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Desbabelizar o mito: a língua em Babel, de Antonia Torreão Herrera, e o estrangeiro em Sinônimos, de Nadav Lapid

Debabelizing the myth: The language in Babel, by Antonia Torreão Herrera, and the foreigner in Synonyms, by Nadav Lapid

RESUMO

O presente texto versa sobre uma análise do livro Babel, de Antonia Torreão Herrera (2020), e do filme Sinônimos, de Nadav Lapid (2019), no intuito de repensar a língua e a globalização a partir do mito de Babel. Nesse sentido, baseado no pensamento sobre língua e tradução de Jacques Derrida, no conceito de linguajamento de Water Mignolo e na discussão de Michel Foucault sobre Dom Quixote (2012) em diálogo com o filme, busca-se esboçar a problemática da concepção de globalização em uma perspectiva decolonial que critica a lógica binária capital-colonial. Assim, o objetivo é pensar como a poesia de Antonia Torreão Herrera e a narrativa cinematográfica de Nadav Lapid tencionam a tirania da língua e a produção de marginalizações em um contexto global. Para isso, discute-se o conceito de desbabelizar, presente no texto mítico-filosófico-poético de Antonia Torreão Herrera, relacionado à ideia de desglobalização, baseado no pensamento de Pablo Solón, no intuito de repensar os binômios globalizar-babelizar e desglobalizar-desbabelizar. Dessa forma, a partir da interpretação do poema e do filme, foi possível delinear o potencial plástico e ambivalente da língua e da linguagem artística, que rompe com o binarismo tirânico da globalização.

Palavras-chave:
Babel; Antonia Torreão Herrera; Nadav Lapid; desglobalização

ABSTRACT

This text deals with an analysis of the book Babel, by Antonia Torreão Herrera (2020), and the film Synonyms, by Nadav Lapid (2019), to rethink language and globalization from the myth of Babel. In this sense, based on Jacques Derrida’s thinking about language and translation, Water Mignolo’s concept of language and Michel Foucault’s discussion of Don Quixote (2012) in dialogue with the film, we seek to outline the problem of the concept of globalization in a decolonial perspective that criticizes the capital-colonial binary logic. Thus, the objective is to think about how Antonia Torreão Herrera’s poetry and Nadav Lapid’s cinematographic narrative intend the tyranny of language and the production of marginalizations in a global context. For this, we discuss the concept of debabelizing, present in the mythical-philosophical-poetic text of Antonia Torreão Herrera, related to the idea of deglobalization, based on the thought of Pablo Solón, in order to rethink the binomials, globalize-babelize, and deglobalize-debabelize. In this way, from the interpretation of the poem and the film, it was possible to delineate the plastic and ambivalent potential of language and artistic language that breaks with the tyrannical binarism of globalization.

Keywords:
Babel; Antonia Torreão Herrera; Nadav Lapid; deglobalization

O mito da língua: torre de Babel

O mito etiológico da Torre de Babel é uma história de fundação de uma globalização. Tal narrativa bíblica aparece na tessitura do livro Babel, de Antonia Torreão Herrera (2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020.), e do filme Sinônimos (2019SINÔNIMOS. Direção: Nadav Lapid. Produção: Saïd Ben Saïd, Michel Merkt. Interpretes: Tom Mercier, Quentin Dolmaire, Louise Chevillotte. Roteiro: Nadav Lapid, Haim Lapid. Paris: SBS Distribution; Grand Film; Estúdio Escarlate, 2019, bluray (123 min), wildscreen, color.), de Nadav Lapid. Ambas as obras delineiam e põem em cena a tirania da língua em um contexto de migração e diáspora, pensando o sujeito como eterno estrangeiro da própria vida. Neste sentido, busco pensar os binômios globalizar-babelizar e desglobalizar-desbabelizar a partir da análise do poema e do filme, justamente para pensar a língua como potencial ambivalente, tanto como tirânico quanto como uma possibilidade múltipla de dizer, balbuciar, a partir da materialidade da linguagem e da própria palavra.

O motivo de ambos os textos artísticos é o mito de Babel. A narrativa bíblica é um relato etiológico da origem das línguas e das diversas nações. Na narrativa, os povos eram unidos e se comunicavam por um único idioma. Entretanto, acreditando no próprio potencial, começaram a construir uma torre que chegasse até o céu, ao reino de Deus. O plano de subir aos céus é interrompido. Deus, temendo as conquistas impossíveis que a vontade humana poderia alcançar e sua blasfêmia, decide confundir as pessoas. Agora, não falariam um único idioma, mas idiomas diferentes, impossibilitando a comunicação e, por conseguinte, a construção da torre que chegaria aos céus. O mito de Babel é uma etiologia das diferenças culturais e da povoação do mundo, dos diversos povos e nações. Babel seria o berço da civilização. Por conta disso, o nome Babel, do verbo hebraico בָּלַל (bālal), significa misturar ou confundir. Assim, territorializar o mundo vem do gesto tirânico de confundir, impedir a comunicação, tornar as pessoas estrangeiras.

A confusão de línguas (confusio linguarum) é o mito de origem para a fragmentação das línguas humanas, descrita como resultado da construção da torre. Jacques Derrida (2002DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.), em seu ensaio de 1987, Torres de Babel, relendo Walter Benjamin, busca pensar, a partir do mito de Babel, como traduzir se torna um imperativo, um jogo do significante linguístico, pois, com a queda da torre, a vivência humana perpassa por viver infinitamente o enigma das línguas. Comunicar, que é fazer a língua chegar ao outro, em um projeto de ode à ambivalência da violência e da racionalidade humanas, se torna impossível. Com a dissolução da torre, comunicar se torna traduzir, transpor de uma língua para outra, para que a comunicação exista. No entanto, tal comunicação faz-se mediada por territorialidades, temporalidades e gestos diferentes. Nesse sentido, Derrida afirma que traduzir, como forma de comunicar, configura um gesto de consciência de si e do outro, o jogo do confundir como comunicar. O mundo, a partir da torre, transforma-se em uma fragmentação das línguas humanas, em que a comunicação é sempre incompleta e o outro se torna outro, estrangeiro. Nesse sentido, Derrida afirma:

A tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode mais quitar. Tal insolubilidade encontra-se marcada diretamente no nome de Babel: que ao mesmo tempo se traduz e não se traduz, pertencer sem pertencer a uma língua e endivida-se junto dele mesmo de uma dívida insolvente, ao lado dele mesmo como outro. Tal seria a performance babélica. (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002., p. 25-26).

A performance babélica é despesa do signo, em que se perde a possibilidade de construir um nome, uma língua e a subjetividade que se deseja ter. Impõe-se ser o outro, confundir, expor a falibilidade e a incompletude de não conseguir se comunicar, de tornar-se estranho. Cai o reino de Babel e elege-se o reino do sinônimo, em que a palavra ganha, na sua falência de comunicar, um significado semelhante à outra, pela tradução, mas que nunca é perfeitamente o mesmo. A palavra torna-se estranha. Babel vem de um termo que confere a ideia de incapacidade de entender. Há o desenvolvimento de uma escuta ininteligível - a criação do outro, estranho, estrangeiro. O sufixo -eiro relaciona-se a uma profissão, um fazer no mundo. Assim, ser estrangeiro é fazer-se, ser estranho, ser sempre outro. Babel, como mito de origem, é a narrativa da globalização ou da babelização, isto é, fazer o sujeito sempre outro.

Afirmar o mito de Babel como uma etiologia da globalização é dizer que, em seu cerne, há o movimento civilizatório de territorialização e apropriação dos espaços do binarismo global/local, pertencente/estrangeiro, eu/outro, próprio das tensões da globalização. Em Babel, há uma língua hegemônica, eleita, a primeira, a língua de Deus, que, a partir da punição em busca de uma civilidade, contenção do desejo humano, transforma a língua em outro, o sujeito em outro. Faz-se uma eleição. Walter D. Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.), em Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar, busca pensar a globalização como um sistema ligado à colonialidade e à produção de subalternidades, principalmente em relação à língua, à literatura e aos saberes. A expressão globalização, ainda que se tenha popularizado, no senso comum, a partir da década de 1980, atrelada a uma ideia de informatização e transporte, permitiria a integração e o diálogo entre diferentes nações, em escala global, do ponto de vista político, cultural e econômico, em uma perspectiva crítica e decolonial. Por isso, Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.) afirma que a globalização está atrelada à colonialidade.

A globalização é um dos elementos/mecanismos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista moderno-colonial, ou seja, a colonialidade. Sustenta-se na imposição de uma classificação (principalmente pela concepção de raça e de “terceiro mundo”) da população global como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões da existência social quotidiana. O binarismo global/local rege o conceito da globalização e, neste sentido, é possível afirmar que o conceito (e a forma de organização do pensamento e da materialidade a partir dele) opera na lógica do pensamento binário. O binarismo está ligado à lógica da metafísica racional-centrada na cultura ocidental, principalmente do conceito de representação, um dos princípios essenciais da metafísica ocidental - o pensamento estruturante do centramento, do fechamento e da verdade, que busca a transcendência do mundo sensível e, por consequência, seu rebaixamento, para eleição e manutenção de uma estrutura etnocêntrica, logocêntrica e fonocêntrica. É principalmente uma questão com a linguagem. A realidade, assim, não se dá empiricamente, mas como representação a posteriori, pois está baseada numa eleição de uma verdade e da ideia de presença em ausência.

A representação, isto é, a re-apresentação da verdade é uma educação pelo binarismo do rebaixamento. O binarismo é a forma de a representação forjar um sistema de exclusão, também ligado ao interdito, à divisão. No entanto, não é a divisão por si mesma, mas a divisão com a eleição de algo que deve ser rejeitado - o princípio da rejeição. A partilha histórica que Platão fez, encurralando o sofista, aquele que buscava um saber das múltiplas perspectivas e plasticidades da língua, fundamentou a forma de construção do conhecimento e a própria cultura ocidental, isto é, o saber é a vontade de verdade e ele é disposto, valorizado, distribuído, em suas instituições, em seu binarismo que seleciona e exclui. Assim, há construções de taxonomias, classificações e verificações para endossar o discurso da verdade. Jacques Derrida (2002DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.), em grande parte da sua obra, tenta denunciar as estruturas totalizadoras e centralizadoras da episteme ocidental, como é o conceito de representação e o seu binarismo resultante. Para Derrida, a questão da representação está intimamente ligada à ideia de que o signo reporta em si o representado, isto é, um apagamento do significante, como se esse coincidisse plenamente com o significado. Isso está relacionado com o pensamento da presença e do fonocentrismo, em que a fala se confunde com presença, tornando inseparável a phone do logos.

No entanto, Derrida, como seus precursores, tal como Nietzsche já falava, afirma que a história, a moral, a verdade e o signo são interpretações. A representação é justamente essa coincidência do signo como presença e verdade. O autor, em sua produção científica, busca repensar as noções do signo, da estrutura e do seu jogo como uma forma de desconstrução da representação, isto é, denunciar que, entre o significante e o significado, há um jogo que não é verdade, mas condiciona o movimento da verdade na estrutura de remissão e substituição, em que, no sistema metafísico, sempre se busca re-apropriar o sentido da presença. Em seu texto “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”, no livro Escritura e diferença, Jacques Derrida (1971DERRIDA, Jacques. A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. In: DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249.) discute a questão da binariedade do signo e como romper com um sistema se estamos inseridos no próprio sistema, na própria estrutura binária. O autor inicia o texto afirmando que o “acontecimento” denuncia a estruturalidade da estrutura porque essa quer reduzir o próprio acontecimento e controlar narrativas, isto é, o próprio signo no uso da linguagem comum. A estruturalidade é marcada pela presença, pelo centro, pela origem fixa. O centro não busca apenas orientar e equilibrar a estrutura, mantendo a coerência do sistema, mas sobretudo levar o princípio de organização da estrutura que limita o jogo. O centro impede a transformação das coisas mediante os acontecimentos, impede o jogo que, justamente, vai tensionar os significados e as representações transcendentais do centro. Ou seja, impede a lógica da diferença. O centro é uma forja de controle do discurso que se move, criando substituições e deslocamentos, no entanto sempre mantendo sua imobilidade fundadora. O que acontece é que, se o centro não é um lugar natural, fixo, uma originalidade, Derrida está denunciando que a estruturalidade do centro é uma indefinida substituição de signos. Tudo se torna discurso, por isso a crise do signo enquanto presença em seu próprio acontecimento denuncia a possibilidade múltipla do jogo.

A lógica da representação é a re-apresentação de tais lógicas fundadoras, os sentidos transcendentais do binarismo platônico, em que há um centro e, nas margens, ou melhor no jogo, está a diferença. Assim, quando afirmo que a globalização é um conceito binário, quero dizer que o conceito opera na divisão entre o local e o global a partir de uma falsa simetria, já que há sempre a eleição de algum centramento que é visto como global, em detrimento do apagamento e da exploração de outro local. Milton Santos (2010SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.), em Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, denuncia o mito da globalização como uma forja de uma verdade e toda a lógica predatória e exploradora atrelada ao conceito. Para o autor, o conceito de globalização é operado como uma fábula, uma narrativa ético-moral que funciona como uma verdade mítica, a qual se refere à circulação de informações e de fluxos financeiros englobando todo o planeta, diversos países e comunidades, e acredita-se que, nessa circulação global, haja uma democratização e um multiculturalismo que resolveriam os problemas de desigualdade de toda a humanidade. Milton Santos (2010SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.) alerta que a globalização, na verdade, atua de forma perversa, pois as diferenças e desigualdades locais são acirradas, os conflitos se intensificam e são efetuadas ações hegemônicas que privilegiam conglomerados, concentração de riquezas e manutenção de privilégios. Vive-se a tirania do capital, do colonial e da informação.

Walter D. Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.), em uma perspectiva decolonial, explica como essa perversidade da globalização concorre para a manutenção da lógica binária capital-colonial. Para o autor, a globalização inicia em um processo de subjugação de identidades vistas como subalternas e na conclamação do direito de classificar e excluir, em uma escala entre territorialidades diferentes, inclusive forjando tais territórios. Esse momento está marcado pelo sistema colonial-capitalista moderno desde as grandes navegações, perpassando por um imperialismo francês e alemão e suas disputas, culminando na Conferência de Berlim e nas duas Guerras Mundiais, assim como na mudança para um polo estadunidense e todo um jogo mercadológico depredatório, que inclui sucateamento dos sujeitos em exploração global, em que o sistema de produção de saber e o de produção de matéria-prima se mantêm, em que alguns países podem ser explorados e mutilados, enquanto outros mantêm seus privilégios.

O autor ressalta como a língua sempre foi uma forma de estabelecer e reivindicar poderes, centramentos e influências. A racionalidade e o saber estão vinculados à “pureza”, gramaticalização e registro de uma língua - qualquer outra forma não seria legitima. Tal forma possibilitou instaurar uma lógica da civilização, em que a língua se torna o símbolo de afirmação identitária e, por consequência, elege-se como centro e transforma o outro em estrangeiro, inclusive delineando “culturas” e “territórios. Assim, diz Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020., p. 301):

A mesma língua, as mesmas regras sintáticas, mas jogo jogado em circunstâncias diferentes resulta em práticas verbais distintas: folclore não é literatura, tal como mito é história. Em ambos os casos, a ‘sabedoria popular’ foi inventada para distinguir ‘o gosto e o conhecimento do gênio e da minoria culta’, estabelecendo uma hierarquia de práticas culturais paralelas aos regulamentos econômicos e políticos e ao governo.

Para falar da globalização e da língua, Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.) cunha o conceito de linguajamento, o qual define como o ato de pensar e escrever entre línguas. Para isso, não se pode pensar a língua apenas como um fato, como um sistema sintático, semântico e fonético, mas como sendo composta de uma fala e uma escrita que são estratégias para orientar e manipular domínios sociais e interações. A globalização e a manutenção das soberanias nacionais estão ligadas ao linguajamento. Nesse sentido, são institucionalizadas línguas nacionais hegemônicas no intuito de manter os espaços de poder. A própria literatura, muitas vezes, serviu para a manutenção, por exemplo, de conceitos de nação ligados a modernidade/colonialidade, buscando prezar uma pureza da cultura, que simultaneamente deslegitima outras formas de expressão, identidades e comunidades. Inclusive, o autor afirma que a hegemonia de uma língua se dá não pelo número de falantes, mas pelo índice de leitores, de quantos precisam ser “alfabetizados” para tentar inserir em espaços de legitimação. Nesse sentido, Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020., p. 388) discorre que o “direito das línguas revela a diferença epistemológica colonial e a esmagadora estrutura de conhecimento criada e reproduzida pela própria criação e reprodução do sistema mundial colonial/moderno”.

O mito de Babel é, então, uma narrativa sobre o binarismo, sobre a impossibilidade de comunicação e sobre o confundir, como ver o outro como estrangeiro. Babelizar é destituir o sonho do desejo humano e a lisura da comunicação para instaurar formas de classificar e organizar os domínios de poder e saber. Instaura-se o outro como forma de avaliação a partir da língua, da língua incomunicável, em que as mediações entre os povos se tornam formas de construção de hegemonias. Ninguém mais se entende, a violência epistemológica da língua se instaura pela lógica do mesmo, negando a diferença.

O interessante é perceber como a língua e suas formas de re-apresentar fazem um jogo ambivalente de territorialização e desmantelamento da própria babelização, principalmente através da arte, já que, na incompletude da sua possibilidade de comunicar, dada sua linguagem inespecífica, possibilita repensar coletivamente, através da própria mediação das incomunicabilidades, formas de denunciar os centramentos e possibilitar novos caminhos. Ao mesmo tempo que a arte, principalmente a arte literária, funcionou como projeção de certa comunidade imaginada que cimentou o projeto político e ideológico da construção das nações, a linguagem artística também permite outras diversas formas de expressar e conhecer, como uma constelação eternamente transmissível. Esse é o caso de Babel, de Antonia Torreão Herrera (2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020.), e do filme Sinônimos (2019SINÔNIMOS. Direção: Nadav Lapid. Produção: Saïd Ben Saïd, Michel Merkt. Interpretes: Tom Mercier, Quentin Dolmaire, Louise Chevillotte. Roteiro: Nadav Lapid, Haim Lapid. Paris: SBS Distribution; Grand Film; Estúdio Escarlate, 2019, bluray (123 min), wildscreen, color.), de Nadav Lapid, que denunciam as babelizações do mundo globalizado.

Babelizar-Globalizar

Antonia Torreão Herrera define Babel como “um texto mítico-filosófico-poético” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 11), pois busca fazer uma poética sobre o processo metalinguístico do texto e a ética da própria escrita literária. Tal escrita está atrelada ao perfil múltiplo da escritora, visto que é professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na qual foi um dos pilares da área de Criação Literária no curso de Letras e fundou a área de concentração de Escrita Criativa no Bacharelado Interdisciplinar de Artes na mesma instituição. Em 2020, foi celebrado o seu Jubileu pelos 50 anos de trabalho como professora na UFBA e, em decorrência disso, Babel foi publicado. O livro se divide em 10 cantos, em que a linguagem poética mistura metáforas, cacofonias, anedotas, citações e reflexões filosóficas em um manifesto teórico, ético e poético da língua. O motivo do livro-poema é o mito de Babel. Como a própria autora afirma na apresentação: “O mito de Babel foi o móvel primeiro para gerar imagens e pensamentos sobre a língua, as línguas, a linguagem, as palavras; a comunicação e a incomunicabilidade, o potencial de construção e de destruição de uma palavra” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 11). O babelizar do mito de Babel, no poema, se vale da ambivalência da relação entre comunicar e traduzir, o que gera potencialidades de dilaceração do outro. Separar as línguas é dividir e apropriar. Faz-se da língua, tirania e do outro, estrangeiro. Tais ideias aparecem no próprio poema, ao utilizar os dois pontos como forma de explicação e definição do Mito da Torre, por exemplo, no CANTO IV, no qual afirma que foi uma validação da violência entre as pessoas e os povos. “Torre de Babel: poder e globalização, legitimação da tirania de um povo sobre outro povo” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 45). A denúncia da tirania da babelização aparece também no CANTO VIII, como mostra o trecho abaixo:

Babel entrou na história e ata o fio do acontecimento às nossas vidas. As paredes de Babel são fronteiras. Mas o signo Babel faz girar os falares. Falas e alas por onde escorre a lalalização da língua. Similar à agua que abre caminhos. Babelizar é falar no outro o outro. É possibilitar o outro. Infernizar a (in)comunicação. Abrir alas para a ação de comunicar o outro. Busco o fio da meada no meio do nada. (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 72).

Os versos supracitados retomam o mito de Babel e a violência do (in)comunicar. No primeiro verso, Babel aparece como história, em caráter substantivo. A história é uma tentativa de dar conta da narrativa do mundo, das fábulas dos vencedores, que costurou como um fio a vida cotidiana, criando fronteiras e divisões com o outro. Mesmo que o signo em si, Babel, faça confundir, possibilitar outros falares, ainda está ligado à construção de fronteiras e limites. Esses limites se dão na língua e transbordam a vida e a história. Em uma imagem arquitetônica da torre, as fronteiras se tornam visíveis como poros, em que cada ala, cada trecho, transborda o balbucio, a confusão de uma língua a ser traduzida, impossível de comunicar: “escorre a lalalização da língua”. A ambivalência do trecho se dá por não demarcar a multiplicidade de línguas como algo negativo. Há uma possibilidade de balbucio, de ter o outro, abrir alas para comunicar o outro. No entanto, ao mesmo tempo, o outro se torna outro, estranho, estrangeiro, e as relações se tornam uma possibilidade, incapazes de ser previstas. Assim, impõe-se a necessidade de traduzir o outro, olhar para a fronteira e perder o “o fio da meada”, do não entendimento da língua e das pessoas.

Ao denunciar a babelização, o balbuciar e a ambivalência da multiplicidade do estrangeiro, Herrera coloca a literatura para olhar para o resto, para o estranho, para o lixo da história. O princípio babélico é a seleção do signo, e se escolhe o signo menor para dizer mais, fazer uma língua se sobrepor em detrimento da outra. Não é buscar um desejo de um coletivo, pertencer. Deus pune os homens para que eles usem seu desejo contra os outros e a si mesmos. Ao denunciar a globalização como o acirramento de fronteiras, BabelHERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020. é um texto que não quer uma simetria com a tirania do discurso, com a história dos estrangeiros vencedores, mas olhar o que não foi colocado como relato - o outro, comunicar o outro. As obras artísticas, principalmente literárias, ocuparam, e muitas vezes ocupam, o espaço de monumento, isto é, uma representação comemorativa e simbólica da memória, para perpetuar, como algo sólido para o futuro. Babel celebra o mito, mas o repensa, repensa as formas do outro, a tirania de sua violência. É aí que entra a sua própria contradição: o monumento do mito de Babel e do livro de Babel são esculturas em ruínas, grãos de areia, pois em seu discurso está a semente da ruína da história e, ao mesmo tempo, o registro das vozes e narrativas que não foram contadas.

Babelizar é reafirmar a etiologia das diversas línguas: num universo onde todos utilizavam a mesma linguagem e, consequentemente, compreendiam-se mutuamente, mas, em um jogo de punição e sobreposição, impondo-lhes a desordem linguística, fragmentando-os por meio das línguas. A língua, que outrora era unificada e suficiente para expressar todos os pensamentos humanos, agora estava fragmentada em distintas linguagens, cada qual com seu próprio léxico e suas particulares conotações. A linguagem já não transmite de forma nítida os anseios; formou-se uma lacuna entre as palavras e as concepções - a impossibilidade do comum. Herrera se volta para lacuna em sua escrita sobre o mítico, valendo-se da história da torre de Babel para elucidar as raízes da separação entre o signo e o significado. Babel assume também uma característica filosófica de compreender o dispêndio da linguagem em sua violência autoritária através da própria linguagem, utilizando sua composição cruel para expô-la, reconfigurá-la. Isso aparece na repetição contínua do próprio termo “babel”, esgarçando o signo para esvaziá-lo de sua brutalidade substantiva.

Babel se torna verbo, um fazer, um agir, e se repete: “Babelizar./ Sutura. Garrote. Torniquete. Para sangria de palavras” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 24). Herrera se utiliza da metáfora do sangue para falar dos limites impostos no símbolo do mito. A linguagem é como sangue, líquido que oxigena a vida, que se dá em excesso. Esse excesso é um gasto desnecessário, é doença. A dissolução da torre é o remédio paliativo da doença. Para estancar o signo e sua multiplicidade, é preciso costurar às pressas, apertar as juntas e barrar o fluxo. A língua se torna patologia. Com raiz etimológica no grego, a palavra patologia é uma junção de páthos ('paθɔs) com logos (λόγος). De maneira esquemática, a páthos significa aquilo que nos afeta e nos mobiliza. Já logos é o discurso, a teoria e o estudo. Patologia, então, poderia ser pensada não como aquilo que adoece, negativa o corpo, mas aquilo que afeta, que ressalta. Babel questiona a punição que vê a linguagem como doença, repensando, em sua plasticidade, como aquilo que nos afeta, que a sutura não dá conta de segurar. Por isso, logo em seguida, a palavra de mobiliza e brinca com a babelização: “Ba bel Ba bel!” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p.24).

Apesar da estreia anterior à publicação de Babel, em 2019, no Festival de Berlim, no qual ganhou o Urso de Ouro, o filme Sinônimos, em uma coprodução israelita, francesa e alemã, também aborda a questão da babelização, da tirania da língua e do estrangeiro em um mundo globalizado. A película conta a história de um jovem israelense que deserta para Paris no intuito de fugir da própria nacionalidade e, principalmente, da própria língua. A narrativa fílmica, assim como o livro, tem como substrato as perspectivas poético-filosófico-míticas dos seus autores. O diretor e roteirista Nadav Lapid nasceu em Tel Aviv, Israel, em uma família de ascendência judaica, Ashkenazi. Filho do escritor Haim Lapid e da editora de cinema Era Lapid, que edita seus filmes, o cineasta estudou filosofia na Universidade de Tel Aviv, mudando-se para Paris após o serviço militar nas Forças de Defesa de Israel e, depois, retornou para se formar na Sam Spiegel Film and Television School, em Jerusalém. Nadav Lapid se posiciona de maneira bastante crítica em relação às tensões da globalização e às idiossincrasias do Estado de Israel. Seus filmes costumam apresentar traços biográficos, tanto no uso da metalinguagem, quanto na diegese, como é o caso de Sinônimos, que traz as violências e pulsões do sujeito em diáspora, em trânsito, na fronteira da língua.

A tirania da língua como força das fronteiras nacionais delineia todo o filme. A narrativa mostra a trajetória do jovem israelense Yoav, que chega a Paris esperando que os franceses o salvem da loucura de seu país e, determinado a extinguir suas origens, tornar-se francês. Ele, assim, abandona a língua hebraica e se esforça para ser o outro. A tensão no filme se desencadeia em torno desse outro, representado pela França e seus símbolos de nacionalidade, e a impossibilidade de se tornar esse outro. O conflito aparece na primeira cena do filme, que, em um plano aberto, coloca a espectador para entender a magnitude do esvaziamento do que é desertar e do que é ser estrangeiro. Yoav chega a Paris, a um apartamento vazio, sem nada a esperá-lo, sem familiaridade, e é desnudado, literalmente. Entram, porém, no apartamento e roubam todas as suas roupas. Desesperado e vulgarizado, Yoav bate nas portas do prédio, pede socorro e termina por desmaiar na banheira, contorcendo-se de frio. Ao se chegar ao país do outro, e não a qualquer país, a um no qual o mito de nacionalidade se vincula ao mito civilizatório, perde-se tudo e põe-se tudo em jogo para se tornar o outro - trocar a identidade, mudar a língua que Babel lhe designou.

Yoav é encontrado inconsciente na banheira pelo escritor Émile e pela oboísta Caroline. Esse encontro na banheira é uma referência à pintura A morte de Marat, de Jacques-Louis David. O quadro, pintado em 1793, é um registro de um assassinato emblemático de um dos líderes políticos da Revolução Francesa, demonstrando as divergências e tensões da própria França em relação às suas ideias revolucionárias. Yoav escolhe a morte para renascer como francês, no entanto tal processo se torna impossível, e o filme, ao trazer essa referência, prenuncia a morte discursiva do seu protagonista. Os dois jovens, após encontrar Yoav, o carregam para seu apartamento e o aquecem, salvando sua vida. No entanto, o narrador, ou seja, a câmera, apresenta a cena com certa lascívia. Assim, inicialmente, joga com o expectador a lembrança do clássico cinematográfico Os sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci. Por um momento, após o choque inicial, poderíamos achar que Sinônimos daria uma guinada poliamorosa e etérea de jovens artistas na França, no entanto, qualquer rastro do erótico e do afeto se perde quando a câmera se magnetiza no corpo de Yoav, visto que denuncia o esvaziamento e a objetificação do jovem estrangeiro. O corpo-objeto é aquele corpo que perdeu a humanidade e é perversamente o outro. A câmera nos familiariza com o corpo de Yoav, o explora e o escrutina até que se transforme de uma coisa em um objeto de potencial excitação de arte, retomando Os sonhadores. Mas, para além da obra de Bertolucci, apresenta um corpo ressonante e ambíguo. O corpo nu se torna uma espécie de babelização metafórica, seu pênis circuncidado exposto à câmera funciona como uma lembrança da jornada do filme, que mostra que a pertença à língua, ao território e à identidade nem sempre pode ser descartada, metamorfoseada. É impossível ser o outro no outro.

Sinônimos: (des)semelhanças do global

Sinônimos tematiza a mutabilidade e a imutabilidade do eu em um mundo globalizado, cujas fronteiras parecem se diluir, mas simbolicamente se enriquecem. Yoav deseja se tornar francês, mas é impossível deixar de ser israelita. Ele rejeita sua pátria, proibindo-se de falar hebraico e escolhendo a língua francesa como hegemônica. O título, Sinônimos, é uma metáfora dessa escolha, sintetiza o desejo de ser semelhante. O binarismo da representação é a lógica da semelhança, da seleção e do ícone. Yoav valora o ícone e busca a semelhança com o francês principalmente no uso dos sinônimos. Por exemplo, Yoav recusa a olhar para Notre Dame ou para o rio Sena, pois um francês de verdade não faria isso. Inclusive, a câmera, muitas vezes em primeira pessoa, mostrando a perspectiva do seu protagonista, confronta o espectador com a incapacidade de ver, com a escolha de olhar para si e não se deslumbrar com Paris, no intuito de se tornar verdadeiramente francês (ou simplesmente precisar baixar a cabeça para a hegemonia parisiense). Outra busca pela semelhança é o próprio uso das palavras. Uma das suas primeiras atitudes é comprar um dicionário e aprender os sinônimos. A câmera faz movimentos rápidos e inquietos enquanto Yoav desce a rua e segue ao longo do Sena, praticando seu adorável francês afetado e aprendendo novas palavras em um dicionário de bolso. As palavras que ele busca são todas ligadas às ideias de uma França de liberdade, igualdade e fraternidade, tais como beleza, justiça e verdade. Ao mesmo tempo, há uma valoração da ideia de realeza, como se esses nomes precisassem ser apreendidos e, por isso, o jovem repete “príncipe, princesa”, “baronês, baronesa”, “duque, duquesa”. Yoav sai murmurando palavras em francês, como se fosse metamorfosear sua identidade pela repetição da língua - ele deseja fazer parte do ideal histórico-civilizatório. Yoav não pode mudar seu corpo, mas pode alterar a linguagem e, por isso, continua praticando febrilmente seu francês, atacando cada nova palavra com um propósito violento.

É possível, dessa forma, fazer um paralelo de Sinônimos com Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (2012CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Tradução de Ernani Ssó. São Paulo: Penguim, 2012.). A obra de Cervantes, publicada em duas partes, em 1605 e 1615, é uma paródia das novelas de cavalaria. Diante da transição da Idade Média para a Modernidade, em que as concepções e valores de mundo mudaram de forma significativa, Cervantes narra a história de um homem idoso que, ao ler as histórias dos grandes cavaleiros medievais, passa a crer nelas como verdade, principalmente os valores e a moral e, daí, decide se tornar um cavaleiro andante. No entanto, o mundo não é o mesmo das novelas de cavalaria, e Dom Quixote não consegue enxergar a falência do mundo a sua frente. Em paralelo, Yoav, em Sinônimos, por ressentimento das ideias militares israelitas, vinculadas à manutenção de forças hegemônicas armamentistas (como os Estados Unidos) contra outros povos no Oriente Médio, busca na Europa um projeto de civilização, honra e moral que não existe. Só que, como Dom Quixote, ele vaga pelas ruas de Paris buscando esses ideais e decide ser francês. Apropriar-se da linguagem da civilização é a prova de que ele conseguiria ser sinônimo daquilo em que acredita.

Michel Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), em As Palavras e as Coisas, questiona justamente essa metáfora da “transparência” do signo linguístico - a utopia de que a linguagem é perfeitamente transparente e as coisas são nomeadas, isto é, representadas de forma límpida, como sinônimos entre o significante e o significado -, que atravessa a história do realismo e da metafísica ocidental. Para Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), Dom Quixote é o herói do mesmo. Ele representa um momento de transição de um mundo de certezas, de valor coletivo, da verdade divina, marcado pelas novelas de cavalaria, que ele tenta tanto honrar, para um mundo de incertezas, individualista, assinalado pelo humanismo, pelo descentramento, pelos valores do capital e do advento da modernidade. Há uma disparidade entre os valores de Dom Quixote e o mundo a sua volta, constituindo a ruína de um signo linguístico da semelhança, pensado como pleno, como verdade. O cerne de Dom Quixote é a semelhança aos signos. Nesse sentido, Foucault afirma:

Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas. Não, porém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de longe a epopeia secular que formula a Lei. O livro é menos sua existência que seu dever. Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto donde saiu. (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 63-54).

Os romances de cavalaria prescrevem o caráter, as ações e a aventura de Dom Quixote. Cada episódio e decisão serão semelhantes aos signos que ele decalcou. No entanto, o que Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.) afirma é o desejo insistente de preencher e ser semelhante aos signos, porque precisa provar sua existência, já que os signos do mundo já não são mais semelhantes aos signos que decalcou. Por isso, “Dom Quixote deve fornecer a demonstração e trazer a marca indubitável de que eles dizem a verdade, de que são realmente linguagem do mundo. Compete-lhe preencher a promessa dos livros. Cabe-lhe refazer a epopeia, mas em sentido inverso” (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p.64). Dom Quixote deseja provar a semelhança do signo conforme a própria coisa que representava - uma relação de equivalência. Assim, Dom Quixote lê os livros acreditando que o mundo é semelhante à narrativa, como uma necessidade humana de permanecer através do signo, através do relato. O que se busca é o espelhamento da semelhança do signo. O personagem lê o mundo para demonstrar os livros. Assim, os rebanhos, as estalagens, as figuras amorosas, entre outros, se assemelham aos objetos nobres das novelas de cavalaria. No entanto, tal semelhança é sempre frustrada e acaba por deixar vazia a palavra dos livros.

A semelhança é sempre frustrada no mundo babélico. Antonia Torreão Herrera compõe Babel sob a ideia da frustração do medo. A linguagem delineia a semelhança, mas o próprio signo, ao ser uma comparação que esconde o seu arbítrio na sua naturalização, forja uma sanidade do mesmo. Essa consciência atravessa Babel. Cito: “Toda sanidade reside na linguagem. / Toda loucura reside na linguagem. / Como escapar? / Estilhaçar em busca da perfeição” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p.24). A sanidade e a loucura estão no signo, em sua capacidade de transmutar. No entanto, a tensão está na busca da perfeição - da lisura da linguagem, na eleição do igual, recalcando a loucura, enrijecendo o jogo, as possibilidades. Por isso, Herrera encena que é preciso estilhaçar, em contradição, destruir e ruminar, como se o perfeito fosse a diferença, o estrangeiro. Ainda assim, a própria autora reconhece a violência de ser estranho, outro, no mundo da imagem-semelhança, e que, na divisão babélica, só existe ser o outro, afinal, o sujeito é “visto, ouvido, / chocalhado, destroçado em suas letras, estranhado e/ estrangeiro” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 25).

É impossível mudar a origem, tornar-se outro. Só é possível ser outro, estrangeiro. Ainda assim, como Quixote, Yoav busca o signo símile. Ele decide, então, ser estrangeiro para com a sua própria nação. Em um momento, o vocabulário de insultos sobre Israel se constrói: como ele diz a Émile, ele abandonou Israel porque é “desagradável, obsceno, ignorante, idiota, sórdido, fétido, bruto, abominável, odioso, lamentável, repugnante, detestável, mesquinho, mesquinho”. Ao que Émile responde diplomaticamente: “Nenhum país é tudo isso ao mesmo tempo”. Yoav, como Quixote, está mais perdido, pois a sua própria consciência o deixou sem pátria - sem semelhante. Yoav é um corpo migrante, sempre em desacordo e sempre numa alegria errante. O casaco amarelo, em contraste com o cinza do inverno parisiense, é justamente a marca do seu otimismo e, ao mesmo tempo, uma lente de aumento sobre a sua falta de lugar. Yoav é sempre visto, seja por sua beleza jovem, seja por ser um corpo migrante, estrangeiro. Nesse processo em que deseja se tornar o mesmo, o eleito como ícone, o francês, pois não aguenta as contradições e tiranias de Israel, descobre que todo outro é um si mesmo, e a França carrega a mesma falência e injustiça de sua língua e “sua” nação.

Como em Dom Quixote, a ironia e o paródico do filme aparecem na visão satírica e dolorosa ao retratar a frustração de Yoav, ao descobrir que a França é babélica, e as violências e injustiças contra as pessoas também fazem parte desse país, inclusive de maneira estrutural, subjugando, se apropriando e triturando como parte de uma lógica capital-colonial-moderna. Assim, o filme mostra pequenas anedotas desses momentos, das violências cotidianas e simbólicas que cada vez mais revelam que Yoav jamais será francês. Uma dessas anedotas é o momento em que Yoav descreve sua alimentação diária, denunciando a precariedade total de sua vida. Durante os sete meses em que vive em Paris, ele comeu duas refeições por dia de macarrão com molho de tomate que custavam 1 euro e 28 centavos. Ele comprava, em suas palavras, “os piores produtos no supermercado mais barato, onde a clientela é a mais pobre e onde não vende nem legumes e frutas”. A cena mostra o que se convencionou chamar de food desert ou deserto alimentar, o qual designa áreas com acesso limitado a alimentos nutritivos mas com preços acessíveis. O termo, cunhado pelo Departamento de Agricultura do Estados Unidos, é utilizado para descrever espaços urbanos e rurais habitados por moradores de baixa renda com acesso restrito ao transporte público, que impedem uma boa alimentação. Normalmente, nas grandes cidades, são bairros periféricos, majoritariamente racializados e compostos por imigrantes. Quando o filme mostra a diferença entre a moradia e a alimentação de Yoav, em comparação com Émile e Caroline, que moram no arrondissement número um, delineia os processos de outrização e marginalização do corpo migrante.

Essa outrização é evidente em outros momentos e se intensifica quando Yoav passa a perceber a perniciosidade da sua vivência. Tais cenas estão vinculadas aos subempregos a que imigrantes têm acesso em países que se colocam como “Primeiro Mundo”. Por exemplo, quando Yoav trabalha como segurança, existem dois momentos. O primeiro é uma luta de escritório entre dois outros trabalhadores da segurança, que se torna uma metáfora para falar do militarismo israelense, o machismo performático e o discurso homogêneo do opressor, que coloca sujeitos comuns uns contra os outros. O segundo é uma sequência na qual Yoav se rebela no trabalho, deixando uma longa fila de visitantes entrar no consulado, oferece uma visão engraçada e emocionantemente sugestiva de barreiras sendo derrubadas e de uma pequena revolução interna do personagem, percebendo a opressão da similitude. Contudo, o subemprego mais emblemático é quando, sem dinheiro, Yoav vai trabalhar em um bico de fazer vídeos pornôs. Tal emprego atrela-se à virada do personagem, à tomada de consciência de que, ainda com línguas diferentes, a França é violenta, de formas complexas e emaranhadas, como Israel e como todo espaço de manutenção de poder e saber.

O diretor do filme pornográfico tem uma fixação particular no judaísmo do jovem, e é aí que está o problema. Despido de qualquer dignidade em prol de se tornar francês, Yoav se submete sem pudor aos pedidos sexuais do diretor: seja felação ou enfiar dedos e objetos no ânus. Ainda que tudo seja filmado em plano aberto, em que a câmera e a diegese expõem tudo de forma crua, gerando desconforto no espectador, Yoav não sente constrangimento. Todavia, o espetáculo assustador reduz Yoav a um símbolo espalhafatoso e atropela sua humanidade quando o diretor pede que fale em hebraico. A questão da linguagem é central no filme. O personagem recusa-se a utilizar o seu idioma natal, principalmente porque o idioma é a identidade de um país, e, quando ele recusa o seu país, quando foge de Israel, recusa também o seu idioma.

Durante o ensaio, o diretor do filme pornô caseiro subjuga o protagonista, na explícita relação de poder do nativo em relação ao imigrante, para falar coisas em sua língua materna, ainda que não importassem quais fosses. O corpo de Yoav, objetificado no primeiro encontro (e em diversas vezes) por Émile e Caroline, de maneira mais sutil, ganha contorno grotesco em uma visível objetificação pela língua. O estupro enquanto violência ganha contorno ambivalente, pois não ocorre na obrigatoriedade do ato sexual, mas pelo uso da linguagem. Yoav é obrigado a dizer, a falar a língua que não quer e, nisso, é confrontado com o aspecto de que sempre será o outro.

A tragédia de Yoav, sugerida pelo próprio título de Sinônimos, é que um país pode não ser tão diferente de outro. Émile e Caroline são, ao mesmo tempo, generosos e exploradores. Para corresponder a generosidade de ambos, Yoav deixa Caroline explorar seu corpo e Émile explorar a sua história. Ele entrega suas memórias para que Émile transforme em livro, enquanto Caroline busca-o como objeto sexual. No entanto, após o estupro da linguagem, Yoav percebe que as idiossincrasias de Israel e da França são as mesmas, fazem parte da mesma babelização e, com isso, volta atrás e pede suas memórias de volta. Suas lembranças, sua linguagem, agora mistura de hebraico e francês, são só suas. Yoav faz de si uma própria revolução. No entanto, ao se rebelar, Émile e Caroline, como uma metáfora do estrangeiro em outro país, lhe negam toda a humanidade. E, ao fim, fecham a porta literalmente em sua cara. Ele não tinha mais nada para oferecer como ser explorado e como eterno estrangeiro, e as portas se fecharam. E o filme termina emblematicamente. Yoav tenta substituir o francês pelo hebraico, a França por Israel, o presente pelo passado, mas é incapaz de trocar a marcha do soldado pelo passeio do flâneur. Ele está distante de seu país e de sua família, bem como das histórias - heroicas, trágicas, míticas - que surgem e em flashbacks dele durante o serviço militar. Esses momentos estranhos e surrealistas, sugere Lapid SINÔNIMOS. Direção: Nadav Lapid. Produção: Saïd Ben Saïd, Michel Merkt. Interpretes: Tom Mercier, Quentin Dolmaire, Louise Chevillotte. Roteiro: Nadav Lapid, Haim Lapid. Paris: SBS Distribution; Grand Film; Estúdio Escarlate, 2019, bluray (123 min), wildscreen, color.(2019), representam o Israel cotidiano, ou pelo menos o país que Yoav suportou, onde sobreviveu, de onde fugiu. O fardo de Yoav é uma agonia pela degradação de ser eternamente o outro. O filme critica como esse corpo migrante é uma exibição abjeta, por sua diferença.

É justamente por retratar a agonia da diferença, que Sinônimos rompe com a semelhança. Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.), ainda em A palavra e as coisas, ressalta que os indícios da não semelhança introduzem a própria diferença encantada na similitude, fazendo surgir um signo suplementar, em outra possibilidade, em crise, que se assemelha à verdade, denunciando sua própria constituição enquanto verdade, isto é, enquanto cristalização do signo como uma perfeita correlação entre as coisas. Dom Quixote, assim como Yoav, após se confrontar com a crise do signo e fraturar suas crenças, na segunda parte do livro, se reencontra e relê o mundo de carne e osso. Dom Quixote assume a realidade, porém tal realidade se deve à linguagem e está inteiramente no interior das palavras. A relação quixotesca é a das palavras com o mundo, isto é, como o signo tece de si para si. A ficção frustrada demonstra o fechamento do signo na semelhança. Dom Quixote, então, para Foucault, passa a representar a figura do louco - institucionalizado como outro na história da cultura ocidental. O autor afirma que o louco não é entendido como doente, mas como um desvio da ordem, que, na experiência ocidental, tornou-se o sujeito das semelhanças selvagens. A loucura incide na própria linguagem, como afirma Herrera no poema Babel. A loucura da linguagem é a sua possibilidade infinita e sua recusa do mesmo, em que ser é “vertigem de ser e não-ser, no ilimitado./ A incompreensão do acabado” (2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 65).

Para Foucault (1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 67), o louco “só é o Diferente na medida em que não conhece a Diferença; por toda a parte vê semelhanças e sinais da semelhança; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhanças valem como signos”. Em seguida, Foucault aproxima o louco do poeta, que, sob os signos estabelecidos e o uso desgastado da ordem cotidiana, reencontra parentescos, similitudes, dispersões e diferenças - a literatura apaga a distinção dos signos como nomeadora da coisa em si, e volta para uma soberania do mesmo, que não é aqui da ordem do discurso, da soberania binária. Tanto o louco quanto o poeta denunciam a ordem da semelhança dos signos. Ambos, no binarismo babélico da cultura ocidental, estão no limite, na margem, em que seus signos se tornam recurso de contestação e estranheza, abrindo assim um espaço de poder e saber das identidades e das diferenças. Yoav ganha contornos de poeta ao retomar para si uma linguagem revolucionária, migrante, em diferença à Babel.

Babel: Desbabelizar e Desglobalizar

É nesse sentido de subversão das diferenças e do pensar o próprio signo que Antonia Torreão Herrera, em Babel (2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020.), cunha o conceito de desbabelizar, isto é, romper com as hierarquias entre as línguas e eliminar os empecilhos que causam a incomunicabilidade semelhante à que ocorreu após a intervenção divina em Babel. O conceito aparece pela primeira vez no CANTO II: “Desbabelizar no Planalto Central/ No centro da luz, da língua luz, /Lusa língua portuguesa” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 28). Ao pôr, no centro de Babel, a luz, a lusa língua portuguesa e o Planalto Central, Herrera denuncia os centramentos e os binarismos da língua e da geografia, que elegem ícones e fecham partilhas. E, a partir disso, propõe romper com tais hierarquias, ao pensar a divisão da língua de Babel como uma multiplicidade, em que se “potencializou o significante, fortaleceu a expressão poética que dá realce ao signo em todo o seu potencial” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 11). Babel proporcionou a plasticidade da língua, o olhar para o significante e a tradução, como já dizia Derrida (2002DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.), em um potencial criativo. Nesse potencial criativo, seria possível uma horizontalidade da língua, em que a comunicação voltasse a ser fraterna pela lógica da diferença, da loucura, da poesia. Desbabelizar não seria (a meu ver) um ato de reunificar as línguas, mas de reencontrar o que de “desmedido” pode nos representar e unir como um todo, em uma nova partilha.

Babel foi a construção do mito, um mito de querer ser semelhante, mas a ponto de subir ao céu e, como punição, vieram as diferenças, como se a diferença fosse uma punição. O pensar em “desbabelizar” é não olhar pela ótica da punição, mas pela diferença. Ainda no CANTO II, Herrera define: “Desbabelizar é retomar o fio do novelo, recolher uma a uma cada/ conta do rosário, revelar para a humanidade a língua dos anjos. /Sem que, sem por que, sem causa, sem flexão, conjugada apenas /no presente que desata todos os nós” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 33). Dessa forma, desbabelizar é achar os caminhos desnovelando os fios de Ariadne, é observar a criatividade divina nas obras artísticas do Bispo do Rosário, é olhar a palavra em sua materialidade, em sua possibilidade plástica. Desbabelizar é pensar em uma Babel que destrona o Senhor. É a insubordinação poética do ser humano, já que o que fica é a potencialização do significante, da poesia. Nesse sentido, o livro-poema Babel mostra que a literatura precisa servir à vida, afinal a arte tem uma responsabilidade ética e estética com a vida, através da possibilidade do significante, que agita as palavras sobre si mesmas. Babel coloca o signo em pé, fora da linearidade horizontal da autonomia da linguagem. A palavra responde por si própria em outro tempo, a palavra como joia preciosa. O mistério da vida é a palavra - é o porquê de sua origem e sua continuidade, como ela organiza o mundo, partilha a vida. Tudo nasce da potencialidade do caos, e a palavra, em sua materialidade, dá forma ao caos e plastifica o caos. Babel, ao confundir, ao criar o caos, é a potencialidade poética da despesa do signo, que se dá na própria tradução, pois, como Derrida (2002DERRIDA, Jacques. Torres de babel. Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.) afirma, o próprio signo é uma possibilidade plástica da tradução.

A própria composição dos cantos em Babel joga com o desbabelizar, afinal, não é preciso uma leitura linear - cada canto, verso e parte pode ser lido em temporalidades diversas. A textualidade se multiplica nos desdobramentos temáticos das epígrafes. No entanto, o desbabel se faz presente em cada trecho. A própria forma é plástica e dialogada. “Babel é travessia.” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 87). Os itálicos, as extensas sentenças, aquelas compostas por apenas uma palavra, as repetições e até mesmo a cadência audível são traços do poético em si mesmo - em travessia da linguagem. Ao mesmo tempo, o saber e o mito convergem - não se impõem limites - são semelhanças dessemelhantes. O desbabelizar está no gesto de se colocar como limiar entre arte e ciência, uma quebra de hierarquias em forma aberta. Assim é Babel. O livro utiliza essa homogeneidade para persistir em uma descontinuidade perene. Babel não é ditatorial, não impõe regras à linguagem, às línguas ou às palavras. De fato, Babel representa o oposto da restrição: “Enquanto você escolhe com esmero palavras, eu derramo todas sem escrúpulos e as desejo” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 15). No trecho, ressalta-se o transbordar do páthos da linguagem em desmedida com a palavra desejo e a ausência de escrúpulos. As palavras se esparramam, rompem com a ordem hierárquica binária - texto herege. O caráter mítico-filosófico-poético de Babel é desbabelizar.

Nesse sentido, desbabelizar é pôr em crise o signo e sua representação. A crise, então, é justamente a modificação da epistéme da cultura ocidental nas suas disposições fundamentais. Françoise Vergès (2020VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020.), em Feminismo decolonial, afirma que a globalização é um discurso e um sistema de manutenção de um epistemicídio, isto é, apesar de afirmar uma hegemonia, se reveste de uma apropriação estética, técnica e filosófica de outros lugares e populações. Vergès exemplifica o epistemicídio global quando as relações estão todas vinculadas ao imaginário do Norte Global, como é ensaiado no filme Sinônimos, mas que não possibilita trocas culturais, técnicas e científicas entre Sul/Sul. O babelizar, a separação das línguas, é uma forma de economia-ideologia da escassez, essa ideologia ocidental-patriarcal que categorizou mulheres, pessoas negras, povos indígenas, asiáticos e africanos como seres inferiores, carentes de razão, beleza ou um espírito naturalmente propenso à descoberta científica e técnica, que para chegar ao novo alto da torre, em que só alguns podem habitar, é preciso abdicar de si, para adotar as tecnologias e os métodos do último andar da Babel dividida. Tal divisão, de acordo com Vergès, seria o norte do Sul Global, que, para manter as cisões, é preciso manter a desssemelhança para garantir o desejo de semelhança com o hegemônico.

Na ordem da semelhança, da verdade e da representação: “a representação é sempre perpendicular a si mesmo: é, ao mesmo tempo, indicação e aparecer; em relação a um objeto e manifestação de si. A partir da idade clássica, o signo é representatividade da representação enquanto ela é representável” (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 89). O signo, em si mesmo, traz um balbuciar criativo da imaginação, um murmúrio vago das similitudes. Obviamente, está dentro da ordem do discurso, mas joga o seu jogo nas ruínas. É nesse processo imaginativo de dissimilitude que a representação entra em crise. Nesse sentido, o conceito de desbabelizar, principalmente por questionar a diferença e o lugar de outro que estaria no mito da criação das línguas estrangeiras, relaciona-se ao conceito de desglobalizar. Pablo Solón (2019SOLÓN, Pablo. Alternativas sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. Tradução de João Peres. São Paulo: Elefante, 2019.), em Alternativas Sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da mãe terra e desglobalização, afirma que desglobalizar não é promover políticas de isolamento ou autarquias, mas pensar e promover uma integração global diferente que não seja dominada pelo capital e pelos discursos hegemônicos, como fica latente nas relações globalizadas. Para o autor, ser global é pensar e construir uma alternativa de integração que tenha como centro os povos e a natureza e, por isso, seria necessário desglobalizar para possibilitar uma vivência outra, reestruturando o sistema econômico e político mundial, para promover a emancipação de comunidades outras, pela diferença, repensando a lógica do outro, ao invés de degradá-las.

O conceito relaciona-se ao pensamento de Walter D. Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.), já citado. O autor discorre sobre as relações de poder e as imbricações da colonialidade no mundo globalizado do capital. A discussão pauta-se no conceito de liminar, isto é, a forma de pensar o saber a partir do provisório, isto é, a partir da diferença colonial em uma perspectiva subalterna e aberta. Para o autor (2020, p. 26), “as realizações intelectuais exigem condições materiais, e condições materiais satisfatórias relacionam-se com a colonialidade do poder”. Para produzir saberes “universalizantes”, é preciso de poder material, e tal poder foi utilizado para manutenção de um projeto de ocidente civilizado que transforma o outro em outro, sem alteridade. Por isso, pensar outra forma de epistéme, como se pode dizer, com a mudança do pensamento para um desglobalizar, é marcado tanto pelo limiar da ausência quando pela própria permeabilidade de um pensamento que não busca o fixo, mas lida com o movente.

Para explicar o que está chamando de pensamento liminar, Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.) busca o entendimento a partir da etimologia da palavra. O termo grego gnósis significa conhecimento de uma maneira ampla, para além da cultura acadêmica.

Os verbos gignosko (saber, reconhecer) e epistemai (saber, ter conhecimento de) sugerem uma conceitualização diferente do conhecimento e do conhecer. A diferença, na obra de Platão, entre doxa e episteme é bem conhecida, a primeira indicando um tipo de conhecimento guiado pelo bom senso e a última um conhecimento de segundo grau, um conhecimento sistemático, orientado por regras lógicas explícitas. A gnose parece ter surgido da necessidade de indicar um tipo de conhecimento. Os filólogos gregos, entretanto, recomendam que não se estabeleça uma distinção rígida entre gnose e episteme e sim que se examinem seus usos específicos em cada autor. (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020., p. 31).

O termo desenvolveu-se, principalmente, por conta dos estudos teológicos, um tipo de conhecimento não acessível à experiência dos sentidos -, conhecimento místico ou pura lógica e, por isso, no mundo colonial moderno se tornou restrito à filosofia analítica e saindo do campo semântico do saber como um todo. Para Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.), o termo interessa, pois possibilita pensar o saber de forma mais ampla e não por um paradigma colonial, capital e moderno da filosofia, principalmente pensando outras formas de construção do saber filosófico. O exemplo escolhido, então, é o do pensamento africano que se contrapõe à filosofia eurocêntrica, denunciando os processos de subalternização das formas de conhecimento. O termo gnose, já rejeitado por sua falta de especificidade, funciona como uma chave de leitura para pensar outras formas de “filosofia” e “epistemologia”. Assim, Mignolo (2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.) se apropria do termo, utilizando gnose no sentido do conhecimento como um todo, incluindo a epistéme e a doxa.

O autor chama, assim, de gnose liminar a perspectiva subalterna do saber - o conhecimento concebido nas margens, sendo uma reflexão crítica sobre a produção do conhecimento como um todo (sobre as línguas hegemônicas, as traduções, os conflitos culturais, independência e descolonização). Assim, “a gnose liminar constrói-se em diálogo com a epistemologia a partir de saber que foram subalternizados nos processos imperiais coloniais” (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020., p.34). O objetivo, assim, é a descolonização e a transformação do conhecimento e da colonialidade do poder. “Não se trata de uma nova forma de sincretismo ou hibridismo, mas de um sangrento campo de batalha na longa história da subalternização colonial do conhecimento e da legitimação da diferença colonial.” (Mignolo, 2020MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020., p. 35). Desse modo, a revisão é do ocidental como um todo, conflitando a memória do seu sistema de racialização e exclusão em prol do capital. Assim, desbabelizar, olhar a potencialidade da diferença, assim como desglobalizar funcionariam como pensamento liminar, um pensamento de fronteira da fronteira e não instituindo fronteiras. Poderia ser, de acordo com Vergès, a luta por justiça epistêmica, uma busca por igualdade entre os saberes e uma contestação da ordem do conhecimento imposta pelo Ocidente.

Nesse sentido, desbabelizar é produzir outro tipo de conhecimento, gnóstico, poético, para além da lógica da semelhança. Herrera, na continuação do trecho do CANTO VIII, no qual define o termo babelizar, busca já pensar a sua reversão, o desbabelizar, que já está constituído na amplitude do significante em detrimento do significado da própria língua após a queda da torre. Enquanto babelizar é formular e construir sistemas e hegemonias - “Na afetividade. / Na geografia linguística, / Sistema funcional da língua, / Planos funcionais da língua. / Leis formais, / Leis linguísticas, / Leis lógicas; leis analíticas, / Leis de observação empírica, / Fórmulas facultativas, fórmulas estilísticas. /Norma, sistemas” (HERRERA, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 72) -, desbabelizar é a restituição da poesia, criação contínua, língua movente, a disrrupção do sistema - “Estar mudo é estar destituído de linguagem, / Mas no poeta a língua continua falando, /alando, ando e dando palavras ao mundo” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 73).

Desbabelizar, assim, é a mudança liminar da epistemologia do desglobalizar. É produzir uma língua universal, fraterna, mas sem dizimar o significante na unidade linguista. É olhar a diferença e fazer dela poesia. A poesia e a própria língua são uma tessitura de fios mágicos. O mito é fora do poder, e a razão quer o mito como fundador, como instaurador do poder. Na pólis ideal, platônica, o mito foi rechaçado, pois está junto com a literatura, em um pensamento mágico/mítico, o eu com o cosmo. Há um rebaixamento do mito, do tinha que ser, o mito se torna mentira. Antígona, por exemplo, quer manter a lei do mítico e místico, mas encontra a lei escrita, racional. O mítico tenta reconstruir/desenterrar. A língua portuguesa é original - põe o latim no colo. O mito é a utopia do comum - é uma partilha da utopia.

A poesia recupera o outro. Não por acaso, em Sinônimos o jogo de pertencimento e do estrangeiro está ligado ao uso da língua, à revolução de recuperar a própria narrativa. Ao repetir os signos, Yoav coloca o signo em pé, toma-o para si mesmo, como o poeta. Mesmo subjugado, Yoav deseja a palavra, o pertencimento da sua plasticidade. Como arte da linguagem, deseja-se partir do grau zero, reconfigurar o fazer-se estrangeiro, o impossível de quando se é estranho para a língua, retomar o gesto de atiçar, de tirar a língua das cinzas. Falar é gastar língua. O poeta faz o princípio poético, o estranho, o ser estrangeiro, fazer torção na língua. Sinônimos é fazer o igual estranho, estrangeiro. A epígrafe no CANTO IX, retirada de A paixão segundo G.H. (2020LISPECTOR, Clarice. Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.), de Clarice Lispector, “a solidão é ter apenas o destino humano”, sintetiza o desglobalizar do filme supracitado. O trecho evidencia a vida como aquela em que o fazer do humano na vida é a sua solidão - o desentendimento e a consciência da dor. É na tomada de consciência de ser eternamente estrangeiro que Yoav abraça a vida, a sua história e língua, transforma-se em poeta. Yoav tem uma percepção avassaladora da vida.

Ao fim, é possível afirmar que a arte rala o real, desbabeliza o outro, o estranho, a partir da própria dilaceração da palavra. Tudo é estímulo para a arte. O poeta é o ladrão de palavras, aquele que consagra o instante. A articulação da poesia é infinita - o impossível -, uma negociação da contingência da vida. A realidade está nas palavras e na incapacidade de apreender todas elas. É preciso perceber como se habita na palavra. Assim, tanto em Babel, de Antonia Torreão Herrera, quanto em Sinônimos, de Nadav Lapid, a desbabelização está na linguagem, na repetição dos sinônimos, na transformação da linguagem, na denúncia das opressões e no atravessamento de uma concepção maior de ser e estar no mundo. É na materialidade da câmera, em seu desconforto e obliquidade, em seus poucos cortes, em se fazer visível, como um respiro entre as letras, as palavras e os sinônimos de seu protagonista, que o desbabelizar poético de Antonia Torreão Herrera se constrói no filme de Nadav Lapid.

Desbabelizar é repensar que o mundo inteiro é França, é Brasil e é Israel, ainda que em suas potencialidades em diferença. Yoav toma a língua para si: ele faz uma aula de francês e recita o hino nacional francês, com suas referências a uma terra sendo encharcada pelo sangue dos impuros; agressão e morte e medo e violência estão por toda parte, para aqueles sintonizados com eles. O filme desbabeliza ao retratar a inescapabilidade da vida, tanto narrativa quanto formalmente, em todas as suas elipses e repetições, suas mudanças de estilo e tom, sua fascinação crua por corpos e movimentos, que giram em torno dessa sensação de aprisionamento corporal e cognitivo. Babel desbabeliza em seu conceito mítico-filosófico-poético, ao brincar com a materialidade da língua portuguesa, pensando como um constructo de diversas línguas, que atravessa “Do Oiapoque ao Chuí, sua cartografia./ A língua sobe montanhas, atravessa pontes, desbrava selvas./ Cada palavra agasalha uma casa e é ar, balão solto” (Herrera, 2020HERRERA, Antonia Torreão. Babel. Salvador: Editora da UFBA, 2020., p. 33). Dessa forma, o globalizar do mito de Babel se desglobaliza ao possibilitar a poesia, o estranho, o outro, como o apreensível em si mesmo. A imagem não explica, mas convida a reviver o espaço em que os contrários se fundem, se fazem o outro. Assim, desbabeliza-se, poesia mística, operação alquímica da língua, que faz ser presente a potencialidade da diferença.

Referências

  • CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote Tradução de Ernani Ssó. São Paulo: Penguim, 2012.
  • DERRIDA, Jacques. A Estrutura, o Signo e o Jogo no Discurso das Ciências Humanas. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. In: DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença São Paulo: Perspectiva, 1971. p. 229-249.
  • DERRIDA, Jacques. Torres de babel Tradução de Julia Barreto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. A palavra e as coisas Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
  • HERRERA, Antonia Torreão. Babel Salvador: Editora da UFBA, 2020.
  • LISPECTOR, Clarice. Paixão segundo G.H Rio de Janeiro: Rocco, 2020.
  • MIGNOLO, Walter D. Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2020.
  • SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 19. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.
  • SINÔNIMOS. Direção: Nadav Lapid. Produção: Saïd Ben Saïd, Michel Merkt. Interpretes: Tom Mercier, Quentin Dolmaire, Louise Chevillotte. Roteiro: Nadav Lapid, Haim Lapid. Paris: SBS Distribution; Grand Film; Estúdio Escarlate, 2019, bluray (123 min), wildscreen, color.
  • SOLÓN, Pablo. Alternativas sistêmicas: bem viver, decrescimento, comuns, ecofeminismo, direitos da Mãe Terra e desglobalização. Tradução de João Peres. São Paulo: Elefante, 2019.
  • VERGÈS, Françoise. Um feminismo decolonial Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Anderson Bastos Martins
Victor Coutinho Lage

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
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