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Avaliação eletroforética, cromatográfica e molecular da Hb D Los Angeles no Brasil

Electrophoretical, chromatographic and molecular valuations of Hb D Los Angeles in Brazil

Resumos

A variante de hemoglobina (Hb) D mais comum, Hb D Los Angeles ou D Punjab, é originada de uma transversão GAA->CAA no códon 121 da globina beta; essa mutação resulta na substituição do ácido glutâmico por glutamina na proteína. É a terceira variante de hemoglobina mais freqüente da população brasileira. Como as hemoglobinas D apresentam migração similar à hemoglobina S em pH alcalino, e com a hemoglobina A em pH ácido, são necessários vários testes para o correto diagnóstico. No presente estudo objetivou-se relacionar os diferentes procedimentos laboratoriais de rotina diagnóstica, além da análise molecular, para estabelecer o perfil de Hb D Los Angeles no Brasil. Foram analisados 47 indivíduos da população brasileira com provável Hb D Los Angeles, por vários procedimentos eletroforéticos em diferentes condições de pH, além da cromatografia líquida de alta pressão, e testes moleculares para confirmação da mutação. Foram encontrados quatro tipos de combinações de hemoglobinas: 42 indivíduos portadores de hemoglobina AD Los Angeles, dois indivíduos com doença de Hb S/D Los Angeles, dois indivíduos com Hb D Los Angeles e talassemia beta e um indivíduo com Hb D Los Angeles e Hb Lepore. Os indivíduos heterozigotos para D Los Angeles são assintomáticos, entretanto, em associação com outras variantes e talassemias podem apresentar graus variáveis de manifestações clínicas. Os resultados apresentados enfatizaram a necessidade da associação de várias metodologias para a identificação da Hb D Los Angeles, além de auxiliar na elucidação de combinações raras.

Hemoglobina D Los Angeles; diagnóstico laboratorial; hemoglobinopatias


The most common Hb D variant, the Hb D-Los Angeles, also know as Hb D-Punjab, originates through a GAA->CAA change at the 121 codon of the beta globin gene; this mutation results in the replacement of glutamic acid for glutamine in the protein. It is the third most common hemoglobin variant in the Brazilian population. This variant has electrophoretic migration in alkaline pHs similar to Hb S and identical migration to hemoglobin A in acidic pHs. Thus, several techniques are necessary for its correct diagnosis. The purpose of this work was to relate the different laboratorial techniques and molecular analyses to determine the profile of Hb D Los Angeles in Brazil. Forty-seven individuals from the Brazilian population with Hb D Los Angeles were studied. Multiple electrophoresis in several experimental conditions were carried out, in addition to high performance liquid chromatography (HPLC) and molecular analysis to confirm this mutation. Four compound heterozygotes were observed: 42 individuals heterozygous Hb AD Los Angeles, two with Hb S/D Los Angeles disease, two individuals with Hb D Los Angeles and beta-thalassemia and one with Hb D Los Angeles and Hb Lepore. The heterozygous hemoglobin D Los Angeles is asymptomatic, even though its association with other variants and thalassemias may present varying degrees of clinical manifestations. The results presented emphasize the significance of the association of different laboratorial techniques for D Los Angeles diagnosis, and help to elucidate rare combinations.

Hemoglobin D Los Angeles; laboratorial diagnosis; hemoglobinopathies


ARTIGO

Avaliação eletroforética, cromatográfica e molecular da Hb D Los Angeles no Brasil

Electrophoretical, chromatographic and molecular valuations of Hb D Los Angeles in Brazil

Ana R. Chinelato-FernandesI; Guilherme G. LeoneliII; Patrícia O. CalderanIII; Rute Blasi de OliveiraIV; Wilson Araújo da Silva Jr.V; Claudia Augusta HidalgoVI; Claudia Regina Bonini- DomingosVII

ILaboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas. Mestre em Genética pelo programa de

Pós-Graduação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Unesp – São José do Rio Preto-SP

IIMestre em Genética pelo programa de Pós-Graduação do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Unesp, São José do Rio Preto-SP

IIIFarmacêutica Bioquímica, responsável pelo Laboratório de Hematologia da Faculdade de Farmácia – Unic, Cuiabá-MT

IVBioquímica do Laboratório de Hematologia do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina – Fundação de Apoio ao Hemosc e Cepon – Fahece

VProfessor Doutor colaborador do Hemocentro de Ribeirão Preto-SP

VIMestre em Matemática Aplicada pelo Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Unesp, São José do Rio Preto-SP

VIIProfessora Doutora responsável pelo Laboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas do

Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Unesp, São José do Rio Preto-SP

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Ana Regina Chinelato Fernandes Ibilce – Unesp – Rua Cristóvão Colombo, 2265 – 15054-000 – São José do Rio Preto-SP Fone: (17) 2212392 E-mail: ar.chinelato@uol.com.br

RESUMO

A variante de hemoglobina (Hb) D mais comum, Hb D Los Angeles ou D Punjab, é originada de uma transversão GAA®CAA no códon 121 da globina beta; essa mutação resulta na substituição do ácido glutâmico por glutamina na proteína. É a terceira variante de hemoglobina mais freqüente da população brasileira. Como as hemoglobinas D apresentam migração similar à hemoglobina S em pH alcalino, e com a hemoglobina A em pH ácido, são necessários vários testes para o correto diagnóstico. No presente estudo objetivou-se relacionar os diferentes procedimentos laboratoriais de rotina diagnóstica, além da análise molecular, para estabelecer o perfil de Hb D Los Angeles no Brasil. Foram analisados 47 indivíduos da população brasileira com provável Hb D Los Angeles, por vários procedimentos eletroforéticos em diferentes condições de pH, além da cromatografia líquida de alta pressão, e testes moleculares para confirmação da mutação. Foram encontrados quatro tipos de combinações de hemoglobinas: 42 indivíduos portadores de hemoglobina AD Los Angeles, dois indivíduos com doença de Hb S/D Los Angeles, dois indivíduos com Hb D Los Angeles e talassemia beta e um indivíduo com Hb D Los Angeles e Hb Lepore. Os indivíduos heterozigotos para D Los Angeles são assintomáticos, entretanto, em associação com outras variantes e talassemias podem apresentar graus variáveis de manifestações clínicas. Os resultados apresentados enfatizaram a necessidade da associação de várias metodologias para a identificação da Hb D Los Angeles, além de auxiliar na elucidação de combinações raras.

Palavras-chave: Hemoglobina D Los Angeles; diagnóstico laboratorial; hemoglobinopatias.

ABSTRACT

The most common Hb D variant, the Hb D-Los Angeles, also know as Hb D-Punjab, originates through a GAA®CAA change at the 121 codon of the b globin gene; this mutation results in the replacement of glutamic acid for glutamine in the protein. It is the third most common hemoglobin variant in the Brazilian population. This variant has electrophoretic migration in alkaline pHs similar to Hb S and identical migration to hemoglobin A in acidic pHs. Thus, several techniques are necessary for its correct diagnosis. The purpose of this work was to relate the different laboratorial techniques and molecular analyses to determine the profile of Hb D Los Angeles in Brazil. Forty-seven individuals from the Brazilian population with Hb D Los Angeles were studied. Multiple electrophoresis in several experimental conditions were carried out, in addition to high performance liquid chromatography (HPLC) and molecular analysis to confirm this mutation. Four compound heterozygotes were observed: 42 individuals heterozygous Hb AD Los Angeles, two with Hb S/D Los Angeles disease, two individuals with Hb D Los Angeles and beta-thalassemia and one with Hb D Los Angeles and Hb Lepore. The heterozygous hemoglobin D Los Angeles is asymptomatic, even though its association with other variants and thalassemias may present varying degrees of clinical manifestations. The results presented emphasize the significance of the association of different laboratorial techniques for D Los Angeles diagnosis, and help to elucidate rare combinations.

Key words: Hemoglobin D Los Angeles; laboratorial diagnosis; hemoglobinopathies.

Introdução

As variantes de hemoglobinas foram estudadas extensivamente nos últimos anos. A hemoglobina D (Hb D) foi descoberta em 1951 por Itano e é a terceira variante de hemoglobina mais comum depois das hemoglobinas Hb S e Hb C.1,2,3 A Hb D apresenta mobilidade eletroforética similar à Hb S em pH alcalino e na posição da Hb A em gel de ágar em pH ácido.

A Hb D Los Angeles, também conhecida como D Punjab, é a mais comum das hemoglobinas D, sendo originada da transversão GAA®CAA no códon 121, (éxon 3) do gene da globina beta. Essa mutação resulta na troca do ácido glutâmico por glutamina durante o processo de tradução.4 Essa hemoglobina é descrita tanto em heterozigose como em homozigose, além da combinação com Hb S ou talassemias alfa ou beta. Os indivíduos heterozigotos e homozigotos são assintomáticos, enquanto os que apresentam associação com Hb S ou talassemia beta podem desenvolver anemia hemolítica de discreta a moderada.5

Apesar de ser possível a diferenciação pelos métodos eletroforéticos descritos acima, tais metodologias possuem limitações, uma vez que algumas variantes apresentam comportamento eletroforético similar, por possuir propriedades bioquímicas e/ou funcionais muito semelhantes, como é o caso das hemoglobinas D e S em pH alcalino.2,3,4,6,7 Desse modo, além da eletroforese alcalina, são necessários testes confirmatórios para o correto diagnóstico, como eletroforese ácida, cromatografia líquida de alta pressão (HPLC), focalização isoelétrica (IEF), eletroforese de cadeias globínicas e a utilização de técnicas de biologia molecular, como a reação em cadeia da polimerase (PCR), análise dos fragmentos de restrição de diferentes tamanhos (RFLP) e seqüenciamento.8

No presente estudo objetivou-se relacionar os diferentes procedimentos laboratoriais de rotina diagnóstica, além da análise molecular, para estabelecer o perfil de Hb D Los Angeles no Brasil.

Material e Métodos

Foram analisadas 47 amostras de sangue periférico, sendo 19 provenientes de indivíduos do sexo masculino e 28 do sexo feminino, com idades que variaram de recém-nascidos até 58 anos. Essas amostras, provenientes de sete estados do Brasil – RS, SC, SP, RJ, MT, MS e SE, foram enviadas ao Laboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas – Unesp. O sangue foi coletado em frasco estéril com anticoagulante EDTA a 5%, após consentimento informado. Para a determinação dessa variante, foram realizados testes de triagem, que consistiram de: resistência globular osmótica em NaCl a 0,36%,9 análise da morfologia eritrocitária a fresco10 e eletroforese alcalina em acetato de celulose utilizando-se tampão Tris-EDTA-borato em pH 8,5.11 Como procedimento de confirmação, foram realizadas as eletroforeses em ágar com tampão fosfato pH 6,2;12 de cadeias globínicas em acetato de celulose com tampão Tris-EDTA-borato, uréia e mercaptoetanol;13 focalização isoelétrica em agarose14 e cromatografia líquida de alta pressão (HPLC), com o equipamento Variant, da Bio-Rad, utilizando-se o kit de diagnóstico para talassemia beta heterozigota.

Para as análises moleculares, o DNA foi obtido dos glóbulos brancos através do método de extração fenólica,15 e o éxon 3 da globina beta foi amplificado através da reação em cadeia da polimerase.16 A seqüência de primers utilizada na reação de amplificação foi: Primer sense - CD1 5´ TGC CTC TTT GCA TTC TA 3´ e Primer anti-sense – CD2 5´TAG AAT GGT GCA AAG AGG CA 3´. Do produto amplificado, cinco microlitros foram digeridos com a endonuclease de restrição EcoRI por duas horas e trinta minutos e o produto da digestão submetido à eletroforese em gel de poliacrilamida para observação das bandas mutantes e/ou normais. O códon 121 apresenta um sítio de digestão para a enzima EcoRI no alelo normal, que é excluído no mutante D Los Angeles, permitindo a análise por PCR-RFLP. A digestão do alelo normal gera produtos de 296pb e 268pb enquanto o alelo mutante apresenta uma única banda de 564pb. Os casos duvidosos foram submetidos a reação de seqüenciamento.17 Na presença de associação com outras variantes ou talassemias, foram realizados testes moleculares por PCR-ASO, com kits mDx da Bio-Rad para confirmação.

Resultados

Os resultados obtidos nos procedimentos de triagem dos indivíduos investigados com suspeita de serem portadores de hemoglobina D Los Angeles estão relacionados na tabela 1. Observaram-se 80% dos indivíduos avaliados com resistência osmótica em NaCl 0,36% negativa. Alterações discretas quanto à morfologia eritrocitária foram descritas na maioria dos indivíduos. O perfil eletroforético dos heterozigotos, com uma fração hemoglobínica na posição de Hb A e outra semelhante à Hb S, foi encontrado na maior parte dos casos, com exceção de cinco amostras, que apresentaram perfil homozigoto para Hb S; três amostras com presença de Hb F e uma amostra com padrão homozigoto para Hb S além da presença de Hb F. A presença de Hb F e valores baixos de Hb A e da fração semelhante à Hb S na amostra AR-136 já era esperada por se tratar de um recém-nascido.

Alguns indivíduos, apesar de adultos também apresentaram frações na posição de Hb F. As doze amostras com presença de Hb H em eletroforese alcalina foram investigadas por metodologias específicas, apresentando resultados negativos para talassemia alfa. Em algumas amostras não foi possível a realização dos testes de resistência osmótica e morfologia eritrocitária devido à pequena quantidade de material enviado.

Nas análises eletroforéticas em pH ácido, a maioria das amostras apresentou perfil eletroforético de Hb AA, sugerindo variante do tipo D. Cinco amostras apresentaram uma fração na faixa de Hb F, e duas amostras o padrão de "doença de Hb S/D", ou seja, perfil homozigoto para Hb S em pH alcalino e do heterozigoto AS em pH ácido.

Na tabela 2 estão apresentados os resultados obtidos nas eletroforeses alcalina, ácida e de cadeias globínicas em pH alcalino. Todas as amostras analisadas apresentaram perfil eletroforético similar à Hb D em pH alcalino e ácido, e confirmadas como mutantes de cadeia beta pelo procedimento específico de análise de cadeias globínicas. Inúmeras variantes apresentam o padrão de migração similar às hemoglobinas do tipo D; entretanto, muitas são mutantes de cadeia alfa. Desse modo, a utilização da eletroforese de cadeias globínicas foi necessária para a identificação dessas variantes como do tipo D. É possível diferenciar a Hb G Philadelphia, que é um mutante de cadeia alfa da Hb Korle-Bu, mutante de cadeia beta. Ainda assim, não seria possível a identificação entre Hb D-Los Angeles e Hb Korle-Bu, pois as duas variantes apresentam as frações mutantes com o mesmo padrão de migração.

Na tabela 3 encontram-se os dados da análise por HPLC com o kit de diagnóstico para talassemia beta heterozigota (BTS) e equipamento Variant da Bio-Rad. Esse sistema identifica as Hb A2 e F como padrões quantitativos e permite a determinação das hemoglobinas variantes mais comuns, como S, C, D e E, em seis minutos de análise por amostra de sangue. A identificação dessas variantes é baseada em tempos de retenção específicos em coluna de cromatografia de troca iônica, identificadas em "janelas" previamente estabelecidas pelo sistema. Algumas amostras apresentaram pequenas frações de hemoglobinas reconhecidas como "desconhecidas" (Desc. 1, 2 e 3) pelo aparelho. Essas frações possivelmente são decorrentes de arrastes de amostras anteriores. Três amostras, que na eletroforese alcalina apresentaram uma fração pequena de Hb F, mostraram valores percentuais aumentados dessa hemoglobina quando avaliadas pelo HPLC. Os valores médios de Hb A0 estão próximos de 50%. Huisman18 encontrou quantidades elevadas de Hb A2 em indivíduos portadores de hemoglobinas do tipo D. Em nossos achados, a maior parte das amostras apresentou valores abaixo dos considerados normais, fato também mencionado por Dash.19 Alguns indivíduos, entretanto, apresentaram valores mais elevados, com destaque para a amostra AR-156. Os valores da Hb A2 e Hb D dessa amostra tomados juntos, associados a outros procedimentos de análise, indicam a interação entre Hb D Los Angeles e Hb Lepore. Fato que merece destaque diz respeito a algumas amostras que migraram na janela de Hb S, apesar dos procedimentos anteriores indicarem a presença de Hb D. Nota-se, entretanto, que os valores do tempo de retenção encontrados nessas amostras – 4,34; 4,35 e 4,36 – estão próximos ao limite máximo estabelecido pelo fabricante para a janela de Hb D (4,33) e próximos ao limite inferior da janela de Hb S. Destaca-se também o valor percentual da amostra AR-199 (87,6) na janela de Hb S, que sugere a interação de Hb D e talassemia beta heterozigota. Na janela de Hb D, os valores percentuais médios estão próximos de 35%, com algumas exceções, como as amostras AR-010, AR-136 e AR-216, que apresentaram valores mais baixos. A amostra AR-131 apresentou valor elevado nessa janela, sugerindo a presença de Hb D e talassemia beta heterozigota, e quatro amostras apresentaram pequenas frações de Hb C, que podem ser consideradas arrastes de amostras anteriormente analisadas pelo aparelho. Os valores de tempo de retenção foram estabelecidos entre 4,1 – valor mínimo e 4,32 – valor máximo.

Após esses procedimentos, foram realizadas as confirmações moleculares para Hb D Los Angeles, por amplificação do éxon 3 pelo método de PCR e análise dos fragmentos após digestão com a enzima EcoRI. Todas as amostras testadas apresentaram três fragmentos: dois que constituem o alelo normal, com 296pb e 268pb, que foi clivado pela enzima, e outro fragmento de 564pb resultante do alelo mutante. A mutação na primeira base da trinca, na posição 121 retira o sítio específico para essa enzima; dessa forma, não há o reconhecimento de nenhum local para digestão pela enzima EcoRI.

O seqüenciamento foi realizado em dez das amostras para confirmação da mutação.

Os casos com interações, como Hb D Los Angeles e talassemia beta e Hb S e D Los Angeles foram confirmados com a utilização da metodologia PCR-ASO, que possui sensibilidade para discriminar 16 mutantes de talassemia beta e as hemoglobinas variantes S e C.

Desse modo, dos 47 indivíduos analisados, 42 apresentaram o padrão heterozigoto para Hb D Los Angeles, dois indivíduos o padrão Hb S e D Los Angeles, dois indivíduos com o padrão Hb D Los Angeles e talassemia beta e um indivíduo com Hb D Los Angeles e Hb Lepore.

Discussão

A Hb D Los Angeles ou D Punjab foi primeiramente descrita por Itano, em 1951, em uma família residente em Los Angeles, descendente de ingleses e indianos; em 1962 sua estrutura química foi caracterizada como sendo uma substituição do ácido glutâmico por glutamina na globina beta. Apesar dessa variante possuir uma ampla distribuição mundial, seu maior reservatório encontra-se no subcontinente indiano. Estima-se que 3% da população de Punjab, na Índia, seja portadora heterozigota dessa variante.20,21 Na América Latina, essa hemoglobina foi descrita no Brasil, Argentina, Cuba, Guadaloupe, Jamaica, Venezuela e México.4 Em nosso país, a Hb D Los Angeles é a terceira variante mais comum, após as Hb S e Hb C.10

A eletroforese de hemoglobinas em acetato de celulose, pH alcalino é o método mais usado para a identificação de hemoglobinas; entretanto, sua sensibilidade é limitada, especialmente nos casos de co-migração de isoformas, como as hemoglobinas S, D, G e Korle-Bu, dificultando o diagnóstico adequado. As eletroforeses ácida e de cadeias globínicas podem auxiliar na diferenciação, porém, também apresentam limitações. Através da eletroforese em gel de ágar, pH ácido, pode-se diferenciar as Hb S do tipo D, uma vez que as Hb tipo D migram de forma semelhante à Hb A neste pH. As Hb G e Korle-Bu apresentam o mesmo comportamento eletroforético da Hb D Los Angeles nesses procedimentos eletroforéticos. Com a utilização da eletroforese de cadeias globínicas, pH alcalino, é possível a diferenciação das Hb D e Hb G, que é um mutante de cadeia alfa. As Hb D e Hb Korle-Bu poderão ser diferenciadas molecularmente, uma vez que apresentam os mesmos padrões de migração nos vários procedimentos eletroforéticos, incluindo a eletroforese de cadeias globínicas. Na cromatografia líquida de alta pressão (HPLC), a Hb Korle-Bu é eluída na janela de Hb D, porém com desvio da linha de base.

As amostras avaliadas apresentaram migração semelhante à Hb S em pH alcalino, como Hb A em pH ácido e uma banda na posição de mutante de cadeia beta na eletroforese de cadeias globínicas em pH alcalino, conforme relatos da literatura para este mutante.2,22 Entretanto, faz-se necessária a utilização de técnicas mais sensíveis para a correta caracterização dessa variante.

O uso do HPLC para análise de hemoglobinas tem aumentado nos últimos anos.23 Entretanto, o equipamento foi padronizado para a população norte-americana; desse modo, torna-se necessária a padronização dos resultados normais e das hemoglobinas variantes para a população brasileira, além do estabelecimento dos padrões para cada laboratório. Para a Hb A2, a grande maioria das amostras analisadas apresentou valores abaixo da normalidade. Entretanto existem dados discordantes na literatura, que talvez possam ser explicados pelo uso de colunas ou sistemas de eluição diferentes.18 Com relação à hemoglobina D, em nossos achados, foi encontrado o tempo de retenção médio de 4,24, com mínimo de 4,1 e máximo de 4,32, portanto, dentro dos limites estabelecidos pelo fabricante, que são: mínimo de 3,91 e máximo de 4,33.

Fato que mereceu destaque foi o de algumas amostras eluídas na janela de Hb S. Nota-se, entretanto, que os valores do tempo de retenção dessas amostras foram de 4,34, 4,35 e 4,36. Esses valores encontram-se muito próximos ao valor máximo estabelecido pelos fabricantes para a janela de Hb D, que foi de 4,33, e próximas ao valor mínimo para Hb S, que também é de 4,33. Se apenas o HPLC fosse utilizado para a caracterização dessa variante, provavelmente tais amostras seriam identificadas como Hb S. Além disso, os valores da porcentagem das amostras AR-131 (88,8%) na janela de Hb D e AR-199 (87,6%) na janela de Hb S poderiam mimetizar uma homozigose para as hemoglobinas citadas. Entretanto, nessas condições, os níveis de Hb D costumam estar próximos a 95%.22 Os perfis eletroforéticos auxiliaram a elucidação destes casos, destacando-se a importância da utilização de metodologias clássicas aliadas a técnicas de maior sensibilidade, como HPLC, na avaliação de hemoglobinas do Brasil.

Após a amplificação por PCR e digestão enzimática com a endonuclease de restrição EcoRI, as amostras de DNA analisadas apresentaram os fragmentos correspondentes ao alelo mutante para Hb D Los Angeles e normal. Esses achados confirmam a presença de Hb D Los Angeles em todas as amostras e excluem definitivamente a homozigose das amostras AR-131 e AR-199.

A metodologia PCR-ASO foi utilizada para confirmação nos casos em que havia interação de Hb D Los Angeles com outras variantes, como a Hb S ou talassemias, com exceção da amostra AR-156. Assim, na amostra AR-131 foram confirmadas as mutações CD-39 e CD6-A, e na amostra AR-199 a mutação CD-39 para talassemia beta; na amostra AR-208, a presença do alelo beta S, originando um duplo heterozigoto S/D Los Angeles. Para o indivíduo (S/D Los Angeles) G-108, a confirmação foi realizada através de seqüenciamento.

A Hb D-Los Angeles foi descrita tanto em heterozigose como em homozigose, assim como em combinação com Hb S ou talassemias alfa ou beta.4,22,24 Os indivíduos heterozigotos são assintomáticos; em homozigose podem apresentar diminuição da fragilidade osmótica, células em alvo e níveis de hemoglobina A2 normais, mas é uma situação rara.

A co-herança de Hb D e talassemia beta é pouco descrita na literatura mundial.22 Os portadores de Hb D e talassemia beta apresentam anemia hemolítica de leve a moderada.4,6,22 Os indivíduos portadores da associação entre Hb S e D, chamada doença de Hb S/D, podem apresentar anemia hemolítica de leve a severa e clínica similar aos pacientes com anemia falciforme.4,6 Embora a Hb D não sofra falcização, o fenótipo severo associado à doença de Hb S/D pode ser devido a um aumento na polimerização da Hb S, que é facilitado pela mutação no códon 121.7,22

Conclusões

Cada metodologia utilizada para a identificação das variantes de hemoglobinas apresenta limitações. Desse modo, faz-se necessária a utilização de técnicas clássicas associadas a estudos moleculares para a identificação acurada dessas hemoglobinas anormais. Dependendo da região do país analisada podemos encontrar diferentes freqüências para determinadas hemoglobinopatias, uma vez que algumas delas estão relacionadas à origem européia ou africana da população fundadora. Os valores dessas freqüências não estão ainda bem estabelecidos no nosso país. Além disso, com o aumento na utilização do HPLC para o estudo das hemoglobinopatias, será possível estabelecer um parâmetro para a população brasileira das diferentes frações de hemoglobinas. O presente estudo poderá auxiliar na identificação da Hb D-Los Angeles, através dos resultados apresentados, além de auxiliar na elucidação de associações raras. O perfil para Hb D Los Angeles, pelas amostras avaliadas, mostrou fração na faixa de Hb S em eletroforese pH alcalino, como Hb A em eletroforese pH ácido e na posição de mutante de cadeia beta na eletroforese de cadeias globínicas em pH alcalino; a morfologia eritrocitária foi discreta, e a resistência osmótica, na maioria dos casos, negativa. Por HPLC, a fração de Hb D situa-se em uma janela de tempo de retenção que varia de 4,1 a 4,32 e com média percentual de 35,44%, sendo a fração de Hb A2 diminuída na maioria dos casos.

Recebido: 08/01/2003

Aceito após modificações: 28/05/2003

Trabalho desenvolvido no Laboratório de Hemoglobinas e Genética das Doenças Hematológicas – Unesp

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: não declarado

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  • Endereço para correspondência

    Ana Regina Chinelato Fernandes
    Ibilce – Unesp – Rua Cristóvão Colombo, 2265 – 15054-000 – São José do Rio Preto-SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Fev 2004
    • Data do Fascículo
      2003

    Histórico

    • Recebido
      08 Jan 2003
    • Aceito
      28 Maio 2003
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