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Microrrealidades socioculturais transformadas pelo turismo em São Miguel do Gostoso, Rio Grande do Norte, Brasil

Resumo

Proposto justificado do tema:

A proposta deste artigo foi alinhar perspectivas teóricas e metodológicas da Micro-História com aportes dos estudos no campo do Turismo para entender as transformações das microrrealidades do município de São Miguel do Gostoso (Rio Grande do Norte). Microrrealidades são histórias de pessoas comuns que traduzem e elucidam aspectos microscópicos de um complexo quadro de vida.

Objetivo:

Analisar as transformações socioculturais da localidade transformadas pelo fenômeno turístico a partir das microrrealidades locais.

Design, metodologia e abordagem:

No campo metodológico aliou-se a análise qualitativa com a observação direta participante, a análise documental e a investigação do material audiovisual sobre a cidade. Entrevistou-se 52 indivíduos que tiveram alguma representatividade na história da cidade, que não assumiam nenhum cargo oficial e vivenciaram as mudanças decorrentes entre 1993 e 2016. O recorte deste artigo foi de 17 entrevistados.

Resultados e originalidade:

Os resultados da pesquisa ressaltam que houve transformações relevantes nas microrrealidades socioculturais dos entrevistados. Os impactos mais proeminentes foram: esvaziamento das tradições culturais, hábitos alimentares e linguagem. Por outro lado, contribuições positivas foram enumeradas quanto à pluralidade de culturas e engajamento social. Concluiu-se que as microrrealidades socioculturais foram transformadas pelo fluxo turístico, definindo o turismo como a principal atividade econômica da região e relocando as forças de trabalho. A relevância e originalidade deste estudo é a aliança entre Micro-História e Turismo, quase inexistente nas investigações científicas.

Palavras-chave:
Turismo; Microrrealidades; Micro-História; Transformações socioculturais; São Miguel do Gostoso

Abstract

Justified purpose of the topic:

The purpose of this article was to align theoretical and methodological perspectives of microhistory with the contribution of studies in the field of tourism, in order to understand transformations of micro-realities in the municipality of São Miguel do Gostoso, state of Rio Grande do Norte, Brazil. Micro-realities are histories of ordinary people that translate and clarify microscopic aspects of a complex life style.

Purpose:

To analyze the social cultural transformations of place caused by the tourism phenomenon from the perspective of local micro-realities.

Design, methodology and approach:

In terms of methodology we combined qualitative analysis with participant observation, analysis of documents and audiovisual records on the town. Fifty-two individuals were interviewed, among those who had a certain prominence in town history. They should not have any official position, but they should have experienced the changes occurring between 1993 and 2016. Seventeen respondents were considered for this article.

Results and originality:

The research results highlight relevant changes in the sociocultural micro-realities of participants. The most prominent impacts mentioned are: the gradual emptying of cultural traditions, changes in food habits and in language. On the other hand, the positive contributions listed concern plurality of cultures and social engagement. We concluded that tourist flows altered sociocultural micro-realities, and thus defining tourism as the region’s most important economic activity, and relocating work force. This study relevance and originality is the link between microhistory and tourism, almost non-existent in scientific research.

Keywords:
Tourism; Micro-realities; Microhistory; Sociocultural transformations; São Miguel do Gostoso

Resumen:

Justificativa:

La propuesta de este artículo fue alinear perspectivas teóricas y metodológicas de la Micro Historia con aportes de los estudios en el campo del Turismo para entender las transformaciones de las micro realidades del municipio de São Miguel do Gostoso (Rio Grande do Norte). Las micro realidades son historias de personas comunes que traducen y elucidan aspectos microscópicos de un complejo cuadro de vida.

Objetivo:

Analizar las transformaciones socioculturales de la localidad transformadas por el fenómeno turístico a partir de las micro realidades locales.

Diseño, metodología y enfoque:

En el campo metodológico se alió el análisis cualitativo con la observación directa participante, el análisis documental y la investigación del material audiovisual sobre la ciudad. Se entrevistó a 52 individuos que tuvieron alguna representatividad en la historia de la ciudad, que no ocupaban ningún cargo oficial y vivenciaron los cambios resultantes entre 1993 y 2016. El recorte de este artículo fue de 17 entrevistados.

Resultados y originalidad:

Los resultados de la investigación resaltan que hubo transformaciones relevantes en las micro realidades socioculturales de los entrevistados. Los impactos más prominentes fueron: vaciamiento de las tradiciones culturales, hábitos alimentarios y lenguaje. Además, las contribuciones positivas se enumeran en cuanto a la pluralidad de culturas y el compromiso social. Se concluyó que las micro realidades socioculturales fueron transformadas por el flujo turístico, definiendo el turismo como la principal actividad económica de la región y reubicando las fuerzas de trabajo. La relevancia y originalidad de este estudio es la alianza entre Micro Historia y Turismo, casi inexistente en las investigaciones científicas.

Palabras-Clave:
Turismo; Micro Realidades; Micro Historia; Transformaciones socioculturales; São Miguel do Gostoso

1 INTRODUÇÃO

A atividade turística tem um amplo escopo de sentidos e a junção de todos eles nos permite dizer que o turismo é muito mais do que simplesmente viagem, entretenimento e lazer, ao contrário, é um largo e vasto campo de prática de estudo e de reflexões, que, de modo híbrido, permeia diversas áreas de conhecimento, conecta pessoas, lugares e sonhos. Os estudos em Turismo, em especial, por conta da sua complexidade intrínseca, têm recebido grandes contribuições de outras áreas de conhecimento e como o fenômeno engloba abordagens diversas (Coriolano, 2006Coriolano, Luzia Neide Meneses Teixeira. (2006). O turismo nos discursos, nas políticas e no combate à pobreza. São Paulo: AnnaBlume.), seu estudo se fortalece no contexto interdisciplinar. “ Tourism is a multidisciplinary subject which means that a wide range of other subjects (…) examine it and bring to it a range of ideas and methods of studying it” (Page, 2013Page, Stephen. (2013) Tourism management: an introduction. 4. ed. London and New York. Routledge., p. 7).

Assegura-se, portanto, que a construção do conhecimento desse campo de estudos nos remete ao próprio trabalho de construção de cestas (Morin et al., 2003Morin, Edgar. Ciurana, Emílio Roger; Motta, Raúl Domingo. (2003). Educar na era planetária. Brasília: Cortez., p.43). Vamos entrelaçando círculos, buscando novos traçados, reconhecendo imprecisões, buscando outras formas e arquiteturas. As tramas surgem em vários saberes e são costuradas em uma busca pelo “reencantamento do mundo libere mais ainda o pensamento humano” (Wallerstein, 1996Wallerstein, Immanuel (1996). Para abrir as ciências sociais. São Paulo: Cortez., p.110).

No caso específico deste artigo, a busca pelo reencantamento e pela produção de saberes complexos se dá pela valorização das microrrealidades do pequeno município de São Miguel do Gostoso (RN): opondo-se aos grandes modelos de existência turística no Nordeste brasileiro, moradores de diferentes idades organizam-se para impor suas vontades contra fenômenos de massificação de paisagens culturais. A resistência é acompanhada pela transformação. Muito da rotina desses “nativos” (como gostam de ser chamados) já foi profundamente alterada pelas práticas dos turistas. Como perceber essas permanências, rupturas, resistências e reelaborações? Como refletir sobre os impactos turísticos em diferentes escalas sobre um determinado local? Nossas respostas foram arquitetadas a partir de discussões teóricas e metodológicas vindas da Micro-História. Mas, mais do que respostas vindas do seio acadêmico, elas foram constituídas no diálogo com os moradores locais.

Nesse intuito, o pilar da investigação foi aliar os estudos em Micro-História com a realidade do Turismo em uma comunidade de praia. Ressalta-se ainda a escassez nos últimos cinco anos de pesquisas científicas que relacionem Turismo e Micro-História, reforçando as inúmeras possibilidades de investigação dessas duas áreas.

A proposta deste trabalho é fruto parcial de um estudo de doutoramento, que procurou analisar as transformações socioculturais, econômicas e ambientais num município do litoral do Nordeste brasileiro, a partir das microrrealidades locais. Procurou-se fatiar em lâminas finas o objetivo, explorando neste artigo especificamente as transformações de ordem sociocultural mais proeminente do município de São Miguel do Gostoso (RN) provindas do fluxo turístico.

Este artigo foi estruturado sob três pilares. Primeiro um esclarecimento sobre a abordagem micro-histórica e influencias socioculturais no turismo, em seguida a apresentação dos procedimentos metodológicos e por fim, os resultados das imersões de campo realizadas entre 2014 e 2016.

1.1 Micro-história: a teoria do autor-retrato

Escrever uma história vista de baixo, considerar a opinião de pessoas comuns e retomar experiências passadas da massa da população (Sharpe, 1992Sharpe, Jim. A história vista de baixo. In: Burke, Peter (org.) (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, p. 39-62. ). Esses três critérios de abordagem nos inspiram a fugir dos relatos “concentrados nos grandes feitos ou grandes homens” (Burke, 1992Burke, Peter (org.). (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP., p. 12), para evidenciarmos a história vista de baixo, onde a Micro- História se encaixa.

Esse campo de estudo prevê uma ênfase nos indivíduos que passam despercebidos pelos grandes relatos. “Não já apenas os reis, os chefes, os magistrados, mas a gente do povo, as mulheres, as crianças fazem sua aparição” (Ginzburg, Castelnuevo & Poni, 1989Ginzburg, Carlo; Castelnuevo, Enrico; Poni, Carlo. (1989). A micro-história e outros ensaios. Rio de janeiro: Difel e Bertrand Brasil., p.181). A Micro-História como parte da abrangência da história vista de baixo, pretende dar voz e auxiliar no fortalecimento de identidades, das memórias, dos diários, dos registros de pessoas comuns.

Como abordagem, a história vista de baixo preenche comprovadamente duas funções importantes. A primeira é servir como um corretivo à história da elite (...) a segunda é que oferecendo essa abordagem alternativa, a história vista de baixo abre a possibilidade de uma síntese mais rica de compreensão histórica, de uma fusão da história de experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais de história (Sharpe, 1992Sharpe, Jim. A história vista de baixo. In: Burke, Peter (org.) (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, p. 39-62. , p. 54).

A história vista de baixo explanada pelo historiador Jim Sharpe (1992Sharpe, Jim. A história vista de baixo. In: Burke, Peter (org.) (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, p. 39-62. ) é uma proposta de investigação onde a fala dos “menores” tem força de narrativa histórica e análise. Esses indivíduos sem cargos, sem insígnias, sem títulos nobres, por vezes negligenciados, podem agora ser representados e ouvidos. A tentativa dessa microanálise é verificar essas informações retidas nos pequenos universos (nas microrrealidades), a preocupação com os excluídos, as minorias, os não privilegiados e os marginalizados, “cuja existência é tão frequentemente ignorada” (Sharpe, 1992, p.41).

Para Barros (2013aBarros, José d’assunção (2013a). O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao quadro teórico. 9. ed. Petrópolis: vozes, , 2013b,) a Micro-História trata esses indivíduos como “pequenos fragmentos privilegiados”, “rejeitando grandes generalizações” identificando realidades mais substanciais mediante os discursos desses atores. Essa menor partícula examinada (o indivíduo e sua microrrealidade) consiste em fatias finas e ricas de conteúdo, embebidas de conhecimentos singulares, muitas vezes não revelados. Essa gota de d’agua está repleta de informações, de realismos, como um baú de significados que transpassa a casa, invade a rua e traduz momentos das histórias de um povo.

Portanto, a micro-história não é, necessariamente, a história dos excluídos, dos pequenos, dos distantes. Pretende ser a reconstrução de momentos, de situações, de pessoas que, investigadas com olho analítico, em âmbito circunscrito, recuperam um peso e uma cor; não como exemplos, na falta de explicações melhores, mas como referências dos fatos à complexidade dos contextos nos quais os homens se movem (Levi, 2009Levi, Giovani (2009). Prefácio. In: Oliveira, Mônica Ribeiro; Almeida, Carla Maria Carvalho de. (orgs). Exercícios de micro-história. Rio de janeiro: FGV., p. 14).

Segundo o historiador argentino Darío Gabriel Barriera, a Micro-História é fundamentada em três pontas: redução de escala de análise, exploração intensiva das fontes e adoção de um modelo de exposição explicativa (1999). Já Levi (1992Levi, Giovani. Sobre a micro-história. In: Burke, Peter (org.) (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, p. 133-161. , p.136) “A Micro-História como uma prática é essencialmente baseada na escala da observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental”. A partir desse tripé, esmiuçaremos a Micro-História.

O historiador italiano Carlo Ginzburg é um dos pioneiros e um dos principais nomes no estudo da Micro-História (Lima Filho, 2006Lima Filho, Henrique Espada Rodrigues. (2006). A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de janeiro: Civilização brasileira.). Na sua obra “O queijo e os vermes” (1976), Ginzburg nos apresenta o questionamento sobre a história quantitativa das ideias, sobre o silêncio das classes menos abastadas e seu descarte informacional no processo de documentação da história. “Inúmeros são os fios que ligam um indivíduo a um ambiente” (Ginzburg, 2006, p. 25). A partir da história de Menocchio, um simples moleiro3 3 Indivíduo que é dono ou trabalha num moinho , que o autor explica o contexto religioso, cultural e social de uma época. Nesse cenário, Menocchio é a gota d’agua, recorrendo a metáfora de Barros (2013aBarros, José d’assunção (2013a). O projeto de pesquisa em história: da escolha do tema ao quadro teórico. 9. ed. Petrópolis: vozes, , 2013b). “Mas o discurso de Menocchio, embora partisse do seu caso pessoal, acaba por abarcar um âmbito mais vasto” (Ginzburg, 2006, p. 41).

Outro ponto relevante na exposição da pesquisa de Ginzburg (2006Ginzburg, Carlo. (2006). O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: companhia das letras.), além do tom indiciário, é a concepção dessa realidade explícita fora do âmbito da classe dominante. No sentido de que quem conta a história é um moleiro herege, e não um sacerdote, presbítero ou pontífice. Uma pessoa comum, desprovida de relevância no microcosmo do estrato social (Ginzburg, 2006). Esse posicionamento de resgate de pessoas comuns é notabilizado na segunda metade do século XX, na opinião do historiador José Costa D’Assunção Barros:

Agora os mais variados sujeitos históricos merecem ser biografados: não apenas os heróis e as grandes individualidades políticas, mas também os indivíduos anônimos que jamais sairiam dos arquivos empoeirados se de lá não tivessem arrancado os historiadores (Barros, 2013bBarros, José d’assunção. (2013b). O campo da história: especialidades e abordagens. 9. ed. Petrópolis: Vozes. , p.188).

Retomaremos o pensamento basilar da Micro-História proposto por Barriera (1999Barriera, Darío. (1999). Las babas de la microhistoria del mundo seguro al universo de lo posible. Prohistoria, p. 177-186. ) e Levi (1992Levi, Giovani. Sobre a micro-história. In: Burke, Peter (org.) (1992). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, p. 133-161. ): fugindo de grandes fluxos para mundos pormenorizados, análise minuciosa de fatos cotidianos, investigação aprofundada da realidade escolhida e uma proposta diferenciada de narrativa.

Para Barriera (1999Barriera, Darío. (1999). Las babas de la microhistoria del mundo seguro al universo de lo posible. Prohistoria, p. 177-186. ), enquanto os estudos macro se organizam por meio de um marco de referências consciente ou inconscientemente pré-determinados, os estudos micro sublinham o contrário, a dimensão de incerteza e de possibilidades. Barriera (1999) destaca que tanto a análise micro, quanto a macro são carregadas de significados e graus de importância: “Pero así como micro no es desdeñable por pequeño, lo macro tampoco lo es por sus dimensiones” (ibídem, p. 184).

A opinião do pesquisador argentino assente, com a exposição de Zuluaga Ramírez (2006aZuluaga Ramírez, Francisco Uriel. (2006a).Unas gotas: reflexiones sobre la historia local. Revista historia y espacio, 27, p. 1-11. , 2006b), que a análise macro nos presta de informações gerais (estatísticas, médias, índices, níveis de produção, dentre outras) baseada na grande quantidade de elementos e generalizações, enquanto a análise micro se aporta nas interrelações entre os atores.

A adoção de uma escala microanalítica é a tentativa de entender os fenômenos que se apresentam além do discurso oficial, numa pluralidade de mundos sociais e que outra história é possível a partir de um ponto de vista particular (Revel, 2011Revel, Jacques. (2011). Micro versus macro: escalas de observación y descontinuidad en la historia. Tempo histórico, 2, p. 15-26. ). Segundo o historiador Jacques Revel, “a focalização de um objeto não é unicamente aumentar ou diminuir seu tamanho no visor, e sim modificar sua forma e sua trama” (Revel, 2010, p. 438). Embora se possa pensar que a Micro-História é fragmentada por tratar partículas menores de um caso, ela pode se tornar muito mais profunda do que levantamentos, censos e grandes amostras, que se revelam boas em quantidade, mas rasteiras em profundidade.

La premisa de la microhistoria es que limitando el campo de observación es que emergen dados más numerosos y refinados; que constituyen configuraciones inéditas haciendo aparecer una cartografía de lo social mucho más novedosa (Man, 2013Man, Ronen. La microhistoria como referente teórico-metodológico. Un recorrido por sus vertientes y debates conceptuales. (2013). Historia actual on line, 30. p. 167-173. , p. 169).

De acordo com o historiador Matti Tapani Peltonen (1999Peltonen, Matti. (1999). Indicios, márgenes y mónadas. Acerca del advenimiento de la nueva microhistoria. Prohistoria, 3, p.193-205. ) os micro-historiadores investigam coisas de grande amplitude em seus microscópios e com suas lentes excepcionais. O foco dessa vertente da história é a focalização em áreas pequenas, em fragmentos da história (Peltonen, 1999).

A análise micro-histórica é, portanto, bifronte. Por um lado, movendo-se numa escala reduzida, permite em muitos casos uma reconstituição do vivido, impensável noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas visíveis dentro das quais aquele vivido se articula (Ginzburg, Castelnuevo & Poni, 1989Ginzburg, Carlo; Castelnuevo, Enrico; Poni, Carlo. (1989). A micro-história e outros ensaios. Rio de janeiro: Difel e Bertrand Brasil., p. 178).

Zuluaga Ramírez (2006aZuluaga Ramírez, Francisco Uriel. (2006a).Unas gotas: reflexiones sobre la historia local. Revista historia y espacio, 27, p. 1-11. , 2006b) salienta que a Micro-História é utilizada como instrumento para compreender as mentalidades e a “pretensão de construir universos a partir de fragmentos da realidade, de indivíduos ou unidades únicas” (ibidem, p. 9). Enquanto que, para a historiadora Eva Pasek de Pinto (2006Pasek de Pinto, Eva. (2006). Como construir categorias em microhistoria? Revista de artes y humanidades, v. 7, n. 16, mayo-agosto. Venezuela. p. 85-97. , p. 97), “La microhistoria se caracteriza, principalmente, por ser un tiempo largo en un espacio corto, estudiados en profundidad”. Há uma preocupação dos historiadores citados em escutar em profundidade os indivíduos que escapam dos registros oficiais e se escondem nas coxias.

1.2 Micro-história, turismo e as transfor-mações socioculturais

Três pontos merecem destaque na nossa abordagem: a literatura científica que trata dos impactos socioculturais do turismo é bastante ampla (Marrero Rodríguez, 2006Marrero Rodríguez, J. Rosa. El discurso de rechazo al turismo en Canarias: una aproximación cualitativa (2006). Pasos. Revista de Turismo e Patrimonio Cultural, 4(3), p. 327-341. ), o interesse na relação entre populações locais e turismo é bastante antigo e difundido (Marrero Rodríguez, 2006; Ramón Cardona, 2015Ramón Cardona, José (2015). Efecto de la economia y el entorno en los residentes. Pasos. Revista de Turismo e Patrimonio Cultural, 13(6), p. 1371-1386 ) e as associações entre turismo e cultura são frequentes, visto que “El turismo como fenómeno multidisciplinar implica efectos de carácter sociocultural tanto en los turistas como en la vida diaria de los residentes locales de los destinos” (Monterrubio-Cordero, Mendoza Ontiveros & Huitrón Tecotl, 2013Monterrubio-Cordero, Juan Carlos; Mendoza Montiveros, Martha Marivel. Huitrón Tecotl, Tania K. (2013). Percepciones de la comunidad local sobre los impactos sociales del “spring break” en Acapulco, México. El periplo sustentable, 24. p. 41-65. , p.44). Apesar disto, associar estes aspectos à Micro-História é algo excepcionalmente novo.

Preço da terra, aglomeração de pessoas, aculturação, mercantilização da cultura, são algumas das transformações culturais desfavoráveis provindas do turismo destacadas por Camargo Velandia (2016Camargo Velandia, Mercedes. (2016). Percepción de la comunidad del archipiélago de Bocas del Toro, Panamá, sobre el impacto de la industria turística. Turismo y Sociedad, 19, pp. 73-96.) e Monterrubio-Cordero et al (2013Monterrubio-Cordero, Juan Carlos; Mendoza Montiveros, Martha Marivel. Huitrón Tecotl, Tania K. (2013). Percepciones de la comunidad local sobre los impactos sociales del “spring break” en Acapulco, México. El periplo sustentable, 24. p. 41-65. ). Quanto aos aspectos favoráveis do turismo nas localidades, destacamos a permanência dos cidadãos em suas localidades, evitando a migração, intercâmbio e enriquecimento cultural com os visitantes (Camargo Velandia, 2016), além de mudanças decorrentes da fala, das formas de vestir e alimentar-se. O turismo relaciona-se com muitos elementos socioculturais na sociedade contemporânea (Urry, 2001Urry, John. (2001). O olhar do turista: lazer e viagens nas sociedades contemporâneas. 3. ed. São Paulo: Nobel.).

As cidades, comunidades, vilas, “ilhas de história”, têm vivido essas novas configurações. Nas paisagens, nas comunicações, nas relações, nas formas de lidar com o passado, com o presente e com o futuro. Esses efeitos não são exclusivos do Turismo, mas de uma ressonância própria da complexidade do ser humano. “Cultura não é propriedade de ninguém, nem de grupo algum (...) mas é um processo estratificado de embates” (Yúdice, 2004Yúdice, George. (2004). A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora da UFMG., p. 126).

As alterações causadas pelas reverberações do sistema sociocultural são vistas na capacidade de reorganização e readaptação das cidades aos novos costumes, comum à atividade turística. Para Stuart Hall (2005Hall, Stuart. (2005). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: Dp&a.), o encurtamento dessa dimensão espaço e tempo, provocados pela própria aceleração dos deslocamentos globais, favoreceu esse impacto mais imediato sobre pessoas e lugares. Os lugares não têm mais o poder de invisibilidade, da reclusão e/ou intocabilidade. Ao mesmo tempo, suas paisagens características, seu senso de lugar, de casa ou de lar se perdem no torvelinho das visitações, na chegada de grandes organizações e no afrouxamento das identificações numa “Fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente” (Hall, 2005, p.73/74), próprias de uma tipologia de turismo.

A metáfora que Justo Serna e Anaclet Pons (2002Serna, Justo; Pons, Anaclet. (2002).en su lugar. Una reflexión sobre la historia local y el microanálisis. Prohistoria, 6, p. 107-126. ) fazem sobre o oceano explicita coerentemente nossa intencionalidade neste caso. Possuímos dois oceanos, um representado pelo Turismo e outro representado pelas questões socioculturais. Mesmo que todos estudem o mesmo oceano, ora partes maiores, ora partes menores, todos se debruçam sobre a mesma realidade. A diferença se dá, pois, no aparato teórico, na escala de investigação, na definição de parâmetros, na temporalidade, na sensibilidade do entendimento e “ninguna de ellas agota la complejidad de lo real” (Serna & Pons, 2002, p. 119).

Embora optemos por aprofundar em frações, limalhas, centelhas da realidade local, “reducir las medidas de la red no significa investigar con menor número de informaciones, significa que todas ellas hagan referencia a un mismo objeto” (Serna & Pons, 2002Serna, Justo; Pons, Anaclet. (2002).en su lugar. Una reflexión sobre la historia local y el microanálisis. Prohistoria, 6, p. 107-126. , p.118).

2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Retornando ao que Revel (2010Revel, Jacques. (2010). Micro-história, macro-história: o que as variações de escala ajudam a pensar em um mundo globalizado. Revista brasileira de educação, 15(45), septiembre-diciembre, p. 434-444. ) evidencia, nossa escala de observação é o homem, o ator social, sua representatividade no grupo, marcadores individuais para entender a realidade mais ampla. No caso da nossa pesquisa, as novas configurações e constituições provindas de uma atividade turística nesse cotidiano local. Trataremos com pessoas comuns, com suas pequenas realidades por vezes pormenorizadas pela história, mas que reproduzem um mundo peculiar repleto de memórias, vivências e experiências.

O presente estudo orientou-se por parâmetros qualitativos, inserindo o pesquisador na comunidade (em ambiente natural), por meio de interações face a face, observação de comportamentos, realização de entrevistas, exames de documentos, complementadas por múltiplas fontes de dados (Creswell, 2010Creswell, John W. (2010). Projeto de pesquisa. 3. Ed. Porto Alegre: Artmed/ Bookman.; Silverman, 2009Silverman, David (2009). Interpretação de dados qualitativos. 3. ed. Porto Alegre: Artmed/ bookman.). Quanto aos procedimentos de coleta de dados, utilizou-se a observação participante, entrevistas semiestruturadas, documentos e materiais audiovisuais (fotografias e vídeos).

Como o município tem cerca de nove mil habitantes e 26 distritos, o recorte foi realizado no Distrito Sede, por três motivos: primeiro porque é onde a atividade turística se faz presente, tanto pelos atrativos naturais quanto pelos equipamentos instalados para os visitantes. Segundo porque é no Distrito Sede que estão concentradas todas as secretarias municipais e a prefeitura. Por último, por ser o distrito com maior número de habitantes e que aglutina as associações, os comitês e as ONGs.

Durante dois anos foram pesquisados 52 atores divididos em quatro grupos (representantes da esfera governamental, empreendedores turísticos, representantes de associações, comitês e ONGs e por último, membros da população que sua história pessoal confunde-se com a própria história da cidade). Neste artigo, o recorte é equivalente a 17 atores do quarto grupo, que tiveram alguma representatividade na história da cidade, não assumiam nenhum cargo oficial e vivenciaram as mudanças decorrentes entre 1993 e 2016. Os entrevistados foram categorizados através de números, que representam a ordem sequencial de entrevistas. Os 17 depoentes deste grupo foram entrevistados em dias e ordem alternados, por isso a numeração não sequencial da relação dos depoimentos. Determinou-se não especificar nos resultados informações quanto ao gênero, idade ou tempo de residência, para evitar qualquer tipo de identificação dos respondentes.

O quarto grupo de entrevistados foi escolhido por meio de uma amostragem não probabilística tipo bola de neve, inspirado no que propõe Malhotra (2012Malhotra, Naresh (2012). Pesquisa de marketing. 6. ed. Porto Alegre: Bookman. ). Esse grupo abrangeu cidadãos locais que acompanharam o processo de emancipação e/ou vivenciaram a transformação da cidade pelo turismo nos últimos anos. Pescadores, artesãs, donas de casa, pequenos comerciantes, empresários locais, professores, aposentados, dentre outros, formaram esse grupo, que corresponde a 32,69% do total de entrevistados.

Trabalhou-se com entrevistas semiestruturadas, assistemática, antropológica ou livre (Marconi & Lakatos, 2011Marconi, Mariana de Andrade; Lakatos, Eva Maria. (2011). Metodologia científica. 6. ed. São Paulo: Atlas.). De fato, este tipo de entrevista dá ao sujeito espaço para que aflorem com mais liberdade às impressões, avaliações, concepções, imagens que cada um dos temas propostos evoca, que um instrumento mais “rígido”, não permitiria.

Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, com duração em média de 50 minutos cada, e todas com uso de formulário de consentimento informal (Creswell, 2010Creswell, John W. (2010). Projeto de pesquisa. 3. Ed. Porto Alegre: Artmed/ Bookman.). As transcrições dos áudios duraram cerca de dois meses para cada grupo de entrevistados. Neste processo o discurso dos entrevistados foi agrupado em seis grandes áreas pelo pesquisador, sendo elas: transformações econômicas, ambientais, socioculturais, memória e história, turismo e cenário futuro e questões de emancipação e politica. O enfoque deste recorte era o cruzamento do quarto grupo de entrevistados com as transformações de ordem sociocultural.

A tomada de notas do trabalho de campo adotou uma orientação proposta por Yin (2016Yin, Robert. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso.), quanto à organização, formatação, transcrição, linguagem e esboço. Esta abordagem possibilitou a comparação de fontes de evidências e “versões conflitantes ou complementares dos mesmos acontecimentos da vida real” (Yin, 2016. p.151). Salientamos que a dissecação das informações fruto dos levantamentos do campo obedeceu a orientação de Yin (2016) presente no ciclo de cinco fases de análise de dados qualitativos: compilar, decompor, recompor, interpretar e concluir.

O local e o horário das entrevistas eram geralmente escolhidos pelo pesquisador ou de comum acordo. Inspirado no que propõe Flick (2009Flick, Uwe. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. 3. ed. Porto alegre: Artmed.), as questões elaboradas contemplavam três aspectos: perguntas mais abertas, livres, sobre a vivência do entrevistado na localidade, perguntas direcionadas para os objetivos e hipóteses do trabalho e, por fim, questões mais confrontativas sobre a relação turismo e microrrealidades na comunidade. Dentro do roteiro pré-estabelecido, limitou-se ao número de quinze questões (ou tópicos) para cada entrevistado, reforçando o modelo de entrevista despadronizada modalidade focal.

Conjuntamente às entrevistas, fez-se pertinente a observação direta in loco do participante (Marconi & Lakatos, 2010Marconi, Mariana de Andrade; Lakatos, Eva Maria. (2010). Fundamentos da metodologia científica. 7. ed. São Paulo: atlas.; Malhotra, 2012Malhotra, Naresh (2012). Pesquisa de marketing. 6. ed. Porto Alegre: Bookman. ). Importante ressaltar que as observações diretas in loco aconteceram em seis períodos de imersão na localidade. Uma das razões da escolha da abordagem micro-histórica na análise do discurso dos entrevistados foi a tentativa de fazer emergir os “silêncios reveladores”, como explica Barros (2013bBarros, José d’assunção. (2013b). O campo da história: especialidades e abordagens. 9. ed. Petrópolis: Vozes. ):

Uma vez que a micro-história trabalha muito com as contradições dos atores sociais a serem investigados, com os discursos subjetivos, falseados, dialógicos - trazer estas subjetividades, estes falseamentos, este dialogismo para a superfície do texto final (Barros, 2013bBarros, José d’assunção. (2013b). O campo da história: especialidades e abordagens. 9. ed. Petrópolis: Vozes. , p. 167).

A pesquisa qualitativa requer desde o seu planejamento, critérios de escolha e exclusão. Assim como afirma Yin (2016Yin, Robert. (2016). Pesquisa qualitativa do início ao fim. Porto Alegre: Penso., p.212) “A brevidade dos materiais citados também corresponde com os métodos de trabalho de campo do autor”. A seleção de trechos dos entrevistados intercalando e cruzando com a abordagem teórica sobre o tema expressas nesta pesquisa, foi uma decisão autoral. Mais uma vez a abordagem de Yin (2016) inspirou o formato da apresentação dos resultados “a combinação da própria narrativa do autor intercalada com as passagens citadas produz um estilo de apresentação fácil e atrativo” (Yin, 2016, p.212).

3 MICRORREALIDADES SOCIOCULTURAIS EM TRANSFORMAÇÃO

O povoado de “Gostoso” foi fundado em 29 de setembro de 1884, e um dos primeiros moradores do lugar, Miguel Félix Martins, construiu ali um templo em homenagem ao padroeiro da vila após sobreviver a um naufrágio. A igreja foi inaugurada em 29 de setembro de 1899 (Tabosa, 2000Tabosa, William Farkatt. (2000). Anteprojeto de pousada em São Miguel de Touros-RN. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de tecnologia. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Natal: 58 p. ; Aragão, 2001Aragão, Wilson Honorato (org.). (2001). São Miguel do Gostoso: um município construído a muitas mãos e uma história contada a muitas vozes. Natal: Natal editora.). O distrito foi desmembrado da cidade de Touros (RN) em 1993 e segundo dados do IBGE (2010) a população da cidade é de 8.670 pessoas.

O município de São Miguel do Gostoso localiza-se na mesorregião leste potiguar, microrregião do litoral nordeste, no Polo Costa das Dunas e distante 100 km da capital do Estado (Natal). De acordo com a Figura 1, o município tem como limites, ao Norte, o Oceano Atlântico, ao Leste e Sul, o município de Touros e a Oeste, o município de Pedra Grande e Parazinho (Miller, 2014Miller, Francisca de Souza. (2014). Aspectos da mudança social em São Miguel do Gostoso: uma comunidade de pescadores artesanais do Rio Grande do Norte. In: Leitão, Maria do Rosário de Fátima Andrade (org.). Pesca, turismo e meio ambiente. 1. ed. Recife: edfurpe, p. 107-120.).

Figura 1
Mapa do Estado do Rio Grande do Norte com destaque para o Município de São Miguel do Gostoso

Não se sabe ao certo o que demarcou o início do fluxo turístico em São Miguel do Gostoso, mas dois marcos temporais são importantes para entender esse movimento. O primeiro, a criação da Pousada do Gostoso (1985) pelo navegador potiguar Leonardo Godoy. A pousada localizada na Ponta do Santo Cristo foi o primeiro meio de hospedagem da localidade (Neri, 2013Neri, Emanuel. (2013). Cabeças do vento: a história e as estórias de São Miguel do Gostoso sob o olhar da família Teixeira Neri, a partir de relatos e memórias da matriarca Isabel Neri. Natal: conteúdo editorial. ; Pesquisa Direta, 2016).

Outra dimensão temporal foi o surgimento da primeira escola de kite surf 4 4 Esporte náutico praticado com uma vela e uma prancha. Do inglês “kite”, pipa, vela ou papagaio. pelas mãos de um italiano chamado Paolo Migliorini, em 2007. Os ventos propícios, a disposição geográfica natural e a facilidade de acesso protagonizaram um turismo que associa esporte e um tipo de embarcação.

Assim como em outros municípios do litoral nordestino, São Miguel do Gostoso tinha na pesca e na agricultura umas de suas principais fontes de renda. Segundo Miller (2014Miller, Francisca de Souza. (2014). Aspectos da mudança social em São Miguel do Gostoso: uma comunidade de pescadores artesanais do Rio Grande do Norte. In: Leitão, Maria do Rosário de Fátima Andrade (org.). Pesca, turismo e meio ambiente. 1. ed. Recife: edfurpe, p. 107-120.), a localidade tem sua economia centrada em três pilares: “a base da economia se concentra nas seguintes atividades: agropecuária (sendo a farinha de mandioca o seu principal produto), pesqueira e o turismo” (Miller, 2014, p. 109). A atividade de pesca artesanal5 5 Pesca utilizada com utilização de instrumentos artesanais, confeccionados pelos próprios pescadores, desde a feitura de redes como embarcações. , artesanato de labirinto6 6 Esse tipo de artesanato é chamado de labirinto devido ao tipo de bordado realizado no tecido. Consequentemente as artesãs que fazem os labirintos são chamadas de labirinteiras. e agricultura de subsistência foram no decorrer do tempo perdendo espaço para outras atividades econômicas mais atrativas.

A primeira ruptura do isolamento foi a chegada da energia elétrica, sequencialmente pela asfaltagem da RN 2217 7 Rodovia que liga São Miguel do Gostoso até a BR 101. O asfaltamento ocorreu na década de 2000. , que facilitou o acesso ao distrito. E, num terceiro momento, o turismo. Embora a estrada entre São Miguel do Gostoso e Touros existisse nos anos 1990, o trecho de piçarro e areia tornava a deslocamento demorado e difícil. Os moradores costumavam fazer o trajeto pela praia, inclusive as labirinteiras, para vender seus produtos em lugarejos vizinhos. Enquanto o distrito permaneceu isolado, suas características de vila de praia se mantiveram intocadas. Para o entrevistado 12, “Aqui era só pé de mato, cajueiro e guabiraba8 8 Fruto comestível de um tipo de planta que era comum na região. (...) era tudo cheio de mato”. Para outro morador, “Todas as noites era comum as pessoas ficarem nas calçadas, nas ruas, até de madrugada” (Depoimento 14). O esquecido distrito do final dos 1970 foi assim descrito:

São Miguel do Gostoso era uma vila de pescadores com três núcleos de casas. Uma abrangendo a área da Pousada Mar de Estrelas, um segundo núcleo nas proximidades da Rua dos Dourados, onde está encravada a Igreja Católica formado com oito ou dez casas e outro formado pelo pessoal do Cícero Martins (Depoimento 23).

Os ofícios do então distrito de São Miguel do Gostoso eram a agricultura de subsistência, a pesca artesanal e o artesanato de labirinto. Este último, exclusivamente das mulheres. Basicamente, “Se vivia da agricultura e da pesca (...) e era um vilarejo com poucas ruas e ruas estreitas” (Depoimento 25). Esse legado era repassado aos filhos, que reproduziam as atividades dos pais: “Meus filhos tudo aprenderam a pescar, os homens” (Depoimento 4). A pesca era para os homens, e o artesanato, para as mulheres. A chegada do turismo, aliado a outras questões socioculturais e econômicas, foi esfacelando esses ofícios, já que os trabalhos originais (como costura, pesca, plantio) perderam espaço para os serviços turísticos nas pousadas e nos restaurantes. “A cultura da pesca vai ficando para os mais velhos e não passando para as gerações futuras” (Depoimento 29). A pesca perdeu o espaço para o turismo devido a vários fatores: por ser um trabalho arriscado, pesado e com pouco retorno. “Os jovens não pescam mais (...) os jovens de hoje podem estudar, o que não tinha há 15 anos” (Depoimento 28).

O pescado aparece como um produto essencial tanto para a alimentação dos gostosenses, quanto para suprir os equipamentos de alimentação e hospedagem, embora haja reclamação, tanto dos moradores quanto dos donos de empreendimentos, referente ao valor alto do quilo do produto.

A transformação da pesca não é algo isolado, é macro, não acontece apenas em São Miguel do Gostoso, é um processo de descontinuidade da atividade, além da substituição da pesca artesanal pela pesca industrial. O investimento nas embarcações, nas técnicas, no manuseio e aprendizagem da pesca, requer muito tempo. Ainda é possível ver em “Gostoso” artesãos construindo barcos de pesca, consertando redes de arrasto e vendendo seus peixes na feira local. Mas até quando?

Quanto ao oficio das mulheres, há notadamente, uma desarticulação dos grupos de labirinteiras, visto que elas ainda não têm um espaço próprio para comercializar seus produtos, que, muitas vezes, são vendidos na porta de suas residências, sem precificação definida. Devido a isso, muitas labirinteiras vendem seus bordados (labirintos) com preços abaixo do valor comercial e laboral, desqualificando seus trabalhos manuais. O labirinto artesanal é um produto de difícil confecção, e o labor das artesãs nem sempre é compensado na hora da sua venda.

No Distrito Sede, ainda se encontram labirinteiras, que fazem sua atividade ora ao ar livre, ora nas suas residências. É notória, entre os entrevistados, a descontinuidade do labirinto, atividade ainda resistente entre as senhoras mais velhas. “Não tem mais nenhuma novinha fazendo labirinto” (Depoimento 5). O turismo aqui se mostra com uma dupla faceta. Ele corroborou com o afastamento das jovens do artesanato e, ao mesmo tempo, criou mercado para as peças elaboradas pelas labirinteiras. Uma artesã assim enunciou seu receio: “Eu tenho pena, mas enquanto eu tiver juízo vou tá trabalhando” (Depoimento 12).

Não se pode culpar solitariamente o turismo pelo desaparecimento do labirinto. É evidente que o encantamento do turismo arrebatou muitas jovens, mas as mudanças provindas do acesso à tecnologia e à informação, aos deslocamentos mais curtos e rápidos, e as facilidades de estudos e alterações comportamentais geraram um desinteresse por atividades pouco lucrativas e que exigiam um grande esforço físico.

Como se pode perceber no seguinte depoimento:

O labirinto é um artesanato muito trabalhoso, muito trabalhoso (...) a mulher para poder fazer é um processo, desde a compra do tecido, da linha, o tecido é caro, a linha é cara, primeiro vai desenhar, leva muito tempo desfiando (...) a mulher leva oito horas de trabalho para fazer uma toalhinha de mão numa barrinha de 10cm (...) é muito trabalhoso e pouco rentável (Depoimento 17).

Apesar dos aspectos culturais intrínsecos na atividade do labirinto, ele também se amoldou a uma demanda turística. Nos dias de hoje, muitas peças são feitas sob encomenda, de modo que os próprios consumidores determinam e/ou escolhem os modelos, desenhos e tamanhos. “São os bolsos que escolhem os desenhos” (Depoimento 37). A tendência desse ajuste do fazer ao gosto dos visitantes, nos dá indícios de uma periculosidade da atividade se render ao industrianato. Quando as atividades originais se moldam ao turista, a tradição e a originalidade perdem sua força, descaracterizando o trabalho laboral. É a tentativa de ajuste aos mercados (inclusive estrangeiros) que determinam como deve ser o produto que agrada ao público. Há uma resistência em produzir peças grandes, como toalhas de mesa ou lençóis para a cama, tanto pelo desgaste, quanto pelo tempo de realização.

As labirinteiras preferem confeccionar peças menores porque são mais aceitas para compra, e o tempo para elaborar, mais curto (conforme figura 2). Dependendo da peça, a artesã pode levar meses: “O labirinto é um trabalho muito demorado” (Depoimento 6). Os entrevistados percebem o valor tradicional do artesanato e seu risco de esvaecimento, o que pode ser representado na seguinte afirmação: “Não tem mais nenhuma novinha fazendo labirinto” (Depoimento 5).

Figura 2
Pano bordado com artesanato de Labirinto

Uma das questões da entrevista versava sobre o futuro do artesanato de labirinto e da pesca no município. Quase a totalidade dos entrevistados referiu-se à pesca como uma atividade em declínio, assim como o artesanato. “A nossa pesca está no momento de decadência” (Depoimento 36). As referências da pesca artesanal no passado enaltecem principalmente a lagosta. Um pescador assim define a baixa produtividade da pesca: “Alguns peixes se mudou-se (...) mas dá pra viver de pesca ainda” (Depoimento 4). Um morador da cidade assim define o que aconteceu: “Antigamente só tinha a profissão de agricultor e pescador... hoje tem camareira, garçom...” (Depoimento 8).

A migração da pesca e do labirinto para o turismo e para a energia eólica é visível no seguinte depoimento:

O pescador põe uma roupa e vai trabalhar na eólica, geralmente com máquinas pesadas e não volta pra pesca (...) da mesma forma acontece com a senhora que era labirinteira. Não consegue auferir renda para se manter, então vai ser camareira numa pousada ou cozinheira (...) o rapaz que trabalha na agricultura vai ser garçom (...)isso tira as pessoas do trabalho artesanal e elas não retornam, uma vez especializados naquela atividade, não querem mais voltar (Depoimento 22)

O futuro do labirinto artesanal ainda é uma incógnita. Ao mesmo tempo em que sua fabricação manual no Distrito do Reduto produza um bem cultural e turístico, a maneira de realizá-lo está em processo de deterioração devido à falta de artesãs. A pesca transita pelo mesmo percurso, minguada em relação aos anos anteriores, quando já se configurou como principal atividade econômica da cidade. A esperança aparece em poucos discursos: “A pesca não vai acabar, tem muito peixe e é tradicional” (Depoimento 33).

A tendência é que o repasse da técnica e do aprendizado na feitura dos barcos se perca com o passar do tempo. Quando uma atividade se extingue, com ela também se esvai a tradição. Os meninos nas jangadas, as meninas nos teares, os pais na agricultura, tudo foi se transformando para não mais voltar. “A cidade era uma vila de pescadores originalmente, a gente chegava e via muitos barcos no mar (...) com o desenvolvimento essa principal fonte foi sendo esquecida, acho que uma das mudanças mais significantes para a história da cidade” (Depoimento 29).

O turismo se posiciona como uma atividade de maior interesse pelos jovens, pelas possibilidades de crescimento pessoal, troca cultural e interações com estrangeiros que proporciona. Segundo um dos depoimentos, o incentivo à atividade do labirinto poderia retardar seu desparecimento: “O labirinto foi mais do que a pesca (...) hoje se você procurar aqui dentro da cidade, não sei se você encontra dez (...) eu acredito se tivesse apoio para essas mulheres, associações que viessem resgatar (...) porque é muito interessante” (Depoimento 1).

Há gradativamente a diminuição de barcos no mar, um afastamento dos jovens da pesca, um adormecimento das raízes, um arrefecimento da atividade frente ao turismo que se impõe:

O crescimento da especulação imobiliária, a fixação de estrangeiros que chegam à comunidade e o turismo parecem ter definido um novo status para os pescadores, colocando-os numa condição não mais tão privilegiada no seio da família e da comunidade como um todo (Miller, 2014Miller, Francisca de Souza. (2014). Aspectos da mudança social em São Miguel do Gostoso: uma comunidade de pescadores artesanais do Rio Grande do Norte. In: Leitão, Maria do Rosário de Fátima Andrade (org.). Pesca, turismo e meio ambiente. 1. ed. Recife: edfurpe, p. 107-120., p. 116).

A opinião de Miller (2014Miller, Francisca de Souza. (2014). Aspectos da mudança social em São Miguel do Gostoso: uma comunidade de pescadores artesanais do Rio Grande do Norte. In: Leitão, Maria do Rosário de Fátima Andrade (org.). Pesca, turismo e meio ambiente. 1. ed. Recife: edfurpe, p. 107-120.) compactua com a observação de Grendi (2009Grendi, Edoardo. Microanálise e história social. In: Oliveira, Mônica ribeiro; almeida, Carla Maria carvalho de. (Orgs). (2009). Exercícios de micro-história. Rio de janeiro: FGV., p. 46) de que existem “tecidos de relações interpessoais inseridos em contextos sociais mais amplos”, reforçado por um dos depoimentos a seguir, onde se esclarece que as transformações são de maior magnitude, provindas de fluxos externos.

É difícil falar o que mudou por causa do turismo e o que mudou por causa do natural desenvolvimento social e tecnológico. Porque eu acho que a tecnologia teve impacto muito mais importante que o turismo (...) tecnologia como telefone e internet (...) não é o turismo que mudou isso, é uma explosão de tecnologia que tem um impacto social incrível (Depoimento 2)

Um outro aspecto observado é a mutação da cidade aos estrangeirismos para acomodar-se ao fluxo contínuo de visitantes estrangeiros, soprado de todas as direções. É visível o número de estabelecimentos (principalmente de alimentação e hospedagem) que se utiliza de palavras em outras línguas, fruto do processo híbrido do turismo percebidos na linguagem.

Todas as transformações, adequações, atualizações da língua são frutos de um processo globalizante (García Canclini, 2008García Canclini, Néstor (2008). Consumidores e cidadãos. Rio de janeiro: UFRJ.). Tanto para o entrevistado 23 quanto para o entrevistado 24, “O Nordeste é muito maleável na aquisição de hábitos importados” e “O Nordeste é maleável quanto aos hábitos estrangeiros”. Para alguns atores consultados, a incorporação de comportamentos estrangeiros ao cotidiano dos jovens, lhes dá certa diferenciação e status em relação aos demais. “Mudou a maneira de vestir das meninas, mudou a maneira dos rapazes cortar o cabelo. As pessoas perderam o medo de se vestir, pintaram o cabelo, agora é moda” (Depoimento 3).

As mudanças em São Miguel do Gostoso vão desde o linguajar às vestimentas, aos hábitos alimentares, à forma de se expressar. Essa tentativa de homogeneização cultural na comunicação é destacada por Hall (2005Hall, Stuart. (2005). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: Dp&a.) e pelos depoimentos a seguir:

Abriu um leque para as outras línguas, eles estão ouvindo outras línguas... alemão, inglês, francês, italiano... muito italiano. Isso é uma grande coisa, uma abertura para o mundo das pessoas daqui... coisa que não tinha. Ideias novas, diferentes, às vezes um pouco chocante (Depoimento 28).

A gente recebe muito estrangeiro (...) algumas pessoas se envolvem muito ali e as pessoas daqui a pouco estão falando outras línguas, outros costumes, outras gírias... acho que eles estão perdendo um pouco da identidade (Depoimento 14).

Nem sempre essa relação de visitante e visitado é harmônica: “Às vezes quem vem de fora quer impor o seu jeito, a sua maneira de ser na cidade e na cultura do povo, sem levar em consideração o que os nativos têm” (Depoimento 24). Ou ainda: “Um pouco da cultura local vai sendo esquecida porque o jovem vai focar no novo” (Depoimento 29). Tendenciosamente, os mais jovens se sentem mais atraídos por hábitos diferentes dos seus pais, e os comportamentos dos estrangeiros vão sendo incorporados no dia-a-dia. Essa apropriação declarada e consentida tem favorecido e legitimado esse processo de hibridismo, de renovação e esgotamento, de renascimento e esquecimento, sempre versátil, volúvel e contínuo.

Perceptivelmente, os fluxos turísticos, migrações e desterritorializações vão alinhavando outros tecidos sociais, reconfigurando a paisagem, o social e urbano, o cultural. “Quando a circulação cada vez mais livre e frequente de pessoas, capitais e mensagens nos relaciona cotidianamente com muitas culturas, nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva a uma comunidade nacional” (García Canclini, 2008García Canclini, Néstor (2008). Consumidores e cidadãos. Rio de janeiro: UFRJ., p.131). Essas interferências e novas composições que o turismo exerce aparecem no seguinte depoimento:

Por uma razão ou outra, o turismo deu uma característica própria à São Miguel do Gostoso e por isso que eu acho que não consiga separar turismo de São Miguel do Gostoso, eles estão intrinsicamente alinhados(...) (Depoimento 22).

A rapidez desses processos híbridos vem formando mosaicos de difícil definição e legitimação homogênea. Essa recombinação e transformação de elementos de uma sociedade por outra vai além de simples diferenças culturais. É mais do que isso, é uma reconfiguração de formato. Portanto, segundo o autor argentino, “nossa identidade já não pode ser definida pela associação exclusiva a uma comunidade nacional” (García Canclini, 2008García Canclini, Néstor (2008). Consumidores e cidadãos. Rio de janeiro: UFRJ., p. 131). Para um dos entrevistados, a troca cultural é algo positivo porque: “A gente começa a aprender novas formas de viver” (Depoimento 17), ou ainda: “ Eu não acredito na aculturação, eu acredito na troca” (Depoimento 31).

A São Miguel do Gostoso de outrora e os primeiros turistas não existem mais. “Antes você conhecia os turistas, conhecia pelo nome (...) hoje em dia não tem como identificar quem são” (Depoimento 34). De acordo com os levantamentos de campo (2014-2016), os primeiros turistas eram desbravadores, que chegavam à São Miguel do Gostoso pela praia ou depois de enfrentar uma longa caminhada (já que não havia estradas), que buscavam refúgio, isolamento e tranquilidade. Não eram os praticantes de esportes náuticos da atualidade (até porque essa atividade só surgiu nos anos 2000), mas outro tipo de turista como informa o depoente 34.

As mudanças culturais também se revelam na alimentação. A criação de uma feira municipal foi uma ideia da moradora Isabel Neri (Dona Bebé), apoiada por Leonardo Godoy.

Isabel acompanhou de perto todo o crescimento da cidade. E foi responsável por movimentos como a criação da feira livre local, que se realiza todas as segundas-feiras, e é bastante concorrida. Fazia reuniões, conversava com comerciantes e ouvia respostas não incentivadoras (...) (Neri, 2013Neri, Emanuel. (2013). Cabeças do vento: a história e as estórias de São Miguel do Gostoso sob o olhar da família Teixeira Neri, a partir de relatos e memórias da matriarca Isabel Neri. Natal: conteúdo editorial. , p. 58/59).

Nos depoimentos capturados pelas entrevistas, a feira ganhou novos produtos, dinamizou-se e foi adequando-se a novas demandas. Para os depoentes, a oferta de alimentos, os tipos de produtos e a gastronomia mudaram na cidade no decorrer dos anos. Os gostosenses alteraram seus hábitos alimentares também. Em certo aspecto, percebe-se, na feira, uma proliferação de folhagens, leguminosas e hortaliças que antes do boom turístico não eram comuns. Para a depoente 19 “Antigamente se usava muito sal e gordura, comida com muito sal, não tinha energia elétrica, não tinha geladeira (...) carne seca, peixe... hoje em dia já muda”.

Nos bares e restaurantes, também já são comuns produtos mais sofisticados (como vinhos, cogumelos e temperos).

A feira mostra a transformação do consumo (...) agora você vê muito mais verde, antes era um tom pardo (...) agora são hortaliças, ervas, temperos, folhas, enfim, que isso é reflexo de novos consumidores ligados aos restaurantes e pousadas (Depoimento 27).

Para alguns entrevistados, a demanda dos turistas forçou a produção local de rúcula, rabanete, salsinha, que não faziam parte do dia a dia da comunidade, reforçando a transformação destas microrrealidades. Para o entrevistado 14 “a gente vai crescendo e vai exigindo alguma coisa” ou ainda “a coisa tem que evoluir, não pode ficar retroativo no tempo” (Depoimento 11).

Por um lado, há uma oferta generalizada de produtos e serviços, que não ocorre nos distritos rurais vizinhos e um discreto esquecimento de raízes locais na gastronomia. O pescado nas praias faz parte dos cardápios das pousadas e restaurantes, mas outros alimentos simbólicos da região (como milho e mandioca) perderam seu status perante o wrap9 9 Do inglês "wrap", envolver, embrulhar ou cobrir. É um tipo de sanduíche sírio-libanês. , crepes e sanduíches. Segundo o depoimento 32, a modificação dos cardápios atendeu a uma globalização dos visitantes, mais interessados em outro tipo de alimentação. Mais uma vez, o local em detrimento do global. “De certa forma, a produção e a oferta de alimentos foram sendo moldadas para atender hábitos dos forasteiros e devido à irrigação” (Depoimento 8). Em contrapartida, alguns habitantes e proprietários de pousadas enaltecem as frutas e a produção local, transformando-as em doces, geleias e sucos. Como afirma o depoimento 29, “Começaram a vir coisas que a cidade não conhecia, desde arroz arbóreo a molho de tomate de outras marcas”.

Essa transformação dos hábitos alimentares, do comércio e da linguagem é valorizada por alguns entrevistados como nos depoimentos a seguir:

A gente começa a aprender novas formas de viver (...) O turismo veio, mas veio agregado a uma série de valores. Eu acho isso muito bom. Nós aprendemos com eles e eles com a gente. O turismo fixou as pessoas aqui (...) esse multicultural é muito importante. Porque a criança já cresce sabendo que existem várias formas de linguagem. As coisas que elas poderiam aprender mais à frente, elas aprendem no dia-a-dia. O que trouxe isso pra cá? O turismo! (Depoimento 18).

Um outro ponto positivo do turismo, que eu acredito, com o público seleto e com costumes diferenciados da comunidade, pessoas que consomem comidas diferentes e que a gente não costuma ver por aqui. Isso fez com que o comércio se diversificasse, oferecesse mais opções de comida e bebida e produtos em geral. Nosso povo hoje tem acesso a novos produtos que se não tivéssemos o turismo, estaríamos fadados a continuar no mesmo costume. O turismo trouxe essa característica para nossa comunidade (...) muitas coisas que você encontra aqui, como cervejas importadas ou alguma iguaria (...) algo que não tinha antes, que os turistas quando vem pra cá procuram e o mercado se adaptou (Depoimento 26).

Ao expressarem as mudanças na gastronomia local e na oferta de produtos diferenciados dos distritos ou cidades vizinhas, os entrevistados destacam essa singularização com orgulho. Todos que citaram a oferta da feira municipal local, os cardápios dos restaurantes e a variedade de itens dos mercados, exaltaram como algo positivo para uma localidade pequena. Em São Miguel do Gostoso é possível até encontrar um empório de vinhos, que pertence a um morador nascido na cidade. A transformação dos hábitos alimentares foi proporcionada pelas mudanças provenientes do turismo, com a chegada de novas culturas e aproximação com os visitantes. O fato de muitos turistas terem fixado residência no município, é um fator que também deve ser levado em consideração.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da interpretação das microrrealidades locais, esmiuçaram-se as transformações socioculturais mais proeminentes no cotidiano de São Miguel do Gostoso. Mudanças relativas ao trabalho, à linguagem, alimentação e vestimentas, foram perceptíveis após a chegada da atividade turística.

Constatou-se que as transformações do trabalho, ora centrado na pesca, agricultura e no artesanato, migraram para os serviços turísticos. Essa migração ocorreu mais intensamente nos anos 2000, com o impulsionamento do kite surf. O turismo foi um estímulo modificador, visto que o labor do passado não exerce atratividade, novas perspectivas e estabilidade para as gerações mais novas. Estas microrrealidades foram alteradas em definitivo.

A gastronomia do município, antes do turismo, estava concentrada nas frutas da região, nas raízes (como mandioca), no peixe, na carne salgada e na agricultura tipicamente familiar. O crescimento do turismo trouxe novas experimentações e modificações dos hábitos alimentares, desde sanduíches importados, peixes mais sofisticados (como bacalhau), vinhos, novas folhagens e cogumelos. Essa mudança não necessariamente reforça que houve melhoras na alimentação, apesar da diversidade, mas a entrada de novos sabores e opções de cardápio tanto para os estabelecimentos turísticos, como para o cotidiano da cidade.

Com os depoimentos “Tem muita gente aqui que fala como italiano” (Depoimento 14) ou “Tem muita gente querendo se misturar, falar italiano...” (Depoimento 3) é perceptível que pessoas envolvidas diretamente com o turismo veem na diversidade cultural, na aprendizagem de novas línguas, uma chance de ascensão, prestígio e diferenciação dos demais. Essa tendência em misturar-se é mais comum nos jovens. O turismo proporcionou essas interações entre línguas, ajustes e incorporações. O linguajar é mutante, de geração para geração palavras se perdem, ganham outros formatos e sentidos. O turismo tem essa facilidade em acelerar essas transformações, que chegam sorrateiras e se incorporam nas dinâmicas locais.

A diferenciação deste estudo foi a aliança entre Micro-História e Turismo, quase inexistente na literatura cientifica. A incorporação do estudo das microrrealidades para entendimento do turismo em São Miguel do Gostoso possibilitou um mergulho na vivência de pessoas comuns, longe dos holofotes. A intenção deste estudo não era em nenhum momento evidenciar o turista, o visitante ou viajante, mas entender como os locais lideram com essas transformações que avançaram pelos anos, alterando suas rotinas.

As microrrealidades de um povo constroem sua Micro-História. Indivíduos anônimos, que cotidianamente respiram e dão a vida à gota d’agua. Além do aquário, do pequeno mundo onde esses atores transitam e se relacionam, existem outras gotas d’agua nesse oceano de realidades transformadas. “A partir de la comprensión de la singularidad de una comunidad se puede descubrir su parecido con otras comunidades y con la sociedad que la engloba” (Arias, 2006Arias, Patrícia. (2006) Luís Gonzalez: microhistória e história regional. Desacatos, n. 21, maio-agosto, p. 177-186. , p. 182).

Compreender foi o desafio: compreensão dita, expressa no olhar, nas palavras ensaiadas e retidas na garganta, em rabiscos feitos a mão, no tamborilar dos dedos, na costura do tear, na xícara de café, nas caminhadas pela praia ou na lapidação da madeira. Esses eram os indícios procurados, avizinhamentos conflitantes, momentos únicos e reveladores que percorreram todo trabalho. Como afirma a filósofa alemã Hannah Arendt “a compreensão é um empreendimento estranho” (Arendt, 2008Arendt, Hannah. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. Ensaios 1930-1954. São Paulo: Cia das Letras/UFMG, 2008., p. 345).

Muitas outras transformações são perceptíveis em municípios de praia em que o turismo ditou novas configurações, que se amoldam a outras variáveis não evidenciadas neste estudo, mas proporciona novas perspectivas de investigação.

REFERENCES

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  • 3
    Indivíduo que é dono ou trabalha num moinho
  • 4
    Esporte náutico praticado com uma vela e uma prancha. Do inglês “kite”, pipa, vela ou papagaio.
  • 5
    Pesca utilizada com utilização de instrumentos artesanais, confeccionados pelos próprios pescadores, desde a feitura de redes como embarcações.
  • 6
    Esse tipo de artesanato é chamado de labirinto devido ao tipo de bordado realizado no tecido. Consequentemente as artesãs que fazem os labirintos são chamadas de labirinteiras.
  • 7
    Rodovia que liga São Miguel do Gostoso até a BR 101. O asfaltamento ocorreu na década de 2000.
  • 8
    Fruto comestível de um tipo de planta que era comum na região.
  • 9
    Do inglês "wrap", envolver, embrulhar ou cobrir. É um tipo de sanduíche sírio-libanês.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    18 Maio 2017
  • Aceito
    31 Ago 2017
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