matéria abstrata à qual nos dedicamos, esse ser etéreo que se materializa em nossas narrativas historiadoras, nos levou outros companheiros, outros amigos queridos, que tiveram também importância decisiva para a afirmação desta entidade, que hoje só podem comparecer a esta comemoração como ausência e como verbo. Só as palavras, só a evocação de seus nomes e de seus feitos, atribuição social dada a nós historiadores, podem, por instantes, trazer até nós suas presenças amadas: Afonso Carlos Marques dos Santos, um entusiasta e uma constante na vida desta entidade; Alcir Lenharo, idealizador do Fórum de Pós-Graduação; Manoel Luiz Salgado Guimarães, o presidente que me antecedeu, criador do Prêmio Teses da Anpuh, que agora leva seu nome. Nomes que tornam mais patentes as antinomias da memória, as ambiguidades do gesto comemorativo, porque neles se misturam a alegria da lembrança, do reencontro, mesmo que fugaz, e a tristeza da constatação da perda. Por isso mesmo, não comemoramos apenas para lembrar, para recordar, para presentificar o passado, comemoramos também para fazer o luto, para ressignificarmos o que se passou. Cada comemoração é um esforço de, ao ritualizarmos um fato, um feito, um ser, construir mais uma camada de sentido que, a pretexto de aproximá-los, trazê-los até nós, sirva como mais um anteparo, como uma película protetora contra a realidade do objeto da comemoração, realidade que é a sua finitude, o seu ser passado. Comemoramos para nos proteger do que é comemorado, para poeticamente fazer da saudade esperança. Comemora-se o fim da Segunda Guerra Mundial para, a cada ano, tentarmos cicatrizar as feridas monstruosas e doloridas que ela deixou. Cada comemoração é uma tentativa de explicação, é mais uma chance para a compreensão daquilo que é o real: a dor, a tragédia, a morte, o acontecimento.

Mas se a comemoração, desde a antiguidade, convoca o discurso épico, aquele que instala eventos e pessoas no campo do heroico, neste discurso de comemoração não poderia deixar de nomear outros heróis de nossa entidade, particularmente as heroínas, já que a Anpuh foi sempre marcada pela atuação destacada das mulheres, espaço de cidadania feminina que foi por elas conquistado com muitas lutas e com muitos esforços. Como dissociar a Anpuh da atuação de Maria Helena Rolim Capelato, referência profissional e ética em nossa comunidade, a generosidade em pessoa? Da atuação de Raquel Glezer, que me deu a honra de aceitar ser vice-presidente da entidade na gestão que presido e que ajudou a pôr de pé este evento? Da atuação de Sylvia Bassetto, que esteve à frente da organização deste grandioso Simpósio que iniciamos hoje? Da atuação de Maria Stella Bresciani; Eni de Mesquita Samara; de Sandra Jatahy Pesavento; de Zilda Márcia Grícoli Iokoi; de Maria Lígia Coelho Prado; Lana Lage da Gama Lima e de tantas outras que não poderei nomear, mas que também constituem a alma dessa entidade? Mas a Anpuh também tem seus heróis masculinos: como pensar um Simpósio da Anpuh sem a alegria e presença de Luiz Carlos Soares; sem Edgar Salvadori de Decca; sem Arnaldo Contier; sem o trabalho de Holien Gonçalves Bezerra, José Miguel Arias Neto e tantos outros, que levaram esta entidade ao patamar em que se encontra? Como heróis e heroínas já se inscreveram no campo da imortalidade, na memória da entidade já figuram como monumentos.

Vicissitude do discurso comemorativo, ele tenta construir um tempo como intemporal, ele simula personagens que ganham ares de imortalidade. Como puderam notar os aqui presentes, este discurso que lhes profiro também é marcado pela ambiguidade, já que sabemos que todo discurso é situado, ele é fruto de um lugar de fala, ele é fruto de um dado contexto de enunciação. Este discurso que faço como historiador, mas ao mesmo tempo como presidente de uma entidade que neste ato inicia as comemorações de seu cinquentenário, não poderia deixar de ser este discurso tenso, bifronte, entre o discurso do historiador e o discurso daquele que comemora, entre um discurso com pretensões críticas e um discurso com pretensões celebratórias. O discurso comemorativo obedece a regras distintas do discurso historiográfico. As comemorações estão relacionadas ao campo da memória, são uma das maneiras da produção e reelaboração das memórias, já a história só pode ter em relação ao ato comemorativo a mesma postura de distanciamento crítico, de aproximação diferenciadora que mantém em relação às memórias. Embora não possamos negar que as efemérides, que as datas comemorativas têm servido de incentivo para a produção historiográfica, que em torno de dadas comemorações se adensa a produção de textos, de livros, a realização de eventos acadêmicos por parte da comunidade de historiadores, como fizemos hoje e faremos nos próximos dias, o que se espera dessa produção é que tome a comemoração como oportunidade para pôr em questão os próprios discursos e práticas que a sustentam, legitimam e constituem. O historiador seria o estraga prazer da festa, viria azedar o bolo, colocar defeitos na empada, envenenar o repasto dos convivas que partilham da ocasião solene. O historiador é aquele que lida criticamente com outro sentido que está associado à ideia de comemoração, ou seja, comemoração como celebração, como ato solene, sentido que a remete para o campo do sagrado, que tende a fazer da comemoração um ato de sacralização. Se estamos de acordo em que um dos usos privilegiados da história em nosso tempo é justamente aquele que faz dela um discurso dessacralizador, um discurso laicizador, um discurso que abriu mão da épica como modelo narrativo e que tende, cada vez mais, a ir buscar na sátira seu modelo de construção de enredo e de inteligibilidade daquilo que narra, torna-se um contrassenso uma historiografia comemorativa, já que o discurso do humor, da caricatura, da paródia, da ironia não se coaduna com o discurso da comemoração. A comemoração tende, justamente, a apagar o senso crítico, a comemoração convoca a adesão aos sentidos, aos discursos, ao imaginário, à simbologia que a justifica e a constitui. A comemoração convoca o discurso épico, o discurso que busca heroificar, quando a historiografia, em nossos dias, deixou de buscar ou criar heróis, ou pelo menos, busca agora heroificar personagens pertencentes às camadas populares, àqueles anteriormente dela excluídos como sujeitos: Mennochio não me deixa ser chamado de Pinóquio.

Como em relação ao aniversário de 50 anos da Anpuh-Brasil – Associação Nacional de História respondo afirmativamente a essas indagações, meu discurso se viu também cindido entre o discurso das auroras – que é o discurso comemorativo, discurso que enuncia começos e recomeços, que mesmo falando de coisas idas as trata como se viessem surgindo, como se um novo sol sobre elas se alevantasse, dando a tudo que é objeto de comemoração tons de amanheceres e despertares – e o discurso crepuscular da história – que fala sempre de algo que pretensamente foi concluído, de um tempo que se encerra no presente ou que se esgota em um dado marco de mutação, um discurso de fim de tarde, de fim dos tempos, que se posta sempre num pretenso fim para avaliar o que o constituiu, o que o produziu. Enquanto o discurso comemorativo abre o tempo para novos tempos pela adesão a tempos passados, por fazer do passado presente e oferecê-lo como futuro, o discurso historiográfico abre possibilidades de futuros outros à custa de dispersar o que já foi dito, de enunciar como passado o que foi enunciado anteriormente, decretando ser passado mesmo aquilo que está à nossa frente. Enquanto o tempo do discurso comemorativo é o tempo do mito, o tempo do 'era uma vez', portanto, um tempo que se imobiliza, que traz como promessa a repetição do mesmo, o retorno cíclico da semelhança e da identidade, o discurso historiográfico constrói temporalidades móveis, marcadas pelo eterno retorno da diferença, do vir a ser, do devir, pela dispersão das identidades e das semelhanças. Ao oscilar entre um discurso de historiador e um de mestre de cerimônias, minha conferência veio a ocupar esse lugar de fronteira, essa dobra entre o discurso da historiografia e o discurso da elegia, veio habitar a charneira entre o sarcástico e o encomiástico, veio em plena noite anunciar auroras e falar de crepúsculos.

Quiseram as musas, o fado, a providência, a natureza, o espírito, a razão, as leis, os princípios, o modo de produção, a luta de classes, a vontade, o contexto, as estruturas, as múltiplas determinações, o desejo, o acaso, ou qualquer outra figura de agência já utilizada pelos historiadores para tentar explicar ou compreender os eventos históricos, que estivesse na presidência da entidade quando ela realiza o evento de comemoração de seus 50 anos alguém que também nasceu em 1961, que, portanto, também comemora ou padece o seu cinquentenário este ano. Apenas quatro meses separam as nossas existências, que vieram a se encontrar, pela primeira vez, 20 anos depois, em 1981, quando da realização do seu Simpósio Nacional em João Pessoa. Ainda estudante de graduação, aquele encontro foi decisivo para minha carreira profissional e para me tornar definitivamente amante da História e admirador desta entidade. Embora estar cinquentão possa ser o começo do meu crepúsculo, espero que para a Associação cinquentona somente auroras estejam à frente. Quero finalizar agradecendo a todos que fizeram e fazem a Anpuh existir e que me conferiram a enorme honra e alegria em presidi-la nestes últimos 2 anos. Viva a Anpuh!

NOTAS

Texto recebido em 23 de dezembro de 2012.

Aprovado em 6 de fevereiro de 2013.

  • 2 Referência ao livro de GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • 3 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • 2
    A comemoração tem um sentido religioso, no sentido que convoca ao agrupamento, à formação de certa harmonia ou certa disposição coletiva em torno de dados enunciados e de dados rituais. As comemorações têm, por isso mesmo, uma enorme importância na construção da coesão social, elas são nucleares na constituição, veiculação e legitimação daquilo que Benedict Anderson chamou de comunidades imaginadas, como a nação, a região, a localidade.
  • 3
    Nesse contexto, o discurso historiográfico deve soar como uma música desafinada, como um discurso que vem fazer desafinar o coro dos contentes. Creio haver consenso entre os historiadores de que o papel a ser exercido pela historiografia quando das comemorações é o de problematizar as versões oficiais, os discursos e práticas que as sustentam e reproduzem, é procurar evidenciar as estratégias políticas e discursivas que sustentam uma dada comemoração, que interesses representa aquilo que se comemora e com que interesses se comemora, sempre trazendo a público a pergunta incômoda: o que se comemora é realmente digno de comemoração? Há realmente motivos socialmente relevantes para que se faça dada comemoração?
  • 1
    Ata de fundação da Associação dos Professores Universitários de História (Apuh). Marília, 20 out. 1961. (Acervo da Anpuh- Brasil – Associação Nacional de História).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      2013

    Histórico

    • Recebido
      23 Dez 2012
    • Aceito
      06 Fev 2013
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