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Nexo: água, Clima, Energia e Meio Ambiente - Uma Perspectiva sobre o Empreendimento de Itataia-CE

Nexus: Water, Climate, Energy and the Environment - A Perspective on the Itataia-CE Development

Resumo

A viabilidade hídrica do Complexo Industrial de exploração e beneficiamento de urânio e fosfato em Santa Quitéria - Ceará foi analisada a partir da relação nexo água, energia e clima. Para tanto, foram usadas projeções de precipitação, evapotranspiração e vazão adotanto os modelos globais do Coupled Model Intercomparison Project Phase 5 (CMIP5, utilizados no quinto relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC-AR5). Dados da matriz energética do Ceará também foram considerados com o intuito de verificar o aumento da demanda energética do estado e a analisar o impacto da sua produção frente aos recursos hídircos. Os modelos divergem quanto ao futuro das precipitações, mas a maioria assinala um aumento da evapotranspiração nos três períodos projetados (2015 - 2044, 2045 - 2074 e 2075 a 2099) nos dois cenários escolhidos (RCP4.5 e RCP8.5) indicando um possível aumento da demanda hídrica para a região.

Palavras-chave:
água; clima; energia; mudanças climáticas; viabilidade hídrica

Abstract

The water viability of the Uranium and Phosphate Exploration and Processing Complex in Santa Quitéria - Ceará was analyzed from the relation of the water, energy and climate nexus. In order to do so, rainfall, evapotranspiration and flow projections were carried out using the global models of the Coupled Model Intercomparison Project Phase 5 (CMIP5, used in the fifth Intergovernmental Panel on Climate Change - IPCC-AR5). Data from Ceará's energy matrix were also considered in order to verify the state's increased energy demand and to analyze the impact of its production on water resources. The models differ in the future of precipitation, but most indicate an increase in evapotranspiration over the three projected periods (2015-2044, 2045-2074 and 2075-2099) in the two scenarios chosen (RCP4.5 and RCP8.5) indicating a possible increase in water demand for the region.

Keywords:
water; climate; energy; climate changes; water viability

1. Introdução

As mudanças climáticas podem produzir grandes impactos sobre os recursos hídricos (PBMC, 2012PBMC. Sumário Executivo do Volume 1 - Base Científica das Mudanças Climáticas. Contribuição do Grupo de Trabalho 1 para o 1o Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Brasil, Volume Especial para a Rio+20, 34 p, 2012.; IPCC, 2013IPCC. Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1535, 2013.; IPCC, 2007(b)IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change: Climate Change 2007: Impacts, Adaptation and Vulnerability. Cambridge: Cambridge University Press, p. 23, 2007b.; Banco Mundial, 2010BANCO MUNDIAL. Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial de 2010: Desenvolvimento e Mudança Climática. São Paulo: Banco Mundial, 2010.). O aquecimento observado nas últimas décadas pode causar mudanças no ciclo hidrológico, por meio de modificações dos padrões de precipitação e evapotranspiração, o que pode impactar diretamente a umidade do solo, a reserva subterrânea e a geração do escoamento superficial (IPCC, 2007(a)IPCC. Intergovernmental Panel on Climate Change: Climate Change 2007: The physical science basis. Cambridge: Cambridge University Press, p. 18, 2007a.; IPCC, 2013IPCC. Climate Change 2013: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, p. 1535, 2013.).

No Brasil, o aumento da demanda de água da irrigação pode levar à diminuição da segurança alimentar e maior vulnerabilidade dos pobres agricultores rurais, especialmente nas regiões semiáridas (Bates et al., 2008BATES, B.; KUNDZEWICZ, Z.W.; PALUTIKOF, J. Climate Change And Water.Technical Paper of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Geneva: IPCC. 2008. 210 p. Disponível em: https://www.ipcc.ch/pdf/technical-papers/climate-change-water-en.pdf. Acesso em 1 maio, 2018.
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). Mudanças nos padrões de escoamento nas bacias podem atingir, ainda, a geração de energia hidroelétrica no país (Silveira, 2014SILVEIRA, C.S. Modelagem Integrada de Meteorologia e Recursos Hídricos em Múltiplas Escalas Temporais e Espaciais: Aplicação no Ceará e no Setor Hidroelétrico Brasileiro. Tese de Doutorado em Engenharia Civil, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014.).

Embora o território brasileiro tenha uma boa disponibilidade de água ao ser comparado com outros países do mundo, há uma grande discrepância na distribuição desse recurso, sendo a porção semiárida a menos beneficiada. De acordo com Accioly (2000) essa porção do país abrange 11% do território nacional, com predominância na região nordeste, caracterizada por apresentar temperaturas médias anuais de 27 °C, taxa de evaporação em torno de 2.000 mm, chuvas de até 800 mm ao ano, distribuídas de forma irregular no tempo e no espaço, bem como balanço hídrico negativo em grande parte do ano.

O Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) afirma que o futuro climático nessa porção do país não é promissor podendo ocorrer intensificação da problemática da água e dos conflitos para obtê-la (PBMC, 2014PBMC. Impactos, vulnerabilidades e adaptação às mudanças climáticas. Contribuicao do Grupo de Trabalho 2 do Painel Brasileiro de Mudancas Climaticas ao Primeiro Relatorio de Avaliacao Nacional sobre Mudancas Climaticas. Assad, E.D.; Magalhaes, A.R. (eds) Rio de Janeiro: COPPE, p. 414, 2014.). O quinto Relatório do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) trás o prognóstico de uma redução no nível de chuvas no Nordeste de aproximadamente 22% até o ano de 2100 (IPCC, 2014IPCC. Climate Change 2014: Impacts, Adaptation, and Vulnerability. Part B: Regional Aspects. Contribution of Working Group II to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Barros, V.R.; Field, C.B.; Dokken, D.J.; Mastrandrea, M.D.; Mach, K.J.; et al. (eds) Cambridge: Cambridge University Press, p. 688, 2014.).

é nesse contexto, no semiárido do nordeste brasileiro, no sertão central do Ceará, em uma localidade bastante afetada pela seca e marcada pela incapacidade de atender na sua totalidade a demanda hídrica da população, que se estabelece o Consórcio Santa Quitéria. Uma parceria assinada em 2009 entre a empresa Galvani e as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) planeja implantar em Santa Quitéria um complexo de exploração de urânio e fosfato, empreendimento esse que demanda uma grande quantidade de água, segundo Costa (2014)COSTA, A.A. O Quinze 2.0? Ataque da Hidra Ilógica sobre o Ceará. 2014. Disponível em: http://tinyurl.com/gvlmzm. Acesso em 31 maio, 2018.
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287,78 L por segundo, ou seja, quase 25 milhões de litros de água por dia.

A produção de energia no Ceará também é uma atividade que requer grande volume de água, só a termelétrica situada no Pecém consome 800 L a cada segundo (Costa, 2014), por tanto, a questão da gestão dos recursos hídricos em um estado marcado pela sua escassez precisa ser debatida e a implantação de indústrias hidro intensivas necessita de fato ser muito bem avaliadas para que não haja riscos de desabastecimento da população.

água, energia e clima estão estritamente ligados e são fundamentais para a existência da humanidade, logo, a ingerência de um deles pode comprometer o equilíbrio dos outros dois. Mudanças no clima podem, por exemplo, afetar o acesso à água e, consequentemente, prejudicar a produção de energia.

Tendo em vista que o Ceará é extremamente vulnerável às mudanças climáticas e que já sofre com a escassez de água, se torna indispensável à reflexão e a realização de pesquisas que avaliem a sustentabilidade hídrica da implantação de mais um empreendimento de alta demanda desse bem tão precioso.

Esse estudo tem por objetivo avaliar a viabilidade hídrica da implantação do Complexo Industrial de exploração e beneficiamento de urânio e fosfato em Santa Quitéria - Ceará, através do nexo água, energia e clima. Compreender a variabilidade de precipitação a partir das séries temporais observadas, analisar projeções de precipitação, evapotranspiração e vazão dos modelos do CMIP5 para a região hidrográfica do Acaraú usando os cenários RCP 4.5 e RCP 8.5.

2. Materiais e Métodos

2.1 área de estudo

O complexo minerador pretende se instalar na Fazenda Itataia, localizada no município de Santa Quitéria - Ceará, distante aproximadamente 210 km de Fortaleza. O acesso é feito pela BR-020 que posteriormente cruza com a CE-366, via pela qual se chega à área do empreendimento. Ainda nas proximidades encontra-se o município de Itatira, os assentamentos de Morrinhos e Queimadas e do distrito de Lagoa do Mato (Consórcio Santa Quitéria, 2014CONSóRCIO SANTA QUITéRIA. Relatório de Impacto Ambiental Projeto Santa Quitéria(RIMA). São Paulo: Arcadis Logos, 2014.).

2.2. Dados observacionais

Os dados observacionais utilizados nesta pesquisa foram disponibilizados pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e os dados pluviométricos disponibilizados pela FUNCEME e SUDENE. Também utilizou-se como base de dados de temperatura mensal do “Climate Research Unit” (CRU) (UEA, 2015UEA, UNIVERSITY EAST ANGLIA. Climatic Research Unit. CRU. Disponível em http://www.cru.uea.ac.uk/. Acesso em 5 agosto 2015
http://www.cru.uea.ac.uk/...
).

2.3. Modelos do CMIP5

Os modelos do CMIP5 são resultantes da simulação de modelos globais de alguns centros de pesquisa que colaboraram para a elaboração do AR5, Quinto Relatório de Avaliação produzido pelo IPCC.

No desenvolvimento dos novos cenários para AR5 foram adotados os RCPs (Representative Concentration Pathways), que servem como dados de entrada para a modelagem climática e química atmosférica nos experimentos numéricos do CMIP. A nomenclatura dos RCPs se dá de acordo com a forçante radiativa que representam em W/m� (Silveira, 2014SILVEIRA, C.S. Modelagem Integrada de Meteorologia e Recursos Hídricos em Múltiplas Escalas Temporais e Espaciais: Aplicação no Ceará e no Setor Hidroelétrico Brasileiro. Tese de Doutorado em Engenharia Civil, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2014.). Nesse trabalho foram usados os cenários RCP4.5 e RCP8.5 para análise das projeções do século XXI.

2.4. Evapotranspiração potencial

O SCC de Thorthwaite (Thornthwaite, 1948THORNTHWAITE, C.W. An approach toward a rational classification of climate. Geographical Review, v. 38, n. 1, p. 55-94, 1948.) faz a classificação climática a partir do balanço hídrico, o qual utiliza como variáveis de entrada: precipitação, evapotranspiração e Capacidade de água Disponível no Solo (CAD). Dentre os diversos modos existentes para se calcular a evapotranspiração potencial o escolhido foi o de Hargreaves e Samani (1985)HARGREAVES, G.H.; SAMANI, Z. Reference crop evaporation from temperature. Journal of Applied Engineering in Agriculture, v. 1, n. 2, p. 96-99, 1985.. A escolha se deu, principalmente, devido à quantidade de variáveis disponíveis para o cálculo. Neste método, a evapotranspiração potencial pode ser estimada a partir da Eq. (1):

(1) E T P = 0 , 0075 R a C t δ 1 2 T a v g

em que o ETP é a taxa de evapotranspiração potencial (mm/d), Ra é o total de radiação solar extraterrestre recebida nas mesmas unidades de evaporação (mm), Ct é a redução do índice de temperatura que é uma função da umidade relativa, δ é a diferença entre as temperaturas máxima e mínimas mensais, e Tavg é a temperatura média no intervalo de tempo.

2.5. Remoção de viés

Como as variáveis do IPCC são projeções obtidas através de diferentes modelagens matemáticas, fez-se necessário a remoção de viés destas variáveis buscando ajustá-las aos valores observados. A remoção de viés foi feita para as séries de precipitação e evapotranspiração, utilizando os dados observados pelo CRU através da Eq. (2):

(2) X c o r = ( X m X _ m ) S m × S o b s + X _ o b s

em que Xcor é a variável corrigida, Xm é o valor da variável original do modelo, X_m é a média do modelo, Smé o desvio padrão do modelo, e Sobs são, respectivamente, a média e o desvio padrão observados.

2.6. Cálculo de anomalia

As anomalias foram calculadas para as projeções de 2015 a 2099 em relação ao período de 1954 a 2000. O período das projeções foi subdivido intervalos de 30 anos. As anomalias de precipitação, evapotranspiração e vazão foram determinadas pela diferença entre o valor encontrado nas projeções e o obtido para o período histórico, Eq. (3).

(3) A n o m = M X X I M X X

sendo Anom a anomalia projetada, MXX o valor projetado pelo modelo para o Século XXI e MXXI o valor do modelo para o Século XX. Para as variáveis precipitação, evapotranspiração e vazão, a anomalia é dada pela diferença percentual entre os valores projetados para o Século XXI e os obtidos para o Século XX expressa pela Eq. (4):

(4) A n o m = M X X I M X X M X X × 100

2.7. Balanço hídrico

O balanço hídrico foi calculado utilizando-se a versão simplificada do método de Thornthwaite e Mather (1955)THORNTHWAITE, C.W.; MATHER, J.R. The water balance. Centerton, Drexel Institute of Technology-Laboratory of Climatology. Publications in Climatology, v. 8, n. 1, p.104,1955. dada pela Eq. (5):

(5) V t + 1 = V t + P R t E T R t

em que V o armazenamento de água no solo (mm), PR a precipitação (mm), ETR a evapotranspiração real e t o tempo, ou seja, o volume de água armazenado no solo, para um tempo futuro, depende das condições hídricas atuais.

A ETR é estimada fazendo as seguintes considerações: caso a soma dos volumes precipitado (PR) e retido no solo (A), em um período de tempo t, sejam maiores que a Evapotranspiração Potencial (ETP) do período a ETR será a própria ETP caso contrário a ETR será a soma de PR e A do período.

Outra variável utilizada no balanço hídrico é a capacidade de água admissível no solo (CAD), esta variável representa a quantidade máxima de água que o solo pode reter antes de ficar saturado e produzir escoamento. Neste trabalho foram utilizados os valores de CAD fornecidos pelo Harmonized World Soil Database (HWSD) disponibilizado pela Fundação de Amparo a Agricultura das Nações Unidas (FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations) (Wieder et al., 2014WIEDER, W.R.; BOEHNERT, J.; BONAN, G.B.; LANGSETH, M. Regridded Harmonized World Soil Database v. 1.2. Data set. Oak Ridge National Laboratory Distributed Active Archive Center, Oak Ridge, vailable on-line in http://daac.ornl.gov, 2014.
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). O escoamento superficial é, portanto, a diferença entre o volume de água disponível para o solo (At+1) e a CAD.

3. Resultados e Discussões

3.1. Dados de precipitação observados na região da mineradora em Itataia

A análise de séries históricas pode auxiliar nas políticas de gestão e alocação dos recursos hídricos, principalmente, em regiões como a de objeto desse estudo que, por se localizar na porção semiárida do estado, se caracteriza pela elevada taxa de evapotranspiração, consequentemente, possui dificuldade de recarga dos seus reservatórios (Santos et al., 2014SANTOS, M.â.C.M.; COSTA, I.M.; COSTA, J.A.; MATEUS, A.E., et al. Tendências no nível do rio tendências no nível do rio de bacias hidrográficas do Estado do Ceará e suas causas climáticas. Revista Brasileira de Geografia Física, v. 7, n. 5, p. 927-938, 2014.).

A Fig. 1a mostra as precipitações anuais ocorridas no período de 1974 a 2017. A média pluviométrica observada para a região é de 871,04 mm. A observação dos dados nos permite ver uma alternância entre anos com índices superiores à média e anos com índices inferiores, sendo esses os que prevalecem. No entanto, não é possível constatar que há uma tendência de redução da quantidade de chuvas, apenas nos permite ver a ocorrência de eventos extremos como episódios de anos muito secos, como por exemplo, 1983, 1993 e 2012 que demonstraram chuvas bem inferiores à média (valores entre 364 e 408 mm) e anos de índices pluviométricos superiores a média, como em 1985 onde a precipitação foi de 1815,1 mm.

Figura 1
Precipitação Média anual no período de 1974 a 2017 (a) e Precipitação Média Mensal (b).

As médias mensais também foram mensuradas e expressas em um gráfico (Fig. 1b), onde é possível observar uma irregularidade na sua distribuição ao longo do ano. De janeiro a abril há uma maior incidência de chuvas, o equivalente a 79,2% do total anual. Março é o mês mais chuvoso, totalizando 25,7% das precipitações, e setembro o mais seco.

3.2. Projeções para o século XXI

As anomalias médias anuais de precipitação dos modelos do CMIP5 para a bacia do Acaraú foram expressas em três períodos do século XXI: 2015-2044, 2045-2074 e 2075-2099. Os cenários de RCP4.5 e RCP8.5 foram confrontados com o período de 1954 a 2000.

A maioria dos modelos avaliados para os dois cenários propõem uma redução da quantidade de chuvas ao longo do século e demonstram índices mais alarmantes para o último período analisado no cenário de maior emissão de gases do efeito estufa, onde podemos encontrar no modelo CSIRO-Mk3-6-0 um decréscimo superior a 66%, enquanto que para o cenário de menor emissão, nesse mesmo intervalo de tempo a redução está em torno de 55% (Fig. 2).

Figura 2
Anomalia de precipitação para os modelos do CMIP5 para a bacia do Acaraú referentes aos cenários RCP4.5 e RCP 8.5 para os períodos 2015-2044,2045-2074 e 2075-2099.

As projeções reúnem, em sua quase totalidade, informações que assinalam um aumento gradual da evapotranspiração ao longo do século para ambos os cenários avaliados, conforme pode ser visto na Fig. 3. A exceção é dada pelo modelo ACCESS1-0 que exibe uma redução no de 0,03%, no RCP4.5 para intervalo de 2015 a 2044.

Figura 3
Anomalia de evapotranspiração para os modelos do CMIP5 para a bacia do Acaraú referentes aos cenários RCP4.5 e RCP 8.5 para os períodos 2015-2044,2045-2074 e 2075-2099.

O conjunto de modelos que apresentam maiores anomalias estão expressos no RCP8.5: CanESM2 propõe +4,82% (2015 a 2044) , +8,95% (2045 a 2074) e +15,86% (2075 a 2099). No RCP4.5 pode-se verificar aumentos para os primeiros trinta anos em estudo que vão de 1,22% a 4,25%. De 2045 a 2074 o crescimento varia de 3,4% a 6,69%. No último período, esse acréscimo vai de 2,85% a 9,14% (Fig. 3).

As anomalias projetadas para as vazões representadas na Fig. 4 apresentam divergência quanto ao aumento ou redução das mesmas. No RCP4.5 a porcentagem de modelos que expressam um aumento nas vazões é de 30% , 30% e 10% , para o primeiro, segundo e terceiro períodos analisados. Já para o RCP8.5 as porcentagem de modelos que sugerem aumento são de 30% , para os dois primeiros intervalos de 30 anos, e de 20% para o último.

Figura 4
Anomalia de vazão para os modelos do CMIP5 para a bacia do Acaraú referentes aos cenários RCP4.5 e RCP 8.5 para os períodos 2015-2044,2045-2074 e 2075-2099.

No RCP4.5 de 2015 a 2044 as reduções mais altas são de 72,96% (CanESM2) e 54,83% (HadGEM2-AO), de 2045 a 2074 é possível perceber uma redução de 85,87% (CSIRO-Mk3-6-0) sendo essa a maior contração para o cenário, de 2075 a 2099 a diminuição mais expressiva é de 62,09% (MIROC-ESM-CHEM).

A intensificação pode ser checada para os seguintes modelos: ACCESS1-0, ACCESS1-3, bcc-csm1-1, CESM1-BGC e CSIRO-Mk3-6-0. A maior delas, 54,43%, foi registrada pelo modelo ACCESS1-3 e a menor, 3,53%, proposta por bcc-csm1-1.

Ao observar o cenário RCP8.5 é notório que um dos modelos, o CSIRO-Mk3-6-0, exibe uma anomalia de -94,74%, o que representa a menor projeção de vazão detectada para os cenários adotados. As demais contrações estão entre -18,19% e -69,57%, -36,74% e - 89,56%, -19,67% e -94,74%, na devida ordem cronológica dos intervalos de tempo empregados nesse trabalho.

3.3. Matriz energética do Ceará

No âmbito nacional a maior fração de energia produzida advém das hidrelétricas. A matriz do Ceará, no entanto, distingue-se da brasileira por apresentar geração de energia pautada principalmente na produção proveniente de parques eólicos e de termelétricas, sendo ínfima a participação de hidrelétricas. A razão para essa irrisória contribuição pode ser atribuída, principalmente, as irregularidade das chuvas que ocasionam a existência de rios intermitentes.

Conforme a FUNCEME (2017)FUNCEME. Sistema de Qualidade das águas: Estado Trófico. Portal Hidrológico do Ceará, 2017. Disponível em http://www.hidro.ce.gov.br/reservatorios/qualidade/eutrofizacao. Acesso em 4 jun. 2017.
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o estado apresenta um potencial hidráulico total (excluindo mini e micro geração distribuída) de apenas 25 MW, muito baixo frente aos 247.465 MW do Brasil.

O Balanço Energético Nacional publicado em 2017, ano base 2016, informa que a produção total de energia por fonte no Ceará foi de 14.343 MW, as eólicas representaram cerca de 35% do que é produzido, em contrapartida, as termelétricas demonstraram a maior fração de geração de energia do estado, somando aproximadamente 65% do total ,conforme pode ser verificado na Fig. 5a (MMA, 2017MMA (MINISTéRIO DE MINAS E ENERGIA). Balanço Energético Nacional. Brasília: MMA, 2017.).

Figura 5
Matriz Energética do Ceará (a) e Potência de Energia Instalada no Ceará no Período de 2005 a 2016(b).

A análise dos valores da Potência de Energia Instalada, no período de 2005 a 2016, nos mostra a expressiva evolução da geração de energia a partir das eólicas que saíram de zero e atingiram a marca de 1.553MW. Contudo, na contramão do desenvolvimento sustentável, conforme expresso no gráfico (Fig. 5b) houve um aumento de quase 84% da potência instalada relativa às termelétricas nesse mesmo período.

Essa crescente utilização de combustíveis fósseis para a geração de energia no Ceará é algo preocupante para a sustentabilidade hídrica da região, pois essa atividade demanda grande quantidade de água. Costa (2014)COSTA, A.A. O Quinze 2.0? Ataque da Hidra Ilógica sobre o Ceará. 2014. Disponível em: http://tinyurl.com/gvlmzm. Acesso em 31 maio, 2018.
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diz que para atender, por exemplo, a termelétrica do Pecém, a maior em operação no país, localizada em São Gonçalo do Amarante - Ce, são necessários 800 L de água por segundo, um número totalmente incompatível a realidade do estado que vem atravessando um longo período de seca.

Em virtude de projeções que demonstram secas mais severas, possibilidade de colapso hídrico e a vulnerabilidade do Ceará diante do aquecimento global (PBMC, 2014PBMC. Impactos, vulnerabilidades e adaptação às mudanças climáticas. Contribuicao do Grupo de Trabalho 2 do Painel Brasileiro de Mudancas Climaticas ao Primeiro Relatorio de Avaliacao Nacional sobre Mudancas Climaticas. Assad, E.D.; Magalhaes, A.R. (eds) Rio de Janeiro: COPPE, p. 414, 2014.), a preocupação por parte dos tomadores de decisão e formuladores de políticas públicas do estado precisa ser permanente. Há a necessidade de reduzir a emissão de gases de efeito estufa para minimizar os impactos das mudanças climáticas.

De encontro a essa necessidade, de acordo com SEEG, Sistema de Estimativas de Gases de Efeito Estufa, as emissões de GEE passaram de 24 Mt CO2, em 2010, para 30 Mt CO2 em 2016, esse salto deve-se em grande parte a geração de energia (SEEG, 2016SEEG. Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa no Brasil em 2016. Disponível em http://plataforma.seeg.eco.br/. Acesso em 31 maio 2018.
http://plataforma.seeg.eco.br/...
).

4. Conclusões

Hoje, o Brasil e mais especificamente o Ceará enfrenta um déficit de adaptação às mudanças climáticas. Ou seja, o sistema de gerenciamento de recursos hídricos e energéticos necessita repensar seus mecanismos de gestão para que busque de forma efetiva a sustentabilidade, a redução de conflitos pelo acesso a esses recursos e a minimização da vulnerabilidade das comunidades mais afetadas.

O planejamento no setor de recursos hídricos é realizado com base na hipótese de estacionariedade, as mudanças climáticas invalidam essa suposição. Fato que contribui para a deflagração de diversos problemas, como a ineficiência do planejamento da infraestrutura hídrica e da alocação desse recurso.

Prado Junior et al. (2016)PRADO JUNIOR, F.A.; ATHAYDE, S.; MOSSA, J.; BOHLMAN, S.; LEITE, F.; SMITH, A.O. How much is enough? An integrated examination of energy security,economic growth and climate change related to hydropower expansion in Brazil. Renewable and Sustainable Energy Reviews, v. 53. p. 1132-1136, 2016., reforçam que a política de crescimento energético do país precisa ser revista em busca de garantir a segurança energética a longo prazo frente as mudanças climáticas e sugerem que esforços precisam ser concentrados em melhoria da eficiência energética e investimentos em energia eólica e solar.

As mudanças climáticas representam um desafio para a gestão de recursos hídricos à medida que geram um conjunto de alterações que afetam o ciclo hidrológico. Além dos impactos esperados no regime hidrológico, esperam-se prováveis mudanças na demanda de diversos setores usuários. A elevação da temperatura e da evapotranspiração poderá acarretar, entre outros efeitos, maior necessidade de irrigação, refrigeração, consumo humano e dessedentação de animais em determinados períodos e regiões. Essas constatações estão associadas a um estado geral de aumento no consumo de energia, na demanda hídrica da agricultura e do abastecimento humano nos centros urbanos.

As análises da relação nexo, água e energia realizadas para o Ceará no decorrer desse artigo apontam que os recursos hídricos e energéticos do estado não apresentam um futuro promissor. O uso de termelétricas como principal fonte geradora de eletricidade é um grande equívoco do ponto de vista hídrico e climático, pois o grande volume de água ofertado para o seu funcionamento pode pôr em risco o abastecimento da população que historicamente é marcada por longos períodos de seca. é preciso ressaltar ainda que a utilização de termelétricas contribui enormemente com a intensificação do efeito estufa, favorecendo um maior aquecimento da atmosfera e, consequentemente, ocasionando uma maior evaporação dos corpos hídricos, tornando-os ainda mais escassos.

Os modelos climáticos avaliados no presente trabalho não concordam quanto ao aumento ou redução das precipitações para o século XXI, no entanto, indicam que poderá ocorrer uma elevação gradativa da evapotranspiração, assim sendo, a demanda de água por gênero agrícola deverá ser maior corroborando com um possível colapso hídrico.

Diante de tudo o que fora analisado fica explícito que a implantação de mais um empreendimento de altíssima demanda hídrica no Ceará, como é o caso do Consórcio Santa Quitéria, coloca em risco não só os habitantes do município sede do empreendimento, mas ao imprimir ao Açude Edson Queiroz uma demanda tão alta quanto à necessária para a implantação da atividade de mineração, corre-se o risco de secar ou reduzir o volume desse reservatório, minimizar sua capacidade de resiliência e contaminar suas águas, ameaçando os principais reservatórios que estão interligados a Bacia do Acaraú e comprometendo o balanço hídrico local.

Faz-se necessário que a gestão de recursos hídricos atue conjuntamente com os gestores do setor de energia, visto que nossa matriz energética é fortemente dependente da água, e se aproprie de estudos que demonstrem como as mudanças no clima interferirão na disponibilidade e qualidade desse recurso. é preciso muito cuidado e responsabilidade socioambiental ao avaliar projetos como o do empreendimento em Santa Quitéria, que solicita um grande volume de água e pretende se instalar em um local muito susceptível aos efeitos das mudanças climáticas, podendo oferecer riscos ao abastecimento humano gerando colapso dos recursos hídricos e energéticos na região.

References

  • BANCO MUNDIAL. Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial de 2010: Desenvolvimento e Mudança Climática São Paulo: Banco Mundial, 2010.
  • BATES, B.; KUNDZEWICZ, Z.W.; PALUTIKOF, J. Climate Change And Water.Technical Paper of the Intergovernmental Panel on Climate Change Geneva: IPCC. 2008. 210 p. Disponível em: https://www.ipcc.ch/pdf/technical-papers/climate-change-water-en.pdf Acesso em 1 maio, 2018.
    » https://www.ipcc.ch/pdf/technical-papers/climate-change-water-en.pdf
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2019
  • Aceito
    21 Ago 2019
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