Open-access O princípio responsabilidade de H. Jonas como contraponto ao avanço (ir)responsável das nanotecnologias

The responsibility principle of H. Jonas as a counterpoint to the nanotechnologies (ir)responsible advance

Resumo:

O objetivo do presente artigo é realizar um diálogo com Hans Jonas, buscando identificar o papel pedagógico do Princípio Responsabilidade e se o mesmo contribui para fundamentar uma nova ética de responsabilidade frente ao avanço (ir)responsável das nanotecnologias. A partir do método fenomenológico-hermenêutico, a hipótese que se desenha tem o contorno do cuidado (referencial teórico de Martin-Heidegger e Hans Jonas) como elemento estruturante necessário para avaliar e projetar as consequências dos avanços das nanotecnologias na perspectiva intergeracional. As concepções teóricas que deram apoio ao estudo permitem indicar que Jonas, ao resgatar filosoficamente o tema da promessa utópica e perigosa das novas tecnologias, avança em relação à ética tradicional ao apontar pela necessidade de uma responsabilidade moral coletiva que também se estende para as futuras gerações.

Palavras-chave:  Nanotecnologia; Hans Jonas; Princípio Responsabilidade

Abstract:

The purpose of this article is to conduct a dialogue with Hans Jonas, seeking to identify the Responsibility Principle pedagogical role and whether it contributes to support a new ethic of responsibility against the nanotechnologies (ir)responsible advance. Based on the phenomenological-hermeneutic method, the hypothesis is drawn from the contour of care (theoretical reference of Martin-Heidegger and Hans Jonas) as a structuring element necessary to evaluate and project the consequences of the advances of nanotechnologies in the intergenerational perspective. The theoretical conceptions that supported the study indicate that Jonas, by philosophically rescuing the theme of the utopian and dangerous promise of new technologies, advances in relation to the traditional ethics by pointing out the need for a collective moral responsibility that also extends to future generations.

Keywords:  Nanotechnology; Hans Jonas; Responsibility Principle

Introdução1

A manipulação em nanoescala para produção de novos produtos, materiais e estruturas é uma das mais impactantes descobertas da tecnociência. Pela manipulação em nanoescala já são produzidos e lançados no mercado vários produtos e processos de indústrias e áreas, como a medicina, biomedicina, farmácia, alimentos, química, cosmética, vestuário, energia, indústria bélica, comunicação e informática. As potencialidades são imensas, tanto para o bem como para o mal, podendo gerar riscos e perigos invisíveis, irreversíveis e transtemporais. No processo de incorporação de produtos em nanoescala podem ocorrer alterações nas características físico-químicas, contaminar os ecossistemas, o ar, o solo e a água, bem como penetrar no organismo humano rompendo as barreiras celulares. A impossibilidade de calcular seus riscos resulta em consequências morais significativas, agravado pelo fato de o ser humano e o meio ambiente estarem servindo de cobaias para testarem produtos e processos de base nanotecnológica. Por isso, há que se falar de uma nova ética para este novo mundo que se redesenha em nano escala.

A intenção não é criticar os avanços da humanidade com a manipulação de materiais em nanoescala, porém, refletir sobre a necessária cautela, prudência, limites e gestão de riscos para não inviabilizar a existência das futuras gerações. Frente à incerteza científica que paira sobre as nanotecnologias, as decisões devem estar ancoradas na responsabilidade inter/intrageracional. E é neste ponto que se destaca o objetivo geral que é: indicar o princípio responsabilidade de Hans Jonas como princípio orientador para refletir nos ambientes de pesquisa e desenvolvimento sobre a importância de criar uma cultura de gestão de riscos com monitoramento constante dos processos e produtos nanotecnológicos.

Já os objetivos específicos deste artigo podem ser delineados da seguinte forma: inicialmente, mostrar a aproximação entre o pensamento de Heidegger e de Jonas quando ambos debateram o medo de que a pesquisa e a inovação tecnológica poderiam ser usadas para o bem ou para o mal. O perturbador nos dois filósofos é o temor demonstrado após a Segunda Grande Guerra Mundial com o avanço irresponsável das novas tecnologias que, para ambos, deve ser segurado para não comprometer a possibilidade de vida no tempo e no espaço. Na sequência, buscar-se-á argumentar que o princípio responsabilidade de Jonas pode ser considerado o fundamento filosófico do princípio da precaução. Por fim, refletir-se-á sobre os desafios do avanço (ir)responsável das nanotecnologias realizando um diálogo com Jonas para indicar a necessidade de uma ética de responsabilidade no ambiente empresarial e no ambiente acadêmico.

Busca-se responder ao seguinte problema: sob quais condições a comunicação entre algumas ideias de Heidegger e Hans Jonas poderão servir para a estruturação de um referencial ético para avaliar os avanços e os riscos que poderão ser gerados a partir do acesso humano à escala nanométrica?

A hipótese que se desenha neste momento tem os seguintes contornos: o “cuidado” é um elemento estruturante necessário de qualquer estudo que pretenda avaliar com seriedade e com a projeção consequencial do presente para o futuro no avanço das pesquisas, produção e comercialização de produtos à base das nanotecnologias. O “cuidado” significa atenção para os desdobramentos da técnica (Heidegger), que não poderão escapar do controle humano.

O desenvolvimento do conteúdo do artigo está estruturado no método fenomenológico-hermenêutico, a partir das contribuições de Martin Heidegger. Segundo ele, uma das primeiras tarefas da fenomenologia é a apreensão das vivências; a “[...] apreensão da consciência de algo. [...] A fenomenologia é, portanto, um como da investigação, aquele que atualiza os objetos na intuição e somente fala deles na medida em que estão presentes em tal intuição” (1999, p. 94 e 96). Portanto, o fenômeno nanotecnológico está se desvelando na sociedade contemporânea e exigindo um “cuidado” por parte do ente homem e mulher. Por isso, a matriz teórica deste artigo está estruturada em Heidegger e Hans Jonas, pois ambos alertam para a necessidade da cautela nos avanços tecnológicos e a necessária consideração dos efeitos – positivos e/ou negativos – para as atuais e futuras gerações, bem como as consequências no movimento humano próprio de cada uma das gerações. A partir desta matriz teórica, se fará a uso da pesquisa bibliográfica e análise de dados disponíveis sobre os avanços da utilização da nano escala, recolhidos de publicações existentes sobre a matéria.

1 O cuidado com o ser em Heidegger e sua influência em Hans Jonas para uma proposta ética para a civilização tecnológica

A diretriz fundamental no pensamento de Heidegger é a compreensão do ser para além da metafísica objetivante e sua proposta de (re)pensar a questão fundamental do modo de ser-no-mundo e do existir. Desde Descartes e, principalmente, a partir do idealismo alemão, “a constituição do ser da pessoa, isto é, do sujeito, se determina a partir da consciência de si”, mas para Heidegger (2000, p.273), não basta compreender o conceito de consciência de si no sentido formal da expressão, razão pela qual ele se propõe a realizar uma compreensão ontológica preparatória para elucidar o sentido do ser e o horizonte da compreensão do ser. Esta é a revolução no pensamento de Heidegger: por em relevo a constituição fundamental do Dasein (ser-aí, ou seja, o homem) como ser-no-mundo ao situar o cuidado (Sorge) como correspondente ontológico da preocupação com o meio envolvente.

Esse mundo do qual Heidegger (2000, p. 208) fala não é a natureza ou o que em linguagem comum é designado como universo (animais, plantas e homens), como também não é a soma de todos os entes. Isso para Heidegger é o ente intramundano que enquanto existente já está em um mundo. O ser-no-mundo pertence à natureza do Dasein (ser-aí), e na medida em que o Dasein existe, “com seu ser, um mundo já está projetado ante ele (ist ihm vorfeworfen”, e que precisa ser compreendido na sua historicidade e na sua própria realidade. Por isso, para o filósofo, ter consciência histórica é a possibilidade de ver de modo próprio o mundo que se desvela na compreensão prévia. E existir, para o filósofo alemão, significa ser-em-um-mundo e projetar diante de si um mundo (HEIDEGGER, 2000, p. 214).

O homem nunca é um “sujeito isolado, sem mundo, mas é um ente que em sua verdadeira essência é constituído por seu mundo” (FREDE, 1998, p. 81-82). E é aí que a angústia em Heidegger (2002, p.249) tem um espaço privilegiado, pois “aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal”. A angústia é a abertura privilegiada do Dasein, pois permite o questionamento sobre a possibilidade de ser-no-mundo e do próprio mundo, revelando o ser-livre para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo.

O ser se distingue com o cuidar e o atender como modo fundamental de existir na temporalidade da cotidianidade. Ao cuidar do mundo, o ser cuida sempre de alguma maneira de si mesmo, de modo que o mundo aparece para ele e nele, como o cuidar. Assim, ser-no-mundo como cuidar-se é a inquietude que caracteriza o viver enquanto se está situado em um mundo. Cuidar, para Heidegger (1999, p. 130), é ser-em-um-mundo e não deve ser interpretado como ato da consciência e sim com o que ele denomina de “cuidado (Sorge)”. O viver está na cotidianidade “enquanto mundo que aparece, enquanto mundo que cuidamos, mundo afetado pelo cuidado”.

Cuidado em Heidegger também significa “velar por”, inquietar-se e preocupar-se em assumir o destino como um interesse existencial. O cuidado é um conceito em constante construção em um desocultar contínuo, pois quanto mais o ser humano se apropria do conhecimento sobre sua existência, maior é sua atitude em relação ao cuidado (RAMÍREZ-PÉREZ; CÁRDENAS-JIMÉNEZ; RODRÍGUEZ-JIMÉNEZ, 2015).

Quando Heidegger coloca o fenômeno do cuidado, ele o desvela como um fenômeno fundamental do existir. O filósofo explica que o fenômeno do cuidado não pode ser pensado como uma composição de elementos teóricos, práticos e emocionais, mas sim, deve-se partir dele para poder explicar como “o existir do cuidado mesmo, tomado em sua originalidade, antes de qualquer interpretação, o cuidado do mero ver e do mero perguntar se fundam no ser da existência humana” (HEIDEGGER, 1999, p. 132).

O que Heidegger quer mostrar aqui é a possibilidade de interpretar ontologicamente o significado de ser-em e dentro-de-um-mundo a partir do cuidado. A força com que Heidegger insere o cuidado como aprendizagem pelo qual o ser humano deve passar a pensar o futuro está alicerçada na sua questão fundamentadora de que é pelo cuidado que o homem tem possibilidade de novamente reconduzir seu pensar para sua essência (HEIDEGGER, 1983, p. 158).

Heidegger (1969, p. 29-30) tinha uma percepção nítida de que para instigar o pensar e o experienciar era importante utilizar exemplos da natureza e relacioná-los com os fenômenos de um mundo carregado de sentido para o homem, valendo-se, para isso, de reflexões sobre o brilho dos raios de sol, a tormenta, a chuva, etc. O ato de meditar sobre um universo cheio de coisas a serem percebidas leva a pensar o ser em seu sentido, e este pensar tem a possibilidade de tocar o íntimo do ser, sua essência. É do cotidiano e não dos conceitos que Heidegger propõe a experiência do pensar. O admirar da simplicidade da vida abre uma clareira no pensar, pois a natureza é pródiga em exemplos que tornam a tarefa do pensamento acessível a todos os que querem empreender uma ética conservacionista e de responsabilidade com o meio ambiente. E este ato do pensamento é um permitir ir além-de-si-mesmo.

Outra questão posta por Heidegger (2000, p. 320) é a reflexão sobre a temporalidade como possibilidade de constituição ontológica do Dasein em que o Dasein é chamado a responder sobre sua ação na natureza. Do mesmo modo, o Dasein não pode se desprender do seu passado como se desprende de uma roupa, pois tudo o que o constitui é uma determinação essencial da existência do ser. O futuro, no sentido originário, pertence ao Dasein em sentido existenciário. A unidade originária do futuro, do passado e do presente (Gevenwart) é o que Heidegger (2000, p. 321) caracteriza como temporalidade em que ela “se temporaliza na unidade respectiva do futuro, do haver sido e do presente”. A essência do futuro “se encuentra en el llegar hasta sí mismo, lo esencial del haver sido en el volver a, lo esencial del presente, en el confrontarse con, es decir, el estar-con”. E é com este sentido que Heidegger convida o ser a preparar um novo começo.

Questiona-se: porque a forma como Heidegger examina a temporalidade como condição de possibilidade da compreensão do ser em que o ser é compreendido e concebido a partir do tempo é relevante para refletir sobre o desenvolvimento de novas tecnologias? A resposta está na maneira como Heidegger (2000, p. 351) articula o pensamento ao refletir que dar uma função útil a uma nova descoberta tecnológica é uma constituição temporal. Com a análise da utilidade funcional chega-se ao conceito e ao fenômeno mundo. Pois o mundo em Heidegger é o “momento estructural del ser-en-el-mundo y el ser-en-el-mundo constituye la constititición del ser del Dasein”. Com a análise do mundo, Heidegger chega à compreensão do ser-no-mundo e sua possibilidade através do tempo.

Outra resposta em Heidegger está no questionamento que o filósofo faz em relação à técnica moderna. Desenvolve uma crítica filosófica para mostrar que a técnica está vinculada com o destino do ser que se dá na temporalidade. Dito de outro modo, Heidegger problematiza a técnica e com suas reflexões mostra a fecundidade do questionar, pois questionar a técnica é construir um caminho pensante e com esse ideário é possível “preparar uma livre relação para com ela”. E esta relação que Heidegger (2007, p. 375) busca trilhar está em mostrar a liberdade implícita no abrir da existência do “Dasein” à essência da técnica. Para o filósofo, “se nos abrirmos propriamente à essência da técnica, encontrar-nos-emos inesperadamente estabelecidos numa exigência libertadora” (HEIDEGGER, 2007, p. 389).

A paixão de Heidegger na reflexão de Safranski (2000, p. 498) era a de “indagar, não responder”. Para Heidegger, indagar correspondia a “devoção do pensamento” pela possibilidade de abrir novos horizontes, construir pontes, atravessar abismos e preservar-se nessa transição. Assim, para Heidegger, o Dasein é “um ser que olha a si mesmo do outro lado e se envia para o outro lado – de uma extremidade da ponte a outra. E a questão aí é: que a ponte só cresce sob nossos pés à medida que andamos” (SAFRANSKI, 2000, p. 498).

Não questionar a técnica é deixá-la na escuridão e destituída de fundamento. Questionar a técnica e abrir-se à essência da técnica é estabelecer uma exigência libertadora com as possibilidades da reflexão, é “um modo de desabrigar”. A explicação está em que “o destino leva toda vez o homem à um caminho de desabrigar, este permanece a caminho sempre à margem da possibilidade de apenas perseguir e perpetuar o que se desabriga no que é requerido e a partir dali tomar todas as medidas” (HEIDEGGER, 2007, p. 389). Portanto, refletir sobre a essência da tecnologia possibilita pensar na existência do Dasein enquanto ser-no-mundo e ser-com-mundo em sua temporalidade. A técnica moderna para o filósofo também é uma expressão do esquecimento do Ser. Aqui entra a “ética do cuidado” estruturada por Hans Jonas, como um desdobramento prático da temporalidade própria da vivência humana.

O Heidegger tardio não é contra as novas tecnologias e reconhece que as mesmas facilitam a vida humana ao permitirem ultrapassar as barreiras do próprio tempo e espaço. Sua inquietação principal está nos limites da ciência moderna e no endeusamento da técnica que se apodera da natureza e da essência do Ser para subjuga-lo como objeto de seus projetos.

Ele deixa claro, todavia, que a “técnica não é o que há de perigoso” e que não existe “uma técnica demoníaca, pelo contrário, existe o mistério da sua essência” (HEIDEGGER, 2007, p. 390). Não é a tecnologia como tal que é verdadeiramente misteriosa em Heidegger, mas o seu domínio acelerado no mundo, “juntamente com a nossa inabilidade para confrontar esta transformação reflexivamente”. Portanto, o que está realmente em questão é a reflexão que o filósofo realiza sobre a dificuldade “envolvida tanto na estimativa como na articulação daquilo que está em causa (isto, é, especificamente aquilo que está em perigo) com vista a dissimulação da sua dominância” (FOLTZ, 2000, p. 109-110).

Para o filósofo, a sociedade contemporânea está “presa no desocultamento técnico do Ser, o que, apesar de possibilitar um certo acesso ao Ser, admitido por ele mesmo, deixa sempre algo no escuro” (PEREIRA, 2013, p. 85). Daí que descobrir este mistério é tarefa do pensamento que medita.

Por outro lado, em Heidegger também está claro que a “exploração tecnológica da humanidade e da natureza estão inseparavelmente ligadas” (FOLTZ, 2000, p.127). Este é o tema central do Heidegger tardio ao refletir que o crescimento é “algo mais que a mera expansão, e as pessoas não podem prosperar no meio de uma terra devastada” (FOLTZ, 2000, p. 109).

Em 1953, quando Heidegger realiza a conferência sobre “A Questão da Técnica”, não caminhava isolado neste terreno. Safranski (2000, p. 464) reflete que conterrâneos dele, como Friedrich Georg Jünger e Günther Anders, já denunciavam as consequências do avanço tecnológico onde nada é sagrado ou intocável. Eles alertavam que o preço pela perfeição técnica será alto e não atingirá apenas o ser humano, mas a natureza no seu todo. O que Heidegger traz de diferente é dar seguimento a sua reflexão sobre o ser ao dizer que “a ameaça ao ser humano não vem em primeiro lugar das máquinas e aparelhos possivelmente mortais da técnica. A verdadeira ameaça já atacou o ser humano na sua essência”. E que ameaça é essa que Heidegger fala? É a ameaça “de que pode ser negado ao ser humano ingressar em uma desocultação (Entberger) original e assim experimentar a presença de uma verdade mais inicial” (SAFRANSKI, 2000, p. 465).

Ou seja, Heidegger parte do pressuposto de que é necessário meditar sobre a técnica. Sua defesa está em mostrar que “o pensamento que medita não está preocupado com a descoberta de novas tecnologias, pois isso é tarefa do pensamento que calcula, mas a sua importância revela-se no fato de que ele é a própria essência dessa técnica que vigora em nosso mundo” (RAFAEL, 2007, p. 4).

Em Heidegger (2007, p. 380), a técnica não é um meio, mas “é um modo de desabrigar” e se “essencializa no âmbito onde acontece o desabrigar e o desocultamento”. Para o filósofo, somente quando se dá o desocultamento e “quando deixarmos repousar o olhar sobre este traço fundamental, mostrar-se-á a nós a novidade (Neuartige) da técnica moderna”. Para Heidegger (2007, p. 381) o homem da “era da técnica é desafiado de um modo especialmente claro para dentro do desabrigar”. Em razão disso, Safranski (2000, p. 465) vai dizer que Heidegger não se contentou apenas com um pensamento meditativo, o que ele projeta “é uma mudança de postura que se realiza no pensar”.

Ora, não meditar sobre a tecnologia é deixar livre o pensamento que apenas calcula dominar o mundo, ou seja, é deixar que a tecnologia aprisione o ser humano e o transforme em mero servo. Deve-se saber dizer sim e não para a técnica e para isso é fundamental serenidade e estar aberto ao mistério que está oculto nas novas tecnologias. E a abertura ao mistério que envolve a técnica só é possível para os que desenvolvem o pensamento que medita (RAFAEL, 2007, p. 8). Só se afasta o perigo que pode estar oculto na tecnologia meditando sobre o perigo. O questionar pensante não se desvia do Dasein e, por isso, revela que o ser é livre para assumir suas escolhas.

Neste sentido – e isso fica explicito em Heidegger - o ser humano deve “olhar ainda mais claramente para dentro do perigo” que advém da técnica. Para ele, a “essência da técnica é em alto grau ambígua”, e que é necessário refletir sofre o fato de que “tudo o que salva necessita de uma essência superior à do perigo, embora ao mesmo tempo a ela aparentada” (HEIDEGGER, 2007, p.394-395). O filósofo alemão se diz testemunha da “crise de que ainda não experimentamos a essencialização da técnica diante da pura técnica, que não protegemos mais a essencialização da arte diante da pura estética”. Por outro lado, argumenta que “quanto mais de modo questionador refletirmos sobre a essência da técnica, tanto mais cheia de mistério será a essência da arte” e, “quanto mais nos aproximarmos do perigo, de modo mais claro começarão a brilhar os caminhos para o que salva, mais questionadores seremos. Pois o questionar é a devoção do pensamento” (HEIDEGGER, 2007, p. 395-396). Em suas meditações, ele reservou ao pensamento a tarefa de questionar e de indagar sobre a marcha da civilização tecnológica.

Hans Jonas foi discípulo de Heidegger e muito da sua inspiração filosófica para elaborar a proposta de uma nova ética para a civilização tecnológica vem da reflexividade de seu mestre sobre a pergunta pelo sentido do ser e de sua proposta de resgatar a centralidade do Dasein como ser-no-mundo. Percebe-se na leitura da obra “Princípio Responsabilidade” que Hans Jonas levou a sério a convocação de Heidegger para a difícil tarefa de pensar além de si mesmo e de deixar a angústia florescer e nessa aprendizagem o pensamento preparar a sua própria transformação. Portanto, Heidegger deixou para Hans Jonas um trabalho já iniciado ao invocar o sentido do cuidado frente às novas tecnologias como interrogação fundamental para manter a vida humana no mundo.

É no questionar a civilização tecnológica que Hans Jonas (2006, p. 21) avança e abre um caminho para pensar uma nova ética que contemple a dimensão futura. Sua tese é que “a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça” e que a ética tradicional não instruiu o homem sobre “as normas do ‘bem’ e do ‘mal’ às quais se devem submeter às modalidades inteiramente novas do poder e de suas criações possíveis”. A práxis coletiva alicerçada na alta tecnologia é “uma terra de ninguém”. Percebe-se a profunda influência do pensamento de Heidegger sobre a questão da técnica no mundo contemporâneo quando Jonas (2006, p. 22) argumenta que “a aventura da tecnologia impõe, com seus riscos extremos, o risco da reflexão extrema” retomando do ponto de vista ontológico a questão sobre o ser e sua responsabilidade sobre as consequências das decisões para as gerações futuras.

Ao diagnosticar que nenhuma ética anterior se viu obrigada a assumir as consequências do poder tecnológico, Jonas (2006, p. 41) avança em relação a Heidegger ao defender a tese de um direito moral próprio da natureza ao questionar a “possibilidade” de existência de um mundo para as gerações futuras. Para levar adiante seu empreendimento, Jonas denuncia que os avanços da ciência e o impulso da economia em maximizar a produção geram riscos e perigos inimagináveis que avançam no tempo e no espaço. Onde está a originalidade do seu pensamento? A originalidade de seu pensamento está em indicar que o ser humano, ao intervir com a técnica na natureza e na saúde humana, responde não apenas pelas consequências imediatas e limitadas ao tempo presente, mas ao contrário, no horizonte temporal ampliado para que a vida humana tenha continuidade no futuro. A responsabilidade assume uma característica moral no horizonte temporal e não apenas em relação ao ser humano, mas também em relação aos seres não-humanos e com a bioesfera no seu todo e em suas partes.

É esse dever recém-surgido que Jonas (2006, p. 59) expressa no conceito responsabilidade e que pode contribuir mais do que todos para responder “questões que nunca foram postas antes no âmbito da escolha prática, e de que nenhum princípio ético passado, que tomava as constantes humanas como dadas, está à altura de respondê-las”. Ainda mais importante, contudo, é refletir sobre a denúncia de Jonas de que a natureza foi violentada pelo ser humano pela sua engenhosa e ilimitada sede de avanço tecnológico. A extensividade ética proposta está na emergência de internalizar que o mais impactante é que a violação do meio ambiente e a marcha civilizatória da humanidade caminham de mãos dadas. Tal como se argumentou antes, Heidegger também ponderava por cuidado, cautela e prudência diante do avanço das novas tecnologias e a busca desenfreada por resultados imediatos que encobriam a amplitude dos possíveis riscos.

Tal conclusão está amparada em outra denúncia de Jonas (2006, p. 48) de que a geração presente “não tem o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco”, porque “ao contrário, temos um dever diante daquele que ainda não é nada e que não precisa existir como tal e que, seja como for, na condição de não-existente, não reivindica existência”.

Jonas (2006, p. 39), para construir o princípio da responsabilidade, parte da denúncia de que a intervenção técnica cumulativa do ser humano provocou “uma vulnerabilidade da natureza jamais pressentida antes que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos” e esse fato certamente amplia a sua responsabilidade, ou seja, o ser humano deve responder pelas intervenções no planeta, pois é sobre a natureza que o ser humano se arroga o poder de intervir.

A escolha de Jonas como um dos autores principais que pretende dar sustentabilidade teórica ao presente estudo foi determinada pela dimensão filosófica de que o autor imprime aos princípios da equidade intergeracional, precaução e responsabilidade.

2 O princípio responsabilidade como fundamento ético filosófico para o princípio da precaução

Para além da crítica ao progresso sem limites da civilização tecnológica, Dias (2013, p.93) observa que Jonas avança ao contribuir com a indicação da necessária ressignificação da noção de responsabilidade. A ética tradicional, ao se fundamentar no “aqui e no agora” do agir humano com ponderações apenas sobre os reflexos imediatos da ação no presente, não consegue dar conta dos riscos e perigos das novas tecnologias e, por isso, precisa de novos contornos que também contemplem o dever com o “outro que ainda não é (futuras gerações) tanto da humanidade como da natureza extra-humana, por extensão”. E como Jonas responde a isso? Com o Princípio Responsabilidade que se traduz na “possibilidade de metamorfose da responsabilidade como responsividade da individualidade e coletividade humanas ante a Natureza e suas futuras gerações” (DIAS, 2013, p. 93).

Considerando que mesmo ainda não existindo, as gerações futuras têm o direito de reivindicar a existência do ser e a autopreservação dos ecossistemas, uma vez que a aposta no princípio responsabilidade tem inspirado as reflexões de Jonas para explorar o território da tecnologia e suas perturbações para, assim, encontrar um caminho e chegar a uma ética prática concreta. Para dar conta dessa nova responsabilidade, Jonas (2006) inicia argumentando que a noção clássica de responsabilidade atribuída ex post facto é insuficiente para dar conta da aventura humana que pode impactar nas gerações futuras humanas, extra-humanas e na natureza como um todo.

Visto deste ângulo, não deve surpreender que o primeiro imperativo do qual Jonas (2006, p. 177) fala é a existência da humanidade, o que significa dizer que a existência do Ser “é uma prioridade, pouco importando que ele a mereça em virtude do seu passado ou de sua provável continuidade”. E qual a razão para este ser o primeiro imperativo? Jonas responde que “preservar essa possibilidade” é uma “responsabilidade cósmica” para com a continuidade da existência humana no planeta.

Aqui não se pode perder de vista que viver em um ambiente ecologicamente equilibrado é um imperativo que segue o dever de existir. É nesse ponto que ele adentra novamente na zona de penumbra do progresso tecnológico em que é difícil “traçar claramente as fronteiras do que é lícito fazer, ou seja, sobre o qual se assume responsabilidade”. Nesse sentido, assume relevância outro imperativo levantado por Jonas (2006, p. 229), de que o homem público, ao permitir apostas em novas tecnologias, deveria incluir no âmbito de suas providências uma política previdente para com o futuro da humanidade que inclui, necessariamente, “o futuro da natureza como sua condição sine qua non”. Neste novo dever do homem público e da sociedade, o conceito de responsabilidade assume uma visão mais alargada para dialogar com os novos riscos civilizatórios que podem impactar negativamente a vida das gerações presentes e futuras e a bioesfera inteira do planeta. Em outras palavras, para lidar com as novas incertezas criadas pela tecnociência, o filósofo exorta assumir a prudência, a precaução e a cautela e a redefinir os limites do desenvolvimento com sustentabilidade.

De fato, ao avançar em relação a Heidegger, Jonas (2006, p. 307) abre caminho para um progresso com precaução enquanto não existirem projeções seguras sobre a irreversibilidade de muitos processos tecnológicos em curso. Na concepção jonasiana, a prudência assume um papel fundamental no imperativo responsabilidade, sobretudo por exigir coragem para decidir com cautela quando os conhecimentos científicos e técnicos disponíveis não conseguem dar respostas seguras em relação a possibilidade ou não de riscos graves e irreversíveis. Para ele, o não saber já é motivo suficiente para uma moderação responsável.

O fato de que a necessária precaução frente à incerteza científica e os limites do avanço das novas tecnologias sejam chamados para o centro do princípio responsabilidade são indicativos de que Jonas inaugura um novo capítulo no final dos anos setenta do século XX. Embora Jonas expressamente não conceitue o princípio da precaução, percebe-se na leitura de suas principais obras que a semente foi posta, ou seja, ao desenvolver questionamentos sobre o quanto o ser humano está autorizado a arriscar a sua vida, a perenidade das gerações futuras e dos ecossistemas em grandes apostas técnicas, ele também deve responder sobre quais riscos podem ser assumidos. Frente à ambivalência da técnica, há que se ter cautela para que a conta das próximas gerações não seja alta demais.

Em 1974, em um período que a humanidade começava a debater a degradação ambiental em nível global, surgiu no direito ambiental alemão o princípio da precaução (Vorsorgeprinzip) na legislação sobre proteção e qualidade do ar, com vista à adoção de medidas contra a contaminação ambiental. A internalização se deu no informe da referida lei no ano de 1985, em que são adotadas expressões como: “Investigação e vigilância para detectar antecipadamente os riscos”; “Ações para reduzir os riscos antes que se tenham provas evidentes de danos, se os impactos vierem a ser graves e irreversíveis” e adoção do princípio da proporcionalidade, indicando que “os custos das ações para prevenir riscos não devem ser desproporcionais aos possíveis benefícios” (UNIÃO EUROPEIA, 2002, p. 9).

Já a obra de Jonas “O Princípio Responsabilidade” (Das Prinzip Erantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation) é publicada no ano de 1979 na Alemanha. Embora Jonas não referencie a legislação alemã nesta obra, percebe-se que seu itinerário filosófico de dirigir suas reflexões para as consequências da ação e decisão humana no longo prazo não estavam absolutamente descontextualizadas da realidade que o cercava. Portanto, há de se reconhecer que o princípio responsabilidade assume papel importantíssimo na gestão dos riscos das novas tecnologias como subsídio teórico para a prática do princípio da precaução.

Em 1992, com a realização da Conferência Nacional das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Declaração Rio/92), o princípio da precaução é efetivamente assumido pelo Princípio 15 ao recomendar que frente à “ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”. Além da Declaração Rio/92, outros importantes documentos oficiais internacionais fazem referência ao princípio da precaução.

A intenção aqui não é descrever o histórico do princípio da precaução, mas ter presente como em Cózar Escalante (2005), os elementos que compõem o referido princípio, quais sejam: existência de uma ameaça de dano (ou um perigo ou um risco); ameaça como resultado de uma situação de incerteza científica e obrigação de uma ação para prevenir e proteger o bem em questão (saúde, meio ambiente, etc.) como um agir preventivo/cautelar. Estes também são os pontos cruciais de uma ética para a técnica e que a humanidade não pode perder de vista.

Diversos podem ser os exemplos em que cabe a escolha entre extremos e suas consequências, entre fatores de risco e sobrevivência e bem-estar da humanidade. Neste ponto, o princípio responsabilidade pode ser um elemento orientador para a adoção do princípio precaução que, diante da incerteza científica, exige decisões responsivas e adoção de processos que possam indicar alternativas menos perigosas no longo prazo.

A responsabilidade é correlata do poder e do saber e a relação entre ambos não é simples, principalmente, diante do fato de que o “o homem se tornou perigoso não só para si, mas para toda a bioesfera” (JONAS, 2006, p. 229). É neste contexto que o imperativo responsabilidade apresenta uma aproximação com o princípio da precaução, que é, sem dúvida, ter colocado a necessidade de buscar alternativa menos perigosas para saciar a sede incomensurável da técnica pela técnica. E aqui, Jonas (2013, p. 74-75) fala do “valor da máxima informação sobre as consequências tardias de nosso agir coletivo”. E o próprio Jonas questiona: o que há de novo nisso? O que mudou de forma radical é que já não é mais possível deixar na mão do futuro a gestão dos riscos das ações e decisões do presente. Não se trata apenas de criticar as novas tecnologias. Trata-se, antes de tudo, de buscar o conhecimento prévio e tentar alcançar o poder que escapou das mãos, “e submeter seus objetivos próximos à crítica das repercussões a longo prazo”.

O princípio responsabilidade está posto no princípio da precaução, aproxima-se do vigiar, cuidar e proteger o homem de si mesmo de extrapolar o futuro. Ao esboçar uma “heurística do temor”, Jonas (2013, p. 77) propõe uma regra fundamental para o tratamento da incerteza: “in dúbio pro malo”, ou seja, diante da incerteza científica deve-se dar “ouvidos ao pior prognóstico e não ao melhor”. Sua defesa está em que “as apostas se tornaram demasiado elevadas para arriscar” a existência humana. Face ao exposto, não é desarrazoado afirmar que sua proposta é a mesma do princípio da precaução: in dúbio pro ambiente, quando há incerteza sobre a existência ou não de um potencial perigo ou risco, deve-se construir uma relação responsável do homem atual com a tecnociência e com a natureza. Ambos, princípio responsabilidade e princípio da precação, não são apenas dotados de critérios éticos, mas também políticos e jurídicos, contemplando ainda uma gestão responsável de longo prazo e comunicação de risco.

Quais são as razões para inferir que a proposta filosófica de Jonas pode ser considerada uma filosofia moral da precaução? Para responder a esta questão, buscou-se apoio em estudiosos de Jonas como Lepage (2007), que argumenta que as bases filosóficas e éticas do “princípio da precaução” estão associadas à tese de Jonas sobre o “princípio responsabilidade”. Sua constatação parte da observação da reflexão jonasiana e das reflexões por ele realizadas em que o filósofo aponta que as novas tecnologias causam novos e desafiadores riscos capazes de impactarem na sobrevivência dos seres humanos, bem como da sua posição radical de uma responsabilidade moral coletiva frente às gerações futuras. Para Lapege, Jonas desenvolveu os fundamentos éticos e filosóficos do que mais tarde se designaria princípio da precaução.

Torre (2003, p. 26), ao reconhecer que Jonas é o pensador mais radical e profundo a tratar da crise ecológica que demanda precaução, sustenta que o princípio responsabilidade cunhado por ele pode ser considerado o fundamento de uma filosofia moral da precaução, porque a crise ecológica também é uma crise moral e, por isso, necessita de uma profunda reflexão no campo da ética. A alternativa que pode responder aos riscos e perigos é a fundamentação de uma nova ética da responsabilidade, que Torre (2003, p. 33) reconhece como a estrutura do princípio da precaução posta por Jonas em sua versão mais radical, que pode ser lida quando o filósofo reflete que a incerteza norteia as decisões ou quando alerta pela necessidade cuidadosa de deliberações frente às consequências não intencionais das ações presentes no longo prazo. Ser mais reflexivo sobre os efeitos das novas tecnologias e processos é apostar, por um lado, em uma combinação entre ciência e imaginação em relação ao ideal de que o ser humano continue existindo no futuro e, por outro lado, é ativar um temor desinteressado capaz de gerar um sentimento de medo e culpabilidade.

Não é difícil, portanto, concordar que o Princípio Responsabilidade pode ser aceito como fundamento ético para o princípio da precaução. Sem dúvida, as três obras principais do Jonas tardio (Princípio Responsabilidade; Técnica, Medicina e Ética – sobre a prática do Princípio Responsabilidade - e Por uma Ética do Futuro) o credenciam a ser reconhecido como o filósofo que mais arduamente ofereceu uma alternativa ao avanço tecnológico: responsabilidade pelas ações e decisões que podem afetar as gerações futuras e a natureza.

Como Heidegger, que convida a pensar como um ser-no-mundo em que pensar contra a lógica não significa quebrar lanças em defesa do ilógico, Jonas também parte do dever de pensar que se dá no desvelamento do não-saber como possibilidade de refletir sobre a carta-branca dada ao poder tecnológico. Há que se pensar sobre o quanto o ser humano está autorizado a arriscar nas apostas técnicas.

Jonas sabe disso. Ele dá mais pistas ao dizer que a humanidade só pode seguir adiante se “extrair da própria técnica, com uma dose moral temperante, o remédio para a sua enfermidade” e que o “saber se origina daquilo contra o que devemos nos proteger” (JONAS, 2013, p. 59 e 71). Trata-se de uma atitude que exige coragem para igualmente investir em pesquisas que possam minimizar os riscos do progresso técnico. Pensar, refletir, investigar, decidir com responsabilidade é também “aprender a temer e a tremer” (JONAS, 2013, p.118).

Com a imagem da “solidariedade de destino entre homem e natureza, solidariedade recém-revelada pelo perigo comum que ambos correm” (JONAS, 2006, p. 230), buscar-se-á, na sequência, argumentar pela potencialidade do princípio responsabilidade que fundamenta filosoficamente o princípio da precaução e que deveria ser plenamente usado em uma área como a nanotecnologia em que tão pouco é explicado sobre seus riscos.

3 A problemática do avanço (ir)responsável das nanotecnologias e a necessidade de uma ética da responsabilidade

As nanotecnologias são responsáveis por processos revolucionários e de grande impacto, e que resultam da manipulação da matéria em nanômetro (o bilionésimo do milímetro), com extraordinários avanços em áreas como: medicina, fármacos, cosmética, tecnologia da informação, biotecnologia, nanofotônica, multimídia, geração de eletricidade, isolamentos térmicos, agricultura, produção de alimentos, todos os campos da engenharia, indústria eletrônica, indústria têxtil, indústria química, indústria plástica, indústria automotiva, produção de micromáquinas em escala nanométrica para a purificação de águas e a destruição de resíduos tóxicos, interfaces elétrico-neurais, novas propriedades, funções, sistemas e manipulações, enfim, as possibilidades de nanoprodutos são ilimitadas e seus avanços podem alterar o meio ambiente e o organismo humano para o bem ou para o mal.

Na nanoescala, a matéria adquire novas propriedades com significativas alterações na termodinâmica, o que resulta em novos efeitos quânticos e modificações substanciais na reatividade química. As nanopartículas e as nanoestruturas, ao atravessarem membranas, são capazes de produzir resultados significativamente ampliados em relação a qualquer tecnologia anterior. O cenário de riscos aberto pelas nanotecnologias indica que se está diante de uma grande revolução industrial e uma das mais impactantes. A humanidade ingressou em território desconhecido sem ter investigado amplamente as propriedades das mesmas e de seus riscos e perigos para a saúde humana e meio ambiente (RIECHMAN, 2009, p. 267).

Esta inquietação é compartilhada por Engelmann e Machado (2013, p.13) ao reconhecerem um movimento paradoxal: de um lado, a inovação nanotecnológica é muito estimulada e, por outro lado, como os efeitos no organismo humano e no meio ambiente são de difícil identificação, podem escapar do controle de seus criadores. Frente a este contexto, Engelmann (2010, p. 665) recomenda o necessário cuidado e prudência diante do universo das nanotecnologias sob o olhar atento da bioética e do direito. Denuncia que “ainda não se sabe os limites dessa investida humana na natureza”. Para o autor, a bioética poderá auxiliar a “fornecer um substrato ético capaz de proteger os seres humanos dos efeitos positivos ou negativos” das nanotecnologias na natureza e a “circunscrever alguns postulados inegociáveis” para operar com mais segurança.

O que torna o debate ético sobre nanotecnologia tão acalorado na perspectiva de Pyrrho e Schramm (2012, p. 2030) é, de um lado, o fascínio e o caráter revolucionário que as novas tecnologias podem representar para o ser humano e, por outro lado, está o medo característico dos avanços biotecnológicos pela carga de incerteza e riscos que sempre carregam. Para os autores é exatamente pela dualidade presente nas nanotecnologias entre o “bem ou o mal”, “para corpo ou para a mente” que são exigidas reflexões críticas, pois se está diante da possibilidade de que elas têm potencial de transformar “profundamente o que conhecemos por humano”, e “é nisso que fundamentalmente se assenta seu caráter revolucionário”, e, por isso, as implicações éticas são tão importantes.

O princípio responsabilidade e a heurística do temor propostos por Jonas podem contribuir pedagogicamente para fundamentar as discussões sobre as consequências das nanotecnologias que começam a ser questionadas e temidas. Neste início de século já se percebe um pequeno movimento e um olhar mais acurado de outras áreas do conhecimento que começam a questionar o poder que as nanotecnologias podem trazer ao sistema econômico. A discussão internacional sobre os benefícios e malefícios das nanotecnologias mostra que está em curso uma mudança de postura e um entendimento de que elas podem representar um risco. Dito de outro modo, o acordar da humanidade traz novas expectativas de renegociar a governança da ciência com amparo em uma nova ética para a tecnociência que propugna o dever diante da posteridade. Neste sentido, as preocupações de Jonas sobre um potencial abuso da ciência no desenvolvimento acelerado da nanoescala ganharam um novo significado e relevância.

Cózar Escalante (2009, p. 215) traduz essa inquietação em relação ao avanço irresponsável da nanotecnologia ao indicar que diversas instâncias públicas e grupos que criticam a nanotecnologia “se mostram vagamente de acordo com a necessidade de aplicar o enfoque precautório a estas questões devido ao estado muito incompleto de conhecimentos relativos à toxidade e ecotoxidade das nanopartículas”. É exatamente por não se conhecerem os riscos da nanotecnologia que o esforço da ciência deve ser ainda maior para identificar e quantificar os riscos. A sociedade atual, para o autor, vive uma “situação paradoxal”: de um lado exige participação dos cidadãos no debate sobre matérias complexas em que os próprios cientistas assumem posição diferente entre si e, por outro lado, os poderes públicos não se sentem obrigados para tomar decisões precaucionárias com a rapidez que a situação exige, ancorados no velho discurso de que não podem ficar atrás do mercado. Ou seja, o discurso dos poderes públicos e de muitos institutos de pesquisa é que não se pode perder o trem da “nova revolução tecnológica”. Isto para Cózar Escalante (2009) coloca em dúvida o caráter democrático presente no princípio da precaução e a sinceridade das experiências participativas, pois põe em risco a efetividade da participação cidadã. Sem informações seguras não é possível à participação.

É necessário, portanto, uma atitude dialógica entre os diferentes atores da revolução nanotecnológica, como: pesquisadores, empresas, governos, organismos internacionais, sociedade civil, estudantes, profissionais das mais diversas áreas do conhecimento e cidadãos. Só pode haver a participação dos cidadãos com informações. Esta reflexão conduz novamente ao princípio responsabilidade de Jonas.

Jonas expõe que o grande empreendimento da tecnologia moderna, que caminha a passos colossais, também reserva muitas surpresas no médio e longo prazo, passando a exigir um olhar muito mais atento da ciência, principalmente, pelo pouco investimento realizado para prever futuras aplicações e inter-relações das novas descobertas. Neste sentido, passos mais minúsculos, com cautela, vigilância e prudência, são necessariamente mais seguros. O fato de o homem tomar o “desenvolvimento em suas próprias mãos” e confiar apenas na razão não oferece “uma perspectiva mais segura de uma evolução bem-sucedida” pelo contrário, “produz uma incerteza e um perigo totalmente novo” (JONAS, 2006, p. 77).

Richmann (2009, p. 267) compartilha com Dehmer a reflexão de que as novas descobertas com nanotecnologia se centram em “tomar diferentes tipos de nanoestruturas em que a natureza não tem pensado de por elas juntas em diversas formas, de modo a fazer coisas que a natureza ainda não tenha feito e, em particular, fazer coisas mais robustas que os sistemas naturais”. Por tudo isso, é preciso ressignificar a obrigação de prudência e a responsabilidade intergeracional, que implica no dizer de Ost (1997, p. 311), avaliar as “consequências mais longínquas possíveis das nossas opções” e na sequência optar pela “escolha da via menos onerosa para os beneficiários da nossa responsabilidade, e, em caso de dúvida”, abster-se de agir.

Sem dúvida, há um paradoxo: a longevidade aumentou significativamente no último século e neste início de século XXI com as novas descobertas da tecnociência, as quais também estão relacionadas às nanotecnologias e seus riscos. Portanto, não se está desmerecendo os benefícios da nanotecnologia, o que se quer mostrar é que há um descompasso entre os avanços da nanociência, da legislação, das decisões judiciais, dos processos de aprovação de novos produtos com nanotecnologia e dos estudos científicos sobre as consequências negativas das nanopartículas, seus subprodutos e os nanoresíduos no meio ambiente e na saúde humana. Ou seja, é preciso monitorar e conhecer os efeitos tóxicos das nanopartículas no meio ambiente e no organismo humano em curto, médio e longo prazo. O avanço da nanotecnologia sem considerar essas implicações para as futuras gerações gera um passivo desconhecido e irreversível.

Enquanto limitações objetivas não forem introduzidas pelos Estados e por organismos internacionais como a ONU para frear o desenvolvimento irresponsável de nanotecnologias sem o apoio de pesquisas científicas sobre toxidade, segurança, efeitos sobre a saúde, riscos ambientais e impactos sociopolíticos, uma atitude importante é exigir uma postura de responsabilidade de governos e empresas que produzem produtos com nanopartículas. E é neste sentido que o presente estudo invoca um olhar para o princípio responsabilidade de Jonas.

Dos nove bilhões de dólares gastos no início de 2006 no mundo em inovação e desenvolvimento de nanotecnologia, somente entre 15 e 40 milhões foram destinados para investigar riscos. Esta postura merece reflexão, pois “apenas um dólar de cada 300 dólares, aproximadamente, se destina a investigar os riscos das nanotecnologias” (RIECHMANN, 2009, p. 268).

Outro ponto que vem preocupando cientistas de diversas áreas do conhecimento são os nanorresíduos, sua destinação final e os riscos para o meio ambiente e a saúde humana. Todas essas questões mostram que se deve ter um limite e prudência na produção da inovação e na destinação dos resíduos dessa inovação. Ou seja, há uma ambivalência que precisa ser enfrentada pelo Direito e pela Ética: não é possível ignorar os benefícios das novas tecnologias como também não se podem minimizar os seus riscos para a saúde humana e o meio ambiente. E é esse paradoxo entre tecnologia e incerteza científica que instiga o diálogo entre as diversas ciências em cenários de risco futuro com potencial de deixar para as gerações futuras um passivo ambiental sem precedentes.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que congrega 35 países, tem um longo histórico de preocupação com as potenciais implicações dos nanomateriais na segurança ambiental e na saúde humana. Desde o ano de 2005, a OCDE vem realizando reuniões específicas sobre o tema com os países membros e convidados que resultaram em uma série de documentos de referência. Em fevereiro de 2016, a OECD lançou o 65º documento da série que trata da segurança na fabricação de nanomateriais. O 65º documento traz o resumo dos resultados da avaliação das propriedades físico-químicas dos nanomateriais com utilização de métodos aplicados no programa de testes da OCDE-WPMN. O que importa para o presente estudo são as conclusões da OCDE em relação ao reconhecimento explícito de que há limitações nos atuais métodos de avaliação. Face ao exposto, a OCDE recomenda uma maior participação de especialistas para a realização de novos testes e validação do método para teste padrão. Além disso, recomenda que sejam criados protocolos normatizados a partir dos novos métodos validados, bem como o desenvolvimento de materiais de referência, criação e consolidação de parâmetros, alertando ainda que os parâmetros podem ter forte influência do meio circundante e que não sejam poupados esforços para incluir médias “biologicamente ou experimentalmente relevantes” (OCDE, 2016).

Em outro documento, a OCDE (2016) se propõem a mostrar um fator de alto risco, ainda descuidado pela maioria dos empreendedores e cientistas que trabalham com nanotecnologia, que é a destinação correta de resíduos com nanomateriais. Atualmente, os produtos que contém nanomateriais estão sendo reciclados ou descartados junto com os produtos equivalentes sem nanomateriais. Com a produção e o aumento de aplicações de nanomateriais, os riscos potenciais emanados dos resíduos de produtos com nanopartículas são significativamente maiores do que o mesmo produto descartado em escala real. Essa inquietação se amplia em países menos desenvolvidos e quando se está diante de áreas onde as descobertas científicas ainda são contraditórias.

Outro problema apontado é a insuficiência de estudos científicos que avaliam o destino dos nanorresíduos e o comportamento das nanopartículas lançadas em operações de tratamento de resíduos, como a reciclagem, ou no descarte direto do produto em aterros sanitários. Isto sem falar nos riscos potenciais de materiais secundários que contêm nanotecnologia. Portanto, há que se ter responsabilidade pela gestão inadequada de nanomateriais e sobre o destino e os riscos associados das nanopartículas descartadas no lixo ou recicladas (OCDE, 2016).

Refletir sobre critérios de aceitabilidade ética também preocupa Lingner e Weckert (2016) ao apontarem que a “Responsible Research and Innovation (RRI)” é um dos temas mais debatidos na política atual de pesquisa e inovação na Europa. Os autores exemplificam mostrando um dilema ético entre a possibilidade de resolução de problemas para descontaminar áreas com utilização de nanomateriais e o comportamento ecológico deste nanomaterial que por ser desconhecido pode se propagar descontroladamente no meio ambiente e colocar em risco os ecossistemas e a sociedade no seu todo. Frente a este dilema ético, os autores sugerem ponderação e reflexão. Ou seja, antes de se aventurar em lançar produtos com nanotecnologia deveria ser questionado se não há alternativas menos arriscadas para lidar com contaminações graves. Além disso, para Lingner e Weckert (2016), adotar a perspectiva ética favorece um equilíbrio reflexivo sobre as consequências das decisões e a adoção da alternativa menos arriscada.

Seguindo as reflexões de Heidegger e Jonas, não se está demonizando os avanços tecnológicos e nem pregando a paralisia e retrocesso da tecnociência. O que se quer mostrar é que frente à ambiguidade presente nas novas tecnologias que podem tanto ser aplicadas para a utilidade como para o dano, tanto para o bem como para o mal, Jonas (2013, p. 89) se posiciona ao alertar que precisamos, inclusive, do “seu contínuo progresso para superar cada momento nas próprias consequências negativas, isto é, do seu uso até aqui”. São exatamente as consequências das ações e decisões que estimulam o exercício do princípio responsabilidade passando a exigir uma pesquisa responsável. É preciso uma “tomada de consciência”, “porque as coisas já estão nos ‘queimando os dedos’, terá que começar de algum lugar e levantar a questão de uma autocensura da ciência sob o signo da responsabilidade”. Uma das formas de realização desse compromisso paradoxal de gerir os riscos das nanotecnologias está na interpretação do princípio da responsabilidade.

Nesse cenário, questiona-se: qual o poder pedagógico do princípio responsabilidade frente ao avanço irresponsável das nanotecnologias? Tem-se presente que a revolução provocada pelas nanotecnologias é um processo irreversível: o que se busca é mostrar a aplicabilidade do princípio responsabilidade de Jonas e os benefícios da adoção de uma orientação transdisciplinar como interrogante do futuro do que conhecemos como humanos. Como prática pedagógica, o construto teórico de Jonas poderia, então, auxiliar cientistas e sociedade a compreenderem a complexidade dos riscos de cada nova descoberta e a disponibilidade de assumir compromissos para com as gerações futuras. Tudo o que Jonas (2006, p. 77) quer é uma dose de cautela e prudência e, assim, não “desprezar a marcha lenta da natureza, cujo tatear é uma segurança para a vida”.

Partindo-se do pressuposto de que a formação inicial dos cientistas se dá nas universidades e que uma parte significativa das nanotecnologias são descobertas nos espaços acadêmicos de pesquisa, torna-se imprescindível refletir sobre a responsabilidade pela inovação e os riscos associados das novas tecnologias. Como produtoras e promotoras de saber, as universidades devem abrir espaços para discussões inter/multi/transdisciplinares sobre a complexidade que envolve as nanotecnologias. Não basta uma disciplina geral de ética nos currículos de graduação, a preocupação deve estar centrada em como formar profissionais com responsabilidade perante as futuras gerações e o meio ambiente.

Este debate também é ampliado por Rychnovská (2016), que percebe um movimento de centros de pesquisa científica, principalmente em universidades, sobre o potencial destrutivo das novas tecnologias, razão pela qual um dos debates da atualidade nas ciências da vida se centra em como proteger a pesquisa e a inovação científica de eventuais utilizações indevidas por atores desconhecidos e imprevisíveis. Essa mudança de atitude na governança da pesquisa científica permite que os especialistas usem seus conhecimentos técnicos para construírem a “verdade” sobre ameaças e riscos.

Jonas (2013, p. 116) também se preocupou com esta questão ao perguntar se o pesquisador tem responsabilidade por suas pesquisas. Como resposta, ele argumenta que já é possível perceber uma preocupação na comunidade científica, e que aos poucos uma consciência de responsabilidade vem penetrando “nos protegidos campos da pesquisa natural e lhe é também posta do exterior por uma opinião pública mais ampla e inquieta”. Ele chama para esta discussão todas as ciências e instiga à filosofia a participar das reflexões sobre ética e liberdade da ciência.

Para dar um passo adiante, o princípio responsabilidade como fundamento filosófico do princípio da precaução deve ser discutido exaustivamente no ambiente universitário, não para frear o desenvolvimento da nanotecnologia, mas para mobilizar o primeiro dever da ética do futuro desenvolvido por Jonas que é a visualização dos efeitos de longo prazo. Questões já levantadas por Jonas, como: posso arriscar os interesses das futuras gerações em minha aposta? Tenho permissão para apostar a totalidade dos interesses dos outros? Qual o dever do cientista diante da posteridade? O que significa agir de forma responsável? Por que é necessária uma autocensura da pesquisa? Em caso de dúvida que atitude tomar? Os cientistas são responsáveis por aquilo que outros fazem do resultado das suas pesquisas? Na dúvida sobre o limite da ciência, a decisão deve ser pela liberdade da ciência? Trabalhar com estas questões de forma inter/multi/transdisciplinar no ambiente universitário é aplicar pedagogicamente o princípio responsabilidade e oportunizar para que cada ciência possa contribuir com seu campo de saber sobre a ambivalência das nanotecnologias e quanto é possível arriscar.

Conclusão

A caminhada realizada por Jonas na construção do princípio responsabilidade mostra que ele se aproximou do seu mestre Heidegger ao assumir com ele que o esquecimento do Ser se dá no distanciamento da essência do ser e na valorização excessiva da utilidade imediata das novas tecnologias. A principal ameaça que pesa sobre o ser humano, “não vem, em primeiro lugar, das máquinas e equipamentos técnicos, cuja ação pode ser eventualmente mortífera”. Com estas palavras, Heidegger (2002, p. 30-31) manifesta que a “ameaça, propriamente dita, já atingiu a essência do homem. O predomínio da composição arrasta consigo a possibilidade ameaçadora de se poder vetar ao homem se voltar para um desenvolvimento mais originário e fazer assim a experiência de uma verdade mais original”. É sobre esta preocupação que Jonas parte e amplia sua crítica aos avanços da tecnociência.

As nanotecnologias, como resultado do poder e agir humano, também estão expostas a uma avaliação ética. Ao se integrarem no corpo humano e na natureza, as nanotecnologias se tornam não apenas irreversíveis como também já ultrapassaram muito do que os primeiros cientistas projetaram e planejaram. Concorda-se com Jonas (2006, p. 21) que “aquilo que já foi iniciado rouba de nossas mãos as rédeas da ação, e os fatos consumados, criados por aquele início, se acumulam, tornando-se a lei da sua continuação”.

A novidade em Jonas está em conceber seu princípio responsabilidade ontologicamente como um Tractatus tecnolócico ethicus ao justificar que o homem tem responsabilidade para com o futuro longínquo da humanidade, ou seja, para com aquele que ainda não existe e, por esta razão, ainda não conseguem reivindicar seu direito para viver. Ao aconselhar a prudência para com o futuro é possível dizer que Jonas fundamenta eticamente o princípio da precaução. A resposta que ele oferece é que o avanço tecnológico deve ser avaliado sempre em função dos seus piores prognósticos, o que não significa paralisar o desenvolvimento tecnocientífico. O princípio responsabilidade advoga que diante da incerteza científica é necessário responsabilidade, cautela e precaução.

O desenvolvimento tecnocientífico na nanoescala coloca a humanidade frente a saberes e poderes sem precedentes e sem paralelo na história. Contextualizar e ressignificar o princípio responsabilidade nas universidades é, antes de tudo, uma atitude de solidariedade intergeracional que possibilita romper barreiras entre professores, pesquisadores, cientistas, empresários e estudantes dos mais diversos cursos para um diálogo transdisciplinar.

O problema que este artigo pretendeu enfrentar foi: sob quais condições a comunicação entre algumas ideias de Heidegger e Hans Jonas poderão servir para a estruturação de um referencial ético para avaliar os avanços e os riscos que poderão ser gerados a partir do acesso humano à escala nanométrica? A crítica de Heidegger sobre a questão da técnica pareceu exagerada no seu nascedouro, mas se verifica como muito atual no cenário contemporâneo viabilizado pelas novas tecnologias, com especial destaque para as possibilidades geradas pelo acesso humano à escala nano. Isto não significa simplesmente a manipulação da escala atômica, mas o desconhecimento dos efeitos que o acesso descuidado a esta escala poderá gerar, considerando que na escala manométrica as propriedades físico-químicas dos materiais sofrem mudanças. Muitas delas ainda não conhecidas. A ética do cuidado de Hans Jonas deveria fazer-se ouvir, pois ele justamente alerta para estes não conhecidos efeitos que os nano materiais poderão gerar para a saúde do trabalhador, do consumidor e para o equilíbrio do meio ambiente. É na necessária junção entre o conhecimento jurídico e das demais áreas envolvidas com as nanotecnologias – como a química, física, biologia, engenharia, medicina, entre outras – numa construção transdisciplinar do conhecimento, se terá uma alternativa inteligente para avançar sem colocar em risco a própria vida humana na Terra que se pretende melhorar. A preocupação com a ética do cuidado é o fio vermelho que poderá aproximar estas áreas, produzindo um conhecimento focado no respeito ao ser humano e na preservação do meio ambiente. Essa, por enquanto, é a resposta hermenêutica e fenomenológica que se projeta. Ela é provisória e preliminar, mas é um primeiro degrau de uma tentativa de regular esta matéria, sem a necessidade de se depender da ação legislativo-estatal.

A hipótese que se desenhou na Introdução foi explicitada da seguinte maneira: o “cuidado” é um elemento estruturante necessário de qualquer estudo que pretenda avaliar com seriedade e com a projeção consequencial do presente para o futuro no avanço das pesquisas, produção e comercialização de produtos à base das nanotecnologias. O “cuidado” significa atenção para os desdobramentos da técnica (Heidegger), que não poderão escapar do controle humano. Se pode mencionar, com a mesma provisoriedade da resposta ao problema, que ela está confirmada e aponta para a necessidade de escutar a voz da tradição, estruturada em Heidegger e Jonas. O horizonte da experiência que se encontra cravado na tradição, onde também se podem vislumbrar diversos “avanços” tecnológicos do passado, mas que geraram efeitos catastróficos, deverá guiar o cientista, o produtor e o consumidor para, atribuindo sentido a esse conhecimento, se possa orientar os avanços nanotecnológicos para a satisfação de efetivas necessidades humanas genuínas e coletivas.

  • 1
    Este artigo é o resultado parcial dos seguintes projetos de pesquisa desenvolvidos pelos autores: a) “Desenhando modelos regulatórios para nanomateriais no Brasil a partir da adaptação de estruturas normativas internacionais: especificando o cenário para o diálogo entre as fontes do Direito e a juridicização dos fatos nanotecnológicos”: Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq; b) “Observatório dos Impactos Jurídicos das Nanotecnologias: em busca de elementos essenciais para o desenvolvimento do diálogo entre as Fontes do Direito a partir de indicadores de regulação às pesquisas e produção industrial com base na nano escala”: Edital Universal 14/2014 – CNPq; c) “As Nanotecnologias como um exemplo de inovação: em busca de elementos estruturantes para avaliar os benefícios e os riscos produzidos a partir da nano escala no cenário da pesquisa e inovação responsáveis (RRI) e dos impactos éticos, legais e sociais (ELSI)”: Apoio a Projetos de Pesquisa/Chamada CNPq/MCTI Nº 25/2015 Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    24 Out 2016
  • Aceito
    05 Jan 2017
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