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Protocolos de mensuração e tratamento da hipertensão intra-abdominal

Foi com grande satisfação que li o artigo “Protocolos para o diagnóstico e manejo da hipertensão intra-abdominal em centros de tratamento intensivo” publicado por Caldas e Ascenção11 Caldas BS, Ascenção AMDS. Protocolos para diagnóstico e manejo da hipertensão intra-abdominal em centros de tratamento intensivo. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202378.. Apesar de que a nível nacional ainda há muito trabalho a ser feito no que tange o diagnóstico e tratamento da Hipertensão Intra-Abdominal (HIA) e Síndrome Compartimental Abdominal (SCA), venho observando interesse cada vez maior por parte dos cirurgiões. Em rápida pesquisa no banco de dados PubMed, encontrei apenas quatro artigos científicos com os descritores “hipertensão intra-abdominal” e “síndrome compartimental abdominal” publicados em revistas brasileiras indexadas a este banco de dados. A boa notícia, entretanto, é que três dos quatro se concentram nos últimos três anos. É claro que outros artigos existem em diferentes bancos de dados, mas o fato é que ainda sim este volume é muito pequeno. O trabalho de revisão apresentado vem justamente complementar este espaço de evidência em nossa língua matriz. No entanto, algumas questões se destacaram e merecem algumas considerações.

É nobre a iniciativa dos autores em identificar, já na introdução do artigo, que não há na grande maioria dos serviços de cirurgia e terapia intensiva de nosso país, incluindo grandes metrópoles, conscientização e protocolos de mensuração da pressão intra-abdominal22 Pereira BMT. Abdominal compartiment syndrome: immeasurable relevance. Síndrome compartimental abdominal: relevância imensurável. Rev Col Bras Cir. 2019;46(2):e2001.. A proposição de protocolo baseado nas diretrizes da Sociedade Mundial do Compartimento Abdominal33 Kirkpatrick AW, Roberts DJ, De Waele J, Jaeschke R, Malbrain ML, De Keulenaer B, Duchesne J, Bjorck M, Leppaniemi A, Ejike JC, Sugrue M, Cheatham M, Ivatury R, Ball CG, Reintam Blaser A, Regli A, Balogh ZJ, D'Amours S, Debergh D, Kaplan M, Kimball E, Olvera C; Pediatric Guidelines Sub-Committee for the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intra-abdominal hypertension and the abdominal compartment syndrome: updated consensus definitions and clinical practice guidelines from the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intensive Care Med. 2013;39(7):1190-1206. (WSACS) é sem dúvida alguma uma necessidade nos tempos atuais. A despeito desta diretriz, publicada em 2013, trazer fundamentos importantes, nova literatura surgiu nestes últimos sete anos.

No manuscrito recentemente publicado por Caldas e Ascenção11 Caldas BS, Ascenção AMDS. Protocolos para diagnóstico e manejo da hipertensão intra-abdominal em centros de tratamento intensivo. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202378. encontra-se a descrição de que o exame físico tem acurácia de apenas 50%. Contudo, é sabido que o valor preditivo positivo de não se diagnosticar a HIA com exame físico é ainda maior podendo chegar a 76%. O exame físico definitivamente não é confiável e tem menor probabilidade de diagnóstico do que a sorte em jogar uma moeda para cima e pedir cara ou coroa, ou seja 50%.

O estudo IROI, publicado recentemente44 Reintam Blaser A, Regli A, De Keulenaer B, Kimball EJ, Starkopf L, Davis WA, Greiffenstein P, Starkopf J; Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal (IROI) Study Investigators. Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal Hypertension in Critically Ill Patients-A Prospective Multicenter Study (IROI Study). Crit Care Med. 2019;47(4):535-42., demonstrou que HIA ocorreu em aproximadamente metade de todos os pacientes críticos e foi duas vezes mais prevalente em pacientes ventilados mecanicamente. A presença da HIA durante o período de observação aumentou significativamente a mortalidade em 28 e 90 dias. Os autores do artigo também enfatizam que a primeira mensuração da pressão intra-abdominal (PIA) seja realizada à admissão deste paciente na unidade de terapia intensiva. Ficou demonstrado que cinco variáveis no dia da admissão foram independentemente associadas à presença ou desenvolvimento de HIA44 Reintam Blaser A, Regli A, De Keulenaer B, Kimball EJ, Starkopf L, Davis WA, Greiffenstein P, Starkopf J; Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal (IROI) Study Investigators. Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal Hypertension in Critically Ill Patients-A Prospective Multicenter Study (IROI Study). Crit Care Med. 2019;47(4):535-42.. O balanço hídrico positivo entretanto, foi associado ao desenvolvimento de HIA após o primeiro dia de internação.

Embora do ponto de vista fisiológico a PIA possa atingir marcadores transitórios de até 80mmHg (tosse, manobra de Valsalva), esses valores não podem ser tolerados por longos e constantes períodos de tempo. Dito isto, é importante ressaltar que o protocolo e fluxograma proposto por Caldas e Ascenção não enfatiza que a PIA deva ser mensurada de forma seriada por um mínimo de três vezes consecutivas. Assim sendo, o diagnóstico de SCA não pode ser concluído sem que as pressões se repitam altas com disfunção orgânica associada por três mensurações consecutivas a cada seis horas.

Não obstante, a mensuração de rotina da PIA é excelente marcador de qualidade, uma vez que pacientes críticos com a PIA mensurada permanecem menos tempo internados em UTI mesmo quando o diagnóstico de internação é de etiologia extra-abdominal55 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96..

Os autores utilizam o termo medição contínua na PIA, contudo receio que este seja erro de tradução ou adaptação de linguagem do Inglês para o Português, uma vez que a mensuração contínua da PIA é impossível. O método de mensuração da PIA é padronizado por via intra-vesical por meio de sonda de três vias. Uma vez que o paciente tem um cateter urinário, a bexiga encontra-se vazia, por esta razão se fecha a via de saída e instila-se 25 mL de solução salina afim de obter-se mínima complacência vesical para conduzir a coluna d’agua de pressão. É por esta simples razão que a mensuração contínua da PIA é impossível. Para ser contínua é necessário ter o mínimo de 25 mL de conteúdo intra-vesical o que é impossível estando o cateter vesical aberto para mensuração do débito urinário. Os autores assertivamente, ao longo do texto, reconhecem o uso de cateter de três vias para mensuração da PIA. Por outro lado, na Figura 2 do artigo a mensuração é realizada com cateter de duas vias e a instilação da bexiga é realizada por meio da punção do pórtico do coletor. Este tipo de mensuração com cateter de duas vias e punção está contra indicado 55 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96. e proscrito por alguns conselhos regionais de enfermagem dado o maior risco de infecção. Ainda, no fluxograma apresentado por Caldas e Ascenção (Figura 1) o protocolo desaconselha o seguimento do paciente crítico quando as duas primeiras mensurações estão abaixo de 12mmHg, o que pode ser aconselhamento perigoso uma vez que esse paciente crítico pode desenvolver HIA no intercurso de pelo menos a primeira semana de internação em UTI ou mais 55 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96.. A recomendação mais atual é que a mensuração da PIA continue sendo realizada como mais um sinal vital até à alta da UTI55 Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96.. Atenção especial deve ser dada à possibilidade da evolução de HIA/SCA para Síndrome Policompartimental. Entidade recentemente compreendida e que certamente pode comprometer a recuperação clínica dos pacientes críticos.

Outro importante ponto, descrito na literatura mais recentemente, é a utilização da ultrassonografia à beira do leito (POCUS). Este novo conceito está sendo usado para aprimorar a velocidade de diagnóstico e otimizar o tratamento da HIA e SCA66 Pereira BM, Pereira RG, Wise R, Sugrue G, Zakrison TL, Dorigatti AE, et al. The role of point-of-care ultrasound in intra-abdominal hypertension management. Anaesthesiol Intensive Ther. 2017;49(5):373-81..

A SCA é condição potencialmente letal causada por qualquer evento que produza aumento da PIA e causa diminuição da pressão de perfusão abdominal (PPA) induzindo isquemia e disfunção orgânica. A organização de protocolos internos e baseados nas diretrizes da WSACS são necessários em todo território Nacional em razão de comprovadamente afetarem positivamente os resultados e a recuperação do paciente. Esses também têm como objetivo servir como marcadores de qualidade. Os efeitos fisiopatológicos são abrangentes e predispõem os pacientes à falência de múltiplos órgãos se nenhuma ação urgente for tomada.

Deixo aqui meus sinceros agradecimentos aos autores pela iniciativa de estudar o tema e em preocuparem-se com a qualidade de recuperação clínica de seus pacientes.

REFERENCES

  • 1
    Caldas BS, Ascenção AMDS. Protocolos para diagnóstico e manejo da hipertensão intra-abdominal em centros de tratamento intensivo. Rev Col Bras Cir. 2020;47:e20202378.
  • 2
    Pereira BMT. Abdominal compartiment syndrome: immeasurable relevance. Síndrome compartimental abdominal: relevância imensurável. Rev Col Bras Cir. 2019;46(2):e2001.
  • 3
    Kirkpatrick AW, Roberts DJ, De Waele J, Jaeschke R, Malbrain ML, De Keulenaer B, Duchesne J, Bjorck M, Leppaniemi A, Ejike JC, Sugrue M, Cheatham M, Ivatury R, Ball CG, Reintam Blaser A, Regli A, Balogh ZJ, D'Amours S, Debergh D, Kaplan M, Kimball E, Olvera C; Pediatric Guidelines Sub-Committee for the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intra-abdominal hypertension and the abdominal compartment syndrome: updated consensus definitions and clinical practice guidelines from the World Society of the Abdominal Compartment Syndrome. Intensive Care Med. 2013;39(7):1190-1206.
  • 4
    Reintam Blaser A, Regli A, De Keulenaer B, Kimball EJ, Starkopf L, Davis WA, Greiffenstein P, Starkopf J; Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal (IROI) Study Investigators. Incidence, Risk Factors, and Outcomes of Intra-Abdominal Hypertension in Critically Ill Patients-A Prospective Multicenter Study (IROI Study). Crit Care Med. 2019;47(4):535-42.
  • 5
    Pereira BM. Abdominal compartment syndrome and intra-abdominal hypertension. Curr Opin Crit Care. 2019;25(6):688-96.
  • 6
    Pereira BM, Pereira RG, Wise R, Sugrue G, Zakrison TL, Dorigatti AE, et al. The role of point-of-care ultrasound in intra-abdominal hypertension management. Anaesthesiol Intensive Ther. 2017;49(5):373-81.
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2020
  • Aceito
    08 Out 2020
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