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Síndrome inflamatória multissistêmica em crianças associada ao COVID-19 mimetizando apendicite aguda - como diferenciar e conduzir pacientes pediátricos durante a pandemia? - Proposta de fluxograma de atendimento

RESUMO

Introdução:

a pandemia do novo coronavírus arrastou-se ao longo de 2020 e trouxe grandes desafios. Acredita-se que o vírus manifesta-se na população pediátrica predominantemente com quadros leves, entretanto, aumento da incidência da Síndrome Inflamatória Multissistêmica em Crianças (SIM-C) associada à COVID-19 tem sido descrito na literatura. A SIM-C manifesta-se principalmente com febre e sintomas gastrointestinais, podendo mimetizar abdome agudo inflamatório por apendicite aguda. O objetivo deste trabalho é propor fluxograma de atendimento dos casos suspeitos de apendicite aguda em fase inicial, em tempos de pandemia, considerando-se a possibilidade de SIM-C, motivado pelo caso de paciente atendido em hospital pediátrico no Brasil.

Discussão:

Foi possível identificar sinais e sintomas em comum entre o paciente aqui relatado e casos publicados que podem servir de alerta para identificação precoce dos casos de SIM-C. Com base na revisão da literatura e nas semelhanças entre a síndrome e quadros de abdome agudo inflamatório na criança, foi elaborado fluxograma de abordagem inicial destes doentes para facilitar a identificação, diagnóstico precoce e condução dos pacientes. O fluxograma leva em consideração detalhes da história clínica, exame físico e exames complementares antes da indicação de apendicectomia em pacientes com sintomas na fase inicial.

Conclusão:

A SIM-C, apesar de rara e da fisiopatologia pouco conhecida, apresenta-se na maioria das vezes de forma grave e possui alto risco de mortalidade. O uso do fluxograma proposto pode auxiliar no diagnóstico e tratamento precoce da SIM-C.

Palavras-chave:
Síndrome de Resposta Inflamatória Sistêmica; COVID-19, Pediatria; Abdome Agudo; Apendicite

ABSTRACT

Introduction:

the new coronavirus pandemic has been a reality throughout 2020, and it has brought great challenges. The virus predominantly manifests in the pediatric population with mild symptoms. However, an increase in the incidence of Multisystemic Inflammatory Syndrome in Children (MIS-C) associated with COVID-19 has been described in the literature. MIS-C manifests mainly with fever and gastrointestinal symptoms and may mimic acute abdomen due to acute appendicitis. The objective of this study is to propose a care flowchart for suspected cases of acute appendicitis in the initial phase in pandemic times, considering the possibility of MIS-C. This situation was brought up by a patient treated in a pediatric hospital in Brazil.

Discussion:

It was possible to identify common signs and symptoms in the reported patient and those published cases that may serve as alerts for early identification of MIS-C cases. Based on the literature review and on the similarities between the syndrome and the inflammatory acute abdomen in children, we elaborated an initial approach for these cases to facilitate the identification, early diagnosis, and management. The flowchart considers details of the clinical history, physical examination, and complementary exams prior to the indication of appendectomy in patients with initial phase symptoms.

Conclusion:

MIS-C, although rare and of poorly known pathophysiology, is most often severe and has a high mortality risk. The use of the proposed flowchart can help in the diagnosis and early treatment of MIS-C.

Keywords:
Systemic Inflammatory Response Syndrome; COVID-19, Pediatrics; Acute Abdomen; Appendicitis

INTRODUÇÃO

A pandemia do novo coronavírus arrastou-se ao longo de 2020 e trouxe consigo diversos desafios. Acredita-se que o vírus manifesta-se na população pediátrica predominantemente com quadros leves. Contudo, em abril de 2020 foi relatado aumento na incidência de Síndrome Kawasaki símile e choque hiperinflamatório na Inglaterra, com potencial associação à COVID-1911 Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet. 2020;395(10237):1607-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31094-1.
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,22 Pediatric Intesive Care Society. PICS Statement: Increased number of reported cases of novel presentation of multi-system inflammatory disease. 2020.. Desde então, o mesmo tem sido descrito em outros países como Síndrome Inflamatória Multissistêmica em Crianças (SIM-C) ou Síndrome Multissistêmica Inflamatória Pediátrica (SIM-P), que passou a fazer parte do espectro de manifestações clínicas da COVID-1933 Son MB. Pediatric inflammatory syndrome temporally related to covid-19. BMJ. 2020;369:2123. doi: 10.1136/bmj.m2123.
https://doi.org/10.1136/bmj.m2123...

4 Albiger A, Alexakis L, Baka A, Broberg E, Bundle N, Cenciarelli O, et al. Rapid risk assessment: Paediatric inflammatory multisystem syndrome and SARS-CoV-2 infection in children. ECDC internal decision. 2020.

5 Bahl R, Costa A, Diaz J, Edmond K, Nisar Y, Rollins N. Multisystem inflammatory syndrome in children and adolescents temporally related to COVID-19. World Health Organization - scientific brief. 2020.

6 Licciardi F, Pruccoli G, Denina M, Parodi E, Taglietto M, Rosati S, et al. SARS-CoV-2-Induced Kawasaki-Like Hyperinflammatory Syndrome: A Novel COVID Phenotype in Children. Pediatrics. 2020;146(2):e20201711. doi: 10.1542/peds.2020-1711.
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7 Verdoni L, Mazza A, Gervasoni A, Martelli L, Ruggeri M, Ciuffreda M, et al. An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study. Lancet, 2020;395(10239):1771-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31103-X.
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8 Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shah P, et al. Clinical Characteristics of 58 Children with a Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome Temporally Associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020;324:259-269. doi: 10.1001/jama.2020.10369.
https://doi.org/10.1001/jama.2020.10369...

9 Liu L, Wei Q, Lin Q, Fang J, Wang H, Kwok H, et al. Anti-spike IgG causes severe acute lung injury by skewing macrophage responses during acute SARS-CoV infection. JCI Insight. 2019;4(4):e123158. doi: 10.1172/jci.insight.123158.
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-1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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.

A SIM-C contempla fase inflamatória hiperimune cujos principais sinais e sintomas são febre e manifestações gastrointestinais, podendo simular o abdome agudo inflamatório por apendicite aguda nas crianças1111 Lishman J, de Vos C, van der Zalm MM, Itana J. Acute Appendicitis in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children with COVID 19. Pediatr Infect Dis J. 2020;39(12):472-3. doi: 10.1097/INF.0000000000002900.
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.

Considerando-se a alta incidência de apendicite aguda como causa de abdome agudo nos serviços de emergência pediátrica em todo o mundo, repensar o fluxo de investigação destes pacientes, no atual contexto da pandemia por SARS-COV2, torna-se ação fundamental para evitar procedimentos cirurgicos desnecessários em crianças acometidas pela SIM-C. Até onde se sabe, mesmo diante de tamanho desafio, nenhuma publicação até o momento propôs abordagem sistematizada para orientar a condução diagnóstica destes pacientes em centros de referência que realizam estes atendimentos.

A importância de dofluxograma para auxiliar no diagnóstico de casos de SIM-C faz- se ainda mais importante diante do crescente aumento de casos desde o início de 2021. Essa síndrome inflamatória tende a se apresentar em período de aproximadamente quatro semanas após a infecção primária com ou sem sinais ou sintomas em crianças.

O objetivo deste trabalho é propor fluxograma de atendimento a pacientes suspeitos de abdome agudo em tempos de pandemia, considerando-se a possibilidade de SIM-C. É importante salientar que a elaboração do fluxograma teve como grande motivador um caso aqui relatado de SIM-C diagnosticada no pós-operatório imediato de apendicectomia. O fluxograma de abordagem inicial destes casos visa facilitar a identificação, o diagnóstico precoce e tratamento adequado dos pacientes com possível quadro de SIM-C associado ou simulando apendicite aguda.

MÉTODO

O caso de um paciente atendido no Hospital Pequeno Príncipe, Curitiba - Paraná - Brasil, com diagnóstico de Síndrome Inflamatória Multissistêmica associada à COVID-19, que teve diagnóstico e tratamento inicialmente de Apendicite Aguda, serviu de motivação para este estudo e é relatado.

A proposta de fluxograma foi apresentada e discutida com equipe interdisciplinar composta de membros do serviço de cirurgia pediátrica, pediatria, infectologia, cardiologia e terapia intensiva. Para dar suporte à construção deste fluxograma, revisão dos principais trabalhos publicados na base de dados Pubmed foi realizada no período de junho até dezembro de 2020, com o objetivo de identificar a relação destes casos com quadro clínico suspeito de apendicite aguda.

Este trabalho foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Pequeno Príncipe (parecer número 4.464.260).

Relato do caso clínico

Paciente masculino, 12 anos, previamente hígido, com percentil do índice de massa corporal (IMC) entre 50-85, admitido no pronto socorro com dor abdominal de inicio há três dias, associada à febre acima de 38,5ºC. Evoluiu com vômitos e diarreia no terceiro dia dos sinais e sintomas, não apresentava queixas respiratórias e nem relatava ter tido contato com pessoas que adoeceram recentemente. Ao exame físico, encontrava-se taquicárdico, com extremidades frias e dor à palpação abdominal, principalmente, na fossa ilíaca direita, com sinais de irritação peritoneal difusa. Exames complementares iniciais evidenciaram leucograma de 7.310/µL com 24% de bastonetes; plaquetas de 143000/mm³; tempo de atividade da protrombina alargado com INR de 1,6 e proteína C reativa (PCR) 79,5mg/L.

Devido ao quadro clínico e exame físico altamente sugestivos de Apendicite Aguda, com escore de Alvarado de 812, o paciente foi submetido a apendicectomia convencional sem a necessidade de exames de imagem complementares. Apesar do quadro clínico arrastado, o achado intraoperatório foi de apendicite aguda inicial não complicada, com bloqueio em fossa ilíaca direita e grande quantidade de líquido sero-hemático na cavidade abdominal. O anatomopatológico da peça evidenciou periapendicite aguda focal, hiperplasia linfóide e congestão vascular.

No terceiro dia de pós-operatório (PO), o paciente evoluiu com dispneia, dor em coluna cervicotorácica, anasarca, oligúria, queda da saturação periférica de oxigênio, hipotensão e persistência da febre. Foi transferido para unidade de terapia intensiva (UTI) devido à piora clínica para monitorização, mas manteve estabilidade hemodinâmica sem necessidade de medicamentos vasoativos. Frente à evolução atípica, foram coletados novos exames. A PCR era de 246mg/L e testes para COVID-19: RT-PCR negativo, IgM negativo e IgG positivo. No quinto PO, apresentou lesões urticariformes em placas nos membros inferiores, confusão mental, movimentos involuntários, agitação psicomotora e hiperemia de pálpebras, orelhas e região inguinocrural. Durante todo o pós-operatório manteve vômitos biliosos e diarreia com muco, sem sangue.

Após dez dias do início do quadro, o paciente ficou hipertenso e apresentou bradicardia sinusal com alargamento de segmento QT. Na ecografia transtorácica foi observada fração de ejeção (FE) de 70% e aumento dos diâmetros das coronárias esquerda e direita, com 3,5mm e 4,0mm, respectivamente. Diante do diagnóstico de SIM-C associada à COVID-19, foi iniciado tratamento com ácido acetilsalicílico 100mg/kg/dia e imunoglobulina 2g/Kg/dia por um dia. Evoluiu com melhora dos sinais e sintomas e das alterações cardíacas, recebendo alta após 20 dias de internação hospitalar, totalizando doze dias em UTI.

Após a alta, o paciente não apresentou novas complicações relacionadas ao quadro relatado, completando 12 meses de seguimento ambulatorial com a pediatria, cirurgia pediátrica e a cardiologia pediátrica.

DISCUSSÃO

A manifestação da COVID-19 em crianças é espectral, incluindo desde quadros assintomáticos até os mais graves. Ainda não há definição específica da real prevalência de cada apresentação, quão frequente é a progressão e o agravamento do quadro. Não foram definidos quais fatores determinam os piores desfechos.

Apesar da resposta imunológica à COVID-19 ainda ser obscura, acredita-se que a SIM-C esteja associada ao desenvolvimento da imunidade adquirida, cerca de quatro semanas após a infecção primária, com maior prevalência em escolares e adolescentes sadios1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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,1313 Dufort EM, Koumans EH, Chow EJ, Rosenthal EM, Muse A, Rowlands J, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children in New York state. N Engl J Med. 2020;383(4):347-358. doi: 10.1056/NEJMoa2021756.
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021756...

14 Dallan C, Romano F, Siebert J, Politi S, Lacroix L, Sahyoun C. Septic shock presentation in adolescents with COVID-19. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(7):21-3. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30164-4.
https://doi.org/10.1016/S2352-4642(20)30...

15 Latimer G, Corriveau C, DeBiasi RL, Jantausch B, Delaney M, Jacquot C, et al. Cardiac dysfunction and thrombocytopenia-associated multiple organ failure inflammation phenotype in a severe pediatric case of COVID-19. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(7):552-4. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30163-2.
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16 Belhadjer Z, Méot M, Bajolle F, Khraiche D, Legendre A, Abakka S, et al. Acute Heart Failure in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children in the Context of Global SARS-CoV-2 Pandemic. Circulation. 2020;142(5):429-36. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.120.048360.
https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.1...
-1717 Lingappan K, Karmouty-Quintana H, Davies J, Akkanti B, Harting MT. Understanding the age divide in COVID-19: Why are children overwhelmingly spared? Am J Physiol Lung Cell Mol Physiol. 2020;319(1):39-44. doi: 10.1152/ajplung.00183.2020.
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. A definição de SIM-C inclui características clínicas e laboratoriais, com evidência de COVID-19, ou contato com pessoa que tem ou teve COVID-1955 Bahl R, Costa A, Diaz J, Edmond K, Nisar Y, Rollins N. Multisystem inflammatory syndrome in children and adolescents temporally related to COVID-19. World Health Organization - scientific brief. 2020.,1818 Webb K, Abraham DR, Faleye A, McCulloch M, Rabie H, Scott C. Multisystem inflammatory syndrome in children in South Africa. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(10):e38. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30272-8.
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. Uma limitação para este dado é a dificuldade de acesso a exames sorológicos e confirmatórios da doença em todos os casos.

Pacientes pediátricos com febre, dor abdominal localizada em fossa ilíaca direita e vômitos remetem ao quadro de abdome agudo inflamatório, cuja principal causa é a apendicite aguda para a qual o diagnóstico é eminentemente clínico, conforme o caso aqui apresentado. Para tais casos não há a obrigatoriedade de exames de imagem complementares. Contudo, uma vez que os sinais e sintomas da SIM-C podem ser muito semelhantes aos quadros iniciais de apendicite aguda, torna-se essencial distinguir estas situações a fim de evitar procedimentos cirúrgicos desnecessários em crianças com grande probabilidade de evolução grave e rápida para SIM-C. No cenário da pandemia, o diagnóstico de apendicite aguda na fase inicial tornou-se um desafio e requer o uso de exames complementares, incluindo exames de imagem. Tal fato, muda a abordagem com base em avaliação exclusivamente clínica, aceita até então.

Dentre os pontos específicos da história e evolução clínica que alertam para a possibilidade da SIM-C, e que orientam novo fluxograma de decisão destacam-se1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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:

  • História clínica que envolve infecção pelo COVID-19 do paciente e/ou familiares nas últimas três a seis semanas;

  • Febre alta persistente;

  • Marcadores inflamatórios significativamente altos;

  • Exame físico incompatível com a queixa;

  • Achados de imagem incompatíveis com quadro clínico.

Os casos de abdome agudo inflamatório com os elementos acima devem ser avaliados com maior atenção, considerando-se a realização de PCR e a sorologia para COVID-19, a dosagem de marcadores inflamatórios, marcadores de função cardíaca e exames de imagem como ultrassonografia (considerado exame de escolha inicialmente para a maioria dos casos em crianças) e até tomografia em algumas situanções, antes da confirmação do diagnóstico e indicação cirúrgica1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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,1919 Mahase E. Covid-19: Cases of inflammatory syndrome in children surge after urgent alert. BMJ. 2020;369:m1990. doi: 10.1136/bmj.m1990.
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.

Para o diagnóstico de SIM-C é necessária alta suspeição clínica. Considerando-se o caráter imunológico sem fisiopatologia bem definida e evolução rápida multissistêmica, o tratamento requer monitorização em UTI, com reavaliação clínica e laboratorial seriada. Atualmente, tem sido proposto tratamento com antibiótico de amplo espectro conforme a microbiota hospitalar, medicações para suporte ventilatório e hemodinâmico, incluindo medicamentos vasoativos e, em casos selecionados, corticóide conforme os protocolos internacionais1919 Mahase E. Covid-19: Cases of inflammatory syndrome in children surge after urgent alert. BMJ. 2020;369:m1990. doi: 10.1136/bmj.m1990.
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. Quando se detectam alterações cardíacas e critérios da Síndrome de Kawasaki é usada imunoglobulina humana e antiagregação plaquetária11 Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet. 2020;395(10237):1607-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31094-1.
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,77 Verdoni L, Mazza A, Gervasoni A, Martelli L, Ruggeri M, Ciuffreda M, et al. An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study. Lancet, 2020;395(10239):1771-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31103-X.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31...
,88 Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shah P, et al. Clinical Characteristics of 58 Children with a Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome Temporally Associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020;324:259-269. doi: 10.1001/jama.2020.10369.
https://doi.org/10.1001/jama.2020.10369...
,1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021680...
,1313 Dufort EM, Koumans EH, Chow EJ, Rosenthal EM, Muse A, Rowlands J, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children in New York state. N Engl J Med. 2020;383(4):347-358. doi: 10.1056/NEJMoa2021756.
https://doi.org/10.1056/NEJMoa2021756...
,1616 Belhadjer Z, Méot M, Bajolle F, Khraiche D, Legendre A, Abakka S, et al. Acute Heart Failure in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children in the Context of Global SARS-CoV-2 Pandemic. Circulation. 2020;142(5):429-36. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.120.048360.
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,2020 Davies P, Evans C, Kanthimathinathan HK, Lillie J, Brierley J, Waters G, et al. Intensive care admissions of children with pediatric inflammatory multisystem syndrome temporally associated with SARS-CoV-2 (PIMS-TS) in the UK: a multicentre observational study. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(9):669-77. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30215-7.
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. A condução do caso relatado foi baseada nestas recomendações da literatura. Todavia, não é possível determinar a evolução em longo prazo.

Tipicamente, a SIM-C caracteriza-se por febre alta e persistente por três a cinco dias, comumente associada a sinais e sintomas gastrointestinais - dor abdominal, vômitos e diarreia1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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. A dor abdominal localizada em fossa ilíaca direita pode mimetizar o quadro de apendicite aguda, provavelmente por acometimento linfonodal33 Son MB. Pediatric inflammatory syndrome temporally related to covid-19. BMJ. 2020;369:2123. doi: 10.1136/bmj.m2123.
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,1616 Belhadjer Z, Méot M, Bajolle F, Khraiche D, Legendre A, Abakka S, et al. Acute Heart Failure in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children in the Context of Global SARS-CoV-2 Pandemic. Circulation. 2020;142(5):429-36. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.120.048360.
https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.1...
,1717 Lingappan K, Karmouty-Quintana H, Davies J, Akkanti B, Harting MT. Understanding the age divide in COVID-19: Why are children overwhelmingly spared? Am J Physiol Lung Cell Mol Physiol. 2020;319(1):39-44. doi: 10.1152/ajplung.00183.2020.
https://doi.org/10.1152/ajplung.00183.20...
,2121 Toubiana J, Poirault C, Corsia A, Bajolle F, Fourgeaud J, Angoulvant F, et al. Kawasaki-like multisystem inflammatory syndrome in children during the covid-19 pandemic in Paris, France: prospective observational study. BMJ. 2020;369:m2094. doi: 10.1136/bmj.m2094.
https://doi.org/10.1136/bmj.m2094...
,2222 Abdel-Mannan O, Eyre M, Löbel U, Bamford A, Eltze C, Hameed B, et al. Neurologic and Radiographic Findings Associated with COVID-19 Infection in Children. JAMA Neurol. 2020;77(11):1440-5. doi: 10.1001/jamaneurol.2020.2687.
https://doi.org/10.1001/jamaneurol.2020....
. Eritema cutâneo, conjuntivite e envolvimento de mucosas alertam para a possibilidade de Síndrome Kawasaki símile. Sintomas e sinais neurológicos como cefaleia, confusão e irritabilidade também são observados. Já os respiratórios costumam aparecer como consequência de choque grave, não sendo os principais1010 Feldstein LR, Rose EB, Horwitz SM, Collins JP, Newhams MM, Son MBF, et al. Multisystem inflammatory syndrome in U.S. Children and adolescents. N Engl J Med. 2020;383(4):334-46. doi: 10.1056/NEJMoa2021680.
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,2222 Abdel-Mannan O, Eyre M, Löbel U, Bamford A, Eltze C, Hameed B, et al. Neurologic and Radiographic Findings Associated with COVID-19 Infection in Children. JAMA Neurol. 2020;77(11):1440-5. doi: 10.1001/jamaneurol.2020.2687.
https://doi.org/10.1001/jamaneurol.2020....
. A evolução para o choque está presente entre 32 e 76% dos casos11 Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet. 2020;395(10237):1607-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31094-1.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31...
,33 Son MB. Pediatric inflammatory syndrome temporally related to covid-19. BMJ. 2020;369:2123. doi: 10.1136/bmj.m2123.
https://doi.org/10.1136/bmj.m2123...
,77 Verdoni L, Mazza A, Gervasoni A, Martelli L, Ruggeri M, Ciuffreda M, et al. An outbreak of severe Kawasaki-like disease at the Italian epicentre of the SARS-CoV-2 epidemic: an observational cohort study. Lancet, 2020;395(10239):1771-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31103-X.
https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31...
,99 Liu L, Wei Q, Lin Q, Fang J, Wang H, Kwok H, et al. Anti-spike IgG causes severe acute lung injury by skewing macrophage responses during acute SARS-CoV infection. JCI Insight. 2019;4(4):e123158. doi: 10.1172/jci.insight.123158.
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. Nos graves é frequente o acometimento renal e cardíaco. No paciente relatado, o quadro clínico e a evolução foram semelhantes.

As alterações laboratoriais incluem a elevação de marcadores inflamatórios como: PCR, D-dímero, ferritina, procalcitonina e interleucina-6, que correspondem à piora progressiva do quadro88 Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shah P, et al. Clinical Characteristics of 58 Children with a Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome Temporally Associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020;324:259-269. doi: 10.1001/jama.2020.10369.
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. O aumento dos marcadores troponina, BNP (brain natriuretic peptide) e pro-BNP foi observado nos pacientes com evolução para choque, alertando para a possibilidade de estes serem marcadores precoces da deterioração sistêmica11 Riphagen S, Gomez X, Gonzalez-Martinez C, Wilkinson N, Theocharis P. Hyperinflammatory shock in children during COVID-19 pandemic. Lancet. 2020;395(10237):1607-8. doi: 10.1016/S0140-6736(20)31094-1.
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. As alterações ecocardiográficas predominantes são hipofunção de ventrículo esquerdo e dilatações coronarianas1616 Belhadjer Z, Méot M, Bajolle F, Khraiche D, Legendre A, Abakka S, et al. Acute Heart Failure in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children in the Context of Global SARS-CoV-2 Pandemic. Circulation. 2020;142(5):429-36. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.120.048360.
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. Com o quadro de choque instalado, foram identificados em exames de imagem, consolidação e atelectasia pulmonar, derrame pleural, líquido livre abdominal, edema da parede intestinal, adenite mesentérica e edema peri-vesicular1313 Dufort EM, Koumans EH, Chow EJ, Rosenthal EM, Muse A, Rowlands J, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children in New York state. N Engl J Med. 2020;383(4):347-358. doi: 10.1056/NEJMoa2021756.
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. Estes sinais e sintomas podem mimetizar quadro de apendicite aguda.

Os critérios diagnósticos da SIM-C associada à COVID-19 foram estabelecidos pelo CDC (United States Centers for Disease Control and Prevention) e incluem: idade menor de 21 anos com febre por mais de 24 horas, evidência laboratorial de inflamação, quadro clínico grave que necessite de internação, envolvimento de mais de dois sistemas orgânicos (cardíaco, renal, respiratório, gastrointestinal, hematológico, dermatológico ou neurológico), ausência de outros diagnósticos plausíveis e positividade para infecção por COVID-19 (RT-PCR, sorológico teste antigênico, ou exposição ao COVID-19) nas últimas quatro semanas antes do início dos sinais e sintomas88 Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shah P, et al. Clinical Characteristics of 58 Children with a Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome Temporally Associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020;324:259-269. doi: 10.1001/jama.2020.10369.
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.

Os critérios para diagnóstico pela OMS têm pouca diferença em relação ao CDC. Em resumo, idade menor de 19 anos, presença de febre persistente, marcadores inflamatórios elevados e acometimento de pelo menos dois sistemas são considerados88 Whittaker E, Bamford A, Kenny J, Kaforou M, Jones CE, Shah P, et al. Clinical Characteristics of 58 Children with a Pediatric Inflammatory Multisystem Syndrome Temporally Associated with SARS-CoV-2. JAMA. 2020;324:259-269. doi: 10.1001/jama.2020.10369.
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. É importante ressaltar que a SIM-C é um diagnóstico de exclusão, devendo-se investigar e afastar outros diagnósticos plausíveis ou foco infeccioso óbvio que justifique o quadro.

Webb K et al. relataram os primeiros 23 casos de SIM-C em pacientes abaixo de 15 anos na África do Sul, sendo que dois foram submetidos a laparotomia por suspeita de apendicite. Nem todos os casos tiveram confirmação do diagnóstico de COVID-19 por meio de exame com pesquisa de anticorpos1818 Webb K, Abraham DR, Faleye A, McCulloch M, Rabie H, Scott C. Multisystem inflammatory syndrome in children in South Africa. Lancet Child Adolesc Health. 2020;4(10):e38. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30272-8.
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.

Interessante ressaltar que no caso apresentado no presente artigo, o paciente além de ter o diagnóstico clínico de SIM-C também teve a confirmação de apendicite aguda por meio do anatomopatológico. Recentes publicações vêm demonstrando que mesmo em casos de SIM-C confirmado, o paciente pode ainda ter diagnóstico de apendicite associado como no caso relatado. Em recente publicação da África do Sul, realizada por Vos e col., três dos quatro doentes relatados tiveram apendicite confirmada cirurgicamente1111 Lishman J, de Vos C, van der Zalm MM, Itana J. Acute Appendicitis in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children with COVID 19. Pediatr Infect Dis J. 2020;39(12):472-3. doi: 10.1097/INF.0000000000002900.
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O que não está claro é se a apendicite pode ocorrer como complicação da SARS-CoV-2 por meio obstrução luminal secundaria a inflamação associada à entrada viral ou hiperplasia linfóide reativa causada pela SIM-C. O grande fator de confusão para este cenário é a ocorrência de ileíte terminal conforme demonstrado por Tullie e col. em oito casos relatados, em Londres, em que nenhum deles necessitou de intervenção cirúrgica2525 Tullie L, Ford K, Bisharat M, Watson T, Thakkar H, Mullassery D, et al. Gastrintestinal features in children with COVID 19: an observation of varied presentation in eight children. Lancet. 2020;4(7):e19-e20. doi: 10.1016/S2352-4642(20)30165-6.
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.

Sabe-se que a apendicite aguda está associada à doença de Kawasaki, da qual SIM-C compartilha muitas características clínicas e patológicas, possivelmente relacionadas à vasculite da artéria apendicular2626 Garnett MG, Kimball S, Melish ME, Thompson KS, Puapong DP, Johnson SM, et al. Appendicitis as the presenting manifestation of Kawasaaki disease. Pediatr Surg Int. 2014;30(5):549-52. doi: 10.1007/s00383-013-3439-9.
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. Nenhum fecalito foi encontrado em nenhuma das crianças que foram submetidas a apendicectomia no relato de Vos e col., possivelmente sustentando inflamação ou vasculite como mecanismo patológico1111 Lishman J, de Vos C, van der Zalm MM, Itana J. Acute Appendicitis in Multisystem Inflammatory Syndrome in Children with COVID 19. Pediatr Infect Dis J. 2020;39(12):472-3. doi: 10.1097/INF.0000000000002900.
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Motivados pela gravidade dos casos de SIM-C relacionados à infecção pelo COVID-19, o serviço de cirurgia pediátrica do Hospital Pequeno Príncipe elaborou fluxograma de atendimento para casos de abdome agudo em crianças. O fluxograma (Figura 1) foi baseado na revisão da literatura apresentada acima e no caso descrito. Aplica-se aos casos pediátricos de abdome agudo inflamatório em fase inicial admitidos centros de referência de atendimento de COVID-19 e complicações.

Figura 1
Fluxograma para casos de suspeita de apendicite.

Cabe ressaltar que diante dos dados que temos até o momento, duas possibilidades devem ser consideradas na avaliação de paciente com dor abdominal sugerindo abdome agudo inicial no cenário da pandemia do COVID-19 com suspeita de SIM-C: 1) a Síndrome Inflamatória pode manifestar-se com dor abdominal devido à ileíte terminal, mimetizando quadro de apendicite aguda ou; 2) o processo inflamatório do íleo terminal e apêndice cecal pode evoluir com obstrução da luz apendicular e causar apendicite aguda secundária à SIM-C.

Ambas as possibilidades chamam a atenção para alto índice de suspeição para o diagnóstico da SIM-C. Devido à gravidade dos sinais e sintomas, a suspeita de SIM-C deve fazer com que o cirurgião cogite tratamento inicialmente conservador e não-cirúrgico dos casos iniciais e sem complicações da apendicite aguda, conforme diversos protocolos já adotados mundialmente independentemente do contexto da pandemia2727 Caruso AM, Pane A, Garau R, Atzori P, Podda M, Casuccio A, et. al. Acute appendicitis in children: not only surgical treatment. J Pediatr Surg. 2017;52(3):444-8. doi: 10.1016/j.jpedsurg.2016.08.007.
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.

Cabe a reflexão ainda, sobre a possibilidade do estresse e trauma cirúrgicos desencadearem ou exacerbarem quadros de SIM-C pós-infecção por COVID-19. Há a necessidade de mais dados e seguimentos de série de casos para se confirmar essa hipótese.

CONCLUSÃO

A partir da experiência dos autores deste trabalho e da revisão de literatura foi possível identificar sinais em comum entre o paciente atendido e relatos que podem servir de alerta para identificação dos casos de SIM-C, o que permitiu a elaboração do fluxograma. Apesar da raridade, da fisiopatologia pouco conhecida e do difícil tratamento, a SIM-C está associada a complicações graves e alta mortalidade, exigindo alto índice de suspeição para o diagnóstico, reforçando a importância da discussão do tema e determinação de diretrizes de cuidado.

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  • Fonte de financiamento:

    sim.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2021
  • Aceito
    15 Jul 2021
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