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Quem tem medo da violência obstétrica?

Resumo

Apesar de ser um termo relativamente novo, a violência obstétrica é um problema antigo. Em 2014, a Organização Mundial da Saúde declarou: “Muitas mulheres sofrem tratamento desrespeitoso e abusivo durante o parto em instalações de saúde em todo o mundo. Esse tratamento não só viola os direitos das mulheres a cuidados respeitosos, mas também pode ameaçar seus direitos à vida, saúde, integridade corporal e liberdade de discriminação”. Esse problema, denominado “abuso”, “desrespeito” e /ou “maus-tratos” durante o parto, foi abordado em vários estudos. No entanto, não houve consenso sobre como nomear adequadamente esse problema, embora sua tipologia tenha sido bem descrita. Considerando a magnitude desse problema, é essencial dar a terminologia correta para essa importante questão de saúde e direitos humanos. Nomear como violência obstétrica e entendê-la como violência baseada em gênero garantirá intervenções apropriadas para evitar essa violação dos direitos das mulheres.

Palavras-chave:
Violência obstétrica; Gravidez; Parto

Abstract

Despite being a relatively new term, obstetric violence is an old problem. In 2014, the World Health Organization declared: “Many women experience disrespectful and abusive treatment during childbirth in facilities worldwide. Such treatment not only violates the rights of women to respectful care, but can also threaten their rights to life, health, bodily integrity, and freedom from discrimination”. This problem, named as “abuse”, “disrespect” and/or “mistreatment” during childbirth, has been addressed in several studies. However, there has been no consensus on how to properly name this problem, although its typology has been well described. Considering the magnitude of this problem, it is essential to give the correct terminology to this important health and human rights issue. Naming it as obstetric violence and understanding it as gender-based violence will ensure appropriate interventions to avert this violation of women's rights.

Key words:
Obstetric violence; Pregnancy; Childbirth

Introdução

A assistência à mulher gestante e ao processo de parto e nascimento deveria ser pautada por uma atenção de qualidade e humanizada, sendo dever dos serviços e profissionais de saúde acolherem com dignidade a mulher e o recém-nascido, enfocando-os como sujeitos de direito.11 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1067 de 4 de julho de 2005. Instituição da Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal. Diário Oficial União. Brasília, DF. 6 jul. 2005. nº 128, Seção I, p. 25-30. Embora essa afirmação pareça lógica e direta, existem evidências sólidas e crescentes da ocorrência de práticas desrespeitosas e violentas experenciadas pelas mulheres em instalações de atendimento obstétrico, particularmente durante o parto, sendo este um ponto sem grandes divergências na literatura.22 Bowser D, Hill K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-based childbirth: report of a landscape analysis. Harvard School of Public Health. University Research Co., LLC; 2010.

3 d'Oliveira AF, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet. 2002; 359: 1681-5.
-44 Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG. 2018; 125: 1208-11. Essa violação de direitos, tem recebido diversas denominações como desrespeito, maus-tratos ou violência obstétrica. Vale aqui ressaltar que a escolha de palavras utilizadas para expressar uma ideia, mesmo que de forma não consciente, não é aleatória. Deste modo, faz-se mister entender o que significa violência obstétrica - posto que essa expressão é a que entendemos como apropriada - e contextualizá-la historicamente a fim de compreender a resistência retórica à utilização do termo.

Violência obstétrica é toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério, que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia.55 Fundação Perseu Abramo e Sesc. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado 2010; [access 1 Sep 2019]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/pesquisa-mulheres-brasileiras-e-genero-nos-espacos-publico-e-privado-2010/
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Nessa perspectiva, consiste na apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde (médicos e não médicos), através de tratamento desumanizado, maus-tratos, abuso da medicalização sem o consentimento explícito da mulher e a patologização dos processos naturais, causando perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, tendo impacto negativo em sua qualidade de vida.66 Pérez D'Gregorio, R. Obstetricviolence: a new legal termintroduced in Venezuela. Int J Gynaecol Obstet. 2010; 111: 201-2.

Caracterizam violência obstétrica atos como: abusos verbais exercidos com gritos, procedimentos sem consentimento ou informação; negar acesso à analgesia; impedimento à presença de acompanhante de escolha da parturiente (que é garantido por lei); negar direito à privacidade durante o trabalho de parto, violência psicológica (tratamento agressivo, discriminatório, autoritário ou grosseiro); realização de cesariana ou episiotomia sem consentimento; uso de ocitocina sem indicação médica com finalidade de acelerar o trabalho de parto; manobra de Kristeller; proibição de acesso à alimentação ou hidratação e restrição da liberdade de movimentação, obrigando a mulher a ficar recolhida ao leito.22 Bowser D, Hill K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-based childbirth: report of a landscape analysis. Harvard School of Public Health. University Research Co., LLC; 2010.

3 d'Oliveira AF, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet. 2002; 359: 1681-5.
-44 Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG. 2018; 125: 1208-11. Essa violação de direitos na prática obstétrica ocorre tanto no setor público como no privado durante a atenção relacionada aos cuidados na gravidez, situando-se dentro de um contexto multifatorial de violência institucional e de gênero.55 Fundação Perseu Abramo e Sesc. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado 2010; [access 1 Sep 2019]. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/publicacao/pesquisa-mulheres-brasileiras-e-genero-nos-espacos-publico-e-privado-2010/
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Apesar de ser um termo relativamente novo, a violência obstétrica é um problema antigo.33 d'Oliveira AF, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet. 2002; 359: 1681-5.,77 Zanardo GLP, Uribe MC, Nadal AHRD, Habigzang LF, Violência Obstétrica no Brasil: uma revisão narrativa. Psicol Soc. 2017; 29: e155043. A intensificação do debate, contudo, coincide com a emergência de uma nova construção legal que engloba elementos da qualidade da assistência obstétrica e maus tratos às mulheres durante o parto.44 Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG. 2018; 125: 1208-11.,88 Morales XB, Chaves LVE, Delgado CEY. Neither Medicine Nor Health Care Staff Members Are Violent By Nature: Obstetric Violence From an Interactionist Perspective. Qual Health Res. 2018; 28 (8): 1308-19.

O conceito de violência obstétrica surgiu na América Latina e na Espanha nos anos 2000 a partir de movimentos ativistas pela humanização do parto. Essas reivindicações dialogavam com uma pauta central aos movimentos feministas, que há muito vêm criticando os modelos medicalizados de assistência ao parto, denunciando-os como uma grave violação à autonomia das mulheres.99 Martin, E. The woman in the body: A cultural analysis of reproduction. In Milton Keynes. 1 ed. England: Open University Press; 1989.,1010 Simonovic, D. UN Human Rights Council. Special Rapporteur on Violence against Women. UN Secretary-General. A human rights-based approach to mistreatment and violence against women in reproductive health services with a focus on childbirth and obstetric violence. 2019; [access 16 Oct 2019]. Available at: https://digitallibrary.un.org/record/3823698?ln=en
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Como marco legal, o termo surgiu na Venezuela em 2007, seguido pela Argentina em 2009 e México em 2014, sendo que os agentes de violência obstétrica estão sujeitos a responsabilidade criminal nesses países.1111 Ley Orgánica sobre el Derecho de las Mujeres a uma Vida Libre de Violência. VENEZUELA. 2007. [access 6 Oct 2015]. Disponível em: <http://www.derechos.org.ve/pw/wp-content/uploads/11.-Ley-Org%C3%A1nica-sobre-el-Derecho-de-las-Mujeresauna-Vida-Libre-de-Violencia.pdf
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12 Ley de proteccion integral a lãs mujeres, Ley nº 26.485. ARGENTINA. 2009; Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/ley_de_proteccion_integral_de_mujeres_argentina.pdf
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-1313 Ley General de Acceso a una Vida Libre de Violencia. MÉXICO. 2015; [access 6 Oct 2015]. Disponível em: http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/LGAMVLV130418.pdf
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No Brasil, a exemplo de outros países, a expressão ganhou forma e corpo no âmago dos movimentos feministas e pela humanização do parto e nascimento.1010 Simonovic, D. UN Human Rights Council. Special Rapporteur on Violence against Women. UN Secretary-General. A human rights-based approach to mistreatment and violence against women in reproductive health services with a focus on childbirth and obstetric violence. 2019; [access 16 Oct 2019]. Available at: https://digitallibrary.un.org/record/3823698?ln=en
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,1414 Parto do Princípio, Violência Obstétrica: Parirás com dor. Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres. 2012; [access 10 Sep 2019]. Disponível em: http://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC VCM 367.pdf
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Embora não haja lei federal específica, existe no sistema jurídico legislação genérica estadual a respeito da violência obstétrica.1515 Conjur. Violência obstétrica, políticas públicas e a legislação brasileira. 2018; [access 10 Oct 2019]. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-08/mp-debate-violencia-obstetrica-politicas-publicas-legislacao-brasileira.
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Vários estados e municípios vêm sancionando leis que tipificam a violência obstétrica. O estado de Santa Catarina sancionou a Lei Nº 17.097, de janeiro de 2017 e, em Pernambuco, há a Lei Nº 16499, de dezembro de 2018, definindo violência obstétrica como “todo ato praticado por profissionais de saúde, que implique em negligência na assistência, discriminação ou violência verbal, física, psicológica ou sexual contra mulheres gestantes, parturientes e puérperas”.1616 Lei Estadual Violência Obstétrica, Nº 17.097. Santa Catarina; 2017. Disponível em: http://leis.alesc.sc.gov.br/html/2017/17097_2017_lei.html
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,1717 Lei estadual Violência Obstétrica, Nº 16499. Pernambuco; 2018. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=370732
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Apesar do reconhecimento social e jurídico do termo, não são raras as contestações a seu uso. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), embora reconheça a questão como um problema de saúde que viola os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, resiste ao uso da expressão violência obstétrica. Em substituição, a OMS adota os termos “abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto nas instituições de saúde”.1818 OMS (Organização Mundial da Saúde). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde - Declaração da OMS. 2014; (5):4. [access 10 Sep 2019]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf;jsessionid=71A5526EB49C740B E2F28AFCAD44A8E7?sequence=3.
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Essa resistência é contraditória diante do conceito de violência da própria organização. A OMS define a violência como qualquer ação que tenha o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra o outro ou contra um grupo, que resulte ou possa resultar em qualquer dano psicológico, deficiência, lesão ou morte.1919 OMS (Organização Mundial da Saúde). Informe mundial sobre la violencia y salud. Genebra; 2002. Quanto à intencionalidade, cabe destacar que ela se refere à intenção de usar a força ou o poder inerente e não necessariamente de causar o dano em si.2020 Dahlberg LL, Krug EG. Violência: um problema global de saúde pública. Ciên Saúde Coletiva. 2007; 11: 1163-78.

A utilização do termo "poder" demanda a compreensão sobre o estabelecimento de relações hierárquicas, incluindo negligência ou atos de omissão, retirada da autonomia do outro, além dos atos violentos mais óbvios.2121 Sena LM, Tesser CD. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: relato de duas experiências. Interface (Botucatu). 2017; 21 (60): 209-20. Deste modo, atos assistenciais no parto/puerpério que partam de uma relação de poder entre sistemas de saúde, profissionais e pacientes, durante os quais procedimentos sejam impostos à mulher, ferindo-lhes o exercício da autonomia e assumindo risco de dano físico, emocional ou psicológico preenchem todos os critérios para serem nomeados pelo termo “violência”.

Para além do termo violência, seu qualificativo “obstétrica” também é alvo de resistência. Alguns profissionais, com respaldo e chancela de alguns conselhos e sociedades médicas, afirmam que a utilização do termo seria uma violência contra os médicos obstetras.77 Zanardo GLP, Uribe MC, Nadal AHRD, Habigzang LF, Violência Obstétrica no Brasil: uma revisão narrativa. Psicol Soc. 2017; 29: e155043.,88 Morales XB, Chaves LVE, Delgado CEY. Neither Medicine Nor Health Care Staff Members Are Violent By Nature: Obstetric Violence From an Interactionist Perspective. Qual Health Res. 2018; 28 (8): 1308-19.,2222 Nota Violência Obstétrica. Conselho Federal de Medicina. Epub May 9, 2019. [access 16 Oct 2019]. Disponível em: http://www.portal.cfm.org.br/images/PDF/nota-violencia-obstetrica.pdf
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,2323 Violência Obstétrica e contra o obstetra: a dor além do parto. 2017. [access 16 Oct 2019]. Disponível em: http://www.sogimig.org.br/forum-assistencia-obstetrica-no-brasil-alinhando-valores-e-praticas/
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Coadunando com essa perspectiva, recentemente houve tratativa do Ministério da Saúde para que a expressão “violência obstétrica” fosse abolida de documentos públicos.1919 OMS (Organização Mundial da Saúde). Informe mundial sobre la violencia y salud. Genebra; 2002. A polêmica é descabida, posto que o adjetivo “obstétrica” não é exclusivo do médico. A violência pode decorrer de falhas sistêmicas nos diferentes níveis de atenção dos sistemas de saúde,22 Bowser D, Hill K. Exploring evidence for disrespect and abuse in facility-based childbirth: report of a landscape analysis. Harvard School of Public Health. University Research Co., LLC; 2010.,44 Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG. 2018; 125: 1208-11.,2424 Bohren MA, Vogel JP, Hunter EC, Lutsiv O, Makh SK, Souza JP, Aguiar C, Coneglian FS, Diniz ALA, Tunçalp Ö, Javadi D, Oladapo OT, Khosla R, Hindin M, Gülmezoglu AM. The Mistreatment of Women during Childbirth in Health Facilities Globally: A Mixed-Methods Systematic Review. PLoS Med. 2015; 12 (6): 1001847. de modo que não cabe entender a expressão como sinônimo de “violência cometida pelo obstetra”. Reconhecer, portanto, a violência obstétrica como uma realidade, não significa culpabilizar nenhuma categoria profissional específica.

Cabe aqui resgatar uma ideia principiológica da Análise do Discurso, segundo a escola francesa: O silêncio é contingente do enunciatório. Isso significa que as palavras que escolhemos não usar dizem mais sobre o norte ideológico do nosso discurso do que aquelas que optamos por verbalizar.2525 Orlandi E. A leitura e os leitores possíveis. In: Orlandi E. A Leitura e os Leitores. Campinas: Pontes; 1998. p. 07-24.

Ocorre que as práticas discursivas dos profissionais de saúde são moldadas em um ambiente social e em sistemas de saúde cujos fundamentos políticos e econômicos fomentam o desenvolvimento de relações de poder.33 d'Oliveira AF, Diniz SG, Schraiber LB. Violence against women in health-care institutions: an emerging problem. Lancet. 2002; 359: 1681-5.,44 Williams CR, Jerez C, Klein K, Correa M, Belizán JM, Cormick G. Obstetric violence: a Latin American legal response to mistreatment during childbirth. BJOG. 2018; 125: 1208-11. Essa violência é, portanto, não apenas direta, mas estrutural, e reflete o patriarcalismo regente em nossa sociedade e também nas práticas assistenciais na saúde.2626 Grilo Diniz CS, Rattner D, Lucas d’Oliveira AFP, de Aguiar JM, Niy DY. Disrespect and abuse in childbirth in Brazil: social activism, public policies and providers’ training. Reprod Health Matters. 2018; 26: 19-35. Deste modo, mesmo profissionais que se propõem cuidadores, estão inseridos em um contexto assistencial que não apenas naturaliza, como constrói uma retórica discursiva sem embasamento científico para não reconhecer como violentas práticas de fato o são.

A obstetrícia construiu-se como especialidade em um contexto em que toda a medicina era bastante intervencionista e médico-centrada. Acrescente-se a isso a ideia equivocada de patologização perene do corpo feminino, considerado defeituoso em diversos aspectos, o que implicava em constantes correções. É nesse contexto que a normatização de práticas cirúrgicas obstétricas ganhou força na prática obstétrica, como o fórceps profilático em primíparas e o uso da episiotomia sistemática.2727 Leavitt JW. “Joseph B. DeLee and the practice of preventive obstetrics”. Am J Public Health. 1988; 78 (10): 1353-61.

A medicina, contudo, vem evoluindo norteada pelos princípios da bioética e, nesse contexto, é importante reconhecer que os princípios da autonomia, da beneficência e da não-maleficência vêm demandando a revisão de inúmeras práticas historicamente arraigadas, porém sem respaldo em evidências científicas.2828 Charles S. Obstetricians and violence against women. Am J Bioeth. 2011; 11: 51-6. Vale lembrar que algumas práticas obstétricas não são em si violentas, passando a ser assim entendidas apenas quando utilizadas inadvertidamente, por imposição ou em discordância com as evidências científicas. O enfrentamento à violência obstétrica, portanto, beneficia principalmente as mulheres, mas também traz vantagens para os profissionais de saúde envolvidos na assistência, na medida em que práticas profissionais éticas e baseadas em evidências demandam uma estrutura adequada e relações de trabalho harmônicas e não hierarquizadas.

Deste modo, a resistência narcísica ao uso do termo violência obstétrica não protege os profissionais médicos de repercussões legais advindas de eventuais falhas. Ao contrário, na medida em que perpetua uma estrutura problemática, favorece a ocorrência de falhas e lapsos éticos. Seu reconhecimento, contudo, não como maus-tratos, mas como violência que o é, exige mudanças estruturais e sua contextualização na assistência obstétrica situa os cenários dessa reconstrução.

Enquanto não reconhecermos que o atual modelo de assistência ao parto, excessivamente tecnocrático, abusivo e permeado de intervenções desnecessárias gera violência contra a mulher, fica difícil modificar as práticas para evitar a violência. Por mais preocupados que os conselhos de classe estejam em evitar ferir a susceptibilidade dos médicos, é importante reconhecer que se dói em qualquer um de nós admitir que somos, ou um dia fomos violentos, muito mais dói a violência contra as mulheres. Somente a partir do reconhecimento e da aceitação é que pode se iniciar o processo redentor da desconstrução e da transformação.

Não há por que temer o termo violência obstétrica, o que precisamos é envidar todos os esforços para sua erradicação. Se o termo provoca incomodo à comunidade médica, provoca também espaço para debatermos as modificações necessárias. O resultado da violência obstétrica agride brutalmente as mulheres, toda a nossa empatia e solidariedade estão com elas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2019
  • Aceito
    28 Maio 2020
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