Acessibilidade / Reportar erro

PERCEPÇÃO DE ASSÉDIO ENTRE AS CIRURGIÃS

RESUMO

Introdução:

a atração das mulheres pela Cirurgia sempre existiu. Embora a Cirurgia seja considerada especialidade para homens, várias mulheres a escolheram, apesar de questões de preconceito de gênero que têm se mantido ao longo de vários anos. Vários obstáculos têm impactado na prática das cirurgiãs, levando-as a abandonar a profissão, mas outras, talvez, as de espírito mais forte, conseguiram superá-los e venceram.

Objetivo:

avaliar a taxas de percepção de assédio contra cirurgiãs como causa de dificuldade e sentimentos negativos relacionados com a especialidade.

Método:

pesquisa, quantitativa e qualitativa (relatos pessoais), realizada por meio de questionário via Google Forms® enviado para todas as cirurgiãs registradas no Colégio Brasileiro de Cirurgiões e em grupo WhatsApp de cirurgiãs. A análise qualitativa foi feita com o aplicativo Wordle®.

Resultados:

Foram enviados 821 questionários e obtidas 232 respostas (28,2%). A percepção de assédio durante o treinamento foi de 49.1% (n=114). As cirurgiãs com percepção de assédio foram estatisticamente aquelas que reportaram ter tido treinamento diferente do que ansiavam (56,1%) (p<0,001). O quesito tratamento distinto por ser mulher também impactou na percepção do assédio (77,2% assediadas vs 47,5%; p<0,001). Ameaça física (42,1% vs 6,8%) e emocional (92,1% vs 39,8%) também foram distintas entre os grupos.

Conclusão:

cirurgiãs ainda reportam grande percepção de assédio moral e sexual, o que impacta na forma de encarar a profissão.

Palavras-chave:
Cirurgia; Mulheres; Identidade de Gênero; Preconceito

ABSTRACT

Introduction:

the attraction of women by Surgery has always existed. Although Surgery has been considered a specialty for men, several women chose it, despite gender bias issues that have persisted over many years. Several obstacles have impacted the practice of women surgeons, leading them to abandon the profession, while others, perhaps bearers of a stronger spirit, managed to overcome them, and won.

Objective:

to assess the rates of perception of harassment against female surgeons as a cause of difficulty and negative feelings related to the specialty.

Methods:

we conducted a quantitative and qualitative (personal accounts) research through a questionnaire via Google Forms® sent to all women surgeons registered in the Brazilian College of Surgeons and in a WhatsApp women surgeons’ groups. The qualitative analysis was made with the Wordle® app.

Results:

from 821 questionnaires sent, we obtained 232 responses (28.2%). Harassment perception during training was 49.1% (n=114). From the women surgeons who perceived harassment, 56.1% reported having undergone different training than expected, with statistical significance (p<0.001). The question of having been treated differently due to being a woman also had an impact on harassment perception (77.2% harassed vs 47.5%; p<0.001). Physical (42.1% vs 6.8%) and emotional (92.1% vs 39.8%) threats were also different between groups.

Conclusion:

women surgeons still report great harassment perception, both moral and sexual, which impacts their feelings about the specialty.

Keywords:
Surgery; Women; Gender Identity; Prejudice

INTRODUÇÃO

As mulheres participam da Medicina desde tempos mais remotos. A atração pela Cirurgia sempre existiu. O caso mais notório talvez seja o de Margareth Ann Bulky, conhecida como James Barry, o principal cirurgião da Armada Britânica por 40 anos. Bulky transformou sua aparência em masculina e obteve o diploma de médico pela Escola de Medicina da Universidade de Edinburgh. Viveu toda sua vida pública e privada, como homem. Foi reconhecida como tendo “grande habilidade cirúrgica, maneiras agressivas e pontaria perfeita”. Somente após a sua morte é que se soube que era mulher. Tal conhecimento causou violento impacto, mas o escândalo foi abafado e foi enterrada como sempre viveu: James Barry11 Castiglioni A. História da Medicina. São Paulo: Companhia Editora Nacional 1947.,22 Porter R. The Cambridge History of Medicine: Cambridge University Press; 2006..

A formação de uma sociedade patriarcal em que os homens eram os provedores e as mulheres as cuidadoras sufocou por muito tempo o desejo das mulheres de se inserirem na Medicina e na Cirurgia. Excetuando-se alguns períodos e locais, como exemplos, Egito Antigo e Grécia, em que aquelas que possuíam o dom da cura eram reverenciadas, as mulheres sempre foram vistas como elemento frágil que deveria ser protegida e ficar restrita ao lar. Sofreram preconceitos, insultos e depreciações. No entanto, algumas marcaram sua presença, aproveitando-se das brechas encontradas em diferentes momentos históricos33 Santucci JDA. Mulheres e Médicas - As Pioneiras da Medicina. Rio de Janeiro. Ediouro; 2005/2006. 248 p..

A Idade Média representou um período negro para a Medicina em geral, especialmente para as mulheres que estavam sempre sob o poder masculino: pai, tutor, irmão ou marido. O controle sobre o elemento feminino vinha da figura de Eva, que alimentava um sentimento misógino, considerando a mulher mais propensa ao pecado pela própria natureza. A mulher era vista como uma ameaça e, por isso, deveria estar submetida ao controle masculino. Não por acaso, tantas mulheres foram acusadas e condenadas à fogueira por bruxaria e por terem conhecimentos da arte da cura. Essas eram em grande parte solteiras, viúvas ou mulheres que viviam separadas de seus maridos e filhos44 HiSoUR. Renascença Médica 2021 [Available from: https://www.hisour.com/pt/medical-renaissance-33313/.
https://www.hisour.com/pt/medical-renais...
.

Os trabalhos mostram que o preconceito de gênero em Medician é problema recorrente em muitos países, mesmo no mundo ocidental, especialmente na especialidade de Cirurgia Geral. Bruce e colaboradores, em 2015, mostraram que 88% das mulheres percebiam o preconceito durante o treinamento55 Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923.. Ainda hoje, é comum a quase todas que escolheram essa especialidade ter de enfrentar preconceitos e, comumente, ouvir ao longo da vida profissional que “mulheres não podem/devem ser cirurgiãs”55 Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923..

O preconceito contra as mulheres que desejavam ser cirurgiãs cresceu em escala exponencial ao longo de anos. De sorte que, com tantos obstáculos, muitas mulheres desistem, mas outras, talvez as de espírito mais forte, conseguem superá-los. Ainda assim, mesmo aquelas que estão em posição de chefia/liderança muitas vezes só passaram da situação de glass ceiling para o glass Cliff66 Krishnan N, Szczepura A. Beyond the Glass Ceiling-Do Women in Senior Positions Face a Precarious Glass Cliff? JAMA Surg. 2021;156(6):589.. O objetivo do presente trabalho foi avaliar a taxas de percepção de assédio entre cirurgiãs e como isso poderia influenciar a formação e os sentimentos sobre a profissão ao longo da carreira.

MÉTODO

Trata-se de estudo transversal, realizado por meio de questionário semiestruturado construído na plataforma Google Forms®. Esse foi enviado para todas as cirurgiãs registradas no Colégio Brasileiro de Cirurgiões e também àquelas pertencentes ao grupo de WhatsApp “Mulheres na Cirurgia”. Tanto residentes ou cirurgiãs efetivas do corpo clínico foram pesquisadas, em três fases, com intervalos de 30 dias, no período entre abril e novembro de 2020. Foram enviados 821 questionários. Ao final do questionário, havia a possibilidade de inserção de comentário sobre o que dizer a uma interna que tenha inclinação pela Cirurgia Geral como especialidade (análise qualitativa). O sistema foi configurado de forma a não coletar endereços de e-mail, não permitindo, portanto, a identificação do usuário. Assim sendo, o termo de consentimento livre e esclarecido foi dispensado, conforme determinado pela RESOLUÇÃO Nº 510, DE 07 DE ABRIL DE 2016. Ao acessar o link, a respondente implicitamente cedia a autorização para o uso dos dados obtidos.

O teste do qui-quadrado foi usado para determinar a diferença entre os grupos, sendo o valor de p<0,05 considerado estatisticamente significativo. Medidas de associação de assédio foram submetidas a análise univariada de regressão logística (RL) incluindo variáveis binárias e ordenadas, em que a variável dependente foi ter tido a percepção de assédio. Considerou-se o intervalo de confiança (CI) de 95%. A versão 10.1 do programa estatístico STATA (College Station, EUA) foi usada para todas as análises.

A análise qualitativa foi feita por nuvem de palavras, construída com as respostas do item aberto. Foi utilizado o método heurístico de análise cuja intenção é delinear caminhos para o que se observar em um grupo de textos. Foi utilizado o Wordle® para fazer a nuvem de palavras.

RESULTADOS

Duzentas e trinta e duas respostas foram recebidas (28,2%). A prevalência da percepção de assédio durante o treinamento ou vida profissional foi reportada por 49.1% das mulheres (n=114). A Tabela 1 tem o registro das respostas entre os grupos percepção de assédio positivo ou negativo.

Tabela 1
Frequência das respostas estruturadas.

As cirurgiãs com percepção de assédio positivo reportaram de maneira significativamente estatística terem recebido treinamento cirúrgico inferior ao que tinham almejado, durante a residência médica (56,1% percepção assédio positivo vs 85,6%, p<0,001). Similarmente, essas também indicaram ter tido a sensação de que isso ocorreu por serem mulheres (77,2% vs 47,5% sem percepção de assédio, p<0,001). Tal fato, aconteceu especificamente no tratamento por parte dos colegas residentes do sexo masculino e por todos os demais cirurgiões do corpo clínico, ainda que o sexo dos preceptores diferisse no tratamento deste grupo específico (17,5% vs 8,5%, p=0,04).

Houve entre as mulheres com percepção de assédio a ocorrência de maior número de ameaças físicas e emocionais, assim como também essas reportaram menos oportunidades cirúrgicas por serem residentes do sexo feminino. A percepção de assédio causou maior dúvida se alcançariam o final do treinamento e se avaliariam fazer Cirurgia novamente (53,5% vs 27,1%). Cirurgiãs com percepção de assédio reportaram menor probabilidade de gratificação/tristeza que as não assediadas (83,3% vs 94,1%). Por fim, essas cirurgiãs tiveram impressão que a percepção do assédio melhorou ao longo do tempo, ou seja, a interpretação inicial do que seria assédio foi modificada pela experiência profissional (59,6% vs 36,4%).

Residentes com percepção de assédio tiveram 78,5% menor probabilidade de terem tido o treinamento adequado e, se sentiram tratadas de maneira diferente pelos cirurgiões do corpo clínico em 4,38 vezes mais (Tabela 2). Similarmente, foram 10 vezes mais expostas a violência física e 17,62 vezes mais expostas a violência emocional (p<0,001). Durante o treinamento a percepção de assédio foi 4,74 vezes mais difícil ter oportunidades cirúrgicas nesse período. Ter tido a percepção de assédio diminuiu em 54,0% a probabilidade de optarem pela residência em Cirurgia, novamente. Ademais, negativamente impactou, na percepção de gratidão ser maior que a tristeza (68,0%) ao terem optado por serem cirurgiãs. Essas cirurgiãs também tiveram maior probabilidade (2,57 vezes) de perceber que o melhorou ao longo da experiência cirúrgica.

Tabela 2
Análise univariada entre associação de percepção de assédio. .

A análise qualitativa por meio do Wordle® gerou lista com as palavras mais usadas nos textos livres sobre o que as cirurgiãs diriam para as jovens internas com intenção de seguir a Cirurgia como especialidade. O aplicativo atribui às palavras determinado peso pelo número de vezes em que são repetidas e as representa por diferentes cores e tamanho da fonte. O retrato final é a expressão das mensagens77 Wuang Y. Wordle 2017 [Available from: http://www.edwordle.net/.
http://www.edwordle.net...
.

DISCUSSÃO

A Cirurgia, especialidade considerada predominantemente masculina, tem sido ao longo de muitos séculos escolhida por várias mulheres, que têm enfrentado inúmeros desafios. Dentre esses, a percepção de assédio ainda parece ser fator de grande impacto na vida dessas profissionais. Na presente pesquisa pudemos confirmar que a percepção de assédio ainda é alta entre as mulheres (49,1%). Ainda que atualmente haja mais mulheres estudantes de Medicina tanto no Brasil como no mundo, a força de trabalho feminina nas especialidades cirúrgicas, em especial, na Cirurgia Geral, continua muito baixa88 Medicina CFd. Em 20 anos, dobra o número de mulheres que exercem a medicina no Brasil 2020 [Available from: https://portal.cfm.org.br/noticias/em-20-anos-dobra-o-numero-de-mulheres-que-exercem-a-medicina-no-brasil/.
https://portal.cfm.org.br/noticias/em-20...
. Talvez isso possa ser relacionado com a percepção de assédio e as dificuldades enfrentadas, como as que foram reportados pelas mulheres, no presente trabalho.

Nos últimos anos, vários estudos sobre a disparidade e a inequidade entre gêneros têm sido publicados no campo da Cirurgia99 Bellini MI, Adair A, Fotopoulou C, Graham Y, Hutson A, McNally S, et al. Changing the norm towards gender equity in surgery: the women in surgery working group of the Association of Surgeons of Great Britain and Ireland's perspective. J R Soc Med. 2019;112(8):325-9.

10 Mehtsun WT, Cooper Z. An Honest Look in the Mirror - Cultivating a Culture of Equity in Surgery. Ann Surg. 2021;273(1):e1-e2.

11 Thompson-Burdine JA, Telem DA, Waljee JF, Newman EA, Coleman DM, Stoll HI, et al. Defining Barriers and Facilitators to Advancement for Women in Academic Surgery. JAMA Netw Open. 2019;2(8):e1910228.
-1212 Zaza N, Ofshteyn A, Martinez-Quinones P, Sakran J, Stein SL. Gender Equity at Surgical Conferences: Quantity and Quality. J Surg Res. 2021;258:100-4.. Alguns com dados bastante alarmantes concluindo que as cirurgiãs que sofrem assédio tendem mais ao suicídio e ao burnout13. Nesses trabalhos, o gênero feminino é associado a menor número de operações realizadas e pouca confiança em si mesmo1313 Mocanu V, Kuper TM, Marini W, Assane C, DeGirolamo KM, Fathimani K, et al. Intersectionality of Gender and Visible Minority Status Among General Surgery Residents in Canada. JAMA Surg. 2020;155(10):e202828.. Resultados similares foram encontrados no nosso estudo, em que mulheres que tiveram percepção de assédio indicaram que tiveram menos oportunidades cirúrgicas e, por sua vez, contraindicariam a profissão para as mais jovens.

As mulheres foram, por muitos anos, impedidas de estudar Medicina e aquelas que o fizeram, usaram vários artifícios para exercerem a Cirurgia. Algumas disfarçaram-se de homens, permanecendo escondidas enquanto “o doutor” tomava os louros1414 du Preez HM. Dr James Barry (1789-1865): the Edinburgh years. J R Coll Physicians Edinb. 2012;42(3):258-65.. Outras mudaram de país, mas entre serem queimadas vivas e receberem glórias, como por exemplo, a Prof. Angelita Habr-Gama muito tempo se passou33 Santucci JDA. Mulheres e Médicas - As Pioneiras da Medicina. Rio de Janeiro. Ediouro; 2005/2006. 248 p.. Parece absurdo, até anedótico que em dias atuais ainda haja a necessidade de discutir a percepção de assédio sofrido por cirurgiãs. Contudo, infelizmente, o mundo da Cirurgia ainda é extremamente masculino, tal como o “Clube do Bolinha” e as mulheres têm de enfrentar muito mais dificuldades para se imporem e serem respeitadas99 Bellini MI, Adair A, Fotopoulou C, Graham Y, Hutson A, McNally S, et al. Changing the norm towards gender equity in surgery: the women in surgery working group of the Association of Surgeons of Great Britain and Ireland's perspective. J R Soc Med. 2019;112(8):325-9.,1111 Thompson-Burdine JA, Telem DA, Waljee JF, Newman EA, Coleman DM, Stoll HI, et al. Defining Barriers and Facilitators to Advancement for Women in Academic Surgery. JAMA Netw Open. 2019;2(8):e1910228.,1212 Zaza N, Ofshteyn A, Martinez-Quinones P, Sakran J, Stein SL. Gender Equity at Surgical Conferences: Quantity and Quality. J Surg Res. 2021;258:100-4..

Em várias instituições, as cirurgiãs ainda são vistas como “causadoras de confusão, problemáticas e difíceis de se lidar”. Podem apresentar TPM e engravidam1515 Dantas FLL, Santos EG. Mulheres na Cirurgia. In: Ramos RF, Correia MITD, editors. PROACI. 17: Porto Alegre; 2020. p. 9-32.. É comum ainda se ouvir: “Pode uma mulher praticar a Medicina?” ou “São as mulheres suficientemente inteligentes a ponto de serem médicas?”. É bem verdade que tal assédio é mais comum longe dos grandes centros, mas ainda há exames de admissão para residência médica em Cirurgia em que o entrevistador torce o nariz quando o candidato é do sexo feminino1616 Dossa F, Baxter NN. Reducing gender bias in surgery. Br J Surg. 2018;105(13):1707-9..

Quadro 1
Nuvem de palavras representando os textos livres.

Alguns pesquisadores mostraram que homens e mulheres são vistos de forma diferente por seus avaliadores, enquanto os homens são descritos como tendo talento natural e serão naturalmente bem sucedidos, o sucesso feminino é visto como fruto de trabalho árduo e apenas com potencial para o sucesso55 Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923.,1717 Hoops H, Heston A, Dewey E, Spight D, Brasel K, Kiraly L. Resident autonomy in the operating room: Does gender matter? Am J Surg. 2019;217(2):301-5.,1818 Gerull KM, Loe M, Seiler K, McAllister J, Salles A. Assessing gender bias in qualitative evaluations of surgical residents. Am J Surg. 2019;217(2):306-13.. Hoops e colaboradores1717 Hoops H, Heston A, Dewey E, Spight D, Brasel K, Kiraly L. Resident autonomy in the operating room: Does gender matter? Am J Surg. 2019;217(2):301-5. identificaram disparidade na autonomia entre os residentes de Cirurgia Geral, com significante redução da autonomia entre as residentes. Gerull e colaboradores1818 Gerull KM, Loe M, Seiler K, McAllister J, Salles A. Assessing gender bias in qualitative evaluations of surgical residents. Am J Surg. 2019;217(2):306-13. afirmam que as disparidades entre os homens e mulheres são particularmente importantes no campo da Cirurgia. Bruce e colaboradores55 Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923., em 2015, relataram que 88% das mulheres perceberam discriminação de gênero durante o treinamento, corroborando os achados do nosso trabalho em que 49,2% das mulheres considerou que seu treinamento é/foi pior (menos oportunidades cirúrgicas) por serem do sexo feminino.

Embora a Cirurgia tenha sofrido muitas mudanças nos últimos dois séculos, várias pessoas, entre essas, pacientes e colegas quando pensam em um cirurgião, a imagem é a de um homem esperto e confiante1919 Magua W, Zhu X, Bhattacharya A, Filut A, Potvien A, Leatherberry R, et al. Are Female Applicants Disadvantaged in National Institutes of Health Peer Review? Combining Algorithmic Text Mining and Qualitative Methods to Detect Evaluative Differences in R01 Reviewers' Critiques. J Womens Health (Larchmt). 2017;26(5):560-70.. Para as mulheres o caminho é sempre árduo, cheio de oposições, falta de apoio, inclusive familiar, e preconceitos dos mais variados. O assédio vai desde: “você vai arruinar a sua vida como mulher se escolher a carreira cirúrgica” a algo semelhante ao que foi dito por Lucas-Championnière: “As mulheres não podem, seriamente, seguir a carreira médica, a não ser que deixem de ser mulheres. Devido às leis fisiológicas, mulheres médicas são ambíguas, hermafroditas ou assexuadas, monstros sob todos os pontos de vista”2020 Lucas-Championnière, Just. 'Article 9997'. J Méd Chir Prat. June 1875 p. 241-2..

Muitas mulheres mais adiante em suas carreiras abandonam a especialidade por se depararem com muitas dificuldades e barreiras para a ascensão profissional. Atritos com colegas, dificuldade de assumir posições de liderança, horas e volume de trabalho, assim como, falta de suporte são as principais razões associadas a essa realidade55 Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923.. No nosso estudo, as mulheres que se sentiram tratadas de forma desigual (62,1%) foram as que tiveram percepção de assédio moral e as que responderam que não fariam Cirurgia como especialidade novamente se tivessem conhecimento dessa dificuldade. A maioria disse que a diferença de tratamento ocorreu entre seus colegas de residência e 64,4% afirmou que os cirurgiões do corpo clínico as tratavam diferente dos colegas do sexo masculino. Talvez por essa razão, o relato de impacto negativo na relação com os pacientes de ambos os sexos por ser mulher tenha sido reportado por 26,3% das cirurgiãs. É interessante ressaltar que 40,1% das profissionais de nosso estudo responderam que em algum momento pensou que não conseguiria chegar ao final do treinamento. Apesar desse lado negativo, as respostas às duas últimas perguntas do estudo foram surpreendentes na medida que 81,9% das mulheres disseram que escolheriam novamente a Cirurgia como especialidade e, apesar das dificuldades, 88,4% está feliz em ser cirurgiã. Para essas mulheres, ser cirurgiã é mais gratificante do que representa tristezas, ainda que 47,8% tenham afirmado que a percepção de assédio não mudou com o tempo.

Acreditamos que o exemplo de modelos femininos possa ser aspecto influenciador para que as cirurgiãs em formação desenvolvam resiliência, prossigam suas carreiras e não se sintam prejudicadas. A Comissão de Mulheres Cirurgiãs do Colégio Brasileiro de Cirurgiões foi criada com esse intuito: discutir o assunto e fortalecer as cirurgiãs jovens. Esperamos inspirar as futuras gerações para que não se deixem abater e desistir da especialidade com a qual sonharam. Pelo contrário, almejamos que vençam e se dediquem à Cirurgia com afinco e alma.

As mulheres ainda representam a minoria nas especialidades cirúrgicas e este trabalho pode ser estímulo para futura equidade entre gêneros na Cirurgia. Contudo, há limitações a serem destacadas. Usamos questionários enviados pela internet o que tem sido de grande auxílio no mundo atual. No entanto, alguns autores indicam que as pesquisas de dados com recrutamento pela internet tendem a apresentar taxas de participação menores que as tradicionais2121 Bälter KA, Bälter O, Fondell E, Lagerros YT. Web-based and mailed questionnaires: a comparison of response rates and compliance. Epidemiology. 2005;16(4):577-9.,2222 Mota JS. Use of google forms in academic research. Rev Hum Inov. 2019;6(12).. Em geral as respostas ficam entre 15% e 17%2323 Mickael B, Morten Bo K. Differential response rates in postal and Web-based surveys in older respondents. Survey Research Methods. 2009;3(1)., mesmo em países nos quais o acesso à internet é grande, maior do que 86,0%. Obtivemos 232 respostas (28,2%), o que poderia ser considerado representativo. Porém, nem todas as cirurgiãs do país são membros do CBC ou pertencem ao grupo de WhatsApp para as quais o questionário foi enviado, logo nossas conclusões podem não traduzir o sentimento das demais colegas.

CONCLUSÃO

A percepção de assédio ainda é altamente prevalente entre cirurgiãs e isso é fator que interfere na formação durante a residência e na tomada de decisões futuras, tal como a permanência na especialidade.

REFERENCES

  • 1
    Castiglioni A. História da Medicina. São Paulo: Companhia Editora Nacional 1947.
  • 2
    Porter R. The Cambridge History of Medicine: Cambridge University Press; 2006.
  • 3
    Santucci JDA. Mulheres e Médicas - As Pioneiras da Medicina. Rio de Janeiro. Ediouro; 2005/2006. 248 p.
  • 4
    HiSoUR. Renascença Médica 2021 [Available from: https://www.hisour.com/pt/medical-renaissance-33313/.
    » https://www.hisour.com/pt/medical-renaissance-33313
  • 5
    Bruce AN, Battista A, Plankey MW, Johnson LB, Marshall MB. Perceptions of gender-based discrimination during surgical training and practice. Med Educ Online. 2015;20:25923.
  • 6
    Krishnan N, Szczepura A. Beyond the Glass Ceiling-Do Women in Senior Positions Face a Precarious Glass Cliff? JAMA Surg. 2021;156(6):589.
  • 7
    Wuang Y. Wordle 2017 [Available from: http://www.edwordle.net/.
    » http://www.edwordle.net
  • 8
    Medicina CFd. Em 20 anos, dobra o número de mulheres que exercem a medicina no Brasil 2020 [Available from: https://portal.cfm.org.br/noticias/em-20-anos-dobra-o-numero-de-mulheres-que-exercem-a-medicina-no-brasil/.
    » https://portal.cfm.org.br/noticias/em-20-anos-dobra-o-numero-de-mulheres-que-exercem-a-medicina-no-brasil
  • 9
    Bellini MI, Adair A, Fotopoulou C, Graham Y, Hutson A, McNally S, et al. Changing the norm towards gender equity in surgery: the women in surgery working group of the Association of Surgeons of Great Britain and Ireland's perspective. J R Soc Med. 2019;112(8):325-9.
  • 10
    Mehtsun WT, Cooper Z. An Honest Look in the Mirror - Cultivating a Culture of Equity in Surgery. Ann Surg. 2021;273(1):e1-e2.
  • 11
    Thompson-Burdine JA, Telem DA, Waljee JF, Newman EA, Coleman DM, Stoll HI, et al. Defining Barriers and Facilitators to Advancement for Women in Academic Surgery. JAMA Netw Open. 2019;2(8):e1910228.
  • 12
    Zaza N, Ofshteyn A, Martinez-Quinones P, Sakran J, Stein SL. Gender Equity at Surgical Conferences: Quantity and Quality. J Surg Res. 2021;258:100-4.
  • 13
    Mocanu V, Kuper TM, Marini W, Assane C, DeGirolamo KM, Fathimani K, et al. Intersectionality of Gender and Visible Minority Status Among General Surgery Residents in Canada. JAMA Surg. 2020;155(10):e202828.
  • 14
    du Preez HM. Dr James Barry (1789-1865): the Edinburgh years. J R Coll Physicians Edinb. 2012;42(3):258-65.
  • 15
    Dantas FLL, Santos EG. Mulheres na Cirurgia. In: Ramos RF, Correia MITD, editors. PROACI. 17: Porto Alegre; 2020. p. 9-32.
  • 16
    Dossa F, Baxter NN. Reducing gender bias in surgery. Br J Surg. 2018;105(13):1707-9.
  • 17
    Hoops H, Heston A, Dewey E, Spight D, Brasel K, Kiraly L. Resident autonomy in the operating room: Does gender matter? Am J Surg. 2019;217(2):301-5.
  • 18
    Gerull KM, Loe M, Seiler K, McAllister J, Salles A. Assessing gender bias in qualitative evaluations of surgical residents. Am J Surg. 2019;217(2):306-13.
  • 19
    Magua W, Zhu X, Bhattacharya A, Filut A, Potvien A, Leatherberry R, et al. Are Female Applicants Disadvantaged in National Institutes of Health Peer Review? Combining Algorithmic Text Mining and Qualitative Methods to Detect Evaluative Differences in R01 Reviewers' Critiques. J Womens Health (Larchmt). 2017;26(5):560-70.
  • 20
    Lucas-Championnière, Just. 'Article 9997'. J Méd Chir Prat. June 1875 p. 241-2.
  • 21
    Bälter KA, Bälter O, Fondell E, Lagerros YT. Web-based and mailed questionnaires: a comparison of response rates and compliance. Epidemiology. 2005;16(4):577-9.
  • 22
    Mota JS. Use of google forms in academic research. Rev Hum Inov. 2019;6(12).
  • 23
    Mickael B, Morten Bo K. Differential response rates in postal and Web-based surveys in older respondents. Survey Research Methods. 2009;3(1).
  • Fonte de financiamento:

    não.
  • Errata

    No artigo "Percepção de assédio entre as cirurgiãs", doi: 10.1590/0100-6991e-20213123, RCBC, vol. 48.
    Onde se lia:
    ELIZABETH G SANTOS ECBC-RJ
    - Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - UFRJ, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - CBC, FACS, PhD - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    LIA ROQUE TCBC-RJ
    - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - CBC, PhD - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    MARIA CRISTINA MAYA TCBC-RJ
    - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - CBC, PhD - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    RENI CECILIA MOREIRA TCBC-MG
    - UNIBH, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - CBC, ACS, Md, PhD - Belo Horizonte - MG - Brasil
    FERNANDA LAGE LIMA TCBC, FACS
    - Universidade Federal do Acre, Secretaria de Estado de Saúde do Acre, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs MD, MsC, TCBC, FACS - Rio Branco - AC - Brasil
    M ISABEL T. D. CORREIA TCBC-MG
    - Universidade Federal de Minas Gerais, Membro da equipe Eterna, Rede Mater Dei, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - CBC, FACS - Belo Horizonte - MG - Brasil
    Leia-se:
    ELIZABETH G. SANTOS ECBC-RJ
    - Hospital Universitário Clementino Fraga Filho - UFRJ, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - MD, PhD, ECBC, FACS - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    LIA ROQUE TCBC-RJ
    - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - MD, PhD, TCBC - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    MARIA CRISTINA MAYA TCBC-RJ
    - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - TCBC, PhD - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
    RENI CECILIA MOREIRA TCBC-MG
    - UNIBH, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - MD, TCBC, FACS, TSBCO, TSBC - Belo Horizonte - MG - Brasil
    FERNANDA LAGE LIMA TCBC-AC
    - Universidade Federal do Acre, Secretaria de Estado de Saúde do Acre, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs MD, MsC, TCBC, FACS - Rio Branco - AC - Brasil
    M ISABEL T. D. CORREIA TCBC-MG
    - Universidade Federal de Minas Gerais, Membro da equipe Eterna, Rede Mater Dei, Membro da Comissão de Mulheres Cirurgiãs - MD, PhD, TCBC, FACS, FASPEN - Belo Horizonte - MG - Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Aceito
    08 Jul 2021
Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@cbc.org.br