Acessibilidade / Reportar erro

As doenças do Brasil segundo Valter Hugo Mãe

The diseases of Brazil according to Valter Hugo Mãe

RESUMO:

O objetivo deste trabalho é analisar As doenças do Brasil (2021), do escritor português Valter Hugo Mãe. O romance se desenvolve em torno dos Abaeté, etnia indígena ficcional. Em pleno período colonial, os Abaeté não vivem em paz, pois estão acossados pelos portugueses, que desejam usurpar suas terras e submeter seus corpos. Nossa análise se baseará na ecocrítica, corrente da Crítica Literária que estuda expressões artísticas que se ocupam do meio ambiente em todo o planeta, sem distinção de fronteiras. No entanto, a maior contribuição ao nosso trabalho advém de dois pensadores indígenas: Davi Kopenawa (2010) e Ailton Krenak (2019). Pretendemos considerar, ainda, alguns aspectos referentes à ética e à estética a partir das ideias de Murcho (2015) e Hermann (2005).

Palavras-chave:
As doenças do Brasil; Valter Hugo Mãe; Davi Kopenawa; Ailton Krenak

ABSTRACT:

The objective of this work is to analyse As doenças do Brasil (2021), by the Portuguese writer Valter Hugo Mãe. The novel develops around the Abaeté, a fictional indigenous ethnic group. In the middle of the colonial period, the Abaeté do not live in peace, as they are harassed by the Portuguese, who want to usurp their lands and subject their bodies. Our analysis will be based on ecocriticism, a current of Literary Ccriticism that studies artistic expressions that deal with the environment throughout the planet, without distinction of borders. However, the greatest contribution to our work comes from two indigenous thinkers: Davi Kopenawa (2010) and Ailton Krenak (2019). We also intend to consider some aspects related to ethics and aesthetics from the ideas of Murcho (2015) and Hermann (2005).

Keywords:
As doenças do Brasil; Valter Hugo Mãe; Davi Kopenawa; Ailton Krenak

O ser humano é parte da natureza, e sua guerra contra a natureza é inevitavelmente uma guerra contra si mesmo.

Rachel Carson

O escritor Valter Hugo Mãe nasceu em Angola em 1971, mas cresceu e vive em Portugal desde a infância. Poeta, artista plástico e cantor, ele é bastante conhecido no Brasil e em vários outros países especialmente por seus romances: o nosso reino (2004), o remorso de baltazar serapião (2006), o apocalipse dos trabalhadores (2008), a máquina de fazer espanhóis (2010),1 1 Os romances iniciais de Mãe foram grafados por ele em minúsculas. O filho de mil homens (2011), A desumanização (2013), Homens imprudentemente poéticos (2013) e, o mais recente, As doenças do Brasil (2021). É desse último que trataremos neste artigo.

As doenças do Brasil (2021) tem como foco os Abaeté2 2 Seguimos a mesma grafia adotada por antropólogos desde 1953, mas não alteramos a do romance. . Sua aldeia está localizada neste país por indicação do título e pelas circunstâncias em que se desenvolve a narrativa, mas essa etnia não existe nem nunca existiu entre nós (mas poderia ter existido, pois não sabemos quantas teriam sido exterminadas em todos esses séculos de exploração do território). Portanto, os Abaeté foram criados pela imaginação do autor, e isso nos parece um dado muito importante: enquanto os povos originários vão sendo liquidados cultural e/ou fisicamente, um escritor os (re)cria, vai na contramão da história, pratica uma espécie de reetnização literária.

A narrativa é elaborada em torno de Honra, um Abaeté que acabou de deixar de ser um transparente (criança) e se tornou um opaco (adulto). O protagonista está passando por um processo de amadurecimento que nos remete ao romance de formação.3 3 Romance de formação, em alemão, bildungsroman, segundo Moisés, é aquele gênero que “gira em torno das experiências que sofrem as personagens durante os anos de formação ou de educação, rumo da maturidade” (1985, p. 63). Vale considerar que a formação de Honra no livro de Mãe coincide historicamente com a formação - e posterior desenvolvimento - do Brasil colonial. Assim como esse momento de transição do território até então dominado por indígenas não acontece sem violência, ele se dá em relação ao jovem. Honra é o fruto de um estupro sofrido por sua mãe, Boa de Espanto: sua pele é branca e seu coração está cheio de ódio. Ele quer vingança. Praticamente toda a sua energia é voltada para a realização desse desejo. Honra aprende o idioma português e se adestra nas demais habilidades de que necessita para ir ao encalço do inimigo. Temos, assim, uma releitura bastante crítica do mito do encontro das três raças - tão enaltecido por Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (1933) -, pois não há encontro, o que há é conflito, tensão e morte. Tudo isso é reforçado pela presença de Meio da Noite, um escravizado negro em fuga e que fora apreendido pelos Abaeté. A princípio tensa, a relação entre esses dois, diferentes em quase tudo e ao mesmo tempo complementares, será fundamental para que Honra possa concluir sua trajetória de formação e para que se mova em busca da solução de seu trauma.

O livro

Na quarta capa de As doenças do Brasil temos um pequeno texto sintetizador e algumas breves linhas do líder indígena Ailton Krenak (2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. ), transcritas aqui na íntegra:

O Valter Hugo Mãe me anima a paraquedas coloridos desde o outro lado do atlântico [sic], com palavras que voam, fazem parábolas de afetos e sopram nos ouvidos. Afetos, poesia e mobilização de todo sentimento de solidariedade onde a terra clama por um ritmo pausado de conversas amigas.

Essa solidariedade de Mãe nos parece como uma espécie de globalização afetiva. Segundo Walter Mignolo (2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 377 e ss.), a globalização propriamente dita - que ele também chama de projetos globais - está profundamente imbricada, em um primeiro momento, com a expansão da fé cristã, que depois se tornou missão civilizadora, que, por sua vez, virou processo civilizador e que, mais recentemente, tem sido resumida na palavra progresso. Ou seja, a globalização se confundiria, em seus primórdios, com a colonização, pois expandir a fé, civilizar povos considerados selvagens e disseminar ideais de progresso fez parte das práticas imperialistas europeias ao redor do mundo.

O estágio atual de globalização tem o poder do mercado como seu objetivo final. Esse objetivo de expandir o mercado não prevê a conversão dos povos ao cristianismo ou à cidadania. Embora os objetivos do mercado não possam ser separados da ideologia do desenvolvimento e da modernização (Escobar, 1995), eles são espaciais e não temporais. A questão é aumentar o número de consumidores em todo o planeta [...]. (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 388).

Logo, enquanto a globalização propriamente dita é movida pelos interesses das grandes corporações e por criar necessidades onde não as há para expansão dos seus negócios, além de acarretar em homogeneização cultural - maneiras de vestir similares em diferentes lugares do mundo, por exemplo -, a globalização afetiva é parte significativa do que pode nos levar a considerar a Terra e todos aqueles que nela estão - minerais, vegetais, animais humanos e não humanos - de maneira integrada e interdependente, porém, não igual. Nem todos estão política e conscientemente envolvidos, todavia, todos estão, a despeito de seus interesses particulares, vivendo no mesmo planeta, respirando o mesmo ar e sujeitos às mesmas catástrofes ambientais, por mais que não sejam atingidos de maneira idêntica. É assim que um escritor como Valter Hugo Mãe, entre outros (inclusive nossos pensadores indígenas, cada vez mais traduzidos em diferentes línguas), aproveita a porosidade entre fronteiras, facilitada pela globalização, para afetar os mais variados povos.

Antes do conteúdo propriamente dito de As doenças do Brasil e após um sumário indicando as partes e os capítulos, temos o Prefácio de Conceição Evaristo. A escritora salienta o ponto de vista adotado em relação à colonização portuguesa: “vivida segundo a experiência indígena e negra” (Evaristo, 2021EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 7-12., p. 8). Ela afirma, ainda, que Mãe “constrói uma história que nos parece mais verdadeira do que aquela que os compêndios científicos nos apresentam. É impossível ler uma cena de estupro sem refletir sobre como se constituiu a tão elogiada mestiçagem brasileira” (Evaristo, 2021EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 7-12., p. 10). A prefaciadora questiona, assim, o mito do encontro harmônico das três raças, ao mesmo tempo em que admite uma aproximação louvável entre o ser humano, os animais e a natureza - “Tudo é fera” (Evaristo, 2021EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 7-12., p. 11) -, não lhe escapa que teria havido uma “dúvida que pairou durante a colonização se o africano seria um ser humano ou não” (Evaristo, 2021EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 7-12., p. 11-12). Essa dúvida foi muito útil, pois contribuiu para justificar a violência não só contra os negros, mas também contra os indígenas. A desumanização foi tão forte que persiste até hoje. Como afirma Davi Kopenawa, os brancos “Pensam que não somos humanos e nos detestam igualmente a todos! No entanto, mesmo sendo gente diferente dos brancos, temos boca e olhos, sangue e ossos, como eles!” (Kopenawa, 2021KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 434). A destituição de humanidade conferida aos negros e aos indígenas justifica a dizimação e o extermínio, obviamente há um componente racializador nisso tudo. Haveria, assim, diferentes graus de humanidade: alguns seriam mais humanos e outros menos. Isso cria uma divisão “entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018., p. 17). Essa engenharia do pensamento liquidou com a ideia de crime: “o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra nas colônias” (Mbembe, 2018, p. 36). O espírito da necropolítica - ou direito soberano de matar -, presente desde a colonização, é por demais evidente para ser negado. A necropolítica - palavra jamais assumida publicamente como prática pública ou privada - foi implementada pelo Estado (português, no período colonial; brasileiro, desde o século XIX), contou com sua anuência ou com o seu silêncio cúmplice.

As doenças do Brasil apresenta cinco epígrafes dispostas em ordem cronológica. A inicial é de Pero Vaz de Caminha, a segunda, de Frei Vicente do Salvador, a terceira, do Padre António Vieira, a quarta, de Davi Kopenawa, e a última, de Ailton Krenak. Portanto, dois notórios cronistas, um sacerdote que também era um pouco cronista e duas lideranças indígenas bastante ativas e conhecidas na contemporaneidade. Dessas epígrafes, destacamos as dos dois líderes indígenas. No trecho de A queda do céu (2015), Davi Kopenawa coloca a memória do seu povo em pé de igualdade com a suposta inteligência do branco. É com Kopenawa que o conteúdo do romance de Mãe dialoga mais diretamente, pois resgata o passado colonial e o presentifica. Esse diálogo se mantém com Ideias para adiar o fim do mundo (2019), a última epígrafe, na qual Ailton Krenak põe em xeque a civilização como verdade absoluta e, portanto, patamar a ser desejado e alcançado por todos os povos, inclusive os indígenas.

A propósito, é a Ailton Krenak que o livro é dedicado. O fato de o livro ser dedicado a ele, que aparece, como já dissemos, na contracapa e na última epígrafe, somado à epígrafe de Davi Kopenawa e ao conteúdo do romance, torna evidente quem são os homenageados por Mãe. Por um lado, a presença dessas muito respeitadas lideranças indígenas, somada à de Conceição Evaristo, protegem As doenças do Brasil de algum juízo apressado e superficial. Talvez pudesse parecer ousada a alguns a atitude de um escritor português adentrar em território nacional para expor as feridas ainda abertas da colonização executada pelos seus e que subjugou àqueles a quem Krenak, Kopenawa e Conceição Evaristo representam. Além disso, o escritor poderia ser criticado por adentrar em uma seara pouco familiar, entre outros fatores, por causa do distanciamento geográfico e cultural. Sobre tal problematização, ele se antecipa: “Não é minha intenção fazer antropologia, sociologia ou sequer história” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 197). E acrescenta: “Este não é um retrato de comunidade alguma que exista” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 163). De fato, os Abaeté, como mencionamos, não se constituem em uma etnia conhecida. Por outro lado, não basta a Valter Hugo Mãe, um escritor português nascido em Angola (colônia de Portugal até meados do século XX), criar uma etnia inexistente - mais uma em situação de vulnerabilidade - para demonstrar seu apreço a esses povos, é preciso reforçar a denúncia subjacente ao romance por meio da presença dos dois líderes indígenas e de Evaristo.

A primeira parte de As doenças do Brasil é marcada pela apresentação das personagens e pela rememoração do estupro sofrido por Boa de Espanto, que gerou o nascimento de Honra. Este, em particular, e a aldeia, em geral, buscam vingança. É nessa parte que Meio da Noite, o negro em fuga da escravidão, será capturado e integrado aos Abaeté. Na segunda parte, após ter abatido um branco, Honra tem sua primeira relação sexual. Adiante, Boa de Espanto consegue se lembrar do rosto do estuprador - o que possibilitará que seja enfim encontrado.

A vingança, ainda que não se realize dentro das expectativas iniciais dos Abaeté - ou do leitor -, pode ser vista como uma metáfora de uma busca de reparação histórica. O branco estuprador representaria a todos os colonizadores, enquanto Boa de Espanto representaria a terra e todos os indígenas que têm sido explorados - os mesmos indígenas que vêm defendendo as florestas até os dias atuais. Portanto, quando o livro de Valter Hugo Mãe denuncia os desmandos do passado contra esses povos, indiretamente ele denuncia os desmandos contemporâneos, pois a exploração e o etnocídio prosseguem em um tipo de colonização interna. É por tudo isso que pensamos esse romance como passível de ser analisado pelo viés da ecocrítica, da antropologia e do pensamento de lideranças indígenas também ativistas ambientais e que, não por acaso, constam nas suas epígrafes.

Após o final do romance, o leitor se depara com notas do autor; quatro no total. Dessas, a segunda tem como título “Meus povos”, uma alusão ao conteúdo do livro, porque é dessa maneira e no plural que Meio da Noite se refere aos seus. O escritor deixa clara sua visão a respeito da porosidade entre as fronteiras dos países: “quem é só de um lugar é pobre porque nenhum lugar é inteiro” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 197). Afirmação que combina com alguém que já escreveu romances ambientados no Japão e na Islândia e que expande a sua filiação: “Pertencemos por afecto e por fascínio” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 197). Mãe estabelece, assim, o que estamos chamando de globalização afetiva, pois se estende de forma amorosa e literária a outros povos não para homogeneizá-los, mas ao contrário, para mostrar a riqueza de suas particularidades. Após relatar uma experiência em uma aldeia dos Anacé, no Ceará, transcreve as palavras do cacique: “vá, e diga ao seu povo branco que um dia chegou aqui para nos matar, que seguimos de braços abertos para o receber como amigos” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 198). A resposta à missão instigada pelo cacique é As doenças do Brasil, dirigido em primeira mão aos portugueses, para que, segundo Mãe,

saibamos o impacto do passado no presente. É importante essa consciência para terminar seus efeitos e começar a mais elementar solidariedade. Ao menos, a solidariedade, contra toda a agressão, espoliação e assassinato a que sujeitam ainda os povos originários, esses que são o Brasil original, o Brasil sem as doenças brancas que quase os extinguiram. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 198).

Ou seja, a partir da própria consciência, que teria brotado no contato com os Anacé, o escritor busca provocar a conscientização de seus compatriotas. Revela-se, assim, uma intenção do escritor: chamar os seus à responsabilidade pelo que fizeram contra os povos indígenas durante a colonização e os reflexos que prosseguem aniquilando-os. Percebemos uma relação entre As doenças do Brasil e as narrativas ambientais, que são “any type of narrative in any media that foregrounds ecological issues and human-nature relationships, often but not always with the openly stated intention of bringing about social change” (Weik Von Mossner, 2017, p. 3 apudBruhn, 2021BRUHN, Jørgen. Towards an intermedial ecocriticism. In: ELLESTRÖN, Lars (org.). Beyond Media Borders. Växjö, Sweden: Linnaeus University, 2021. v. 2. p. 117-148., p. 120). Por mais que questões ambientais não pareçam compor o primeiro plano do romance de Mãe, elas estão representadas na violência praticada contra os indígenas desde o início do processo colonizador e que, como é sabido, se mantém até hoje atrás de palavras como progresso e desenvolvimento. Os mesmos indígenas que são, afinal, os grandes responsáveis pela manutenção da maior parte da cobertura florestal que ainda nos resta.

Adentrando o território de As doenças do Brasil

Mendes (2020MENDES, Maria do Carmo. No princípio era a Natureza: Percursos da Ecocrítica. Anthropocenica. Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020., p. 92 e ss.) traça um breve percurso da ecocrítica, no qual destaca o seu surgimento concomitante à crescente consciência a respeito da emergência climática por nós provocada. Tal estado emergencial é recente, mas suas raízes podem ser encontradas a partir da chegada dos primeiros europeus às Américas. Inicialmente colocada em termos de uma missão de expansão da fé cristã, depois alterada, mas não abandonada, para uma missão civilizadora (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 379), a colonização do território americano propiciou o desenvolvimento econômico, industrial e tecnológico de países como Portugal e Espanha, em um primeiro momento, e Inglaterra e França, em um momento posterior. Segundo Mignolo (2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 84) e outros autores (Quijano e Wallerstein) por ele citados, a economia capitalista não existiria sem as Américas. A ascensão europeia e de outras potências, como os Estados Unidos, esvaziando reservas naturais e causando uma série de impactos no clima, tem afetado todo o planeta, ainda que de diferentes formas e intensidades. A ecocrítica é um contraponto à globalização - ou aos projetos globais, como prefere Mignolo - que acelera a destruição da natureza e da vida daqueles que a protegem.

As pesquisas em torno dos problemas ambientais começaram nas ciências naturais no início da segunda metade do século XX e só alcançaram as humanidades na década de 1990. Essa expansão de interesse foi bem-vinda, porque

[…] the most general idea of intermedial ecocriticism is the conviction that the ecological crisis is not a problem or a condition restricted to investigations in the natural sciences, or that possible solutions to the crisis can be reduced to technological solutions. The humanities need to play a role in the question. (Bruhn, 2021BRUHN, Jørgen. Towards an intermedial ecocriticism. In: ELLESTRÖN, Lars (org.). Beyond Media Borders. Växjö, Sweden: Linnaeus University, 2021. v. 2. p. 117-148., p. 119).

As ciências humanas podem traduzir de uma forma mais acessível as pesquisas realizadas pelas ciências naturais, pois estas muitas vezes são postas em gráficos, números e em uma linguagem de difícil compreensão e pouco acessível à maioria das pessoas. Quando adentramos no território da literatura e dos estudos a ela vinculados, essa tradução assume uma potencialidade maior, pois nossos afetos podem ser mais bem acionados por narrativas ficcionais ou aquelas baseadas em fatos reais. É provável que o leitor se interesse mais por poemas, contos e romances que toquem em questões ambientais, por exemplo, do que por artigos científicos sobre os mesmos assuntos. Grande parte dessa sensibilização causada pela literatura advém de ela estar baseada em conhecimentos e dados adquiridos pelas ciências naturais e/ou humanas.

A ecocrítica surge para realizar uma espécie de alinhamento ou confluência entre vários campos do saber. A interdisciplinaridade que a atravessa é muito mais do que um projeto, é uma necessidade. Neste trabalho não deve ser diferente. Analisaremos As doenças do Brasil apelando à teoria da literatura, à história, à biologia, à antropologia, à ética e à estética - lembrando que essas últimas são desdobramentos da filosofia. Para Mendes, a ecocrítica se interessa “pela relação entre o homem e o meio ambiente com o qual ele interage [...]” (2020, p. 92). Logo, não se trata apenas de um “estudo da representação da natureza no texto literário” (Mendes, 2020MENDES, Maria do Carmo. No princípio era a Natureza: Percursos da Ecocrítica. Anthropocenica. Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020., p. 94), mas da interferência do humano na natureza e vice-versa. A partir do pensamento de Glotfelty, Mendes assinala “o espaço, tal como o género, a raça, a classe social ou os processos pós-coloniais” (2020, p. 96) como categorias possíveis e até desejáveis de análise literária.

Greg Garrard (2006GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora da UnB, 2006., p. 16) afirma, como outros autores da mesma corrente, que a ecocrítica estuda a “[...] relação entre o humano e o não-humano, ao longo de toda a história cultural humana [...], acarretando uma análise crítica do próprio termo ‘humano’”. O romance de Mãe não se furta à problematização desse conceito ao tratar daqueles que não são Abaeté como animais ou feras. Isso vale para Meio da Noite, o rapaz negro, ao menos até que ele obtenha a confiança de todos, e vale, sobretudo e sem exceções, para os brancos. Assim se inicia a narrativa:

O animal branco é o animal vazio, fera sem sinal de espírito, máscara vocabular que deita a palavra do mal, preda por ser torpe, dissimula e seduz, [...] semelhante aos sagrados abaeté mas torto, vocacionado para devorar e matar, [...] abeira para conter tudo quanto não lhe pertence, o lugar e a carne dos outros, a paz e a fertilidade dos outros, [...] ele não permite a confiança, seus acordos são a traição, a morte da gentileza. [...] É oposto ao diálogo porque aquilo que entoa mente. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 23).

Essa é a síntese de como os indígenas veem os colonizadores. Ao nomeá-los como animais ou feras, evidentemente os tomam de forma negativa: a destruição pela torpeza, o desejo de posse e a mentira. Enfim, características improváveis entre os animais não humanos. No fundo, o principal a se considerar é: “A interação da semelhança e da diferença na relação entre seres humanos e animais, de modo geral, pode ser analisada em termos da distinção entre metonímia e metáfora” (Garrard, 2006GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora da UnB, 2006., p. 197). Afinal, também somos parte (metonímia) do reino animal e, sempre que convenientemente apagamos tal fato, os utilizamos como elementos comparativos para diminuirmos outros humanos. No romance, os Abaeté julgam os invasores, os mesmos que decidiram o que e quem seria ou não humano, como não humanos, como inferiores. A “lógica” europeia é invertida, pois são os considerados por ela como primitivos que catalogam e classificam as suas alteridades. Todavia, “As culturas não são igualmente moldadas por todos os seus participantes, nem tampouco as muitas culturas mundiais são igualmente poderosas [...]” (Garrard, 2006GARRARD, Greg. Ecocrítica. Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora da UnB, 2006., p. 21). Logo, na narrativa de Mãe, prevalece a voz dos indígenas, porque é ela a dominante, mas, fora desse contexto, suas vozes são caladas e/ou desprezadas por quem tem ou está em busca de poder político e econômico. Para esses, o que importa é o progresso, aqui entendido nos mesmos termos de Garrard: “projeto de dominação do mundo” (2006, p. 51). O progresso organiza “o planeta de forma linear e hierárquica” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 388). Além disso, “O estágio atual da globalização tem o poder do mercado como seu objetivo final” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 388). Sob tal ótica, a natureza seria um mero recurso e estaria disponível para servir a interesses comerciais. Porém tais recursos não estavam tão acessíveis, sobretudo nos primeiros séculos da empreitada portuguesa; era preciso domesticar a natureza com muito trabalho. Assim como era preciso domesticar os povos nativos ou os negros escravizados fosse para esse trabalho, fosse para que não atrapalhassem o projeto de exploração. E, quando não atendiam à domesticação, eram dizimados.

É no contexto de resistência à dominação portuguesa que se desenvolve As doenças do Brasil. O jovem Honra está saindo da proteção de Boa de Espanto, sua mãe, e passando a se incumbir da missão de vingá-la e de diluir o próprio ódio em tal empreendimento. Tudo o que o move nessa direção está muito próximo dele, está vivo na cor da sua pele, basta que olhe para o próprio corpo. Honra é um membro Abaeté por nascimento e por cultura, mas a sua pele é branca; é um estranho entre os seus. Por causa dessa condição, torna-se objeto de zombarias das crianças e recebe uma série de epítetos: “Tristeza Branca, Maior Inimigo, Medo Branco, Fedor, Feio” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 31). A primeira dessas denominações indica um contraste com os demais indígenas. Tomado pelo ódio constante, Honra estaria distante das alegrias do cotidiano na aldeia. Da associação visual que os companheiros fazem dele com os brancos, os maiores inimigos, que surge o segundo epíteto. Decorrente desse é o Medo Branco, aquele que se teme. Há, ainda, a associação com o cheiro ruim e a feiura. Honra teria herdado essas características daquele que estuprou sua mãe, Boa de Espanto. A propósito, também Meio da Noite é nomeado como feio em diversos momentos. Portanto, feios são os estranhos aos indígenas.

É na passagem da vida de transparente (criança) a opaco (adulto) que Honra se dá conta da sua aparência:

[...] sou branco. Sei agora e não sei como não o via mesmo que vendo. Sou branco. E esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara. O inimigo parasita em mim para sempre. [...] Um excremento do branco no ventre de minha mãe. Sou a morte [...]. tenho essa prova grotesca de ser metade inimigo e de me ofender a mim mesmo [...]. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 34).

Notemos que a cor do branco é associada a algo que foi ruim a ponto de causar um ferimento, ferimento que não se fechou. Por conseguinte, o estupro sofrido por Boa de Espanto não é um acontecimento restrito ao passado. O corpo de Honra presentifica a violência. Como todo ato violento, há consequências que atingem diretamente a vítima, traumatizando-a por toda a vida, e há consequências que repercutem sobre todos aqueles que lhe são próximos. De um modo geral, a aldeia é afetada e, de um modo particular, Honra o é. Os Abaeté não o aceitam como um igual e tampouco ele se aceita. Até mesmo sua iniciação sexual é atrasada por causa da repulsa sentida pelas mulheres, denominadas como femininas na narrativa. É só depois que ele mata um branco que isso se dilui:

Boa de Espanto e Altura Verde celebraram o filho e o cantaram também, em seu redor a fazer alarido e levantando cores, cheios de ofertas nas mãos, coisas bonitas que orgulhavam a todos. Então, parada de dançar, uma feminina jovem se sentou e sucumbiu ao desejo por Honra. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 129).

Ou seja, quando obtém o reconhecimento da aldeia como um guerreiro valoroso, Honra atrai o olhar desejoso de uma das mulheres. A sua origem nefasta o obriga a provar que é digno de confiança e orgulho na própria comunidade onde nascera.

Mesmo fazendo parte do passado, o estupro é, assim, algo que impregna o romance todo. Instigada por Pai Todo, o líder dos Abaeté, Boa de Espanto rememora a cena violenta. A primeira vez que temos notícia do que houve é pelo narrador (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 32). Em seguida, sabemos que a feminina se comprometeu a retomar a história, porque

De cada vez que contava, ficava com a impressão de melhor lembrar seu rosto [o do estuprador]. Pai Todo lhe explicou que era modo de o chamar. Quando tivesse nenhuma dúvida de suas feições, seu inimigo estaria diante de si, inteiro, trazido à sua cobrança pelo verdadeiríssimo direito à vingança. Então, Boa de Espanto jurava que teria sempre a coragem de lembrar. Recontaria sua humilhação a vida toda. Recontaria porque isso ensinaria até as verdadeiríssimas dúvidas a duvidarem menos e a saberem como novamente levar à mata abaeté o inimigo que teriam o orgulho de matar. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 33-34).

A repetição da narrativa dolorosa tem propósitos muito claros: identificar o violador para implementar a vingança. É inegável que, ao rememorar, pode haver a libertação do sofrimento, apesar de, paradoxalmente, a atitude causar sofrimento, pois a vítima volta a sentir o horror e a humilhação.

A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência a compreensão dos mesmos. (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: A literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 45-58. , p. 48).

É porque a experiência traumática não foi assimilada que se torna necessário reiterá-la muitas vezes.

Daí Freud destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do “traumatizado” da cena violenta: a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real (em grego, vale lembrar, “trauma” significa ferida. A incapacidade de simbolizar o choque - o acaso que surge com a face da morte e do inimaginável - determina a repetição e a constante “posteridade”, ou seja, a volta après-coup da cena. (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: A literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 45-58. , p. 48-49).

A propósito, o trauma - ou a ferida - se estende à existência de Honra e é representado na sua própria pele. Quando ele confronta o estuprador de sua mãe, isso é repetido: “vim para te matar, animal horrendo, mais horrendo do que os outros, que feriste minha mãe, e eu sou a ferida sem ter cura” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 184).

Além de ser testemunha do horror do estupro, Boa de Espanto esteve próxima do fim, pois também foi espancada de forma violenta (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 49). Portanto, ela pode ser vista como “mártir - no sentido de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte -, termo que vem do grego mártur e significa “testemunha ou sobrevivente” (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: A literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 45-58. , p. 47). Ou seja, “Aquele que testemunha sobreviveu - de modo incompreensível - à morte: ele como que a penetrou” (Seligmann-Silva, 2003SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: A literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 45-58. , p. 52, destaque do autor). É nesse contexto que, como em qualquer processo terapêutico, as repetições do episódio são bastante dolorosas para Boa de Espanto, ao ponto de ela adoecer fisicamente:

A feminina começou por incomodar-se com a barriga. Eram dores de haver comido algum fruto podre, e não lhe retiravam forças ou deitavam pelo chão. Moíam por dentro, a trabalhar por dentro como se algum animal vivo ali caminhasse. [...] aquela dor era persistente. Atarefada, alguma coisa se impunha à sua atenção, turvando cada gesto, obrigando todos os instantes a ponderar que seria, o que seria aquilo agora. O que doeria dentro do corpo belo de Boa de Espanto. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 163).

Não nos parece casual que o incômodo seja no abdômen, pois, afinal, é nessa região que as crianças são geradas. A dor física levará Boa de Espanto à identidade do estuprador. Sem conseguir dormir, ela perambula pela aldeia até onde Honra repousava. Altura Verde a encontra e ambos permanecem ao lado do rapaz durante toda a noite. Quando o sol começa a nascer, observando Honra ainda adormecido, a mãe tem um insight:

[...] este é o rosto da fera inimiga. É este o rosto da fera inimiga que feriu o filho em meu ventre. Assim o vi diante de meus olhos. O mesmo pouco verde atirado ao vazio. A mesma impressão de ser uma iluminação caída do céu. A força e o som de uma fera cujo corpo quase não difere do brilho. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 165).

Boa de Espanto enfim “entendera que o filho crescera o resto do inimigo” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 165). O mistério em torno da identidade do estuprador está assim desfeito. E mais, para Boa de Espanto, “Honra imitara o rosto do branco. Era branco e em tudo soubera imitar o branco” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 166). A feminina então retoma, pela última vez, à cena da violência sexual que sofreu: “O inimigo levantou de mim, enfim satisfeito, pensando também que eu era morta, mais nada. E olhou meu rosto e eu olhei seu rosto, o mesmo de Honra” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 167). O quebra-cabeça está completo. Primeiramente ela vê o rosto do branco no filho e, ao rememorar, há uma inversão, pois passa a ver o filho no semblante do branco. Aparentemente, Boa de Espanto se recusou a ver em Honra o rosto do inimigo durante anos. Para não o rejeitar, ela negara sua verdadeira identidade. Todavia, como até recentemente ele era uma criança, cabe dizer que só ao atingir a fase adulta a identidade se revela. É quando admite a ligação estreita entre o agressor e o fruto da agressão que a feminina poderá libertar-se do sofrimento e obter um mapa da vingança tão almejada por todos os Abaeté, especialmente por seu filho.

A repetição da cena do estupro, a cada vez com pequenas alterações e acréscimos de detalhes, demonstra o processo pelo qual Boa de Espanto precisou passar para se livrar do trauma sofrido e reconstituir a identidade do violador em sua mente. Mas não só. Esse recurso que liberta e maltrata quem narra e quem ouve - ou lê - pode ser visto como uma rememoração da história nacional. Ao mesmo tempo em que a indígena de As doenças do Brasil é uma das muitas mulheres que foram estupradas desde o início da colonização até os dias atuais, ela também representa a violência sofrida por todas as indígenas. Portanto, Boa de Espanto é a metonímia e a metáfora dessa violência. Repetir o acontecimento quase à exaustão é um recurso que não o normaliza, ao contrário. Repeti-lo destaca o abuso na sua intensidade e na sua quantidade, além de mostrar os efeitos causados na vítima e em todos a sua volta. A história se repete porque a história de Boa de Espanto repete a história coletiva. A cada vez que a Abaeté fala da dor individual, é de várias outras mulheres que sofreram, e ainda sofrem, o que ela fala. A feminina fala por si e por todas; o que ela viveu, muitas viveram e vivem. Na verdade, como o romance deixa claro pela voz de Meio da Noite, o sofrimento indígena não foi diferente do sofrimento negro: “Meus povos morreram a trabalhar, espancados sem razão, estuprados” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 93). E certamente muitas mulheres expiraram nesses momentos. Não por acaso Boa de Espanto pensa ter morrido logo após o estupro.

O estupro sempre teve muitas funções para o explorador e com certeza a realização de um desejo sexual supostamente incontrolável nunca foi o principal. Durante a violência à qual fora submetida, a própria Boa de Espanto percebeu isso: “E ele entrou no meu corpo por quase nada. Não era folia. Era fúria” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 98) e “Calei e ele sorriu mais quando bateu” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 100). A satisfação sexual está conjugada à vontade de aniquilamento. Tal fúria e gozo viriam de um outro desejo, o de subjugar a vítima, seja pelo estupro em si, seja pelo espancamento. Conforme já dissemos, não tratamos apenas da vítima direta do estupro, o que não seria pouco; tratamos da vítima e da aldeia à qual ela pertence e, por extensão, do território. Possuir as mulheres, ainda que por um breve momento, é uma metáfora da posse da terra. E sempre que há gravidez, o domínio é espraiado: demarcar um corpo indígena é um ato equivalente a demarcar um território. É essa marca que Honra tenta apagar de sua pele de todas as formas. Ele recusa a semelhança com o inimigo e ser assim dominado, porque, mais do que a busca da vingança, ele deseja ser integralmente um Abaeté. Ser um Abaeté é resistir a qualquer submissão. A vingança é para Honra, de certo modo, uma compensação para aquilo que ele não pode alterar: a cor da pele. No entanto, quanto mais ele tenta se livrar dessa identidade, mais preso a ela fica. Ao decidir não matar o progenitor, quando enfim o encontra, o rapaz parece perceber isso. Matá-lo, além de não mudar sua cor, não mudaria quem ele se tornara - ou se tornava na decisão tomada: um verdadeiro Abaeté. Honra pode, assim, renunciar à vingança, porque não necessita mais dela.

Naquele instante em que o pai se deixava morrer e o filho decidia não matar. Era a assunção do vazio por parte da grotesca fera, e a reclamação da grandeza por parte do guerreiro que maturava para a plena gentileza abaeté. Naquele gesto, distantes um do outro pela miserável vergonha e pela esplendorosa coragem de admitirem a vida do inimigo, os dois desfiguravam a semelhança, batia água macia do igarapé e terminavam de se imitar. Existiam sem relação. Iam ser sem relação. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 186).

Honra se torna um Abaeté de fato porque entende, incorpora e utiliza um dos gestos de gentileza do seu povo: o perdão. Ele não se vinga, ele se livra do progenitor e honra o seu próprio nome e o seu verdadeiro pai, aquele que o criou: “Altura Verde me perdoe o que fiz a um pai. Única importância é a gentileza de Altura Verde, o cansaço de ter afecto por mim, de cuidar de gostar de mim mesmo durante os erros que cometo” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 186). Ao se filiar ao pai que o criara, Honra se filia em definitivo ao povo Abaeté. Agora ele se sente um “homem verdadeiro”4 4 Segundo o Dicionário ilustrado Tupi-Guarani: “‘Abaeté’ é um termo oriundo da língua tupi e significa ‘homem verdadeiro’, através da junção de aba (‘homem’) e eté (‘verdadeiro’)”. .

A integração entre Honra e os Abaeté - estabelecida perto do fim da narrativa - é similar à integração entre os povos indígenas e a natureza - estabelecida desde sempre. Afinal, como diz Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo, o mesmo livro do qual Valter Hugo Mãe toma uma de suas epígrafes, “Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza” (Krenak, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 17). Exemplos não faltam: entre os Krenak, um morro determina o comportamento das pessoas; nos Andes, montanhas são reverenciadas pelos povos originários; e os Massai, na África, impediram que sua montanha se tornasse um parque (Krenak, 2020, p. 18). É, ainda, Krenak quem afirma:

[...] estamos tentando abordar o impacto que nós, humanos, causamos neste organismo vivo que é a Terra, que em algumas culturas continua sendo reconhecida como nossa mãe e provedora em amplos sentidos, não só na dimensão da subsistência e na manutenção das nossas vidas, mas também na dimensão transcendente que dá sentido à nossa existência. (Krenak, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 42-43).

Krenak se refere ao planeta como mãe, uma associação ao feminino provedor. A relação entre a fertilidade da terra e a fertilidade da mulher é das mais remotas na história da humanidade. No entanto, o olhar do explorador é muito diferente. Ele não vê a natureza como sagrada ou algo a ser simplesmente respeitado. Ele quer saqueá-la, levar consigo tudo o que puder ser compreendido como riqueza. Para a realização do seu objetivo, é preciso quebrar ou atrapalhar o vínculo dos povos indígenas com a natureza e estabelecer seu próprio vínculo, o vínculo do domínio. Por isso dissemos que é importante o estupro: a posse da mulher indígena é a metáfora da posse da terra inteira. Além do simbólico, é necessário obter mão de obra para a execução das tarefas exploratórias; para isso serviram os negros e os próprios indígenas. Se muitas vezes esses foram guias e carregadores de maneira voluntária ou escravizados, por outro, foram eles os obstáculos na exploração da natureza toda vez que se recusaram a esses papéis, ou quando simplesmente não eram úteis. Nesses casos, tornavam-se obstáculos a serem eliminados.

O romance de Mãe nos faz observar que, hoje, nossa visão de mundo, de um modo geral, é bem mais herdeira do branco colonizador do que dos povos indígenas - e, por extensão, da natureza. Por isso, “excluímos da vida, localmente, as formas de organização que não estão integradas ao mundo da mercadoria” (Krenak, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 47), excluímos todos os humanos que não vivem como nós: “a gente pode comê-los, socá-los, fraturá-los, despachá-los para outro lugar do espaço. O estado de mundo que vivemos hoje é exatamente o mesmo que os nossos antepassados recentes encomendaram para nós” (Krenak, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 76). Reproduzimos, assim, o gesto do colonizador de forma mais, menos ou nada metafórica. Para nós, um rio é um mero recurso hídrico - ou pior, um lugar para descarte de dejetos de todo tipo.

Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos, não só aos que em diferentes graduação [sic] são chamados de índios, indígenas ou povos indígenas, mas a todos. (Krenak, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 49-50).

Para Davi Kopenawa, pensador também presente em uma das epígrafes utilizadas por Valter Hugo Mãe, a aproximação entre nós e a natureza é mediada pelos xamãs, é a eles que devemos o pouco de equilíbrio que ainda resta no planeta:

Sem o trabalho dos xamãs, voltaria ao caos depressa. A chuva e a escuridão, a raiva dos trovões, dos raios e do vendaval não cessariam nunca. Só os xapiri podem protegê-la e fortalecê-la. Por isso seguimos as pegadas de nossos ancestrais, virando espíritos com a yãkoana. Isso deixa os xapiri felizes e, assim, eles continuam cuidando de nós. Os brancos não sabem nada dessas coisas. Se contentam em pensar que somos mais ignorantes do que eles, apenas porque sabem fabricar máquinas, papel e gravadores! (Kopenawa, 2021KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 201).

A ausência de identificação com a natureza - um pensamento cheio de esquecimento (Kopenawa, 2021KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 253, 384) sobre a ancestralidade - nos cega para o estado de emergência climática que, por enquanto, atinge principalmente os não privilegiados pela condição racial, social e/ou econômica, mas que avança a passos largos em direção a todos. É assim que “aqueles povos que fomos ensinados a ver como sobrevivências de nosso passado humano [inclusive colonial] - povos forçados a ‘subviver’ no presente em meio às ruínas de seus mundos originários - se mostram inesperadamente como imagens de nosso próprio futuro” (Viveiros de Castro, 2020bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Posfácio: perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020b. p. 73-84., p. 80), colocando em xeque quem são, afinal, os verdadeiros ignorantes.

A linguagem poética e a ética

A estética, em geral, não exclui a ética, e a ética tampouco exclui a estética. Desde os primórdios, estão unidas, visto que, a despeito de Platão, que desejava expulsar a literatura da polis, ela foi pensada por muitos como uma espécie de esteio da sociedade: “[...] a arte tem estado historicamente quase sempre ao serviço da moralidade” (Murcho, 2015MURCHO, Desidério. A moral da história: ética, estética e literatura. In: SEMINÁRIO DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA, 8, 2012, Niterói. Anais, Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015. p. 56-62., p. 57). Obviamente isso vem sendo rompido: “[...] muitas correntes na história mais recente das artes rejeitam tal papel de subserviência entre as artes e a moralidade” (Murcho, 2015MURCHO, Desidério. A moral da história: ética, estética e literatura. In: SEMINÁRIO DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA, 8, 2012, Niterói. Anais, Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015. p. 56-62., p. 57). Porém, o fato de termos um grande número de leitores não especializados que ainda hoje buscam a “moral da história”, um tipo de ensinamento, diz muito sobre a tradição que foi criada em torno da ideia. Segundo Murcho, existe uma

[...] ligação intuitiva entre a valorização estética e a valorização ética. Na maneira como as crianças são educadas isso está patente: quando a criança faz algo moralmente errado, dizemos-lhe que fez uma coisa feia, e quando faz uma coisa boa, dizemos-lhe que fez uma coisa bonita. (2015, p. 59).

O exemplo é singelo, mas torna nítido que estabelecer uma relação entre a ética e a estética faz parte da cultura que nos constitui, ao menos no Ocidente.

Segundo Hermann, o que a experiência estética “provoca em nossos sentidos e nossa imaginação tem uma força irresistível na ampliação das relações com o mundo, inclusive com a ética. Essa força tem mais efetividade para ampliar nossa sensibilidade moral, que a justificação racional de regras” (2005, p. 31). E a efetividade advém dos afetos mobilizados em nós pela literatura. É preciso dizer com Hermann: “se a realidade é uma produção, é preciso contar com a existência de mundos diferentes” (2005, p. 38). Ora, o poema, o conto, o romance, contribuem para denunciar a realidade e para vislumbrar outros modos de existir - como o dos povos indígenas. No jogo proposto pelo texto literário, há beleza e há regras, mas as regras muitas vezes são criadas no próprio texto. Não falamos em regras aqui apenas no sentido de que um romance só é um romance se atender a determinados pressupostos, ou no sentido de que seu leitor o percebe enquanto romance porque conhece algumas dessas regras que o auxiliam a saber que não está diante de um poema ou de um conto. Há também regras outras, de quebras de paradigmas, de formas de olhar e experienciar o mundo que podem ser estabelecidas na literatura e nas artes. Por um efeito sutil de contiguidade, o leitor percebe que, se há regras no romance, há regras em tudo. Observa-se, assim, na narrativa de ficção, um pressuposto básico da ética: certos limites não devem ser ultrapassados. Todavia, o romance nos ensina que é possível ultrapassar e até criar novas regras.

Nessa medida, a literatura nos coloca para jogar um jogo com regras, inclusive novas, e, por extensão, pode nos auxiliar a nos organizarmos e ao mundo, porque “Cabe ao homem produzir o sentido da existência, que só pode ser pensado a partir da estética” (Hermann, 2005HERMANN, Nadja. Ética e estética: A relação quase esquecida. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2005., p. 52). Se percebemos os Abaeté em As doenças do Brasil como a parte afetada de forma violenta pelo processo de colonização, sobretudo corroborado por informações históricas e científicas,5 5 Segundo dados disponíveis na revista ComCiência (https://www.comciencia.br/dna-dos-brasileiros-carrega-marcas-da-colonizacao), entre outros veículos, o projeto DNA do Brasil revelou que a nossa herança materna africana e indígena é respectivamente de 36% e 34%, enquanto a paterna, de origem europeia, é de 75%. Portanto, nossa origem negra e indígena não se refere a pais e sim e sobretudo a mães. É preciso ter em mente que o volume de homens brancos nos séculos iniciais de colonização era muito menor do que o dos povos indígenas ou africanos. Essas informações, acrescidas ao nosso conhecimento das intenções coloniais, conduzem-nos a uma conclusão até certo ponto óbvia: a maioria das relações sexuais entre esses homens e essas mulheres teria sido violenta. provavelmente estabeleceremos um vínculo de empatia com esse povo, vínculo que poderá extrapolar o campo ficcional e ser estendido aos indígenas atuais.

Diferentemente das tradicionais fontes de informação, a literatura não trabalha com dados científicos nem com estatísticas - o que não significa dizer que não possa utilizá-las. A literatura lança palavras que fazem com que o próprio leitor atribua sentido ao que lê. Isso requer que ele entre no jogo do romance, ou melhor, que ele jogue o jogo, que seja capaz de elaborar imagens, compreender metáforas e outras figuras de linguagem e pensamento para que possa reconfigurar o mundo da literatura e, finalmente, ligar esse mundo ao mundo no qual ele próprio vive.

A linguagem poética utilizada em As doenças do Brasil é um dos principais recursos com potencial para sensibilizar o leitor, pois aponta para um olhar que o desloca da linguagem comum cotidiana e até mesmo da de outros romances. Apesar de não ser um recurso em si novo, a linguagem poética no livro de Mãe não é das mais usuais. O inusitado se faz de maneiras diversas, a começar pela escolha dos nomes das personagens: Honra - o que busca a reparação -, Meio da Noite - o que possui a pele escura -, Boa de Espanto - a que foi surpreendida pelo inimigo -, Pai Todo - o que lidera. Ao invés de falar em madrugada, por exemplo, o narrador fala que “o dia ainda não era” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 189). O verbo nadar não é uma opção no universo Abaeté, Honra afirma: “navegarei meu próprio corpo” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 191). Para um povo novo, uma forma nova de falar. Há diversos exemplos em que a narrativa praticamente se torna um poema. Este, em que os indígenas agradecem à divindade, é um deles: “obrigado por nosso irmão, obrigado por nossas ilhas, cada dente é uma fera, em cada fera outra fera. A mata traz, a mata liberta” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 28). O ritmo, a repetição de palavras e as rimas (é/fera/liberta; mata/traz), conceitos poéticos típicos, estão presentes. Observamos, ainda, nesse último excerto, a metáfora da natureza, a mata, no caso, como libertadora - um valor ético importante na cultura indígena e em outras.

A propósito, a utilização metafórica da linguagem é constante. O fato de Boa de Espanto ter sido estuprada é assim referido em uma das passagens: “O inimigo feriu o filho no ventre de uma feminina. E ela restou na mata, distante, batida para morrer mas não morreu por completo” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 32). Percebemos assim que, ao invés de dizer que Boa de Espanto engravidou em uma situação de violência sexual, o autor optou por “o inimigo feriu o filho no ventre”. Portanto, não se trata de uma metáfora que encobre a brutalidade do agressor, ao contrário. Dizer feminina também imprime uma nova camada à palavra mulher. Talvez mais delicada, talvez mais frágil. Frágil demais para resistir à violência do homem branco, caso da maioria das indígenas. Todavia, Boa de Espanto conseguiu sobreviver às agressões, porque ficou “batida para morrer mas não morreu por completo”. É importante mencionar, ainda, que a ideia de que o “inimigo feriu o filho no ventre de uma feminina” será transposta para a imagem que Honra imprime de si próprio: “esta cor não é cicatriz, é ferida e não sara” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 34). O escritor-poeta resiste à rima fácil (cor/dor) e opta por uma rima toante: cicatriz/ferida. Também é preciso considerar que “ferida que não sara” é uma metáfora que dialoga com “não morreu por completo”. Ambos, mãe e filho, estariam marcados pela morte: ela, porque quase pereceu, ele, porque não se livraria de ser o fruto dessa violência. Além disso, “ferida que não sara” remete à doença e, por extensão, ao título do romance, o que faz pensar na impossibilidade de o Brasil se curar enquanto as feridas seguirem abertas.

A metáfora da doença retorna quando Pai Todo explica a Honra a palavra abissal, ou seja, a palavra futuro, vista como perigosa para os Abaeté, como perigosas costumam ser todas as coisas advindas dos brancos:

Uma ideia que preda o modo como vivemos, o nosso tempo concreto, sem mentira. [...] uma mentira sobre o tempo que nos impede de viver quando somos e nos adia para quando jamais haveremos de ser. Chama-se futuro. É uma ideia para onde tudo cai, os que soam, os bichos, as matas, os mares, o mundo inteiro, até a morte e a encantaria. O futuro é a ideia que abre por sobre todas as palavras para as adoecer, e por sob todos os pés e todas as raízes, obrigando à pronúncia apenas depois num depois que, por definição, não acontece. (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 171).

O primeiro elemento a ser destacado em relação à palavra abissal é a mentira. Em pouco tempo de contato com os brancos, os povos originários perceberam o engodo ao qual foram conduzidos e o vazio das promessas que lhes eram feitas. Afinal, promessas não cumpridas são logo identificadas como falsas. Kopenawa também identifica esse problema:

Nossos antigos não sabiam imitar a língua daqueles forasteiros. Por isso os deixaram chegar perto de suas casas sem hostilidade. [...] Acho, no final, que foram enganados por aqueles napë [brancos] que exibiam seus objetos manufaturados com boas palavras [...]. Aliás, é sempre assim que os brancos começam a falar conosco! Depois, logo atrás deles, chegam os seres de epidemia xawarari e então começamos a morrer [...]. (Kopenawa, 2021KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 245).

Retomando a citação de Mãe acima, a fala de Pai Todo é premonitória: o futuro adoece - e mata - até mesmo as palavras, ele não acontece porque é sempre depois, portanto inatingível, e porque nele quem se é hoje não é possível se ser amanhã. O que a palavra abissal reserva aos Abaeté é o fim do mundo no qual vivem e, por consequência, o deles próprios. O futuro é nefasto aos indígenas, pois eles não visam o acúmulo de riquezas, suas vidas se dão no aqui e agora do dia a dia ou se estendem ao passado - presente na memória de acontecimentos e pessoas e no culto a seus entes espirituais:

Com estas palavras, só quero avisá-los de que as coisas maléficas que tiram da terra não vão deixá-los ricos por muito tempo! O valor dos nossos mortos vai ser muito alto, e eles com certeza não vão conseguir compensá-lo com suas peles de papel. Nenhum valor, como eu disse, pode comprar a terra, a floresta, os morros e os rios. O dinheiro dos brancos não vai valer nada diante do valor dos xamãs e dos xapiri. (Kopenawa, 2021KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. , p. 496).

No universo indígena há “uma concepção das relações com a natureza que privilegia as interações sociais e simbólicas com o mundo animal, e na qual o xamanismo é uma concepção central” (Viveiros de Castro, 2020aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Ubu, 2020a., p. 297). Os povos originários se adaptam ao que é e ao que há no seu entorno sem interferência predatória no meio ambiente. O colonizador, ao contrário, é movido pelo que virá e por isso inventou uma palavra para expressar o que ainda não é e que, quando for, não será mais futuro - como diria Santo Agostinho (2004AGOSTINHO -, Santo. Livro XI. In: AGOSTINHO -. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 309-340., p. 323, 327 e 337). Tudo deve ser dominado, controlado e acumulado, inclusive a natureza - em geral vista como mero recurso. Em um dos últimos capítulos do romance, Honra compreenderá melhor o perigo da invasão das terras do seu povo: “Ali estava a palavra abissal do futuro, para onde caíam todas as coisas afinal sem regresso” (Mãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 184).

A ausência da ideia de futuro na cultura Abaeté e a sua invenção pelos brancos é uma das pontes mais evidentes entre a história narrada em As doenças do Brasil e a ética. Afinal, esse é um romance que trata do passado, que é publicado no presente e que acende um sinal de alerta para o futuro.

O livro de Mãe contribui para aguçar nossos sentimentos e pensamentos na direção de uma ética ambiental nos termos cunhados pela ecocrítica (Mendes, 2020MENDES, Maria do Carmo. No princípio era a Natureza: Percursos da Ecocrítica. Anthropocenica. Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020., p. 100), mas igualmente por Kopenawa em A queda do céu e Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo, ainda que não utilizem a mesma expressão. A propósito do livro de Krenak, vale lembrar que é dele uma das epígrafes de As doenças do Brasil:

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisa ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em diferentes períodos da história. (Krenak, 2019 apudMãe, 2021MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021., p. 16).

Acontece que esse “jeito certo de estar aqui” nos colocou em uma emergência ambiental sem precedentes, pois foi causada por nós mesmos. Mignolo também problematiza a ideia de “que o mundo precisava ser civilizado e que, os que proclamavam isso, tinham o modelo certo (isto é, o projeto global correto) de civilização” (2003, p. 381). No lugar dessa “verdade” absoluta, o autor argentino propõe o

“pensamento liminar” e gnose “liminar”, como rearticulação da diferença colonial: a “diversalidade como projeto universal”, o que significa que os povos e comunidades têm o direito de ser diferentes precisamente porque “nós” somos todos iguais em uma ordem universal metafísica, embora sejamos diferentes no que diz respeito à ordem global da colonialidade do poder. (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 420).

A presença de Ailton Krenak e Davi Kopenawa nas epígrafes do romance de Mãe e neste trabalho são parte fundamental do pensamento liminar proposto por Mignolo, pois são duas lideranças indígenas que produzem reflexões cruciais e éticas, inclusive uma ética ambiental, sobre o estar no mundo a partir das margens, justamente essas margens tão atacadas e destruídas, mas que a literatura é capaz de reacender.

Considerações finais

Naturalmente, uma análise será sempre muito diversa de outras, mas realizá-la a partir de alguns pressupostos da ecocrítica, da antropologia e, sobretudo, do pensamento de Ailton Krenak e Davi Kopenawa nos pareceu um bom caminho. As doenças do Brasil trata do início do aniquilamento indígena, e uma das principais preocupações da ecocrítica e da antropologia é com esses povos, pois eles protegem a natureza há mais de 500 anos com seus frágeis corpos e com seus modos de vida não agressivos ao meio ambiente. Tal constatação se desdobra em outra: a estética presente na tessitura do romance contribui para fomentar princípios éticos de defesa dessas vidas porque sensibiliza o leitor. Afinal, o drama dos Abaeté, os protagonistas, pode ser resumido na violência do invasor branco. Violência que se realiza de diferentes formas, mas demonstrada sobretudo na repetição da narração do estupro. Evidentemente, a violência sexual fere qualquer ética, e sem princípios éticos que sustentem um movimento de proteção em relação aos povos indígenas, pouco ou nada será possível em termos deles próprios, da natureza e da manutenção da existência de todos nós.

Referências

  • AGOSTINHO -, Santo. Livro XI. In: AGOSTINHO -. Confissões Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 309-340.
  • BRUHN, Jørgen. Towards an intermedial ecocriticism. In: ELLESTRÖN, Lars (org.). Beyond Media Borders Växjö, Sweden: Linnaeus University, 2021. v. 2. p. 117-148.
  • DICIONÁRIO ilustrado Tupi-Guarani. Abaeté Disponível em: https://www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/abaete/ Acesso em: 29 de jan. 2023.
    » https://www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/abaete/
  • EVARISTO, Conceição. Prefácio. In: MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021. p. 7-12.
  • GARRARD, Greg. Ecocrítica Tradução de Vera Ribeiro. Brasília: Editora da UnB, 2006.
  • HERMANN, Nadja. Ética e estética: A relação quase esquecida. Porto Alegre: Editora da PUCRS, 2005.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • MÃE, Valter Hugo. As doenças do Brasil Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2021.
  • MBEMBE, Achille. Necropolítica Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
  • MENDES, Maria do Carmo. No princípio era a Natureza: Percursos da Ecocrítica. Anthropocenica Revista de Estudos do Antropoceno e Ecocrítica, Braga, v. 1, p. 91-104, 2020.
  • MIGNOLO, Walter D. Histórias locais/Projetos Globais: Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003.
  • MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
  • MURCHO, Desidério. A moral da história: ética, estética e literatura. In: SEMINÁRIO DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA, 8, 2012, Niterói. Anais, Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015. p. 56-62.
  • SELIGMANN-SILVA, Márcio. Apresentação da questão: A literatura do trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. p. 45-58.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem São Paulo: Ubu, 2020a.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Posfácio: perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2020b. p. 73-84.
  • XAVIER, Ana Augusta Odorissi. DNA dos brasileiros carrega marcas da colonização. ComCiência - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, Campinas, 2020. Disponível em: https://www.comciencia.br/dna-dos-brasileiros-carrega-marcas-da-colonizacao Acesso em: 23 out. 2022.
    » https://www.comciencia.br/dna-dos-brasileiros-carrega-marcas-da-colonizacao
  • 1
    Os romances iniciais de Mãe foram grafados por ele em minúsculas.
  • 2
    Seguimos a mesma grafia adotada por antropólogos desde 1953, mas não alteramos a do romance.
  • 3
    Romance de formação, em alemão, bildungsroman, segundo MoisésMOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1985., é aquele gênero que “gira em torno das experiências que sofrem as personagens durante os anos de formação ou de educação, rumo da maturidade” (1985, p. 63).
  • 4
    Segundo o Dicionário ilustrado Tupi-GuaraniDICIONÁRIO ilustrado Tupi-Guarani. Abaeté. Disponível em: https://www.dicionariotupiguarani.com.br/dicionario/abaete/ . Acesso em: 29 de jan. 2023.
    https://www.dicionariotupiguarani.com.br...
    : “‘Abaeté’ é um termo oriundo da língua tupi e significa ‘homem verdadeiro’, através da junção de aba (‘homem’) e eté (‘verdadeiro’)”.
  • 5
    Segundo dados disponíveis na revista ComCiênciaXAVIER, Ana Augusta Odorissi. DNA dos brasileiros carrega marcas da colonização. ComCiência - Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, Campinas, 2020. Disponível em: https://www.comciencia.br/dna-dos-brasileiros-carrega-marcas-da-colonizacao . Acesso em: 23 out. 2022.
    https://www.comciencia.br/dna-dos-brasil...
    (https://www.comciencia.br/dna-dos-brasileiros-carrega-marcas-da-colonizacao), entre outros veículos, o projeto DNA do Brasil revelou que a nossa herança materna africana e indígena é respectivamente de 36% e 34%, enquanto a paterna, de origem europeia, é de 75%. Portanto, nossa origem negra e indígena não se refere a pais e sim e sobretudo a mães. É preciso ter em mente que o volume de homens brancos nos séculos iniciais de colonização era muito menor do que o dos povos indígenas ou africanos. Essas informações, acrescidas ao nosso conhecimento das intenções coloniais, conduzem-nos a uma conclusão até certo ponto óbvia: a maioria das relações sexuais entre esses homens e essas mulheres teria sido violenta.

Editado por

Editor-chefe:

Rachel Esteves Lima

Editor executivo:

Anderson Bastos Martins
Victor Coutinho Lage

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
Associação Brasileira de Literatura Comparada Rua Barão de Jeremoabo, 147, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, BA, Brasil, CEP: 40170-115, Telefones: (+55 71) 3283-6207; (+55 71) 3283-6256, E-mail: abralic.revista@abralic.org.br - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: abralic.revista@abralic.org.br