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O cirurgião atual

EDITORIAL

O cirurgião atual

Ruy Ferreira Santos, ECBC

Professor Catedrático Emérito de Cirurgia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ex-presidente do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (1983/86)

De certa distância mas sempre interessado, uma visão talvez desfocada e bem nostálgica é a que tenho ao acompanhar o cirurgião no seu atuar de hoje, no grau de seu preparo, nos seus resultados, no que relata e publica, no que investiga e também em suas satisfações e queixas.

Faz 12 anos, em 1986, aposentei-me do Hospital das Clínicas e do Departamento de Cirurgia que lá fundei em 1954/55 e dirigi por mais de vinte como professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. E faz cinco que, bem ponderadas as circunstâncias, julguei melhor fechar o consultório e deixar de operar. Porque a minha vez passou, é dos competentes discípulos a quem logrei ensinar e de outros competentes da nova geração. No meu retiro, porém, continuei atento ao que acontece na assistência médica no país e no exercício profissional do cirurgião.

A reflexão sobre a longa experiência vivida e acumulada, a observação testemunhados acontecimentos de então para cá, o convívio e as conversas com ex-discípulos, agora operadores famosos, profissionais universitários ou não, e com colegas locais ou de várias partes do Brasil e de outros países, a leitura de seus trabalhos científicos e das publicações em periódicos pertinentes, sobretudo na Revista e no Boletim do CBC, deram-me base para registrar e comentar o seguinte.

Desde logo: nem todo cirurgião está contente e feliz. Salvo exceções, sente-se desprestigiado, sem destaque social e designado não mais médico, mas apenas um mais entre os profissionais da saúde. Veio perdendo cada vez mais a liberdade decisória do antigo liberal e, enquadrado num sistema assistencial gerido e administrado de fofa, vê-se tolhido, limitado por definições externas do que pode ou não pode operar, exigido quanto à quantidade e não à qualidade de produção e invadido por exigências auditoriais que impossibilitam na profissão o segredo antes sagrado. É forçado a inter-consultas encarecedoras dos custos e à prática apressada e fatigante em múltiplos empregos, pelos quais mal alcança o patamar de subsistência e manutenção. Sem meios e, às vezes, até sem licença para freqüentar congressos, tem ofertas de facilidades de viagem, até mesmo para fora do país, propiciadas por laboratórios e firmas das indústrias farmacêuticas e de equipamentos, o que aceita de bom grado, mas sempre na dúvida sobre a ética e sobre se não está sendo discretamente subornado. E está sob tensão, preocupado com as campanhas persecutórias e malevolentes da mídia, com os riscos de iatrogenia, com a pendente ameaça de imputação por suposto erro médico, na dúvida, de novo, sobre se contrata ou não um seguro antidemanda, que é bem caro.

Tampouco o paciente está feliz, sequer contente. Claro que os há felizes e satisfeitos. Mas o grande número, que infelizmente nem mais "pacientes" se designam, mas, em nomenclatura enfaticamente mercantil, chamam-se agora "usuários" ou "consumidores", queixa-se do atendimento impessoal, das filas, das consultas apressadas sem conversa nem apoio, do cirurgião "sem nome", que atendeu e operou outro "anônimo".

Há mais. Apesar das oportunidades nem sempre fáceis de reciclagem, grande parte dos ditos cirurgiões que se diplomam às centenas no Brasil cada ano está mal formada e despreparada, o que constantemente assinalado em editoriais das revistas médicas e da imprensa leiga. O problema está reconhecido pelas sociedades médicas e sindicais, pelas autoridades ministeriais, mas os escolhos e "lobbies" da política menor e os mandados de segurança empecem as soluções que se oferecem óbvias - impedir a criação de novos cursos improvisados, fechar as escolas reconhecidamente más e insuficientes e aumentar o número de residências básicas em cirurgia geral e de residências ulteriores especializadas. Residências que não sejam apenas abuso de mão-de-obra barata onde se malformam autodidatas; E sim residências que tenham realmente, todas elas, disciplina e supervisores realmente responsáveis, sempre disponíveis para ensinar a teoria e ajudar no campo operatório.

Cabe assinalar também o enorme e acelerado progresso tecnológito que tem havido, expresso de muitos modos, mas especialmente na videocirurgia endoscópica, nas vias de acesso mínimo, na alta precoce e na cirurgia ambulatorial, o que reduz trauma e custos, mas exige rigor e sensatez seletivos nas indicações. Vantagens a contrabalançar com as desvantagens do contato interpessoal mais breve e das repercussões'sobre o treinamento dos residentes, já que sem a hospitalização a interação deles com o enfermo arrisca-se a ficar reduzida quase apenas à da sala de operações, a quase nada de pré- operatório e a nenhuma no acompanhamento pós-operatório.

Apenas menciono, mas não comento por ter informes escassos, a automação, o comando à distância e os robôs em cirurgia. E confesso-me admirado ante a vir se reduzindo o brilho glorioso das "mãos santas" do cirurgião à simples digitação.

Quanto à produção científica, reporto-me com satisfação ao costume do nosso CBC de estimular o "forum" anual de pesquisa, que seguramente contribui para a disciplina auto-crítica e para a educação continuada dos jovens operadores. Ressalto, porém, a importância de evitar-se o "cientificismo" que supervaloriza o método em detrimento da finalidade da investigação. A importância de, na pesquisa clínica ("clinical trial"), serem estritamente respeitadas as normas da deontologia, da declaração de Helsinki e da bioética. O valor da pessoa não pode ser desmerecido pelo apego ao rigor dito "científico". Que se apreciem certamente os projetos ditos prospectivos controlados de avaliação duplamente cega, mas que se não depreciem as também válidas e também científicas análises retrospectivas de resultados maduramente refletidos de experiências vividas (como tem acontecido na seleção de trabalhos para congressos e para obtenção de bolsas junto às agências financiadoras).

Retomando o assunto formação do cirurgião, penso dever relembrar e acentuar que ela não deve ater-se limitadamente ao treinamento exclusivamente técnico, que as boas residências e os bons preceptores já dão e que as provas e os testes avaliam de maneira extensiva para conceder o título de especialista. Que ela inclua também e sempre, em transmissão e em avaliação, a permanente consciência da unidade mente-corpo tanto do operando ou operado, mas igualmente do cirurgião, e a preocupação com acalmar a ansiedade de quem está doente, se queixa e pede ajuda. Que a formação do cirurgião não veja o paciente fragmentado e compartimentado em órgãos estanques, mas íntegro na identidade de sua pessoa. Que ela seja holística, globalizante. Formação humanista. Repito aqui o que já escrevi noutro artigo. Que o cirurgião ao atuar seja

HAND HEAD HEART MÃOS CABEÇA CORAÇÃO

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Dez 1998
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