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A propósito da educação médica

EDITORIAL EDITORIAL

A propósito da educação médica

Emília Pessoa Perez

Coordenadora do Curso Médico Universidade Federal de Pernambuco

Um recorte sobre o tema - educação médica, passa necessariamente pela recuperação dos principais movimentos e tendências que influenciaram os modelos de formação do profissional médico no século XX. No final do século XIX e início do século XX o ensino da medicina passou por um movimento de mudança ainda hoje bastante discutido. Nesse período surge, nos Estados Unidos e no Canadá, a necessidade de avaliar as condições do ensino da medicina. Uma avaliação, feita pelo educador americano Abraham Flexner, dá lugar à publicação do documento "Medical Education in the United States and Canada", pela Fundação Carnegie, em 1910, o qual ficou conhecido como relatório Flexner. Ele constata a precariedade do ensino médico, nesses países, e é bastante enfático na tendência crescente da abertura de cursos, vinculados ou não a universidades e às suas características. Segundo o autor, as escolas surgiam como que por geração espontânea: havia cursos de até um ano de duração; não havia critérios de seleção para o ingresso; não havia relação entre a formação científica e trabalho clínico e o ensino era desprovido de equipamentos e laboratórios; os professores não tinham o controle dos hospitais universitários. O ensino da medicina era uma "... aventura privada, mercantilizada no espírito e no objeto" que carecia, sobretudo, de bases científicas.

Esse relatório teve uma repercussão política, institucional e social tão importante, que extrapolou os limites da medicina, com o fechamento de escolas, fusão entre elas e fechamento de vagas. Acentuou a discriminação entre os profissionais médicos, tornando-os uma categoria reservada às média-alta e alta classes sociais; escolas médicas destinadas a negros foram fechadas e o número de alunos negros matriculados nas escolas remanescentes foi significativamente reduzido.

Flexner apresentou como propostas: "... a definição dos padrões de entrada e ampliação, para quatro anos, nos cursos médicos; a introdução do ensino laboratorial; o estímulo à docência em tempo integral; a criação do ciclo básico e a expansão do ensino clínico, especialmente em hospitais; a vinculação das escolas médicas às universidades; a ênfase na pesquisa biológica como forma de superar a era empírica do ensino médico; a vinculação da pesquisa ao ensino e o controle do exercício profissional pela profissão organizada." Essas diretrizes, ainda hoje, são base para a implantação do ensino e da prática médica, mas passíveis de críticas.

Esse modelo, conhecido também como o da medicina científica, trouxe mudanças substantivas no conceito de "objeto" da prática médica, alterando-se como conseqüência, a relação doente-médico. A pessoa humana, antes vista como sujeito do processo terapêutico, respeitada em sua dignidade, vontade, liberdade e razão, transforma-se em objeto de estudos, consumidora de tecnologia, indivíduo semelhante aos objetos de estudo de disciplinas como a química, a física ou a botânica. Induziu a formação dos médicos a um modelo biomédico, e a redução do ser humano ao seu organismo biológico. Ocorreram alterações na relação médico-paciente, na qual os médicos passaram a ser vistos como simples prestadores de serviços.

De forma quase paralela e concomitante, seguiram-se a esse outros tantos movimentos - medicina preventiva, medicina integrada, medicina comunitária, integração docente-assistencial. Movimentos com orientações distintas, tiveram origem, também, nos Estados Unidos ao longo do século XX. A medicina preventiva foi o movimento de maior repercussão na educação médica na tentativa de induzir à apropriação, desde as escolas médicas, da prevenção e promoção da saúde pela prática médica, além de propor a revalorização da relação entre o social e o coletivo e o processo saúde doença.

Para Arouca, em "O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva", o discurso da medicina preventiva, surge como herdeiro de três vertentes: a higiene, no século 19, relacionada ao desenvolvimento do capitalismo e da ideologia liberal; a discussão dos custos da atenção médica nos Estados Unidos nas décadas de 30 e 40 do século XX; e a da redefinição das responsabilidades médicas na educação profissional. Cada uma delas fez a crítica da anterior e amplia os horizontes de atuação do médico, associando a formação desse profissional ao acúmulo de conhecimento trazido por outras ciências e revelando a importância da comunidade, da família e da percepção do homem em sua plenitude e totalidade.

É importante o resultado prático desse movimento pela a implantação generalizada dos departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas, mas com um agravante: as disciplinas abrigadas nesses departamentos, fundamentais para o desenvolvimento de uma prática médica coerente, com uma visão mais integral do indivíduo na atenção médica, uma visão do indivíduo como totalidade biopsicosocial, são periféricas nos currículos médicos, não conseguindo romper com o modelo biologicista e introduzir modificações substantivas no conteúdo ou na orientação da prática médica. O movimento exige das escolas médicas a formação de um profissional que atue apreendendo a complexidade do ser humano, considerando que a simplificação do pensamento na ação médica não dá conta do contexto da vida dos indivíduos.

Em 1970, um estudo da OPAS (Organização Panamericana da Saúde), coordenado por Juan César Garcia, destaca duas questões fundamentais para a educação médica: a primeira é o efeito da explosão tecnológica nos países desenvolvidos e a segunda é a necessidade de melhoria das condições de saúde para o desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento.

Para conter os custos da medicina com a explosão tecnológica e a multiplicidade de especializações, surge nos EUA o movimento da medicina comunitária, como política social, cujo propósito é atender os grupos sociais de baixa renda, que se encontravam excluídos do acesso à assistência médica. Esse movimento difunde-se na América Latina, no início de 1970, com o apoio de agências internacionais de saúde, visando o cuidado médico relacionado às necessidades da população. Ao compatibilizar a extensão de serviços com os custos crescentes da assistência médica, reconhece a necessidade da simplificação tecnológica nas práticas de atenção à saúde, considerando as evidências epidemiológicas que apontam para a maior prevalência de doenças mais simples nas populações. A essa altura, as escolas médicas que se orientam para a formação de especialistas, não dão conta em atender às demandas dos serviços que carecem de médicos de formação geral.

No Brasil, nas duas últimas décadas, as escolas médicas têm sido responsabilizadas, pela sociedade, pela formação de profissionais que não dão conta em atender as necessidades de saúde da população. Daí porque é necessário recuperar, mesmo que timidamente, alguns momentos históricos em que se dá a educação médica, para não se incorrer na simplificação de que mudando grades curriculares, reformando o curso, iremos mudar a formação do médico.

Feuwerker, 1998, recuperando Nunes, 1989 e Schraiber, 1989, refere que embora o processo de relações de determinação entre prática e educação médica defina um quadro em que há maior influência da primeira sobre a segunda, concorda com aqueles que reconhecem certo grau de autonomia no terreno da educação médica. Assim, as propostas de mudança na educação médica e na prática dos profissionais de saúde são partes integrantes do movimento de transformação da saúde da população.

Nesse contexto, implementar mudanças curriculares nos cursos de medicina apresentadas pela ABEM, pela CINAEM e pela Rede UNIDA, criar espaços de discussão sobre as Diretrizes Curriculares publicadas em novembro de 2002 pelo Ministério da Educação e Cultura, revisar a gestão acadêmica dos cursos de medicina, são partes de um processo histórico, que certamente resgatará, atualizará a função social do médico na atualidade, a função social dos cursos de medicina e da própria universidade.

Segundo Simões Barbosa, o mundo que se transforma exige que a educação tenha o sentido de preparar o Homem com consciência moral e ética capaz de valorizar a educação como instrumento de transformação. Isso implica em reconhecer que a educação deve ser encarada como prática social e a pedagogia como seu instrumento. Estão as Universidades preparadas para comandar essas mudanças?

Para a professora Elza Maria Neffa Vieira de Castro, uma universidade que pretenda fazer frente às novas demandas do conhecimento, ampliando suas formas de atuação na sociedade, deve criar condições para que todos os sujeitos compreendam a realidade cultural, social, política e econômica do país.

Para Cristovam Buarque, o que ocorre na universidade, levando ao sentimento de perda de qualidade, é a incapacidade da academia responder ao que dela espera a sociedade. No momento de crise, a sociedade cria problemas de dimensões tão diferentes, em uma velocidade tão crescente, que a universidade não consegue responder. Em suma, a crise está exigindo a formulação de novas perguntas, enquanto a universidade continua se dedicando a buscar respostas antigas. Entretanto a comunidade tem consciência dessas limitações: não se contenta e chama de perda de qualidade a perda de funcionamento do seu produto.

Por fim, falando sobre educação não posso deixar de referenciar a obra fecunda do saudoso Prof. Paulo Freire, com o qual aprendi que o processo ensino-aprendizagem é dinâmico entre um sujeito (um ser com concepções, costumes, uma história, que tem determinadas formas de pensar e agir) e um objeto (com uma estrutura que lhe é própria) que é aprendido e intermediado por outro sujeito com as mesmas características. Que esse processo se dá num diálogo permanente entre os sujeitos.

Com um outro educador importante, Prof. Arroyo aprendi que nós médicos temos que apreender que, com as ações de saúde uma minoria da sociedade, se consegue superar a fronteira da vivência, se pode prolongar a vida, mas nos setores populares, até para viver se tem que lutar, emancipar-se. Na fronteira, do viver, a vida carrega os sentidos humanos da dignidade, da emancipação e da justiça. Daí porque a educação tem que procurar o resgate da humanidade roubada pela fome e pelo desemprego, sem cair numa visão romântica de alguns grupos desavisados que trabalham a educação popular. Temos que resgatar a humanidade perdida. Temos que assumir a construção de um novo sujeito a partir dessa realidade brasileira, concreta e brutal, que retira das pessoas a condição de humanos.

O Prof. Arroyo refere que para criar eixos geradores da construção do sujeito é preciso trabalhar a partir de uma pedagogia que recupere a dimensão do corpo. Uma mensagem importante que ele repassa para nós, educadores da saúde, é que a educação e a saúde se encontram em um lugar, e esse lugar não é só o corpo, mas a palavra - que é capaz de mudar valores, consciência e hábitos, condições de convívio, de interação, onde, a partir do relacionamento e da troca de experiências, os homens se formam.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2004
  • Data do Fascículo
    Mar 2004
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