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Teologia Negra como forma de libertação da opressão

CONE, James Hal. Teologia Negra. 2020. Recriar, São Paulo

James H. Cone (1938-2018), Teólogo norte-americano, Mestre em Artes e Doutor em Filosofia, foi o primeiro professor negro do Union Theological Seminary, onde lecionou teologia sistemática, instituição da qual recebeu a distinção com o “Charles A. Briggs Chair”. James Cone cresceu em um contexto de forte segregação racial nos Estados Unidos o que certamente influenciou seu pensamento e suas obras. Em suas próprias palavras:

Crescer nos Estados Unidos é experiência absurda para pessoas negras. Em um primeiro momento, eles não sabem o que está acontecendo e não conseguem descobrir o que fizeram para merecer o tratamento que recebem. No entanto, percebem que a brutalidade branca não está relacionada especificamente às suas ações. É a forma da sociedade branca dizer que eles não são pessoas. Só que precisam tomar uma decisão: ou aceitam o seu lugar ou se revoltam contra o mundo da forma como ele é. (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 173)

Em sua obra “Deus dos oprimidos” Cone relembra como ele sempre discutia com seu irmão na juventude como eles deveriam invadir o culto da igreja de brancos em Bearden, Arkansas onde cresceram para fazer com que aqueles cristãos brancos tivessem de declarar publicamente que eles não eram bem-vindos na casa de Deus, observando que por temerem por sua integridade física nunca o fizeram de fato (CONE, 2020bCONE, James Hal. Deus dos oprimidos. São Paulo: Recriar, 2020b.: 41).

O autor escreveu dois livros que estão traduzidos para o português com o mesmo título (Teologia Negra). Black Theology and Black Power de 1969 e Black Theology of Libertation de 1970 este último é o livro aqui resenhado. Os editores, optaram por omitir o termo libertação do título original em razão do significado que ele assumiu na América Latina, estando “profundamente conectado e associado com a teologia da libertação.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 17) latino-americana.

James Cone tornou-se um dos teólogos mais influentes da Teologia Negra certamente em parte porque ele próprio sofreu com a situação difícil de ser um negro oprimido durante a sua vida e sua formação acadêmica no Sul dos Estados Unidos ao passo que a formação acadêmica também conferiu a ele as credenciais necessárias para entrar no debate teológico historicamente dominado por teólogos brancos (GRENZ & OLSON, 2003GRENZ, Stanley J., & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.: 246).

Ras André, historiador, educador popular, teólogo e pastor metodista foi quem escreveu a apresentação do livro para esta edição em português e se expressou dizendo que a obra é “imprescindível para aqueles que estão na busca de ferramentas radicais para o enfrentamento do racismo estrutural com braço religioso” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 12).

No Prefácio à esta edição, Ronilso Pacheco, Teólogo, pastor, ativista, pesquisador no Union Theological Seminary, relata que “Cone deixou evidente em sua obra que era impossível confrontar uma sociedade racista, sem, ao mesmo tempo, desafiar a estrutura e todas as suas instituições, especialmente as igrejas estabelecidas” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 18 [negrito no original]).

O autor dividiu sua obra em sete capítulos. No primeiro capítulo ele faz uma exposição do que vem a ser o conteúdo da teologia, em especial, da Teologia Negra. A partir do capítulo dois ele passa abordar alguns dos temas centrais da teologia sistemática sob o prisma da Teologia Negra: a questão da fonte da teologia que para ele é plural1 1 Para Lutero e João Calvino, por exemplo, e, por assim dizer, para os teólogos reformados em geral, a Bíblia é a fonte “primária e essencial da teologia cristã. O Lema sola scriptura (somente as Escrituras) tornou-se típico dos reformadores, pois expressava sua crença fundamental de que as Escrituras eram a única fonte necessária e suficiente da teologia cristã” (McGRATH, 2005: 105). Cone, por outro lado, entende que a experiência, a história e a cultura negra, além da revelação, da Escritura Sagrada (bíblia) e da tradição, são fontes da Teologia. Em que pese os Reformadores não negassem a importância da tradição cristã, não a tratavam como fonte primária da teologia sobretudo após o estabelecimento do Cânon das Escrituras. ; o significado da revelação; Deus; o ser humano; Jesus, e, por fim, trata no último capítulo sobre Igreja, mundo e escatologia. A partir, então, dessa estruturação baseada na teologia sistemática clássica, Cone escreve em uma de suas obras que sua finalidade ao escrever Teologia Negra é dar resposta para a pergunta “O que a mensagem bíblica tem a ver com a revolução do poder negro?” (CONE, 2020bCONE, James Hal. Deus dos oprimidos. São Paulo: Recriar, 2020b.: 45)

A teologia negra surgiu na década de 60 nos Estados Unidos a partir da ênfase maior na imanência de Deus do que na sua transcendência como resultado do esforço de teólogos de entender a “relevância do conceito cristão de Deus para as pessoas que eram oprimidas, muitas vezes, por outras pessoas que se diziam cristãs.” (GRENZ & OLSON, 2003GRENZ, Stanley J., & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.: 241), neste sentido, esta teologia embora seja um movimento com características distintas das demais teologias da libertação como a latino-américa ou a teologia feminista, não deixa de ser uma teologia que

[...] se concentra no agir e não na contemplação. Ela deseja mudar o mundo e não apenas refletir sobre a natureza da realidade. Assim, a teologia negra empregou, pelo menos de modo implícito, a metodologia explicitamente desenvolvida pelas outras teologias de libertação, a saber, a visão da teologia como sendo, antes de mais nada, uma reflexão crítica em “práxis”, uma reflexão em ação na luta pela libertação. (GRENZ & OLSON, 2003GRENZ, Stanley J., & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.: 241)

Pode-se dizer que o termo teologia significa estudo ou reflexão a respeito de Deus, (McGRATH, 2005McGRATH, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução a teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.: 175), ou estudo a respeito da revelação de Deus nas Escrituras Sagradas como diriam os cristãos reformados. No entanto, James Cone se vale de uma ressignificação do termo a partir de uma compreensão de que o conteúdo da teologia negra não é preponderantemente Deus em si e como Ele se auto revela, mas sim, o que Deus fez. “Cone apresentou uma visão da teologia negra. Ela consiste na análise da condição negra à luz da revelação de Deus em Jesus, com o propósito de criar um senso de dignidade negra e de oferecer ao povo negro a ‘alma’ necessária para destruir o racismo branco” (GRENZ & OLSON, 2003GRENZ, Stanley J., & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.: 247).

Nesse sentido, para Cone a “teologia cristã é a teologia da libertação” e a partir desta concepção ele pode afirmar que a Teologia é “[...] um estudo racional relacionado ao ser de Deus no mundo sob a luz da condição existencial de uma comunidade oprimida relacionando as forças da libertação à essência do evangelho que é Jesus Cristo” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 53 [negrito no original]).

Assim, Cone passa a tratar a teologia como uma disciplina que busca analisar o conteúdo da fé cristã a partir do prisma da libertação. O autor olha para o Antigo Testamento e identifica na libertação de Israel da terra do Egito um marco fundamental da ação de Deus que é a libertação dos oprimidos de uma escravidão humana (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 54). E é neste sentido que o autor afirma que “Diante da ênfase bíblica sobre a libertação, não parece apenas apropriado, mas necesssário definir a comunidade cristã como a comunidade dos oprimidos que se une a Jesus Cristo em sua luta pela libertação da humanidade” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 55).

Dentro da definição apresentada por Cone a respeito do termo negritude encontramos parte da sua concepção a respeito da teologia negra:

[...] A teologia negra acredita que essas pessoas sejam a única chave capaz de abrir a porta para a revelação divina. Portanto, nenhuma teologia estadunidense é capaz de tender em direçâo da teologia cristã sem aceitar as pessoas de pele negra dos Estados Unidos. [...] a negritude é um símbolo ontológico para quem participa da libertação da opressão. Esta é a observação universal da teologia negra. Ela crê que todos os seres humanos foram criados para a liberdade, e Deus sempre fica com os oprimidos e contra os opressores. (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 63 [negrito no original])

Nesse contexto, surge a questão da incompatibilidade do ensino de Cristo com a prática do racismo. Aliás, para Cone a prática do racismo tem natureza satânica e portanto deve ser denunciado sobretudo a partir do contexto religioso pela voz dos pregadores a fim de que o racismo seja eliminado (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 75). Para Cone a Teologia Negra é a teologia daqueles que participam da libertação da opressão.

Os teologos brasileiros das igrejas mais ortodoxas talvez influenciados em alguma medida pela teologia reformada ou por correntes teológicas mais tradicionais, vão encontrar alguma dificuldade com a liberdade com que James Cone trata a questão das fontes e norma da Teologia Negra.2 2 Para James Cone, ao contrário do que pensa a maior parte dos teólogos herdeiros da Reforma Protestante, a Bíblia não é a principal e inquestionável fonte do conhecimento verdadeiro a respeito do Deus Cristão como um Cânon de livros concebidos sob inspiração divina. Assim, teólogos e teólogas que adotam esta perspectiva reformada terão de ignorar alguns dos elementos utilizados por Cone como fonte da Teologia Negra, além de serem complacentes com o fato de que ele não subscreve integralmente os conceitos de inspiração e inerrância que a Bíblia reivindica para si (COSTA: 1998: 103). Se conseguirem proceder desta forma provavelmente irão perceber que a maioria das conclusões fundamentais desta obra (para não dizer todas as conclusões, em alguma medida) podem ser atingidas partindo-se de uma interpretação sistemática das Escrituras Sagradas cristãs, sem a necessidades de fontes tais como a experiência, a cultura e a tradição de um povo em particular como faz James Cone.

O autor enumera com muita tranquilidade as fontes da teologia negra (as quais não são fontes tradicionais), afirmando que a sequência em que ele as apresenta “não está necessáriamente em ordem de importância. É difícil saber qual fonte é mais importante: todas são interdependentes e, por isso, a discussão a respeito de uma geralmente envolve as outras.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 88) Teólogos reformados ou mais ortodoxos, como mencionado, afirmariam que a Bíblia é a fonte mais importante de qualquer teologia, mas Cone entende que a Bíblia, conquanto seja de grande importância para qualquer teologia, não deixa de ser apenas um testemunho que não é infalível, a Bíblia para Cone não é em si a revelação de Deus, mas, nas palavras dele “É certo que a Bíblia não é a revelação de Deus; Jesus que é” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 90).

No capítulo três, ao tratar do Significado da Revelação, James Cone é contundente ao olhar de maneira crítica para a teologia estadunidense a qual, é preciso dizer, possívelmente tenha influenciado a maior parte dos teólogos e teólogas brasileiros:

O que é estranho, embora até compreensível, é o silêncio da teologia estadunidense sobre a revelação de Deus e os oprimidos da terra. Por que a ideia de libertação (inseparável da visão bíblica a respeito da revelação) é visivelmente excluída das discussões teológicas a respeito do conhecimento sobre Deus? Nenhum religioso sensível se empenhou em relacionar a manifestação contemporânea da revelação de Deus com a situação da humanidade negra. (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 107)

Essa percepção do autor é de fato alarmante, já que a Igreja Cristã é movida pelo combustível do amor ao próximo, sendo este o segundo grande mandamento deixado por Jesus conforme o Evangelho segundo Mateus.3 3 Um homem perguntou a Jesus: “Mestre, qual é o grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Mateus 22:36-39. Desta forma, conciliar a escravidão com a religião ou silenciar a respeito da incompatibilidade é, de fato, algo aparentemente fora da normalidade cristã.

O autor é ainda mais rigoroso em sua linguagem ao falar sobre um eventual erro que possa ter sido cometido pelos negros escravizados, isto é, de acordo com a Teologia Negra se houve de fato algum erro cometido por eles não é, “[...] serem responsáveis por sua própria escravização – longe disso. O pecado deles é tentar ‘entender’ os escravocratas, ‘amá-los’ nos termos deles.” e Cone não para por aí, é ainda mais desafiador ao escrever que os oprimidos teriam direito de tirar a vida dos opressores. O autor afirma que “já que os oprimidos agora reconhecem sua situação à luz da revelação de Deus, eles sabem que deveriam ter matado seus opressores em vez de tentar ‘amá-los’” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 115).4 4 Com todo respeito a visão do autor, entendemos o contexto de sobrevivência dos escravizados, de modo que talvez a morte do opressor fosse sua única condição de sobrevivência. Mas o Evangelho, examinado com mais profundidade garante que o amor se revela quando a segurança do meu inimigo estiver garantida quando ele estiver ao meu lado, posto que um dos ensinos de Jesus e dos apóstolos é que não se deve pagar o mal com o mal, a ideia é vencer o mal com o bem e nesta ideia de “bem” nós inserimos toda e qualquer forma de resistência ao mal que estejam dentro dos limites da legalidade. Neste sentido, interessante lembrar do que Frederick Douglass escreveu na carta ao seu ex-proprietário afirmando que “Não há teto sob o qual você estaria mais a salvo do que o meu e nada há em minha casa que, se você precisasse para seu conforto eu não te daria imediatamente. Aliás, eu consideraria um privilégio para fazer de você um exemplo de como seres humanos devem tratar uns aos outros” (DOUGLASS, 2021: 169 [1848]).

No capítulo seguinte, ao tratar da pessoa de Deus na teologia negra, o autor vai defender que a teologia negra é representativa da comunidade negra que se recusa a compartilhar dos ideais de exaltação da branquitude e degradação da negritude (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 121). Neste capítulo Cone afirma que Deus é negro e a seguinte frase talvez possa resumir a força do seu argumento: “Não há espaço na teologia negra para um Deus sem cor em uma sociedade onde os seres humanos sofrem exatamente por causa da cor.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 130), para James Cone, Deus sempre se identificou com os oprimidos e, portanto, não seria diferente com os negros quando estes se encontram exatamente nessa posição.

O autor faz questão de afirmar que a pespectiva da teologia negra não encontra óbice nos ensinamentos cristãos sobre o gozo futuro e os sofrimentos presentes, “A morte e ressurreição de Jesus não significam que Deus nos promete uma realidade futura com o intuito de tolerarmos o mal presente.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 150), Cone acertadamente percebe a diferença que há entre o sofrimento mencionado na Bíblia e o sofrimento do povo negro decorrente do racismo e da escravização e assim conclui: “O sofrimento que Jesus aceitou e que está prometido para os seus discípulos não deve ser comparado à aceitação fácil da injustiça humana infligida pelos opressores brancos.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 150) posto que o sofrimento mencionado na Bíblia é o sofrimento por ser cristão e jamais esteve relacionado com a cor da pele.

Outro tema trabalhado pelo autor é a relação do ser humano na Teologia Negra. Estes seres humanos que de acordo com o livro de Gênesis foram criados à imagem e semelhança de Deus (imago dei), sendo assim, por definição seres livres como Deus os criou não deveriam ser subalternados ou classificados por qualquer raciocínio aviltante. Assim, Cone argumenta que a liberdade é uma expressão da imagem de Deus e isso por si só implica que “Ser livres significa que os seres humanos não são objetos [...] Eles e elas se recusam a permitir que limites sejam impostos à sua existência.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 162) e é a partir daí que ele amplia o seu argumento para dizer que é justamente o conceito bíblico da imagem de Deus que faz com que seja humana a rebelião negra nos Estados Unidos (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 166), ficando claro, portanto, que desumano é o não se rebelar, é a manutenção do status quo que é completamente desumano e contrário à imago dei.

Ainda neste contexto o autor chama a atenção do leitor para a contradição existente no discurso religioso que demonstrava grande preocupação com a gerra do Vietnã, mas que não aparentava nenhum abalo sequer em relação a situação de sofrimento das pessoas negras (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 170).

Ao abordar o tema de Jesus Cristo na Teologia Negra (Cristologia), James Cone mais uma vez o faz de forma contundente surpreendendo o leitor com a força do seu argumento e com a liberdade com que se utiliza da linguagem. O autor afirma que o Cristo deve ser negro, posto que Ele é o “Servo sofredor” como descrito na Bíblia. Ora, se Jesus Cristo é aquele que se apresenta como servo sofredor e os negros são a forma humana que representam o sofrimento humano, Cristo tem que ser negro.

“É possível falar sobre sofrimento nos Estados Unidos sem falar sobre o significado de negritude? Nós podemos realmente acreditar que Cristo é o Servo Sofredor por excelência se ele não for negro?” A teologia negra argumenta que a negritude é o único símbolo que não pode ser negligenciado se formos levar a sério o significado cristológico de Jesus Cristo. (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 201)

Antecipando a uma pergunta que eventualmente poderia surgir, qual seja, se a teologia Negra acredita que Jesus Cristo era negro, o autor responde de forma direta que a cor literal de Cristo é irrelevante embora também deixe claro que Jesus não era branco em nenhum sentido da palavra, quer seja literal ou teologicamente (CONE, Teologia Negra, 2020: 201). 5 5 A cor é irrelevante, porém por causa do racismo ela é colocada como retomada do reconhecimento e combate a invisibilidade destinada aos negros. Jesus ser apontado enquanto um homem negro é estar identificado com toda opressão vivenciada pelos negros nos EUA, no Brasil e no mundo. Os negros são alvos de arbitrariedades policial, seletividade do sistema criminal e relacionados à negatividade (ALMEIDA, 2019).

No último capítulo de obra, ao tratar da igreja do mundo e da doutrina das últimas coisas (escatologia) na Teologia Negra, Cone não foi menos incisivo: “Uma vez que a Igreja é a comunidade que participa da obra libertadora do Jesus Cristo no decorrer da história, ela jamais pode endossar ‘lei e ordem’ que causem sofrimento.” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 212) assim ele chama a atenção para uma realidade e para uma ação libertadora, ele entende que a Igreja (ecclesia), no Novo Testamento, foi chamada não para aceitar o mundo como ele era, mas para transformá-lo. Desta forma, argumenta Cone, os que fazem parte desta Igreja neotestamentária “Precisam se rebelar contra a maldade para que todos os cidadãos saibam que não precisam se comportar de acordo com as leis sociais injustas” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 212).

James Cone trás à tona uma realidada e uma marca profunda da comunidade negra ao abordar a Escatologia na Teologia Negra. A escatologia é comumente chamada de doutrina das últimas coisas, fala sobre aquilo que ainda não aconteceu, fala, dentre outras coisas, sobre a morte.

Em “As almas do povo negro” Du Bois, escreve um capítulo intitulado “sobre o falecimento do primogênito” em que há um trecho que aponta para o futuro com esperança de que haja um tempo que não se conheça escravidão e racismo uma manhã em que tudo seja diferente para comunidade negra, uma manhã em que não se possa pensar que um bebê negro que parte deste mundo ainda em tenra idade poupou-se de uma vida de sofrimentos.

Certamente há de raiar o poderoso dia que arrancará o Véu e libertará os prisioneiros. Não para mim — eu devo morrer com minhas amarras —, mas para almas jovens que não conheceram a noite e abriram os olhos quando já era manhã; uma manhã em que se pergunte sobre o trabalhador não “Ele é branco?”, e sim “Ele trabalha bem?”. Em que se pergunte sobre o artista não “Ele é preto?”, e sim “Ele é bom nisso?” Essa manhã há de chegar, daqui a muitos e muitos anos. [...] e sem muito a lamentar — a não ser por aquela bela forma infantil que jazia fria, comungada com a morte, no ninho que eu construíra. (DU BOIS, 2021DU BOIS, W. As almas do povo negro. São Paulo: Veneta, 2021.: 231)

James Cone argumenta que para os negros a morte não é um evento futuro. É o presente, posto que os negros convivem com a ideia e com a realidade da morte todos os dias. “Eles e elas veem a morte todas as vezes que veem as pessoas brancas” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 219), neste contexto, ele recupera as promessas de bem-estar futuro pregadas pela teologia cristã e a contrasta com o presente apontando a incongruência e concluindo pela incompatibilidade que o leva, portanto, a ter que rejeitar a opressão como algo natural: “A perspectiva escatológica deve estar fundamentada no presente histórico, obrigando, assim, a comunidade de oprimidos a dizer não para o tratamento injusto, pois sua humilhação atual não condiz com seu futuro prometido” (CONE, 2020aCONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.: 220).

A obra de Cone é um chamado a reflexão das relações sociais e estruturais nos dias de hoje, além de ser uma crítica muito consistente da teologia cristã, abrindo espaço inclusive para discussões de outras pautas sobre as quais a igreja não deve silenciar, uma vez que é parte da sua missão neotestamentária congregar os oprimidos da terra. O Autor salienta que a Telogia Negra não é tolerante com a discriminação racial, tampouco com qualquer forma de opressão contra os negros as quais devem ser encaradas como anticristãs e, portanto, contrárias à vontade de Deus e nada menos do que isso.

Portanto, a obra Teologia Negra de James Cone apresenta um desafio também as teólogas e teólogos brasileiros posto que “Achar que no Brasil não há conflitos raciais diante da realidade violenta e desigual que nos é apresentada cotidianamente beira o delírio, a perversidade ou a mais absoluta má-fé.” (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.: 133) e neste sentido Cone não tem um chamado para a contemplação do staus quo, mas um chamado para libertação do povo negro de qualquer forma de opressão.

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    Para Lutero e João Calvino, por exemplo, e, por assim dizer, para os teólogos reformados em geral, a Bíblia é a fonte “primária e essencial da teologia cristã. O Lema sola scriptura (somente as Escrituras) tornou-se típico dos reformadores, pois expressava sua crença fundamental de que as Escrituras eram a única fonte necessária e suficiente da teologia cristã” (McGRATH, 2005McGRATH, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução a teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.: 105). Cone, por outro lado, entende que a experiência, a história e a cultura negra, além da revelação, da Escritura Sagrada (bíblia) e da tradição, são fontes da Teologia. Em que pese os Reformadores não negassem a importância da tradição cristã, não a tratavam como fonte primária da teologia sobretudo após o estabelecimento do Cânon das Escrituras.
  • 2
    Para James Cone, ao contrário do que pensa a maior parte dos teólogos herdeiros da Reforma Protestante, a Bíblia não é a principal e inquestionável fonte do conhecimento verdadeiro a respeito do Deus Cristão como um Cânon de livros concebidos sob inspiração divina. Assim, teólogos e teólogas que adotam esta perspectiva reformada terão de ignorar alguns dos elementos utilizados por Cone como fonte da Teologia Negra, além de serem complacentes com o fato de que ele não subscreve integralmente os conceitos de inspiração e inerrância que a Bíblia reivindica para si (COSTA: 1998COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A inspiração e inerrância das Escrituras. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.: 103). Se conseguirem proceder desta forma provavelmente irão perceber que a maioria das conclusões fundamentais desta obra (para não dizer todas as conclusões, em alguma medida) podem ser atingidas partindo-se de uma interpretação sistemática das Escrituras Sagradas cristãs, sem a necessidades de fontes tais como a experiência, a cultura e a tradição de um povo em particular como faz James Cone.
  • 3
    Um homem perguntou a Jesus: “Mestre, qual é o grande mandamento na Lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Mateus 22:36-39.
  • 4
    Com todo respeito a visão do autor, entendemos o contexto de sobrevivência dos escravizados, de modo que talvez a morte do opressor fosse sua única condição de sobrevivência. Mas o Evangelho, examinado com mais profundidade garante que o amor se revela quando a segurança do meu inimigo estiver garantida quando ele estiver ao meu lado, posto que um dos ensinos de Jesus e dos apóstolos é que não se deve pagar o mal com o mal, a ideia é vencer o mal com o bem e nesta ideia de “bem” nós inserimos toda e qualquer forma de resistência ao mal que estejam dentro dos limites da legalidade. Neste sentido, interessante lembrar do que Frederick Douglass escreveu na carta ao seu ex-proprietário afirmando que “Não há teto sob o qual você estaria mais a salvo do que o meu e nada há em minha casa que, se você precisasse para seu conforto eu não te daria imediatamente. Aliás, eu consideraria um privilégio para fazer de você um exemplo de como seres humanos devem tratar uns aos outros” (DOUGLASS, 2021DOUGLASS, Frederick. Autobiografia de um escravo. São Paulo: Vestígio, 2021.: 169 [1848]).
  • 5
    A cor é irrelevante, porém por causa do racismo ela é colocada como retomada do reconhecimento e combate a invisibilidade destinada aos negros. Jesus ser apontado enquanto um homem negro é estar identificado com toda opressão vivenciada pelos negros nos EUA, no Brasil e no mundo. Os negros são alvos de arbitrariedades policial, seletividade do sistema criminal e relacionados à negatividade (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Silvio Luiz Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.).

Referências bibliográficas

  • ALMEIDA, Silvio Luiz Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
  • CONE, James Hal. Deus dos oprimidos. São Paulo: Recriar, 2020b.
  • CONE, James Hal. Teologia Negra. São Paulo: Recriar, 2020a.
  • COSTA, Hermisten Maia Pereira da. A inspiração e inerrância das Escrituras. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998.
  • DOUGLASS, Frederick. Autobiografia de um escravo São Paulo: Vestígio, 2021.
  • DU BOIS, W. As almas do povo negro São Paulo: Veneta, 2021.
  • GRENZ, Stanley J., & OLSON, Roger E. A teologia do século 20: Deus e o mundo numa era de transição. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003.
  • McGRATH, Alister. Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica: uma introdução a teologia cristã. São Paulo: Shedd Publicações, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2021
  • Aceito
    03 Out 2021
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