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Estado epiléptico super-refratário e dieta cetogênica na unidade de terapia intensiva: relato de uma série de casos

RESUMO

Define-se estado epiléptico super-refratário como ocorrência de crises epilépticas persistentes ou que ressurgem em condições de infusão endovenosa de anestésicos por mais de 24 horas. Nos últimos anos, chamou-se a atenção para os potenciais benefícios de uma dieta cetogênica para o controle de tais pacientes. Contudo, o papel específico dessa estratégia na população adulta, assim como o mecanismo de ação, a melhor ocasião para iniciar e o manejo das complicações, permanece como assunto amplamente debatível. Relatamos uma série de casos com três pacientes que foram internados em unidade de terapia intensiva em razão de estado epiléptico super-refratário e tratados com utilização de dieta cetogênica; também propomos uma abordagem clínica para início, transição e manejo das intercorrências clínicas desta intervenção.

Descritores:
Estado epiléptico; Dieta cetogênica; Epilepsia; Cuidados críticos; Unidades de terapia intensiva

Abstract

Super-refractory status epilepticus is defined as seizures that persist or reemerge in the setting of an intravenous anesthetic infusion for more than 24 hours. In recent years, attention has been driven to the potential benefits of a ketogenic diet in the management of these patients. However, the specific role of this strategy in the adult population, as well as its underlying mechanism of action and optimal time for the initiation and management of complications, remain widely debatable. We report a case series of three patients admitted to an intensive care unit due to super-refractory status epilepticus who were managed with a ketogenic diet and propose a clinical approach to its initiation, transition, and management of clinical intercurrences.

Keywords:
Status epilepticus; Diet; ketogenic; Epilepsy; Critical care; Intensive care units

INTRODUÇÃO

No cenário das emergências neurológicas, o estado epiléptico (definido como convulsões ou crises epilépticas recorrentes, com duração de pelo menos 5 minutos, sem retorno à condição neurológica de base)(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.) tem alta prevalência e elevada morbimortalidade.

O estado epiléptico refratário é definido como a ocorrência de crises epilépticas persistentes, apesar do uso apropriado de dois medicamentos intravenosos, sendo um deles uma benzodiazepina. O estado epiléptico super-refratário (EESR) é definido como crises epilépticas que persistem ou reaparecem no cenário de uma infusão endovenosa de anestésico durante mais de 24 horas.(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.) O manejo ideal dos pacientes com EESR é controvertido; contudo, o objetivo do tratamento continua a ser o controle das crises epilépticas e o retorno à função neurológica de base.

Nos anos recentes, chamou-se a atenção para os potenciais benefícios de uma dieta cetogênica (DC) como auxílio para o complexo manejo desses pacientes.(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.

2 Park EG, Lee J, Lee J. The ketogenic diet for super-refractory status epilepticus patients in intensive care units. Brain Dev. 2019;41(5):420-7.

3 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.
-44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) A DC é um regime dietético que se focaliza na redução da ingestão de carboidratos juntamente com um aumento relativo da ingestão de proteínas e gorduras, com o objetivo de promover metabolismo de gorduras.(55 Husari KS, Cervenka MC. The ketogenic diet all grown up—Ketogenic diet therapies for adults. Epilepsy Res. 2020;162:106319.) Embora a maior parte da literatura se focalize na população pediátrica,(22 Park EG, Lee J, Lee J. The ketogenic diet for super-refractory status epilepticus patients in intensive care units. Brain Dev. 2019;41(5):420-7.,44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) têm ocorrido relatos de sua eficácia para pacientes adultos.(33 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.,55 Husari KS, Cervenka MC. The ketogenic diet all grown up—Ketogenic diet therapies for adults. Epilepsy Res. 2020;162:106319.) Considerando a escassez de evidência no ambiente específico de EESR, apresentamos três casos de pacientes adultos com EESR tratados com o acréscimo de uma DC como terapia adjuvante na unidade de terapia intensiva (UTI), assim como sugerimos uma abordagem clínica para essa população específica.

Para realização deste estudo, foi obtida a assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por parte de todos os pacientes ou seus representantes legais.

RELATO DE CASOS

Caso 1

Um homem com 20 anos de idade, até então saudável, foi internado após sofrer um traumatismo craniano isolado. Uma tomografia computadorizada (TC) inicial demonstrou focos hemorrágicos nas regiões subcortical parassagital e gânglios da base à direita. No sétimo dia após a internação, o paciente sofreu uma crise tônico-clônica sem recuperação neurológica, sendo admitido à UTI para um ciclo de 24 horas de supressão de surtos (SS). As imagens de ressonância magnética (RM) revelaram lesão axonal em lobos temporal e frontal, excluindo-se uma infecção do sistema nervoso central. Após a interrupção da SS, o encefalograma (EEG) revelou eletrogênese mal estruturada e com base lenta, com atividade delta rítmica frontal bilateralmente. O paciente permaneceu com critérios de EEG para EESR durante os primeiros 13 dias de internação na UTI, apesar de submetido a ciclos apropriados de SS. No quinto dia após internação na UTI, foi iniciado um regime de jejum visando à introdução de um estado de cetose. Este foi suspenso após 36 horas em razão de diversos episódios de hipoglicemia. Conforme se prosseguiram os ciclos subsequentes de SS, considerando a recorrência clínica de crises convulsivas, foi reiniciado o regime de jejum, obtendo-se cetonúria após 28 horas. Uma fórmula de DC, com uma proporção de 4:1 (4g de gordura para cada 1g de proteínas) suplementada com minerais, ácidos graxos essenciais e vitaminas, foi iniciada, com a dose total alcançada em 48 horas. A reavaliação do EEG após 68 horas de cetonúria não revelou evidências de atividade paroxística. O paciente manteve uma DC sem outras complicações durante o restante da hospitalização, tendo recebido alta 45 dias após, sem sequelas neurológicas importantes.

A transição para uma dieta de Atkins modificada foi iniciada na enfermaria geral, sendo que foram bem tolerados incrementos da ingestão de carboidratos de até 45% do total da energia. Na avaliação de seguimento realizada após 3 meses, o paciente tinha retornado à sua atividade laboral e recebia dieta sem restrições, sem recorrência clínica das crises.

Caso 2

Uma paciente do sexo feminino com 38 anos de idade desenvolveu um quadro clínico de 3 dias com mialgia e febre, que culminou com três episódios de convulsões tônico-clônicas e subsequente admissão ao pronto socorro em estado torporoso. Os exames diagnósticos iniciais incluíram TC e RM normais, punção lombar sem características inflamatórias, painel microbiológico negativo, marcadores inflamatórios sanguíneos normais e painel negativo de anticorpos neuronais. A estratégia terapêutica nas primeiras 24 horas incluiu um ciclo de SS, com aspectos eletroencefalográficos de crises epilépticas após a suspensão dessa estratégia. Por 9 dias, em cada parada dos SS para avaliação, a paciente permanecia em estado epiléptico não convulsivo. Foi iniciado um regime de jejum para promover um estado de cetose. Entretanto, após 4 dias dessa estratégia, ainda não havia cetonúria e introduzimos uma DC em proporção 4:1 suplementada com minerais e vitaminas, titulada até a dose-alvo dentro de 10 dias. Um eletroencefalograma realizado após 48 horas do início da DC não mostrou atividade paroxística, obtendo-se cetonúria 8 dias após o início dessa estratégia.

No 14º dia de alimentação entérica, desenvolveram-se estase gástrica e diarreia importantes. Após mudar para nutrição parenteral total, manipulada com um perfil cetogênico, a paciente teve melhora gradual, tornando-se possível iniciar na quarta semana de internação uma transição para dieta de Atkins modificada. Carboidratos foram progressivamente introduzidos, e ela recebeu alta com um plano nutricional de progressão da dose de carboidratos. Na consulta de seguimento, a paciente se achava estável e tinha retornado a uma dieta liberal, sem recorrência dos sintomas.

Caso 3

Uma mulher de 20 anos de idade, sem problemas médicos conhecidos, foi recebida em nosso pronto-socorro após 4 dias com febre, vômitos e diarreia. Seu quadro inicial mostrava crises tônico-clônicas sem recuperação neurológica, levando à sua intubação e à admissão à UTI. Os exames diagnósticos iniciais incluíram exames normais de TC e RM do crânio. A punção lombar mostrou-se negativa para infecção. Induzimos quatro ciclos de SS com critérios de EEG de crises epilépticas após cada pausa da sedação. Iniciamos, então, um regime de jejum, para obter um estado de cetose. Embora com ausência de cetonúria, foi iniciada uma DC com proporção 4:1 após 48 horas. Não se obteve progressão para a dose plena em razão de grave íleo, que, no 12º dia de hospitalização, levou à mudança para uma fórmula parenteral. Nas avaliações subsequentes, a paciente permaneceu com critérios de EEG para crises epilépticas. No 19º dia após a internação, ocorreu deterioração clínica na UTI, com hipertrigliceridemia grave e surgimento de um choque séptico, o que levou à suspensão da nutrição parenteral. A paciente evoluiu para choque refratário e morreu após 21 dias de internação.

A evolução clínica dos três casos está resumida na tabela 1. Em razão da falta de disponibilidade na literatura, propomos um algoritmo de abordagem para pacientes em EESR, nos quais pode ser considerada uma DC (Figura 1). Fizeram-se diversas considerações relativas ao início, à manutenção e à transição da dieta, assim como monitoramento laboratorial e clínico.

Tabela 1
Evolução clínica de todos os casos
Figura 1
Algoritmo para abordagem clínica.

DISCUSSÃO

Desde 1920, a DC tem sido utilizada como terapia adjuvante em crianças com epilepsia refratária e, nos últimos anos, também em pacientes adultos.(66 Noviawaty I, Olaru E, Rondello C, Fitzsimmons B, Raghavan M. Clinical reasoning: ketogenic diet in adult super-refractory status epilepticus. Neurology. 2020;94(12):541-6.) Entretanto, em contraste com a evidência relativa ao controle das crises convulsivas em crianças,(22 Park EG, Lee J, Lee J. The ketogenic diet for super-refractory status epilepticus patients in intensive care units. Brain Dev. 2019;41(5):420-7.) só recentemente foi estudada sua promissora utilização em pacientes adultos.(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.,33 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.,66 Noviawaty I, Olaru E, Rondello C, Fitzsimmons B, Raghavan M. Clinical reasoning: ketogenic diet in adult super-refractory status epilepticus. Neurology. 2020;94(12):541-6.,77 Cervenka MC, Hocker S, Koenig M, Bar B, Henry-Barron B, Kossoff EH, et al. Phase I/II multicenter ketogenic diet study for adult superrefractory status epilepticus. Neurology. 2017;88(10):938-43.) Até onde sabemos, o único estudo prospectivo nessa área(77 Cervenka MC, Hocker S, Koenig M, Bar B, Henry-Barron B, Kossoff EH, et al. Phase I/II multicenter ketogenic diet study for adult superrefractory status epilepticus. Neurology. 2017;88(10):938-43.) relatou resolução de 73% dentro de 1 semana após o início da DC.

Os mecanismos de ação que explicam a ação da DC ainda são amplamente desconhecidos.(33 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.,44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) Postulou-se que a presença de acetoacetato poderia conferir algum grau de controle das crises epilépticas; contudo, existe uma correlação inconsistente entre cetose e o controle das crises.(88 Augustin K, Khabbush A, Williams S, Eaton S, Orford M, Cross JH, et al. Mechanisms of action for the medium-chain triglyceride ketogenic diet in neurological and metabolic disorders. Lancet Neurol. 2018;17(1):84-93.) A cetose pode lentificar a produção de energia e potencializar a inibição de GABA. Diversos outros mecanismos não ligados à cetose foram hipoteticamente conectados para conferir algum grau de controle das crises.(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) Outro ponto de discussão se refere à definição da presença de cetose, porém a maioria dos relatos concordam que a presença de cetonúria é um indicativo de um estado de cetose. Como a obtenção de cetose antes de iniciar a dieta suplementar é assunto de debates, desconhece-se qual o momento ideal para iniciar a DC.(33 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.,66 Noviawaty I, Olaru E, Rondello C, Fitzsimmons B, Raghavan M. Clinical reasoning: ketogenic diet in adult super-refractory status epilepticus. Neurology. 2020;94(12):541-6.,77 Cervenka MC, Hocker S, Koenig M, Bar B, Henry-Barron B, Kossoff EH, et al. Phase I/II multicenter ketogenic diet study for adult superrefractory status epilepticus. Neurology. 2017;88(10):938-43.)

Introduzimos uma DC (com restrição de carboidratos a 1,5% do valor calórico total) após exclusão de causas cirurgicamente tratáveis e obtenção das correções metabólicas. Como há numerosos efeitos colaterais da DC, foi proposto iniciar essa dieta após o terceiro ou quarto ciclos de SS, visto que alguns pacientes respondem melhor do que outros a medicamentos antiepilépticos endovenosos.

Na presente prática, o objetivo primário foi atingir um estado de cetose antes de introduzir uma fórmula cetogênica. Entretanto, em dois pacientes, em razão da hipoglicemia recorrente e da necessidade de vários fluidos glicosados para superar o problema (prevenindo a produção de cetonas), começamos uma suplementação dietética cetogênica antes de obter cetonúria, com aparente benefício clínico. Como o mecanismo de ação que explica os efeitos da DC é amplamente debatível e os relatos na literatura são contraditórios, nossa posição foi esperar a apresentação de cetonúria, caso não se observasse qualquer risco clínico com a estratégia.(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.)

Há diversas dietas cetogênica disponíveis: DC clássica, dieta de Atkins modificada (DAM), dieta de triglicérides de cadeia média (TCM) e índice glicêmico baixo (LGI - low glycemic index).(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) A DC clássica é composta por uma proporção 4 para 1 entre gorduras e proteínas não cetogênicas e carboidratos, sendo a DC mais comumente relatada na literatura.

Uma DC TCM tem potencial cetogênico maior do que a DC clássica, uma vez que a TCM é absorvida mais rapidamente do que triglicérides de cadeia longa.(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) Um relato recente(33 Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.) utilizou uma dieta TCM em um caso de paciente adulto com EESR obtendo sucesso clínico e baixa taxa de complicações, o que sugere um potencial benefício dessa dieta em pacientes com EESR que não toleram a DC clássica em razão de hipertrigliceridemia.

A DAM é uma forma de DC (tipicamente restrita a 10 - 20g de carboidratos por dia) na qual os componentes gordurosos respondem por cerca de 65% do total calórico.(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) Como é mais liberalizada, essa é a opção terapêutica para pacientes ambulatoriais ou os que se encontram em transição para uma dieta menos restritiva. Quanto à LGI, utiliza-se uma abordagem ainda mais liberal, com aparentes benefícios clínicos na população pediátrica.

A presente abordagem clínica buscou iniciar uma fórmula clássica de DC e, após a melhora clínica, mudar gradativamente para DAM e LGI. Dois de nossos pacientes foram avaliados em uma consulta de seguimento realizada 3 meses após a alta do hospital. O plano e as consultas nutricionais foram estritamente seguidos durante esse período, e ambos os pacientes progrediram para uma dieta liberal, sem recorrência clínica de crises epilépticas.

Como previamente relatado,(11 Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.) a hipoglicemia é uma complicação comum em pacientes com DC. Para fins de intervenção, definimos o nível mínimo de glicose como 60mg/dL. Um de nossos pacientes teve vários episódios de hipoglicemia grave durante o período de jejum, o que nos levou a postergar a introdução da DC. Durante a alimentação com DC, entretanto, não tivemos relato de episódios de glicemia inferior a 60mg/dL. Assim, propomos monitorar os níveis glicêmicos a cada 2 horas e, após início da DC, monitorar esses níveis a cada 4 horas.

Os níveis de triglicérides foram monitorados duas vezes por semana, uma vez que as desordens lipídicas são um dos efeitos colaterais mais comuns na DC.(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.) Um de nossos casos desenvolveu hipertrigliceridemia grave sob o uso de DC. Entretanto, essa paciente se achava em nutrição parenteral, e tal complicação é mais provavelmente associada com a via parenteral de administração do que com o perfil cetogênico da dieta. Com relação às questões relativas à nutrição parenteral convencional, estabeleceu-se que os níveis prévios de triglicérides, o índice de massa corporal e as elevadas concentrações de carboidratos (> 3,1g/kg/dia) são fatores de risco para o desenvolvimento de hipertrigliceridemia.(99 Ocón Breton MJ, Ilundain Gonzalez AI, Altemir Trallero J, Agudo Tabuenca A, Gimeno Orna JA. [Predictive factors of hypertriglyceridemia in inhospital patients during total parenteral nutrition]. Nutr Hosp. 2017;34(3):505-11. Spanish.) Como nossa fórmula de DC tem baixas concentrações de carboidratos, assumimos que outras variáveis, que não a composição específica de nossa DC, foram responsáveis pela elevação dos níveis de triglicérides.

Até onde se sabe, a maior parte das administrações de DC a adultos tem sido por via enteral. A viabilidade e segurança da DC em pacientes adultos ainda precisa ser avaliada. Há relatos de DC parenteral em populações pediátricas(1010 Dressler A, Haiden N, Trimmel-Schwahofer P, Benninger F, Samueli S, Göppel G, et al. Ketogenic parenteral nutrition in 17 pediatric patients with epilepsy. Epilepsia Open. 2018;3(1):30-9.) com alguns resultados interessantes, porém ainda há relatos muito limitados de sua viabilidade e segurança na população adulta e, até onde se conhece, nada relativo a seu uso na presença de EESR. Decidiu-se iniciar DC parenteral em dois de nossos casos em razão de estase gástrica grave, que é fenômeno comum durante a DC.(44 Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.,55 Husari KS, Cervenka MC. The ketogenic diet all grown up—Ketogenic diet therapies for adults. Epilepsy Res. 2020;162:106319.) Observou-se melhora clínica em ambos os casos; entretanto, em um dos casos, essa estratégia foi abandonada em razão do surgimento de choque séptico.

Com relação a complicações não dietéticas, relatamos hipocalcemia grave em dois pacientes tratados com fenitoína, o que levou à cessação desse fármaco. A hipocalcemia pode prejudicar o controle das crises em razão de deficiência de vitamina D, demandando monitoramento estrito. Optamos por fornecer a nossos pacientes suplementação de minerais, vitaminas e cálcio, principalmente os não sintetizados pelo corpo humano.

CONCLUSÃO

A dieta cetogênica pode ter um papel no tratamento do estado epiléptico super-refratário.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Francis BA, Fillenworth J, Gorelick P, Karanec K, Tanner A. The feasibility, safety and effectiveness of a ketogenic diet for refractory status epilepticus in adults in the intensive care unit. Neurocrit Care. 2019;30(3):652-7.
  • 2
    Park EG, Lee J, Lee J. The ketogenic diet for super-refractory status epilepticus patients in intensive care units. Brain Dev. 2019;41(5):420-7.
  • 3
    Prasoppokakorn T, Jirasakuldej S, Lakananurak N. Medium-chain triglyceride ketogenic diet is effective for treatment of an adult with super-refractory status epilepticus: a case report and literature review. Eur J Clin Nutr. 2019;73(12):1594-7.
  • 4
    Goswami JN, Sharma S. Current perspectives on the role of the ketogenic diet in epilepsy management. Neuropsychiatr Dis Treat. 2019;15:3273-85.
  • 5
    Husari KS, Cervenka MC. The ketogenic diet all grown up—Ketogenic diet therapies for adults. Epilepsy Res. 2020;162:106319.
  • 6
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  • 7
    Cervenka MC, Hocker S, Koenig M, Bar B, Henry-Barron B, Kossoff EH, et al. Phase I/II multicenter ketogenic diet study for adult superrefractory status epilepticus. Neurology. 2017;88(10):938-43.
  • 8
    Augustin K, Khabbush A, Williams S, Eaton S, Orford M, Cross JH, et al. Mechanisms of action for the medium-chain triglyceride ketogenic diet in neurological and metabolic disorders. Lancet Neurol. 2018;17(1):84-93.
  • 9
    Ocón Breton MJ, Ilundain Gonzalez AI, Altemir Trallero J, Agudo Tabuenca A, Gimeno Orna JA. [Predictive factors of hypertriglyceridemia in inhospital patients during total parenteral nutrition]. Nutr Hosp. 2017;34(3):505-11. Spanish.
  • 10
    Dressler A, Haiden N, Trimmel-Schwahofer P, Benninger F, Samueli S, Göppel G, et al. Ketogenic parenteral nutrition in 17 pediatric patients with epilepsy. Epilepsia Open. 2018;3(1):30-9.

Editado por

Editor responsável: Viviane Cordeiro Veiga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2021
  • Aceito
    01 Jun 2021
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