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Não fale do Elon Musk! A pesquisa jurídica no mestrado profissional

DO NOT TALK ABOUT ELON MUSK! DOING LEGAL RESEARCH AT A PROFESSIONAL POSTGRADUATE PROGRAM

Resumo

A discussão sobre programas de pós-graduação stricto sensu profissionais é relativamente recente no Brasil. O primeiro programa jurídico do tipo, um mestrado, foi implementado na Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP) em 2013. Apesar de terem enfrentado alguma resistência no início, programas de pós-graduação profissional são hoje parte da realidade acadêmica jurídica: atualmente, há 22 programas do tipo no Brasil e discute-se a possibilidade do doutorado profissional em Direito. Nesse contexto, torna-se importante refletir sobre a pesquisa jurídica realizada nesses espaços, buscando delimitá-la e contribuir para seu aperfeiçoamento. Este artigo visa a fazer isso. Com base na experiência de quase uma década da FGV DIREITO SP, busca-se identificar problemas comuns em projetos de pesquisa e trabalhos de conclusão apresentados ao programa, apontando suas possíveis causas e discutindo meios de evitá-los. Foram constatados dois grandes problemas: a falta de domínio de metodologia de pesquisa e o desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas. Como decorrência do primeiro, foram encontrados os seguintes problemas: (i) a ampliação exagerada dos temas, (ii) o mau uso das fontes e (iii) um desajuste de expectativas; do segundo: (iv) o sincretismo teórico, (v) o essencialismo jurídico e (vi) o reverencialismo.

Palavras-chave
Mestrado profissional; pós-graduação stricto sensu; metodologia de pesquisa; pesquisa jurídica; sociologia jurídica

Abstract

Discussion about “professional” stricto sensu graduate programs is relatively recent in Brazil. The first legal program of its kind, a master’s degree, was implemented at Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP) in 2013. Despite having faced some resistance at the beginning, programs of this type are now part of our legal academic scene: there are currently 22 professional programs in Brazil and the possibility of a professional doctorate degree in law is under consideration. In this context, it is important to discuss legal research in these professional programs, in order to delimit it and contribute to its improvement. This article aims to do that: based on the experience of nearly a decade of FGV’s program, it aims to identify common problems in research projects and final papers presented to the program, pointing out their possible causes and discussing ways to avoid them. Two major problems were identified: the lack of mastery of research methodology and the lack of knowledge about the role of legal research in the broader context of the human sciences. As a result of the first one, the following problems were identified: (i) the broadness of themes, (ii) the misuse of sources and (iii) a mismatch in expectations; as a result of the second major problem, three vices were identified: (iv) theoretical syncretism, (v) legal essentialism, and (vi) reverentialism.

Keywords
Professional master’s degree; stricto sensu postgraduate studies; research methodology; legal research; legal sociology

Introdução

“Não fale do Elon Musk!” Esse título alude ao artigo de Luciano Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) que, nos últimos anos, tornou-se leitura praticamente obrigatória em cursos de metodologia de pesquisa jurídica. Com um título “enigmático e um tanto provocador” (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 1), o texto “Não fale do código de Hamurábi!” identifica vícios e problemas recorrentes em trabalhos acadêmicos. Este artigo se inspira no de Oliveira, com uma diferença: Luciano tinha como público-alvo alunos(as) de mestrado e doutorado acadêmicos, ao passo que aqui são visados os do mestrado profissional em Direito.

Assim como seu congênere acadêmico, o mestrado profissional é um programa de pós-graduação stricto sensu, que confere o título de mestre em Direito. A modalidade, embora recente, tem se expandido, atraindo pessoas que buscam combinar aprimoramento acadêmico e profissional. Sua principal diferença em relação ao mestrado acadêmico é essa ligação necessária com o mercado de trabalho: “o Mestrado Profissional é uma modalidade de Pós-Graduação stricto sensu voltada para a capacitação de profissionais, nas diversas áreas do conhecimento, mediante o estudo de técnicas, processos, ou temáticas que atendam a alguma demanda do mercado de trabalho” (CAPES, 2019aCOORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR - CAPES. Mestrado Profissional - o que é? 2019a. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/sobre-a-avaliacao/avaliacao-o-que-e/sobre-a-avaliacao-conceitos-processos-e-normas/mestrado-profissional-o-que-e . Acesso em: 21 dez. 2021.
https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-...
, grifo nosso).

A despeito de os programas profissionais terem enfrentado alguma resistência em seu início, o “Documento de Área da Capes” nos informa que há uma tendência de “crescimento sustentável e prudente do número de mestrados profissionais [em Direito]” (CAPES, 2019COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR - CAPES. Documento da área da Capes - Direito. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/direito-pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
, p. 3). O primeiro programa do tipo foi implementado em 2013. Em 2016, outros três haviam sido criados; em 2019, passaram a ser onze. Atualmente, há 22 programas no Brasil e discute-se a possibilidade do doutorado profissional em Direito.1 1 A informação mais atual pode ser obtida no site da plataforma Sucupira. Para a discussão sobre o doutorado profissional em Direito, videCapes (2019, p. 20). Trata-se, portanto, de área em franca expansão.

No mestrado profissional, a pesquisa se diferencia por ter um enfoque prático - o que não costuma ser a regra em investigações de doutorado e de mestrado acadêmicos, nos quais as perguntas o quê? e por quê? geralmente são mais relevantes do que o como fazer?: “no fundo, o resultado do trabalho de investigação [no mestrado profissional] precisa responder a questões dinâmicas sobre como agir e com que cautelas, qual a melhor estratégia, quais os riscos jurídicos e como podem ser mitigados” (PINTO JR., 2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 35). Em suma, conforme definição da Capes (2019aCOORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR - CAPES. Mestrado Profissional - o que é? 2019a. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/avaliacao/sobre-a-avaliacao/avaliacao-o-que-e/sobre-a-avaliacao-conceitos-processos-e-normas/mestrado-profissional-o-que-e . Acesso em: 21 dez. 2021.
https://www.gov.br/capes/pt-br/acesso-a-...
), “o trabalho final do curso deve ser sempre vinculado a problemas reais da área de atuação do profissional-aluno [...]”.

Duas observações são necessárias. Em primeiro lugar, o fato de se tratar de um trabalho de mestrado “profissional” não significa que a pesquisa seja destituída de rigor. Ao contrário: a despeito de ter um escopo distinto, o trabalho exigido em um curso de mestrado profissional continua sendo uma pesquisa que deve observar critérios metodológicos claros e rigorosos. É preciso, por exemplo, que ela seja bem-informada, fundamentada, ponderada e imparcial (PINTO JR., 2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 38). Inclusive, parte importante do propósito deste artigo consiste em identificar, nesses trabalhos, problemas recorrentes que poderiam ser resolvidos por meio de um maior cuidado metodológico.

Em segundo lugar e em decorrência do que foi dito, espera-se que haja certa sobreposição entre os principais problemas apontados por Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) e os que serão identificados neste texto. Se ambos os tipos de pesquisa devem se orientar por critérios metodológicos que são semelhantes, naturalmente haverá problemas comuns a afetar tanto os trabalhos do mestrado profissional quanto os do acadêmico. As próprias exclamativas que dão título aos dois textos evidenciam isso: elas denunciam que, em ambos os casos, há uma tendência de os(as) alunos(as) insistirem em “introduzir” o tema contando sua história - como se todo trabalho de pesquisa tivesse que partir do “no princípio, era o verbo…”. No caso do mestrado profissional, como muitos trabalhos dizem respeito a temas relacionados à tecnologia, é frequente um começo semelhante, mas com “o Verbo” cedendo lugar ao “Elon Musk”.

Este artigo, assim como o de Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), tem um tom pessoal e baseia-se sobretudo na experiência de um dos autores como docente e orientador do Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP), primeiro programa jurídico do tipo, criado em 2013. Partindo dessa experiência,2 2 Emerson Fabiani orienta pesquisas no Mestrado Profissional desde 2013, ano de criação do programa na FGV DIREITO SP. pretende-se contribuir para o debate, ainda incipiente, sobre a pesquisa jurídica no âmbito dos programas de mestrado profissional. Para tanto, busca-se identificar problemas comuns em projetos e trabalhos de conclusão de curso apresentados ao Programa de Mestrado Profissional da FGV DIREITO SP,3 3 Apesar de ter por base a experiência na FGV, a discussão interessa às demais instituições de ensino, uma vez que os problemas apontados certamente são também identificáveis em diversos outros projetos e trabalhos. refletir sobre suas possíveis causas e discutir meios de evitá-los.

Em suma, foram identificados dois conjuntos de problemas: a falta de domínio de metodologia de pesquisa e o desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas. No primeiro conjunto, foram identificados os seguintes problemas: (i) a ampliação exagerada dos temas, (ii) o mau uso das fontes e (iii) um desajuste de expectativas; no segundo: (iv) o sincretismo teórico, (v) o essencialismo jurídico e (vi) o reverencialismo.

1. A perpetuação de velhos vícios

Como dito, a pesquisa no âmbito do mestrado profissional tem de aliar uma preocupação prática com o rigor metodológico próprio da academia. No entanto, apesar de esse ideal parecer claro, é possível identificar uma série de vícios que são comuns em projetos e em trabalhos da área. Muitos deles já foram apontados por outros autores ao tratarem da pesquisa jurídica oriunda de programas acadêmicos. Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), por exemplo, vê como um problema uma dada maneira de argumentar e de recorrer às fontes que é própria do advogado. Do mesmo modo, a forte influência exercida pelos manuais na maneira como se concebe a pesquisa jurídica também foi apontada como um problema por muitos autores (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, nt. 5, p. 18; OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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; SILVA, MAIA e TEIXEIRA, 2012SILVA, Artur Stamford da; MAIA, Alexandre da; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Pesquisa em Direito e a superação das escolas-de-um-só: uma profecia às avessas? In: CARLINI, Angélica et al. (org.). 180 anos do ensino jurídico no Brasil. Campinas: Millennium, 2012. p. 343-378.; MENDONÇA, 2020MENDONÇA, José Vicente Santos de. O que restou dos manuais de Direito Administrativo? Portal Jota, 17 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-que-restou-dos-manuais-de-direito-administrativo-14072020 . Acesso em: 20 abr. 2023.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/...
). Fazendo referência à bibliografia a respeito do tema, Constantino e Alves Neto (2014CONSTANTINO, Alexandre Krügner; ALVES NETO, Francisco Raimundo. O campo jurídico e a pesquisa em Direito no Brasil: uma problematização sob a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu. Revista do Conpedi, 2014. Disponível em: Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=48e3d4150e4efd6b . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) falam mesmo de uma “cultura de manuais”.

Um manual pode ser entendido como aquele livro que geralmente está à mão e que pretende abarcar as noções essenciais de uma disciplina. Da análise de seu conteúdo, extrai-se que os manuais são concebidos para o ensino de iniciantes - já que trazem noções básicas e gerais que, ao menos em tese, são de conhecimento do iniciado -, além de serem obras doutrinárias de caráter compilatório e opinativo (tanto é que seu conteúdo pouco se altera ao longo do tempo).

Para o propósito de iniciação do(a) estudante, o manual pode até ser útil, mas é um equívoco tomá-lo como modelo ou usá-lo como fonte exclusiva para pesquisas e trabalhos acadêmicos. Quando se faz isso, tem-se como resultado uma extensão do sentido de “manual”: é como se a palavra já sintetizasse o problema, ao se pressupor que o conhecimento e a pesquisa sobre a totalidade de um ramo do Direito estivessem ao alcance das mãos ou coubessem em suas palmas. Na prática, isso se converte na pretensão e na ideia de que, para fazer pesquisa em Direito, deve-se escolher um tema e cobrir todos os aspectos que o envolvem. Mesmo quando estamos diante de uma pesquisa com um tema devidamente delimitado, é comum que a estrutura “manualesca” se faça presente: pretende-se cobrir o surgimento e o desenvolvimento do tema (seu “desenvolvimento histórico”), os fundamentos da temática (princípios, institutos e natureza), as diferentes correntes doutrinárias a seu respeito, assim como a jurisprudência e suas divisões. É reprodução de “conhecimento” já sedimentado, o que é feito porque se pressupõe que essa é a rota que deve ser seguida, justamente porque se tem como modelo da pesquisa em Direito um tipo de texto que foi feito para o ensino de iniciantes - o manual.

O resultado disso são textos desinteressantes, pouco criativos e nada originais - “pesquisas” que, na verdade, partem de manuais para produzirem textos que se assemelham a... manuais. Aquilo que se espera de uma pesquisa - a compreensão de um dado ou fenômeno a partir de um recorte, de maneira aprofundada e tendo como resultado diferentes perspectivas sobre um mesmo objeto ou ainda uma nova perspectiva a respeito das já existentes - fica em segundo plano.4 4 Nesse sentido: Lanzillo e Guimarães (2014, p. 18-21).

Luciano Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), autor do texto que inspirou mais diretamente este artigo, identifica uma série de vícios que também são comuns nas análises que tratam da pesquisa jurídica no país. Apesar de não haver uma enumeração em seu texto, é possível identificar ao menos sete problemas por ele apontados como recorrentes: (i) a ignorância sobre como pesquisar, associada à falta de tempo para esse tipo de atividade; (ii) a ampliação exagerada dos temas; (iii) as escassas referências à jurisprudência e a casos práticos; (iv) o “manualismo”, que consiste no “uso abusivo de manuais e de livros de doutrina [...], [e em uma] tendência a escrever na dissertação ou tese verdadeiros capítulos de manual, explicando redundantemente [...] o significado de princípios e conceitos que são como que o bê-a-bá da disciplina”; (v) o “reverencialismo”, que consiste no uso do argumento de autoridade, que o autor classifica como “ostensivamente anticientífico”, havendo uma incorporação acrítica de teóricos das ciências humanas ao trabalho acadêmico; (vi) a “impureza metodológica ou confusão epistemológica”, que ocorre quando o aluno se propõe a apresentar a visão histórica, sociológica ou filosófica sem saber o que está fazendo, o que o leva a erros grosseiros, a imprecisões, a contradições e a anacronismos; e, por fim, (vii) a presença de finais retóricos que caem no senso comum (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 6-9; 22).

Aqui se percebe algo dito na introdução: muitos dos principais problemas encontrados em trabalhos e projetos do mestrado profissional também são recorrentes em trabalhos de seus congêneres acadêmicos. Em ambos os casos, há vícios que perduram, mesmo tendo sido repetidamente identificados e denunciados. Por que isso ocorre? Qual seria a causa da recorrência desses problemas? É possível dar uma resposta plausível a essas perguntas por meio de uma retomada dos conceitos de “habitus” e “campo” e de sua aplicação ao Direito.

Para nossos fins, é suficiente dizer que o habitus indica uma disposição incorporada:

A palavra disposição parece particularmente apropriada para exprimir o que recobre o conceito de habitus (definido como sistema de disposições): com efeito, ele exprime, em primeiro lugar, o resultado de uma ação organizadora, apresentando então sentido próximo ao de palavras como estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, em especial, uma predisposição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação. (BOURDIEU, 1994BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma Teoria da Prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu: sociologia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994. p. 46-86., p. 61)

A ideia de reiteração e perpetuação associada ao conceito é central: habitus é um conjunto de conhecimentos, ações e disposições que, por serem internalizados (seja pela prática, pelo treino ou simplesmente por uma assimilação irrefletida), perpetuam-se e se revelam nas atitudes, no porte, nas expressões e no modo como os indivíduos concebem o mundo social. Esse conjunto de conhecimentos, ações e disposições incorporados é gerado por mecanismos como a educação formal e familiar, o contexto social em que se está inserido, os rituais de passagem e as práticas de sociabilidade que nele são comuns, etc.5 5 Bourdieu aborda a gênese desse conceito no capítulo III de seu livro O poder simbólico (1989, p. 59-74).

O campo, por sua vez, pode ser entendido como um “espaço social de estruturas e agentes com características comuns e que disputam um tipo de capital próprio desse espaço, como o capital político ou o capital jurídico” (ALMEIDA, 2010ALMEIDA, Francisco Normanha Ribeiro de. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Departamento de Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 17). As interações sociais se dão em uma série de campos, constituindo-os. Assim, temos o campo jurídico, o campo artístico, o campo científico, o campo do poder, etc. O campo jurídico é definido por Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 212, grifo do autor) como

o lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social.6 6 A relação com o ensino jurídico é evidente: “[...] a importância dos ganhos que o monopólio do mercado dos serviços jurídicos assegura a cada um dos seus membros depende do grau em que ele pode controlar a produção dos produtores, quer dizer, a formação, e, sobretudo, a consagração pela instituição escolar dos agentes juridicamente autorizados a vender serviços jurídicos [...]” (BOURDIEU, 1989, p. 233).

A disputa pelo monopólio do direito de dizer o Direito exige um conjunto de instituições e práticas que organizam o campo jurídico internamente, ao mesmo tempo em que o diferenciam dos demais campos sociais e dos atores externos a ele, os leigos. Esse conjunto de instituições e práticas que compõem a estrutura do campo jurídico reforça seu ideal de neutralidade, bem como o de sua autonomia perante pressões externas. Assim, “a constituição do campo jurídico é inseparável da instauração do monopólio dos profissionais sobre a produção e a comercialização desta categoria particular de produtos que são os serviços jurídicos” (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 233). Para a constituição desse campo, é essencial, portanto, a imposição de certa “distância neutralizante”, que separa os agentes especializados dos leigos, com impactos na maneira de se portar dos primeiros - algo perceptível, por exemplo, na linguagem.7 7 Bourdieu (1989, p. 225-226) fala de uma “postura linguística”.

Ao longo do tempo, estabelece-se, assim, um habitus que reforça as estruturas do campo ao mesmo tempo em que é alimentado por elas. Uma vez que a incorporação do habitus é um requisito para se exercer o “direito de dizer o Direito”, a relação entre ele e o campo é de reforço mútuo: “[...] cada campo é o locus onde padrões de comportamento, na maioria das vezes inconscientes, estabilizam as expectativas de ação em seu interior, conformando atitudes e garantindo a reprodução da própria estrutura geradora do habitus e do campo” (CONSTANTINO e ALVES NETO, 2014CONSTANTINO, Alexandre Krügner; ALVES NETO, Francisco Raimundo. O campo jurídico e a pesquisa em Direito no Brasil: uma problematização sob a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu. Revista do Conpedi, 2014. Disponível em: Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=48e3d4150e4efd6b . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 5).

Constantino e Alves Neto (2014CONSTANTINO, Alexandre Krügner; ALVES NETO, Francisco Raimundo. O campo jurídico e a pesquisa em Direito no Brasil: uma problematização sob a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu. Revista do Conpedi, 2014. Disponível em: Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=48e3d4150e4efd6b . Acesso em: 26 jun. 2023.
http://publicadireito.com.br/artigos/?co...
, p. 9-10) ressaltam uma série de componentes que reforçam o habitus predominante no campo jurídico: as próprias trajetórias de vida, ligadas às carreiras jurídicas de familiares; os rituais de iniciação de aprovação no vestibular e, posteriormente, de ingresso no órgão de classe; a diferenciação entre as disciplinas propedêuticas (vistas pelo campo jurídico como “dispensáveis”) e as disciplinas que “realmente importam” para a vida profissional; as aulas em formato expositivo, baseadas principalmente em leis e manuais; a predominância de “autores consagrados” (em sua maioria profissionais com forte orientação prática); os estágios em escritórios de advocacia e em órgãos judiciais - locais em que se incorpora uma série de regras não escritas do campo (forma de se vestir, formas de tratamento e interação social, postura, uso de jargão, estilo de escrita próprio, etc.); por sua vez, aqueles que obtêm mais sucesso nessa trajetória acumulam mais prestígio e recompensas materiais, e acabam retornando às faculdades como docentes, o que renova o ciclo de retroalimentação entre habitus e campo.

Da perspectiva acadêmica, parte do problema está no fato de o habitus predominante no campo desincentivar um conjunto de ações e práticas que são essenciais para o bom desenvolvimento do trabalho de pesquisa científica. A própria necessidade de manter a autonomia do campo jurídico (preservando, assim, o monopólio sobre o direito de dizer o Direito) costuma gerar certa resistência à incorporação de ideias e teorias externas ao campo. No mesmo sentido, o respeito à hierarquia, que é parte desse habitus, prejudica o livre embate de ideias; no Direito, é comum a preocupação de que uma crítica a um argumento seja tomada como divergência pessoal - fato que faz com que não raro seja precedida de pedidos de desculpas (data venia) ou de elogios exagerados, desnecessários em um contexto propriamente científico. Além disso e por fim, o próprio caráter de conservação e compilação que são inerentes ao campo incentiva certa reverência a obras e autores do passado (os “saudosos”), muitas vezes impedindo avanços necessários e favorecendo uma cultura baseada em manuais (CONSTANTINO e ALVES NETO, 2014CONSTANTINO, Alexandre Krügner; ALVES NETO, Francisco Raimundo. O campo jurídico e a pesquisa em Direito no Brasil: uma problematização sob a perspectiva teórica de Pierre Bourdieu. Revista do Conpedi, 2014. Disponível em: Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=48e3d4150e4efd6b . Acesso em: 26 jun. 2023.
http://publicadireito.com.br/artigos/?co...
, p. 11-12). Romper com essas disposições incorporadas não é tarefa fácil, sobretudo quando se tem em mente o complexo processo por meio do qual elas alimentam e são alimentadas pelo campo jurídico. Não é raro que se afirme a necessidade de um conjunto de mudanças: renovação curricular, valorização das disciplinas propedêuticas, contratação de docentes em dedicação exclusiva, fomento de pesquisas interdisciplinares, maior intervenção do Estado para limitar a proliferação de cursos, etc. São medidas válidas e que devem ser discutidas. Entretanto, cabe ressaltar que todas elas apontam para mudanças estruturais. Aqueles que as destacam, por mais que possam estar certos, parecem dar pouca importância à dimensão individual. Não há, na teoria de Bourdieu, um predomínio da estrutura sobre o indivíduo. Ao contrário, uma de suas preocupações era precisamente encontrar um meio-termo entre duas correntes teóricas influentes à época: o estruturalismo e o existencialismo. O primeiro se associava a certo determinismo, como se as ações individuais fossem predeterminadas por estruturas - sendo impotentes, portanto, para gerar quaisquer mudanças. Deixando momentaneamente de lado discussões sobre mudanças estruturais, a própria redação deste artigo pressupõe que as pessoas podem tomar consciência dessas disposições incorporadas e fazer um esforço para romper ou modificar, por meio de suas próprias ações, esse habitus associado ao campo jurídico.

Nesse sentido, torna-se importante nos perguntarmos o que é a pesquisa em Direito e, especificamente no mestrado profissional, quais são as diretrizes a serem seguidas por aqueles que querem romper com certas disposições internalizadas que perpetuam vícios recorrentes em trabalhos da área. Trata-se de uma proposta mais modesta do que aquelas voltadas a mudanças mais estruturais, mas que certamente tem o potencial de contribuir para a melhora qualitativa da pesquisa jurídica feita no país.

2. O que é a pesquisa no mestrado profissional em Direito?

O debate acerca da pesquisa no mestrado profissional ainda é incipiente. As reflexões sobre pesquisa jurídica, porém, já se encontram em um estágio mais desenvolvido. Na medida em que muitas delas tratam do sentido da pesquisa em Direito e de sua relação com a prática profissional, tais reflexões são pertinentes aos propósitos deste artigo. Como dito, no âmbito do mestrado profissional, a pesquisa tem uma relação íntima com a prática. Por isso, é importante conhecer os problemas decorrentes dessa relação, assim como identificar o espaço a ser preenchido pela pesquisa jurídica, especialmente aquela que aqui nos interessa.

No texto “Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil”, Marcos Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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)8 8 Trata-se de versão ligeiramente modificada do texto “O que é pesquisa em Direito?”, apresentado originalmente em dezembro de 2002 em um workshop organizado pela FGV DIREITO SP e pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) (NOBRE, 2005, nt. 1, p. 18). propõe um diagnóstico acerca da pesquisa jurídica no país, buscando delimitar a concepção de pesquisa predominante na área. Ele constata uma indistinção entre prática, teoria e ensino jurídicos e um relativo atraso acadêmico-metodológico do Direito em comparação às demais ciências humanas. Após identificar as causas desse atraso, aponta uma concepção alternativa de pesquisa jurídica. Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) parte de um contraste: a pesquisa em Direito, diferentemente da pesquisa científica em ciências humanas, não conseguiu atingir padrões internacionais de qualidade. Para ele, isso se explica por dois fatores: primeiro, pelo fato de, por razões históricas, o Direito se isolar das outras ciências humanas; segundo, por haver, no âmbito jurídico, uma indistinção entre prática profissional e pesquisa acadêmica. Combinados, esses dois fatores impactaram negativamente a pesquisa científica no Direito, algo notável tanto no modo como a interdisciplinaridade é encarada no campo quanto na própria maneira como se concebe o objeto da “ciência do Direito”. A confusão entre prática profissional e pesquisa acadêmica é também perceptível no ensino jurídico. Este, para Nobre, é quase sempre baseado na transmissão de conhecimentos relacionados à prática profissional de advogados, juízes e promotores, não havendo propriamente uma produção acadêmico-científica em que o ensino se fundamente (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 4-5; 7).

A tese do “relativo atraso”, porém, não é consensual. Chamando a atenção para o fato de o diagnóstico de Nobre se fundamentar em uma fonte antiga, Fragale Filho e Veronese (2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004.) reanalisaram o desenvolvimento da pesquisa jurídica no Brasil. Para tanto, discutiram a tese de Nobre (2005)NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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à luz do processo de institucionalização da produção acadêmica em Direito e da distribuição de recursos por agências de fomento.

Depois de analisar os números da pós-graduação em Direito no contexto mais amplo dos programas de ciências sociais aplicadas, eles descrevem a expansão quantitativa dos programas jurídicos e as transformações por que passaram, além de apontar para a necessidade de se discutir os problemas qualitativos nos programas da área. Tratando a nota máxima atribuída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) como um indicador da qualidade internacional de um programa, Fragale Filho e Veronese (2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004.) constatam que, até a avaliação trienal de 2001-2003, nenhum programa das ciências sociais aplicadas (aí incluso o Direito) possuía tal nota - fato que fragilizaria a tese do “relativo atraso”. Com base nisso, a despeito de a evidência concernente à distribuição de recursos pelas agências de fomento ser pouco conclusiva, ambos se dizem convencidos de que a tese do relativo atraso “consiste, na verdade, em uma leitura pejorativa da pesquisa jurídica, realizada, essencialmente, por um olhar externo” (FRAGALE FILHO e VERONESE, 2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 66).

A afirmação não é desenvolvida pelos autores, que se limitam a dizer ser necessário rejeitar a “hipótese do atraso [...], pois ela importa em uma falsa posição subalterna, que insiste em rejeitar o rótulo científico ao campo de pesquisas em direito” (FRAGALE FILHO e VERONESE, 2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 67). Contrapondo-se a Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), eles argumentam que o Direito possui peculiaridades que o diferenciam de outras ciências humanas, mas novamente não elaboram o argumento, limitando-se a discuti-lo em termos gerais (FRAGALE FILHO e VERONESE, 2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 67). O que Fragale e Veronese (2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 67-68) parecem sugerir é que a prática é um elemento relevante do Direito, devendo haver uma combinação entre ela e o trabalho acadêmico.

Sobre esses argumentos, cabe ressaltar, em primeiro lugar, que a diferença entre a pós-graduação em Direito e nas demais ciências sociais tem predominado ao longo do tempo: da época em que Fragale Filho e Veronese escreveram o texto (publicado em 2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004.) até setembro de 2022, enquanto diversos programas de ciências humanas receberam a nota máxima nas avaliações trienais ou quadrienais da Capes, o Direito ficou sem nenhum programa na elite da pós-graduação do país.9 9 A título de ilustração, as ciências humanas tiveram a seguinte quantidade de programas de pós-graduação com nota 7 (nota máxima) no período avaliativo de 2013-2016: Sociologia (3), Psicologia (3), Linguística e Literatura (6), História (2), Filosofia (1), Economia (4), Ciência Política e Relações Internacionais (2), Artes (1), Antropologia (2), Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo (3). Em razão de disputa judicial sobre o processo avaliativo da Capes, não haviam sido divulgadas, até o fechamento deste artigo, as notas da avaliação quadrienal do período 2017-2020. Em razão de anúncios feitos pelos próprios programas avaliados, que tiveram acesso às suas notas isoladamente, sabe-se que os programas de pós em Direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) obtiveram nota 7. Ao contrário do que poderia parecer em 2004, o diagnóstico do “relativo atraso” parece ter se fortalecido, ao menos a julgar pelo critério qualitativo da avaliação feita pela Capes nos anos seguintes. Em segundo lugar, contrariamente ao que afirmam os autores (FRAGALE FILHO e VERONESE, 2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 54), Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) não pressupõe a indistinção entre a pesquisa jurídica e aquela realizada pelas outras ciências humanas.10 10 A não ser que Nobre (2005, p. 12) tenha modificado seu texto neste ponto, parece-nos equivocado dizer isso, principalmente diante de passagens como esta: “De saída, a fim de evitar mal-entendidos, gostaria de esclarecer que não proponho um entendimento científico do direito a partir de perspectivas como a da sociologia, da história ou mesmo da filosofia. Não se trata de submeter o direito a nenhuma dessas perspectivas disciplinares em particular, o que lhe destruiria a especificidade”.

De todo modo, sobretudo quando se tem em mente o contexto do mestrado profissional, Fragale Filho e Veronese (2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004., p. 54-55) apontam na direção certa ao afirmar ser necessário “identificar as possibilidades para a construção de uma pós-graduação jurídica que saiba dialogar com o mundo profissional, sem, entretanto, descurar da sua necessária inserção científica”. Nas palavras de Fiss (1985FISS, Owen. The Law According to Yale. In: McDOUGAL, Myres; REISMAN, Michael (eds.). Power and Policy in Quest of Law - Essays in Honor of Eugene Victor Rostow. Netherlands: Martinus Nijhoff Publishers, 1985. p. 417-424., p. 418, tradução nossa), trata-se de reconhecer que “o Direito [e, consequentemente, a pesquisa jurídica] é um mix incomum entre o acadêmico e o profissional”. Contudo, ao contrário do que parecem sugerir Fragale Filho e Veronese (2004FRAGALE FILHO, Roberto; VERONESE, Alexandre. A pesquisa em Direito: diagnóstico e perspectivas. Revista Brasileira de Pós-Graduação - RBPG, [s. l.], v. 1, n. 2, p. 53-70, nov. 2004.), o texto de Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) pode nos auxiliar nessa empreitada, desde que se levem em conta duas distinções fundamentais por ele traçadas.

A primeira delas diz respeito ao contraste entre o parecerista e o pesquisador. Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) argumenta que, em decorrência da confusão entre prática, teoria e ensino jurídicos no país, há uma tendência de se adotar o parecer técnico-jurídico como modelo de produção acadêmica no Direito. O parecer, apesar de aparentemente se diferenciar da atividade advocatícia (afinal, ele seria supostamente “desinteressado”), segue a mesma lógica de elaboração de uma peça - a lógica do advogado, que seleciona apenas a porção do material jurídico (decisões, trechos de doutrina, etc.) que endossa a tese a ser defendida. Nesse sentido, o parecer simboliza uma forma de argumentar que caracteriza o que erroneamente se entende por produção acadêmica em Direito no país. O pretenso desinteresse que guia sua elaboração o legitima a se passar por produção acadêmica, quando, na verdade, vai ao encontro da prática advocatícia. Para Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 11-12), a atividade jurídica propriamente acadêmica deveria avaliar o conjunto do material jurídico disponível, nele buscando “um padrão de racionalidade e inteligibilidade para, só então, formular uma tese explicativa [...] - [compreendendo], por exemplo, o estatuto de determinado instituto na prática jurisprudencial estabelecida”.

Tão importante quanto a distinção entre o parecerista (a quem compete emitir opiniões) e o pesquisador (a quem compete compreender e explicar) é a diferença traçada por Nobre entre doutrina e dogmática. A primeira seria “uma sistematização da prática jurídica” (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 16), ao passo que a última seria propriamente “o núcleo da investigação científica no âmbito do direito” (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 12). Para ele, a natureza da investigação dogmática não está em seu compromisso com soluções ou com a decidibilidade de conflitos, mas, sim, em

explicar (“compreender” seria melhor, nesse caso) o estatuto de determinado instituto na prática jurisprudencial [...] e na doutrina, sendo esses elementos tomados como objetos empíricos de investigação a serem compatibilizados segundo uma determinada arquitetônica dos princípios estruturantes do ordenamento. (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 15-16, grifo do autor)

É importante notar que Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) define “dogmática” de modo mais abrangente e complexo do que a definição corrente do termo: não se trata aqui do entendimento comum da palavra, tida muitas vezes como sinônimo daquilo que consta em manuais doutrinários, ou como a mera descrição de normas jurídicas em vigor.11 11 Para que o contraste fique claro, pode-se pensar na diferença entre o Tratado da posse, de F. C. Savigny, e um Manual de direito civil, vol. IV - Direitos reais, ou, ainda, na diferença entre a obra Autoria e domínio do fato, de C. Roxin, e um Curso prático de direito penal. Na acepção de Nobre (2005), apenas os livros de Savigny e Roxin poderiam ser corretamente descritos como obras de dogmática, sendo os dois outros apenas manuais doutrinários. Tomada nesse novo sentido, a dogmática delimita a fronteira entre o Direito e as demais ciências humanas, ao mesmo tempo em que nos permite pensar em uma pesquisa jurídica que vá além da mera reprodução e compilação doutrinária. Entendida dessa maneira, a tarefa da pesquisa jurídica - que tem caráter eminentemente dogmático (no sentido aqui atribuído ao termo) - não se subordina às demais ciências humanas. Além disso, ela não trata as perspectivas de disciplinas como a Filosofia, a Sociologia, a História e a Ciência Política como exteriores ao Direito, nem como simples perspectivas ancilares; ao contrário, incorpora-as em sua investigação “como momentos constitutivos” (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 12).12 12 Este é um ponto em que o argumento de Nobre (2005) precisa ser tomado com ressalvas. De que modo se dá a relação da pesquisa jurídica com as demais ciências humanas? Não é evidente o que ele quer dizer quando afirma que ela deve incorporá-las em sua investigação “como momentos constitutivos”. Para fins deste artigo, é mais importante destacar seu caráter residual: a relação da pesquisa jurídica com as demais ciências humanas não é de subordinação, nem simplesmente ancilar, servil, “para cumprir tabela”. O diálogo com disciplinas afins não deve ser feito de maneira superficial, devendo-se evitar uma interdisciplinaridade simplória. Se debates e pressupostos de outras disciplinas forem essenciais para o desenvolvimento do trabalho jurídico acadêmico, eles devem ser cuidadosamente reconstruídos e os argumentos que os embasam devem ser explicitados. É esse o sentido que se sugere atribuir à expressão de Nobre. Para o autor, somente por meio do desenvolvimento de uma pesquisa jurídica nesses termos é que será possível transformar o ensino jurídico e a doutrina no Brasil (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 16).

Na divisão do trabalho da pesquisa jurídica, tarefas distintas deverão ser realizadas pelos programas acadêmicos e pelos programas profissionais. O fator determinante é a prática: como vimos, para Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), a natureza da investigação dogmática não está em seu compromisso com soluções ou com a decidibilidade de conflitos; já foi dito, porém, que um horizonte prático é de suma importância para a pesquisa no mestrado profissional. Sendo assim, é esperado que trabalhos em programas profissionais tenham mais preocupações práticas do que trabalhos elaborados em programas acadêmicos. Os primeiros, ao mesmo tempo em que têm relevância prática, podem proporcionar importantes insumos para os segundos, sendo fundamentais para a compreensão do estatuto de institutos e práticas jurídicas no ordenamento.

Não se trata, portanto, de dois modelos de pesquisa estanques. Além disso, cabe ressaltar que essa divisão do trabalho de pesquisa não é rígida. É natural que haja sobreposições entre os diferentes tipos de programa. Em suma, pode-se dizer que o estudo e a pesquisa propriamente jurídicos têm dupla motivação: a compreensão em si mesma de determinados institutos jurídicos (o que Nobre [2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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] define como a dogmática propriamente dita) e sua compreensão como meio de melhorar a prática. Enquanto a primeira se aproxima mais do trabalho esperado em um programa acadêmico, a segunda está mais próxima do que se espera de um programa profissional.13 13 Também seria possível delimitar o lugar da pesquisa no mestrado profissional ao se entender o que Nobre (2005) chama de “dogmática” como uma linguagem própria do Direito (que não é jargão, mas domínio conceitual). A pesquisa dogmática seria aquela voltada ao desenvolvimento, ao exame e à sistematização desses conceitos e dessa linguagem própria, tendo por modelo, para Nobre, a produção acadêmica alemã. Nessa classificação, como já ressaltado, o Tratado da posse, de Savigny, por exemplo, seria dogmática; uma edição comentada do Código Penal ou o “Manual da Disciplina Tal”, doutrina. A pesquisa nos programas stricto sensu profissionais seria um meio-termo: ela tem o viés prático da doutrina (mas sem se confundir com manuais), ao mesmo tempo em que compartilha uma preocupação metodológico-acadêmica com a dogmática (mas sem se descolar de uma preocupação com a prática profissional).

Cabe destacar que não precisamos endossar a concepção de Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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).14 14 Lima Lopes (2006), por exemplo, identifica-se com uma corrente filosófica que busca resgatar o caráter prático do Direito. Para ele, ao contrário de Nobre (2005), a conclusão de um trabalho de pesquisa jurídica, mesmo em programas acadêmicos, deve apresentar um caráter prático-normativo. Não se pretende aqui entrar no debate sobre qual concepção de direito e de dogmática deve orientar o trabalho de pesquisa jurídica como um todo. Limitamo-nos a afirmar que a concepção de Lima Lopes, que é bastante sofisticada, aplica-se bem aos propósitos do mestrado profissional, ao dar destaque para o fim prático da pesquisa jurídica. Recorreu-se a ela instrumentalmente, apenas para tentar esclarecer as respectivas tarefas dos trabalhos acadêmicos e profissionais, assim como para delimitar o trabalho que cabe propriamente à pesquisa jurídica em relação às demais ciências humanas. Espera-se que isso contribua para que se evitem os problemas frequentemente identificados nos trabalhos de pós-graduação - e, em particular, nos do mestrado profissional em Direito.

Em relação ao mestrado profissional em Direito, o já citado texto de Pinto Jr. (2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018.) é esclarecedor. Para ele, são quatro as etapas que caracterizam a pesquisa nesse âmbito:

(i) apreensão da realidade e contextualização fática (funcionamento do mundo real e práticas usualmente adotadas); (ii) reflexão jurídica com proposta de posicionamento hermenêutico (enquadramento jurídico e questões sensíveis); (iii) análise e avaliação crítica da situação (pontos fortes e pontos fracos; principais riscos); (iv) recomendações de conduta ou ação prática (como agir e com que cautelas). (PINTO JR., 2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 34)

Nota-se que a prática é ponto de partida (funcionamento do mundo real e práticas usualmente adotadas) e ponto de chegada (como agir e com que cautelas). Apesar disso, há uma diferença importante: o último trata de uma prática mais refinada, refletida e fundamentada - ponto que é alcançado por meio das duas etapas intermediárias, a de reflexão e a de análise e avaliação crítica.

Portanto, a pesquisa no mestrado profissional se diferencia por ter um enfoque prático - que deriva, em parte, das próprias normas que instituíram esse tipo de programa. Daí suas preocupações primordiais serem com o como agir, com que cautelas, com o modo de identificar e mitigar riscos, de identificar a melhor estratégia de conduta, etc. Em suma, “a pesquisa profissional pretende essencialmente qualificar o conhecimento prático já detido pelo aluno, por meio de sua sistematização, resgate do embasamento teórico, avaliação crítica e recomendações de conduta” (PINTO JR., 2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 38). Três são os tipos de trabalho sugeridos por Pinto Jr. (2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018.): (i) o trabalho exploratório sobre práticas jurídicas; (ii) a resolução de problemas juridicamente densos e relevantes do ponto de vista prático; e (iii) o estudo de caso.15 15 Cada um deles é discutido em mais detalhes, respectivamente, nas seções 5, 6 e 7 do texto de Pinto Jr. (2018, p. 38-39, 39-41 e 41-43). Em nota (nt. 22, p. 37), Pinto Jr. faz uma observação que pode dar a entender que o rigor metodológico não é tão importante quando se faz pesquisa empírica no mestrado profissional: “Vem crescendo no meio acadêmico a aceitação de desenhos de pesquisa mais flexíveis, sobretudo quando tenham por objetivo avaliar e transformar práticas profissionais. Nesses casos, a exigência de rigor científico dos métodos e técnicas de investigação precisa ser relativizada”. Não se nega que algumas características do alunado e dos próprios programas profissionais dificultam a realização de pesquisas empíricas tal como são feitas por pesquisadores de outras ciências humanas (que geralmente se dedicam com exclusividade à pesquisa, estão em programas de maior duração e com menos carga de disciplinas, além de terem recebido treinamento metodológico especializado). Nesse sentido, não se espera que uma pesquisa empírica no mestrado profissional recorra a métodos altamente sofisticados de estatística e de programação, por exemplo. Mas isso não pode ser interpretado como uma licença para falta de rigor - que deve ser o mesmo para programas acadêmicos e profissionais, ainda que estes recorram a métodos e técnicas mais simples.

Para que esses trabalhos tenham sucesso e mérito acadêmico, é necessário observar uma série de condutas que visam a evitar alguns dos problemas aqui identificados. São condutas metodológicas esperadas do pesquisador, como o exame crítico de teses e argumentos, a consideração de argumentos contrários, a discussão de pontos fortes e fracos das soluções propostas e a adoção de uma postura cética, inquisitiva e imparcial. O reconhecimento de que todos temos vieses e interesses não deve ser interpretado como uma licença para que a pesquisa se subordine a compromissos ideológicos, mas como um lembrete para nos mantermos vigilantes e nos esforçarmos para suprimir tais vieses durante o trabalho de pesquisa. Isso envolverá, em alguns casos, mudar de posição diante de novas evidências ou de melhores argumentos. Envolverá também uma postura ativa diante da doutrina e da jurisprudência, que não devem ser tomadas em bloco - a Doutrina, a Jurisprudência - nem tratadas com reverência: o pesquisador pode (e, em alguns casos, deve) desafiar afirmações doutrinárias e teses jurisprudenciais, desde que o faça de forma fundamentada. Além disso, as afirmações do trabalho não podem se basear em intuições ou em uma experiência prática definida em termos vagos, devendo-se evitar a generalização daquilo que é anedótico e a “escolha a dedo”16 16 Aquilo que, em inglês, se designa por cherry picking - a menção a casos ou dados específicos que parecem confirmar determinada posição, tese ou argumento, ao mesmo tempo em que é ignorado um conjunto significativo de casos ou dados que contradizem essa posição. de casos e exemplos. Ao contrário, devem se fundamentar em bons argumentos, em demonstrações fáticas, na experiência profissional elaborada, etc. (PINTO JR., 2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 37).

Discutidos os modos pelos quais se perpetuam velhos vícios e identificada a tarefa da pesquisa no mestrado profissional (tanto em relação às demais ciências humanas quanto em relação aos programas acadêmicos), cabe agora identificar e discutir mais pormenorizadamente os vícios mais recorrentes em projetos e pesquisas do mestrado profissional.

3. Problemas recorrentes nas pesquisas do mestrado profissional

Como dito anteriormente, há alguma sobreposição entre os problemas identificados por Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) e os identificados neste artigo. Contudo, parte dos problemas apontados na literatura é potencializada no mestrado profissional, já que muitos discentes que nele ingressam têm pretensões mais prático-profissionais do que acadêmicas. Além desse efeito de potencialização de problemas recorrentes nos trabalhos de mestrado e doutorado acadêmicos, o perfil do alunado dos programas profissionais também se associa a outros problemas, não apontados na literatura.

Em linhas gerais, foram identificados dois grandes problemas: a falta de domínio de metodologia de pesquisa e o desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas. Como decorrência do primeiro, identificaram-se os seguintes vícios: (i) a ampliação exagerada dos temas, (ii) o mau uso das fontes e (iii) um desajuste de expectativas; do segundo: (iv) o sincretismo teórico, (v) o essencialismo jurídico e (vi) o reverencialismo.

Em primeiro lugar, a falta de domínio de metodologia de pesquisa frequentemente tem como resultado a elaboração de problemas de pesquisa pouco delimitados, revelando certa inabilidade de fazer um recorte do tema escolhido que seja adequado ao escopo do programa de mestrado profissional. Como exemplo, cita-se um anteprojeto de pesquisa apresentado ao Mestrado Profissional da FGV DIREITO SP, intitulado “A Metodologia do Ensino Jurídico e a Formação Intelectual do Profissional do Direito”.17 17 O objetivo dos exemplos é ilustrar erros comuns cometidos por alunos(as) de programas de pós-graduação profissionais. Na etapa do anteprojeto (e até mesmo na do projeto e de redação da pesquisa), é comum que os trabalhos apresentem uma série de problemas e passem por revisões. Portanto, não há aqui nenhuma diminuição dos responsáveis pelos trabalhos citados. O bom discente é aquele que, ao longo de sua trajetória no programa, se esforça para corrigir erros e atingir um resultado satisfatório. O melhor índice de sua qualidade, assim, não é o trabalho que entrega na entrada, mas o que entrega no fim do processo. De todo modo, visando a evitar a identificação da autoria, foram feitas paráfrases em alguns casos. Já no título, a amplitude do recorte é evidente. Os temas de “metodologia do ensino jurídico” e da “formação intelectual do profissional do Direito” até podem conversar entre si, mas é preciso haver um recorte claro que aponte para isso. Não é o que se nota quando o anteprojeto se manifesta a respeito. O leitor fica com a impressão de que os temas serão tratados independentemente:

De forma contextualizada, pretende-se apresentar um esboço histórico dos cursos jurídicos e elementos de indagação sobre a qualidade de ensino durante a sua trajetória, alinhada com a crescente disponibilidade de vagas dos cursos de Direito e o número de advogados em contraponto com a redução das vendas do mercado editorial jurídico. Além disso, pretende-se demonstrar elementos que contribuem para a formação intelectual e que auxiliam na leitura e compreensão de textos.

Não é clara a relação entre a pretensão histórico-descritiva do trabalho e o objetivo de “demonstrar” elementos que contribuem para a formação intelectual e para a leitura de textos. Em outras palavras: falta ao anteprojeto um recorte claro e, em especial, um recorte que o insira no escopo de um programa de mestrado profissional. No mesmo anteprojeto, são mencionados objetivos mais abstratos, que não são aprofundados e que talvez estejam além do que se espera de um projeto em um programa desse tipo, como o objetivo de “propiciar um aprimoramento do estudo integrativo” ou o escopo de “atender uma pluralidade de perspectiva de educação sentimental e voltada à formação, com primazia do intelecto enquanto vocação”. Seria recomendável optar ou pelo tema da formação ou pelo tema do estudo histórico-descritivo das escolhas pedagógicas que moldam nossos cursos jurídicos. Feito isso, seria preciso escolher um recorte: estudar uma reforma específica da legislação sobre os cursos jurídicos, escolher um período ou um nicho (a produção bibliográfica voltada para concursos públicos, por exemplo), um tema mais específico (como a relação entre o exame de ordem e as grades curriculares dos cursos), etc. Tal como está, o anteprojeto é um bom exemplo deste primeiro problema, ligado à falta de domínio de metodologia de pesquisa: temas e recortes demasiadamente amplos.

Em segundo lugar, a falta de domínio de metodologia de pesquisa comumente se mostra por meio do uso que a maioria dos(as) alunos(as) faz das fontes. É comum que citem artigos de portais da internet como se tivessem o mesmo peso argumentativo que um artigo acadêmico, evidenciando uma falta de visão sobre hierarquia entre as fontes. Entre elas, a hegemonia da doutrina, acompanhada de um abuso das citações de manual, segue inconteste. A maioria das referências (especialmente decisões judiciais) é citada apenas para confirmar uma tese, sem pesquisa sistemática que mostre sua relevância no contexto mais amplo da área ou temática jurídica pertinente. Com frequência, recorre-se ao “direito comparado” fora de contexto, apenas para cumprir tabela; são comuns as comparações sem método.

Por fim, em terceiro lugar, a falta de domínio de metodologia de pesquisa enseja um desajuste de expectativas. Em trabalhos de conclusão do mestrado profissional (mas principalmente em projetos de pesquisa), nota-se um apego ao formato do manual jurídico como modelo, em detrimento do formato de relatório de pesquisa. Esse apego é bastante visível nos índices provisórios de alguns projetos e anteprojetos. Em linhas gerais, espera-se que um relatório de pesquisa tenha: uma seção introdutória, em que o trabalho é apresentado (com seu problema de pesquisa, sua hipótese e sua estrutura); uma seção metodológica, em que é explicado o procedimento adotado, devendo ser mais ou menos detalhada a depender do tipo de pesquisa que é feita e das técnicas empregadas; uma ou mais seções em que são feitas a apresentação e a discussão dos resultados da pesquisa propriamente dita; e, por fim, uma seção conclusiva, que retoma e sintetiza os pontos principais do trabalho.

Trata-se de estrutura muito distinta da de um manual, que não costuma girar em torno de um único tema, não tem um problema de pesquisa definido e busca percorrer superficialmente várias áreas e assuntos de determinada disciplina. A título de exemplo, cita-se um projeto que tinha como objetivo examinar o impacto de tecnologias disruptivas no ordenamento jurídico. Deixando de lado o problema da falta de um recorte mais específico, chama a atenção o índice provisório proposto, que, à maneira de um manual a respeito da tecnologia, prevê tópicos os mais diversos, tratando de temas como “a sociedade informacional”, “tecnologias disruptivas”, “da Arpanet à Internet”, “singularidade tecnológica”, etc.

Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) dá mais exemplos em trecho que ressalta, ainda que indiretamente, a importância de o pesquisador se perguntar sobre a finalidade - e a real necessidade - de cada uma das seções ou dos capítulos de seu trabalho:

Numa dissertação sobre o duplo grau de jurisdição, o seu autor dedica várias páginas a esmiuçar os chamados “efeitos” do mesmo, a saber: devolutivo, translativo e suspensivo... Para quê? Noutra, sobre o problema da lesão nos contratos, vinte e cinco páginas são gastas com um capítulo que parece diretamente extraído de um livro didático sobre o assunto. O título do capítulo, aliás, é mais do que típico: “A Teoria Geral dos Contratos”. Como não poderia deixar de ser, nele se abordam tópicos como: conceito, evolução e importância dos contratos; elementos e características dos contratos; interpretação dos contratos - e por aí vai. (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 6-7, destaque nosso)

É preciso, portanto, evitar tópicos que sejam desnecessários ao exame daquilo que constitui propriamente o objeto de investigação. O público-alvo de uma pesquisa não é o mesmo do de um manual. Se tópicos gerais e introdutórios são pertinentes em livros voltados a iniciantes, eles são redundantes em textos voltados a quem, em algum grau, já domina o assunto. Lanzillo e Guimarães (2014LANZILLO, Anderson Souza da Silva; GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. FIDES, Natal, v. 5, n. 1, p. 18-21, jan./jun. 2014., p. 20) fazem uma comparação bastante elucidativa com a pesquisa na Medicina:

Pense um pouco nesse exemplo: nas pesquisas sobre vírus na área de Medicina você não vai com certeza encontrar nos artigos primeiro uma definição de vírus e da história desse estudo. Isso não será encontrado em geral pelo fato de que conceitos básicos devem ser aprendidos como algo da formação básica. A discussão de conceitos numa pesquisa, por exemplo, só é relevante em razão do corte epistemológico realizado, principalmente nos campos onde há diversas disputas teóricas. Entretanto, no meio acadêmico brasileiro parece não haver bem essa compreensão, processo que é ainda agravado pelo fato da maioria dos alunos muitas vezes só terem na sua formação contato com os manuais.

Associada a esse apego ao formato do manual, percebe-se também uma inadequação ao contexto linguístico: há um apego a expressões que compõem o jargão jurídico, assim como a um modo de argumentar próprio do advogado, em detrimento da linguagem e da forma de argumentar próprias do pesquisador. A forma de proceder adequada ao pesquisador já foi apresentada na seção antecedente. Cabe complementá-la aqui por meio de dois contraexemplos, ainda bastante comuns no meio jurídico: o pedido de desculpa que antecede uma crítica e o final retórico. Ambos podem ser adequados a um contexto judicial, mas são despropositados e até mesmo contrários ao espírito investigativo que deve guiar a atividade de pesquisa. O primeiro, porque vai contra o dever do pesquisador de se manter imparcial e crítico; o segundo, por favorecer conclusões genéricas e que geralmente não decorrem de suas premissas. Como exemplo disso, cita-se o final de um anteprojeto que tratava da Lei Geral de Proteção de Dados (e especificamente da questão da dispensa de consentimento para coleta de dados tornados manifestamente públicos pelo titular):

Com a inserção de novas tecnologias cada vez mais alimentadas por dados, é necessária uma nova cultura de privacidade e proteção de dados, que exige que toda a sociedade esteja ciente da importância dos dados pessoais e seu impacto na liberdade, privacidade e no livre desenvolvimento da personalidade humana, sem esquecer a preservação do meio ambiente.

Final genérico e retórico: faltou apenas mencionar a felicidade e a justiça. Brincadeiras à parte, passemos ao exemplo das escusas, retirado de um projeto sobre o ensino jurídico e a reforma da grade curricular dos cursos de Direito. Após mencionar o argumento de determinado autor, o anteprojeto traz a seguinte afirmação: “Neste ponto em particular, salvaguardadas todas as vênias, ouso aqui divergir um pouco do pensamento emanado pelo autor [...]”. É notável que, apesar de divergir apenas “um pouco”, o autor ou a autora da frase ainda assim peça “todas as vênias”. O que restará a ser dito nos casos em que “ousamos” discordar totalmente de alguém? A postura é mais adequada à prática judicial do que à acadêmica, em que a discordância respeitosa e a troca de argumentos são um valor.

Por fim, a adequação linguística passa também por uma atenção à linguagem. A linguagem adequada a um trabalho acadêmico é a mais clara, direta e simples possível. Isso não significa que cada autor ou autora não possa ter seu estilo próprio. Esse estilo, porém, não deve prejudicar a compreensão do que se deseja dizer. Vejamos, por exemplo, o seguinte excerto de um anteprojeto sobre ensino jurídico e reforma da grade curricular:

A análise da metodologia do ensino jurídico se reveste de profícua deferência no desiderato de contribuir na consistente formação acadêmica, ao passo que proporciona que seja estabelecida uma identidade cognoscível do surgimento de novas necessidades normativas e das já existentes, analisadas sob um enfoque crítico e interdisciplinar. Na linha deste entendimento, pode-se conceber que a metodologia do ensino jurídico fomenta o aprimoramento e estímulo do saber jurídico mediante profunda reflexão sobre as finalidades e elementos constitutivos do direito e os institutos intrínsecos a esta ciência.

O que significa “se revestir de profícua deferência no desiderato”? O que quer dizer “estabelecer uma identidade cognoscível” nesse contexto? Parece-nos que o que se quer dizer é simplesmente que um estudo da metodologia do ensino pode ser útil para se pensar a formação acadêmica do bacharel em Direito. Se for isso mesmo, por que não o dizer de forma simples e clara?

Além do apego ao formato do manual e da inadequação ao contexto linguístico, também são sintomas da falta de domínio de metodologia a subestimação do trabalho de pesquisa e o mau planejamento do cronograma. Não são raros os cronogramas em que há a previsão de escrita de um capítulo por semana, produzidos na ordem de um índice provisório, concebido, como dito, à maneira de um livro ou manual. Todos esses vícios apontam para uma falta de domínio de metodologia de pesquisa, comum a muitos discentes que, por terem uma orientação mais prático-profissional, tiveram pouco contato (quando tiveram) com o trabalho acadêmico.

Por sua vez, o desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas é perceptível principalmente na insistência em uma interdisciplinaridade simplória e na combinação de autores e teorias conflitantes sem maiores mediações. É bastante comum, por exemplo, o recurso a reconstruções superficiais e redundantes de tópicos relativos ao tema da pesquisa. Um deles, que dá título ao artigo de Luciano Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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), é o “desenvolvimento histórico” do tema: são muitos os trabalhos jurídicos em que se narra como um instituto já estava, de algum modo, presente no “Código de Hamurábi”, como se isso, por si só, conferisse lastro histórico ao trabalho. Do mesmo modo, é comum que muitos trabalhos do mestrado profissional, ao terem como foco algum tema ligado à tecnologia, insistam em mencionar Elon Musk e suas empresas ou sua história, como se isso, apenas pelo fato de se tratar de um trabalho sobre tecnologia, fosse necessário ou sequer pertinente.

A não ser em casos específicos de estudos no campo da história do Direito, não é tarefa da pesquisa jurídica apresentar ou examinar a história do tema. Trata-se de empreitada que será feita com maior competência por historiadores.18 18 Como dito, a referência aqui não é aos trabalhos de história do Direito, mas sim a trabalhos de outras áreas que insistem em passar pelo “desenvolvimento histórico” do tema, mesmo que isso não se relacione diretamente com o problema de pesquisa, como se essa etapa, comum a manuais, fosse necessária em um relatório de pesquisa. Em suma: tenta-se substituir campos (fazer “história”, “sociologia”, “filosofia”), em detrimento de uma interdisciplinaridade que de fato auxilie na tarefa propriamente jurídica pertinente ao mestrado profissional.

Aos juristas, caberia, por exemplo, apresentar, examinar e analisar criticamente institutos jurídicos, argumentos, fontes do Direito, etc. - precisamente aquilo que com frequência é negligenciado em muitos trabalhos, que se apegam ao argumento de autoridade e tratam acriticamente diversas categorias do Direito (como “a doutrina”, “a jurisprudência”, “a civil law”, “a common law”, etc.), como se fossem blocos unitários.

O problema do apego a argumentos de autoridade e da citação acrítica de textos é aquilo que Oliveira (2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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) chamou de “reverencialismo”: o uso do argumento de autoridade, não raro associado a incorporações acríticas de teóricos das ciências humanas - uma prática “ostensivamente anticientífica”. Oliveira traz exemplos muito claros dessa prática, que comumente se manifesta por meio de expressões que se encontram com frequência em pesquisas da área, sobretudo no mestrado profissional:

Ainda dentro desse rol de questões de estilo, um outro traço bastante encontradiço, e a ser a todo custo evitado - por ser ostensivamente anticientífico -, é o chamado argumento de autoridade. Contaminação talvez do estilo adotado no foro, onde é preciso convencer o juiz de que se está com o melhor direito (e, portanto, com a melhor doutrina...), trata-se de um verdadeiro “reverencialismo” expresso em fórmulas do tipo “como preleciona fulano de tal”, “segundo o magistério de sicrano” etc., típico de advogados preocupados antes em convencer com apelos a uma retórica “coimbrã” do que em demonstrar com dados cuja força decorra da própria exposição. Definitivamente, é preciso que os juristas se convençam de que, ao escreverem um trabalho acadêmico, não podem tratar suas hipóteses de trabalho como se estivessem defendendo causas. (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, p. 7)

E, em tom cômico, quase caricatural, completa:

No momento em que escrevo essas linhas lembro-me, não sem certa nostalgia, do meu antigo professor de Introdução à Ciência do Direito que em aula, e isso com o ar mais sério e compenetrado do mundo, referia-se a Clóvis Beviláqua como “sábio e santo, santo e sábio”; e a Tobias Barreto como o “Himalaia da cultura jurídica brasileira” [...]. (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, nt. 6)

Por sua vez, o tratamento acrítico de categorias como “a doutrina”, “a jurisprudência”, “a civil law”, “a common law” constitui o vício do “essencialismo jurídico”, que consiste no estudo da “natureza jurídica” de institutos sem problematizar a ideia de “essência” e, nos piores casos, sem fazer juízos sobre as consequências de um instituto ser classificado em um ou em outro regime jurídico. Esse tipo de vício está arraigado na própria linguagem jurídica, acostumada a falar na “natureza” de seus institutos, como se houvesse uma essência imutável de tal ou qual instituto, esperando que o jurista a descubra, quando, na verdade, o modo como os entendemos é resultado de escolhas políticas e fruto de estudos dogmáticos que procuraram sistematizá-los e conceituá-los.

Assim, por exemplo, um projeto de pesquisa voltado a estudar a organização dos escritórios de advocacia trazia, como um de seus tópicos, a pergunta: “qual é a natureza jurídica da sociedade de advogados? Poder-se-ia falar em uma natureza empresarial?”. A pergunta é interessante e, tal como formulada, não nos costuma causar estranheza. Mas, a rigor, não há uma resposta para ela: não há uma “natureza”, uma “essência” da sociedade de advogados, mas apenas diferentes escolhas legislativas, que consistem em classificar as sociedades de advogados como sociedades simples (como é o caso do Brasil) ou como sociedades empresariais (como é o caso, por exemplo, das alternative business structures admitidas na Inglaterra). O vocabulário da essência pode acabar tendo como efeito não intencional o ofuscamento da questão que realmente interessa nesse exame: quais seriam as consequências (políticas e econômicas, por exemplo) de qualificarmos juridicamente a sociedade advocatícia como empresarial? Deveríamos fazer tal opção? Ela seria viável de uma perspectiva dogmática?

Esse vício também se manifesta em trabalhos que se baseiam na jurisprudência e na doutrina, mas as tratam em bloco, como se fossem entidades unitárias. Marcos Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
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, nt. 5, p. 18) sintetiza e exemplifica bem essa ocorrência, retomando um ponto que é central para este artigo - a má influência que o formato do manual exerce sobre trabalhos acadêmicos, sobretudo no mestrado profissional:

[É] importante chamar a atenção para o que me parece ser o mecanismo mesmo de funcionamento do amálgama de prática e teoria jurídicas no ensino de direito no Brasil. Trata-se, com o perdão da expressão, da produção de uma “ilusão necessária” muito peculiar: a ilusão de que o mundo jurídico se regularia pelo manual de direito e não o contrário. Essa ilusão torna-se real, entretanto, na medida em que, ao formar os operadores do direito, o manual parece ser amplamente bem-sucedido na tarefa de fazê-los se comportar de acordo com o manual, repondo assim a ilusão, tornando-a “necessária” (sendo que a utilização aqui do verbo “parecer” indica se tratar de uma hipótese, pendente de comprovação empírica). Essa hipótese, por sua vez, poderia explicar absurdidades como a de se afirmar a existência de uma tal ou qual “corrente majoritária de interpretação” de determinado instituto legal sem qualquer amparo científico, sem qualquer investigação empírica da jurisprudência ou mesmo, em muitos casos, da própria doutrina. Tratar-se-ia, enfim, de uma ilusão produzida pelo manual, mas nem por isso menos real e efetiva.

Novamente, todos esses vícios apontam para um desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas, comum a muitos discentes que, por terem uma orientação mais prático-profissional, tiveram pouco contato (quando tiveram) com o trabalho acadêmico. A seguir, o Quadro 1 sintetiza os principais vícios identificados e exemplificados neste artigo.

Quadro 1 -
Síntese dos principais problemas nos projetos e trabalhos de conclusão do mestrado profissional

Conclusão

Na introdução, apresentou-se o público-alvo deste artigo: trata-se de reflexão direcionada aos(às) alunos(as) e docentes da pós-graduação stricto sensu profissional em Direito. Ao longo do texto, foram identificados os principais problemas nos projetos e trabalhos de conclusão de curso desses programas, refletiu-se sobre suas possíveis causas e discutiram-se meios de evitá-los.

Apesar de o debate sobre os programas profissionais ser incipiente, há uma série de textos que discutem a pesquisa jurídica no país, com foco nos programas acadêmicos. Por isso, na seção 1, retomou-se essa literatura, tendo sido identificados os problemas comumente apontados por ela. Feito isso, discutiram-se os mecanismos que contribuem para a perpetuação desses velhos vícios. Afirmou-se que, a despeito de mudanças mais abrangentes, é importante não deixar de lado as soluções individuais, que podem partir de orientadores(as) e alunos(as) com vistas a evitar esses problemas, rompendo com o habitus que predomina no campo jurídico e que, muitas vezes, influencia negativamente o desenvolvimento dos trabalhos acadêmicos da área.

Visando a deixar clara a tarefa da pesquisa jurídica no mestrado profissional, foi abordada, na seção 2, a relação do Direito com as demais ciências humanas, além do modo como o trabalho jurídico de pesquisa é dividido entre os programas acadêmicos e os programas profissionais. A pesquisa jurídica no mestrado profissional foi caracterizada, tendo sido ressaltada uma série de condutas importantes para que ela seja bem-sucedida e tenha valor acadêmico: o compromisso com o exame crítico de teses e argumentos, a consideração de argumentos contrários, a discussão de pontos fortes e fracos das soluções propostas e a adoção de uma postura cética, inquisitiva e, na medida do possível, imparcial. Isso implica mudar de posição diante de novas evidências ou de melhores argumentos. Envolve também uma postura ativa diante da doutrina e da jurisprudência, que não devem ser tomadas em bloco - a Doutrina, a Jurisprudência - nem tratadas com reverência: o pesquisador pode (e, em alguns casos, deve) desafiar afirmações doutrinárias e teses jurisprudenciais, desde que o faça de forma fundamentada. Ademais, deve-se evitar fazer afirmações baseadas em meras intuições ou em uma experiência prática definida em termos vagos, além de se evitar a generalização daquilo que é anedótico e a “escolha a dedo” ou enviesada de casos e exemplos. Ao contrário, o trabalho do pesquisador deve se fundamentar em bons argumentos, em demonstrações fáticas e, especialmente no caso do mestrado profissional, na experiência profissional elaborada do(a) aluno(a).

Por fim, na seção 3, foram identificados os problemas mais recorrentes em trabalhos do mestrado profissional em Direito. Mais especificamente, delinearam-se dois grandes problemas, cada um deles se subdividindo em três. Estes, por sua vez, foram definidos e exemplificados. Relembrando: os dois macroproblemas são a falta de domínio de metodologia de pesquisa e o desconhecimento quanto ao papel da pesquisa jurídica no contexto mais amplo das ciências humanas. Como decorrência do primeiro, identificaram-se os seguintes vícios: (i) a ampliação exagerada dos temas, (ii) o mau uso das fontes e (iii) um desajuste de expectativas; do segundo: (iv) o sincretismo teórico, (v) o essencialismo jurídico e (vi) o reverencialismo. Ao final da seção, apresentou-se um quadro-síntese, que permite uma visualização esquemática de cada um deles.

Evitar tais vícios exigirá um esforço individual de alunos(as) e orientadores(as), principalmente para extirpar aqueles que estão mais arraigados em cada um de nós. Mas, como se tentou argumentar ao longo do texto, esse esforço vale a pena: uma pesquisa que os evite tende a ser mais instigante e até mesmo mais convincente. Ao final, ela terá mais condições de atingir aquilo que se espera e aquilo a que se destina a pesquisa em um programa profissional: fazer uma reflexão qualificada sobre a prática, fornecendo insumos para outros pesquisadores e sistematizando conhecimento para uso de outros profissionais.

Espera-se que o artigo, além de incentivar a discussão sobre os programas profissionais, possa ser útil a alunos(as) que estejam matriculados(as) em (ou se interessem por) esse tipo de programa.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem pelos comentários de Catarina Barbieri, José Eduardo Faria, Juliana Palma, Mario Engler Pinto Jr., Marta Machado e Osny da Silva Filho. Emerson Ribeiro Fabiani é especialmente grato aos alunos e às alunas que teve a oportunidade de orientar no Mestrado Profissional da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP).

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  • LIMA LOPES, José Reinaldo de. Regla y compás, o metodología para un trabajo jurídico sensato In: COURTIS, Christian (coord.). Observar la ley: ensayos sobre metodología de la investigación jurídica. Madrid: Trotta, 2006. p. 41-68.
  • MENDONÇA, José Vicente Santos de. O que restou dos manuais de Direito Administrativo? Portal Jota, 17 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-que-restou-dos-manuais-de-direito-administrativo-14072020 Acesso em: 20 abr. 2023.
    » https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/o-que-restou-dos-manuais-de-direito-administrativo-14072020
  • NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 Acesso em: 26 jun. 2023.
    » https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779
  • OLIVEIRA, Luciano. Não fale do código de Hamurábi - A pesquisa sociojurídica na pós-graduação em Direito. 2004. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf Acesso em: 26 jun. 2023.
    » https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4213526/mod_resource/content/1/OLIVEIRA%2C%20Hamurabi.pdf
  • PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018.
  • SILVA, Artur Stamford da; MAIA, Alexandre da; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Pesquisa em Direito e a superação das escolas-de-um-só: uma profecia às avessas? In: CARLINI, Angélica et al (org.). 180 anos do ensino jurídico no Brasil Campinas: Millennium, 2012. p. 343-378.
  • 1
    A informação mais atual pode ser obtida no site da plataforma Sucupira. Para a discussão sobre o doutorado profissional em Direito, videCapes (2019COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR - CAPES. Documento da área da Capes - Direito. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/direito-pdf . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
    , p. 20).
  • 2
    Emerson Fabiani orienta pesquisas no Mestrado Profissional desde 2013, ano de criação do programa na FGV DIREITO SP.
  • 3
    Apesar de ter por base a experiência na FGV, a discussão interessa às demais instituições de ensino, uma vez que os problemas apontados certamente são também identificáveis em diversos outros projetos e trabalhos.
  • 4
    Nesse sentido: Lanzillo e Guimarães (2014LANZILLO, Anderson Souza da Silva; GUIMARÃES, Patrícia Borba Vilar. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. FIDES, Natal, v. 5, n. 1, p. 18-21, jan./jun. 2014., p. 18-21).
  • 5
    Bourdieu aborda a gênese desse conceito no capítulo III de seu livro O poder simbólico (1989, p. 59-74).
  • 6
    A relação com o ensino jurídico é evidente: “[...] a importância dos ganhos que o monopólio do mercado dos serviços jurídicos assegura a cada um dos seus membros depende do grau em que ele pode controlar a produção dos produtores, quer dizer, a formação, e, sobretudo, a consagração pela instituição escolar dos agentes juridicamente autorizados a vender serviços jurídicos [...]” (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 233).
  • 7
    Bourdieu (1989BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 225-226) fala de uma “postura linguística”.
  • 8
    Trata-se de versão ligeiramente modificada do texto “O que é pesquisa em Direito?”, apresentado originalmente em dezembro de 2002 em um workshop organizado pela FGV DIREITO SP e pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) (NOBRE, 2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    , nt. 1, p. 18).
  • 9
    A título de ilustração, as ciências humanas tiveram a seguinte quantidade de programas de pós-graduação com nota 7 (nota máxima) no período avaliativo de 2013-2016: Sociologia (3), Psicologia (3), Linguística e Literatura (6), História (2), Filosofia (1), Economia (4), Ciência Política e Relações Internacionais (2), Artes (1), Antropologia (2), Administração Pública e de Empresas, Ciências Contábeis e Turismo (3). Em razão de disputa judicial sobre o processo avaliativo da Capes, não haviam sido divulgadas, até o fechamento deste artigo, as notas da avaliação quadrienal do período 2017-2020. Em razão de anúncios feitos pelos próprios programas avaliados, que tiveram acesso às suas notas isoladamente, sabe-se que os programas de pós em Direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) obtiveram nota 7.
  • 10
    A não ser que Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    , p. 12) tenha modificado seu texto neste ponto, parece-nos equivocado dizer isso, principalmente diante de passagens como esta: “De saída, a fim de evitar mal-entendidos, gostaria de esclarecer que não proponho um entendimento científico do direito a partir de perspectivas como a da sociologia, da história ou mesmo da filosofia. Não se trata de submeter o direito a nenhuma dessas perspectivas disciplinares em particular, o que lhe destruiria a especificidade”.
  • 11
    Para que o contraste fique claro, pode-se pensar na diferença entre o Tratado da posse, de F. C. Savigny, e um Manual de direito civil, vol. IV - Direitos reais, ou, ainda, na diferença entre a obra Autoria e domínio do fato, de C. Roxin, e um Curso prático de direito penal. Na acepção de Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    ), apenas os livros de Savigny e Roxin poderiam ser corretamente descritos como obras de dogmática, sendo os dois outros apenas manuais doutrinários.
  • 12
    Este é um ponto em que o argumento de Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    ) precisa ser tomado com ressalvas. De que modo se dá a relação da pesquisa jurídica com as demais ciências humanas? Não é evidente o que ele quer dizer quando afirma que ela deve incorporá-las em sua investigação “como momentos constitutivos”. Para fins deste artigo, é mais importante destacar seu caráter residual: a relação da pesquisa jurídica com as demais ciências humanas não é de subordinação, nem simplesmente ancilar, servil, “para cumprir tabela”. O diálogo com disciplinas afins não deve ser feito de maneira superficial, devendo-se evitar uma interdisciplinaridade simplória. Se debates e pressupostos de outras disciplinas forem essenciais para o desenvolvimento do trabalho jurídico acadêmico, eles devem ser cuidadosamente reconstruídos e os argumentos que os embasam devem ser explicitados. É esse o sentido que se sugere atribuir à expressão de Nobre.
  • 13
    Também seria possível delimitar o lugar da pesquisa no mestrado profissional ao se entender o que Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    ) chama de “dogmática” como uma linguagem própria do Direito (que não é jargão, mas domínio conceitual). A pesquisa dogmática seria aquela voltada ao desenvolvimento, ao exame e à sistematização desses conceitos e dessa linguagem própria, tendo por modelo, para Nobre, a produção acadêmica alemã. Nessa classificação, como já ressaltado, o Tratado da posse, de Savigny, por exemplo, seria dogmática; uma edição comentada do Código Penal ou o “Manual da Disciplina Tal”, doutrina. A pesquisa nos programas stricto sensu profissionais seria um meio-termo: ela tem o viés prático da doutrina (mas sem se confundir com manuais), ao mesmo tempo em que compartilha uma preocupação metodológico-acadêmica com a dogmática (mas sem se descolar de uma preocupação com a prática profissional).
  • 14
    Lima Lopes (2006LIMA LOPES, José Reinaldo de. Regla y compás, o metodología para un trabajo jurídico sensato. In: COURTIS, Christian (coord.). Observar la ley: ensayos sobre metodología de la investigación jurídica. Madrid: Trotta, 2006. p. 41-68.), por exemplo, identifica-se com uma corrente filosófica que busca resgatar o caráter prático do Direito. Para ele, ao contrário de Nobre (2005NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em Direito no Brasil. Cadernos DIREITO GV, São Paulo, v. 1, n. 1, 2005. Disponível em: Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779 . Acesso em: 26 jun. 2023.
    https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
    ), a conclusão de um trabalho de pesquisa jurídica, mesmo em programas acadêmicos, deve apresentar um caráter prático-normativo. Não se pretende aqui entrar no debate sobre qual concepção de direito e de dogmática deve orientar o trabalho de pesquisa jurídica como um todo. Limitamo-nos a afirmar que a concepção de Lima Lopes, que é bastante sofisticada, aplica-se bem aos propósitos do mestrado profissional, ao dar destaque para o fim prático da pesquisa jurídica.
  • 15
    Cada um deles é discutido em mais detalhes, respectivamente, nas seções 5, 6 e 7 do texto de Pinto Jr. (2018PINTO JUNIOR, Mario Engler. Pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 27-48, jan./abr. 2018., p. 38-39, 39-41 e 41-43). Em nota (nt. 22, p. 37), Pinto Jr. faz uma observação que pode dar a entender que o rigor metodológico não é tão importante quando se faz pesquisa empírica no mestrado profissional: “Vem crescendo no meio acadêmico a aceitação de desenhos de pesquisa mais flexíveis, sobretudo quando tenham por objetivo avaliar e transformar práticas profissionais. Nesses casos, a exigência de rigor científico dos métodos e técnicas de investigação precisa ser relativizada”. Não se nega que algumas características do alunado e dos próprios programas profissionais dificultam a realização de pesquisas empíricas tal como são feitas por pesquisadores de outras ciências humanas (que geralmente se dedicam com exclusividade à pesquisa, estão em programas de maior duração e com menos carga de disciplinas, além de terem recebido treinamento metodológico especializado). Nesse sentido, não se espera que uma pesquisa empírica no mestrado profissional recorra a métodos altamente sofisticados de estatística e de programação, por exemplo. Mas isso não pode ser interpretado como uma licença para falta de rigor - que deve ser o mesmo para programas acadêmicos e profissionais, ainda que estes recorram a métodos e técnicas mais simples.
  • 16
    Aquilo que, em inglês, se designa por cherry picking - a menção a casos ou dados específicos que parecem confirmar determinada posição, tese ou argumento, ao mesmo tempo em que é ignorado um conjunto significativo de casos ou dados que contradizem essa posição.
  • 17
    O objetivo dos exemplos é ilustrar erros comuns cometidos por alunos(as) de programas de pós-graduação profissionais. Na etapa do anteprojeto (e até mesmo na do projeto e de redação da pesquisa), é comum que os trabalhos apresentem uma série de problemas e passem por revisões. Portanto, não há aqui nenhuma diminuição dos responsáveis pelos trabalhos citados. O bom discente é aquele que, ao longo de sua trajetória no programa, se esforça para corrigir erros e atingir um resultado satisfatório. O melhor índice de sua qualidade, assim, não é o trabalho que entrega na entrada, mas o que entrega no fim do processo. De todo modo, visando a evitar a identificação da autoria, foram feitas paráfrases em alguns casos.
  • 18
    Como dito, a referência aqui não é aos trabalhos de história do Direito, mas sim a trabalhos de outras áreas que insistem em passar pelo “desenvolvimento histórico” do tema, mesmo que isso não se relacione diretamente com o problema de pesquisa, como se essa etapa, comum a manuais, fosse necessária em um relatório de pesquisa.
  • Como citar este artigo:

    FABIANI, Emerson Ribeiro; TORMIN, Mateus Matos. Não fale do Elon Musk! A pesquisa jurídica no mestrado profissional. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2327, 2023. https://doi.org/10.1590/2317-6172202327

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2022
  • Aceito
    03 Fev 2023
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