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A mulher lésbica é mulher para a Lei Maria da Penha?

Is the lesbian woman a woman for Maria da Penha Law?

Resumo

Trata-se de estudo sobre o enquadramento que o Judiciário de Minas Gerais produz para relações homossexuais entre mulheres para fins de proteção de situações de violência doméstica. A partir de aportes feministas e queer, sobretudo da criminologia, localizamos as bases históricas e teóricas do debate sobre violência doméstica para discutir a domesticação do feminismo da Lei Maria da Penha pelo direito e como ele reinscreve mulheres lésbicas em estereótipos de gênero heterossexistas.

Palavras-chave:
Violência doméstica; Lésbica; Judiciário de Minas Gerais

Abstract

This is a study on the framework that the Minas Gerais’ Judiciary produces for homosexual relationships between women for the purpose of protection from situations of domestic violence. From feminist and queer contributions, especially from criminology, we locate the historical and theoretical bases of the debate on domestic violence to discuss the domestication, by the law, of Maria da Penha Law’s feminism and how it reinscribes lesbian women into heterosexist gender stereotypes.

Keywords:
Domestic violence; Lesbian; Minas Gerais’ Judiciary

Introdução

Embora a Lei Maria da Penha (LMP daqui em diante) represente um marco importante da introdução de pautas feministas no direito brasileiro, sua aplicação para casos de violência entre mulheres lésbicas1 1 Fazemos referência a mulheres lésbicas pela importância de nomear essas existências ao mesmo tempo perseguidas e invisibilizadas pela ordem jurídica. Não pretendemos com isso presumir que todas as mulheres em relacionamentos homossexuais se identifiquem necessariamente com essa categoria. ainda é atravessada por estereótipos de gênero heterossexistas.

O nosso argumento é o de que persiste no Sistema de Justiça Criminal (daqui em diante SJC), ainda hoje, um tipo de explicação originalmente feminista típica das décadas de 1970 e 1980 que estabelece uma moldura do pensável sobre violência doméstica que é limitante, já que pressupõe logo de partida uma relação heterossexual (homem agressor e mulher vítima). Esse tipo de explicação, incorporada pelas práticas judiciais dominantes em torno da aplicação da LMP, invisibiliza e dificulta o adequado enquadramento jurídico das violências sofridas ou praticadas por mulheres em relações homossexuais.

Além disso, a perspectiva de gênero inscrita na LMP acabou domesticada pelo conservadorismo heterossexista de juízes/as e outros/as operadores/as do direito. Ela foi sendo continuamente reelaborada a partir de um falocentrismo jurídico que essencializa as mulheres em uma posição de passividade e fragilidade, inclusive no que diz respeito à(s) sua(s) sexualidade(s). Nesse contexto, quando não excluídas da proteção da LMP, mulheres lésbicas são lidas pelo SJC à luz de uma expectativa de inferioridade e vulnerabilidade espelhada no modelo heterossexual e patriarcal de relação conjugal/afetiva.

Para demonstrar nossos argumentos, analisamos decisões do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (daqui em diante TJMG), todas elas envolvendo situações de violência doméstica/familiar entre mulheres em um relacionamento homossexual (companheiras, ex-namoradas e ex-companheiras), distribuídas entre os anos de 2010 e 2020. A escolha pela análise de discursos judiciais sobre a amplitude da aplicabilidade da LMP não é movida por uma tentativa de legitimação desse sistema desigual, mas sim pela possibilidade de aberturas de novos campos de discussão sobre os processos desiguais de criminalização e vitimização do SJC e das estereotipias que fundamentam sua dimensão ideológica-simbólica sobre quem pode/deve ser etiquetado como “criminoso” e quem pode/deve reivindicar o estatuto de “vítima”. No caso da violência doméstica, esse sistema é capaz de instaurar regimes jurídicos distintos a depender das diferenças que ele mesmo ajuda a criar. Trata-se, portanto, de um campo de investigação frutífero sobre como o direito (penal) produz significados sobre sexualidades dissidentes e, ao fazê-lo, assujeita indivíduos a partir de suas práticas.

Diante das limitações das explicações dominantes sobre violência doméstica e de um SJC discriminatório que se diz protetor de grupos minorizados, procuramos demonstrar, com esse trabalho, a necessidade urgente de uma perspectiva interseccional sensível à orientação sexual no combate à violência doméstica.

1. Como uma versão específica do feminismo produziu a compreensão hegemônica da mulher em situação de violência doméstica

A história sobre a entrada da violência enquanto pauta de um novo sujeito político “Mulher” está localizada no tempo e no espaço: começa na virada da década de 70 para 80 do século passado a partir dos centros de poder e saber do Brasil, notadamente em São Paulo, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro2 2 Com isso, não estamos dizendo que os feminismos brasileiros são provenientes apenas desses lugares, mas queremos justamente nomear e criticar a geopolítica do conhecimento que também atravessa os estudos feministas no Brasil. A explicação feminista dominante sobre violência doméstica ainda coloca mulheres do Sul/Sudeste como as protagonistas dessa bandeira, alçadas a verdadeiras guardiãs de nossa história, de modo que esse elemento do pertencimento regional também merece menção e exige reflexão futura. , influenciadas pelas elaborações teóricas e a militância dos movimentos feministas estadunidenses e europeus. Antes dessa virada, a literatura feminista salienta as dificuldades particulares enfrentadas pelos nascentes movimentos de mulheres/feministas em razão da existência de um regime ditatorial (GREGORI, 1993GREGORI, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 1993.; MATOS, 2010MATOS, Marlise. “Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do Sul Global?”. Revista de Sociologia e Política, v. 18, n. 36, 2010.; PINTO; 2010PINTO, Céli Regina Jardim. “Feminismo, história e poder”. Revista Sociologia e Política, v. 18, n. 36, 2010.; TELES, 2017TELES, M. A. A. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2017.; HOLLANDA, 2019HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Introdução. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.), o que explicaria suas alianças com um campo mais amplo da esquerda (em especial a militância marxista e a ala mais progressista da Igreja Católica) e as negociações iniciais para definir a relevância e a priorização de certas bandeiras em detrimento de outras.

Em razão dessa conjuntura delicada, a década de 70 é caracterizada por um embate entre as chamadas “lutas gerais” (mais voltadas à redemocratização ampla da sociedade brasileira) e as “lutas específicas” de emancipação das mulheres. Essas últimas, por razões “táticas” e receios de desmobilização pela introdução de temas considerados “excessivamente polêmicos”, inicialmente escolheram não pautar assuntos como sexualidade (exceto o acesso à contracepção), aborto e violência contra mulheres (GREGORI, 1993GREGORI, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 1993.: 27-28). Esta posição refratária acabou causando fricções com outras mulheres organizadas, sobretudo lésbicas e negras que, na falta de um ambiente inclusivo às suas pautas, começaram a estabelecer seus próprios espaços autônomos de luta.

A mudança de prioridades, com a introdução da chamada “violência contra mulher” como uma das principais bandeiras dos movimentos feministas, é identificada como uma resposta política dada a certos feminicídios que ganharam visibilidade midiática, o que impulsionou a criação de organizações feministas no Brasil (GREGORI, 1993GREGORI, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 1993.; TELES, 2017TELES, M. A. A. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Alameda, 2017.; CAMPOS; SEVERI, 2019CAMPOS, Carmen Hein de; SEVERI, Fabiana Cristina. “Violência contra mulheres e crítica jurídica feminista: breve análise da produção acadêmica brasileira”. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, 2019.). Nessas organizações de atendimento a mulheres em situação de violência, inspiradas pelos grupos de reflexão estadunidenses e europeus (consciousness raising groups), mulheres encontraram um espaço seguro para começar a ventilar suas experiências e relacioná-las a uma opressão de gênero coletiva, colocando inclusive temáticas relacionadas à sexualidade. De acordo com a literatura dominante, a atuação dessas e de outras organizações no começo dos anos 80 foram determinantes para outras conquistas que se seguiram, como a instalação das Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres (DEAMs) e a própria LMP (BANDEIRA, 2019BANDEIRA, Lourdes Maria. “Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.).

Essas experiências de militância e o público-alvo que se beneficiou delas, em sua maioria mulheres em um relacionamento heterossexual estável, acabou oferecendo a moldura do pensável sobre violência doméstica. Isto se deu em um movimento de retroalimentação com a literatura feminista da época, que qualificava as relações de violência como “violência contra a mulher”, isto é, “expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo familiar” em que as mulheres aparecem como seres passivos vitimados por uma estrutura de dominação (GREGORI, 2004GREGORI, Maria Filomena. “Deslocamentos semânticos e hibridismos: sobre os usos da noção de violência contra mulher”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 48, 2004.). Durante a década de 80, duas correntes teóricas dominaram as explicações sobre violência: a da dominação masculina (Marilena Chauí) e a da dominação patriarcal (Heleieth Saffioti) (SANTOS; IZUMINO, 2005SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. “Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil”. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, v. 16, n. 1, 2005.). Anote-se que, até meados dos anos 90, a produção teórica brasileira na área ainda era muito incipiente, sendo que a grande maioria dos estudos era produzida no âmbito das ações de militantes feministas, sendo poucos de cunho empírico (GROSSI, 2006GROSSI, Miriam Pillar. “Ajudando a iluminar o caminho das pesquisas sobre gênero e violência”. In: GROSSI, Miriam Pilar; MINELLA, Luzinete Simões; LOSSO, Juliana Cavilha Mendes (org.). Gênero e violência: pesquisas acadêmicas brasileiras. Florianópolis: Mulheres, 2006.).

A entrada da categoria “gênero” na discussão sobre violência doméstica no fim da década de 80 e começo da década de 90, sob influência dos debates feministas nos Estados Unidos e na França, trouxe uma nova abordagem que aprofundou o debate sobre a vitimização (embora sem abrir mão dela) e enfatizou a construção social do sexo e do gênero, preferindo-se o termo “violência de gênero” (SANTOS; IZUMINO, 2005SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. “Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil”. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe, v. 16, n. 1, 2005.). Essa expressão teria a aptidão de ser mais ampla do que a expressão “violência contra a mulher”, o que poderia abarcar interpelações que iriam além da construção discursiva do feminino e da relação dicotômica homem/mulher, possivelmente abrindo espaço para a investigação de outras relações violentas além da relação homem (agressor)/mulher (vítima). Tais potencialidades, no entanto, não se tornaram dominantes na explicação feminista: hoje, ainda é comum encontrar as duas expressões em trabalhos acadêmicos, utilizadas como se fossem sinônimas. A maioria dos trabalhos feministas continuam limitando as potencialidades analíticas do termo gênero e definindo a violência apenas enquanto expressão da dominação masculina/patriarcal.

Essa breve incursão n(um)a história do feminismo brasileiro indica alguns aspectos interessantes relacionados ao essencialismo de gênero, isto é, à discussão estanque da variável gênero, sem ou com pouca inter-relação com outros eixos de subordinação vividos pelas sujeitas implicadas. Esse essencialismo é ilustrado pela invisibilização da variável da raça nesses relacionamentos violentos e, ainda, pelo profundo heterossexismo que marcou a teoria e, inclusive, as relações entre as militâncias heterofeminista e lésbica. A maior parte dos estudos feministas sobre violência desconsideram ou apenas mencionam a importância do “nó” constituído pelas contradições fundamentais da sociedade brasileira (gênero-raça-classe), como explicitado por Heleieth Saffioti (2019)SAFFIOTI, Heleieth. “Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019..

De fato, estudos mais recentes sobre violência doméstica vêm demonstrando e problematizando essas omissões. Em sua revisão bibliográfica em 2004, Saffioti (2019SAFFIOTI, Heleieth. “Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade”. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.: 144) anotou não ter encontrado a “dimensão raça/etnia”, relatando que o “fenômeno é ainda muito pouco estudado, pois os próprios pesquisadores o ignoram ou não lhe atribuem o merecido realce”. Esta conclusão foi confirmada em pesquisa realizada por Kátia Braga, Elise Nascimento e Débora Diniz, constatando-se que, entre 1980 e 2006, apenas 1% da literatura especializada sobre violência contra a mulher considerava as experiências de mulheres negras, sendo que ainda se constatava a “quase completa ausência da discussão da temática racial” nesse campo de estudos em outro trabalho acadêmico, sete anos depois (PEREIRA, 2013PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Tramas e dramas de gênero e de cor: a violência doméstica e familiar contra mulheres negras. Dissertação (mestrado). Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília. Brasília, 2013.). A última década, felizmente, tem visto uma proliferação de estudos sobre o SJC sensíveis à temática racial, capitaneado sobretudo por feministas negras, inclusive juristas.

Em relação à sexualidade, um levantamento de pesquisas acadêmicas brasileiras sobre gênero e violência entre 1975 e 2005 concluiu pela inexistência de pesquisas no âmbito de casais homossexuais (LOSSO et al., 2006LOSSO, Juliana Cavilha Mendes et al. “Trinta anos de pesquisas sobre violências contra mulheres no Brasil: dados comparativos”. In: GROSSI, Miriam Pilar; MINELLA, Luzinete Simões; LOSSO, Juliana Cavilha Mendes (orgs.). Gênero e violência: pesquisas acadêmicas brasileiras. Florianópolis: Mulheres, 2006.: 24). Essa invisibilidade permanece não somente na academia, como também em espaços de convivência lésbica, dentro do movimento social e em instituições formuladoras/executoras de políticas públicas: “a dimensão da sexualidade, assim como a racial, em interseccionalidade com a de gênero, não é abordada em quase nenhuma das pesquisas sobre violência contra as mulheres, predominando a perspectiva heterocentrada” (MACEDO, 2020: 144). Esse é um contexto compartilhado na América Latina, agravado pelo fato de que o acesso a fontes do pensamento lésbico, pelo menos até a década de 90, é mais uma dificuldade para o desenvolvimento de pesquisas, já que a maior parte da produção se encontra em escritos dispersos em revistas, panfletos, cartilhas e comunicados com pouca difusão e que “não tendem a ser contados como parte de uma produção de conhecimentos” (MIÑOSO, 2016MIÑOSO, Yuderkys Espinosa. “Historizar las disputas, indagar las fuentes: hipótesis para pensar el movimiento de lesbianas en América Latina”. Atlánticas - Revista Internacional de Estudios Feministas, v. 1, n. 1, 2016.: 253).

Essa falta de incorporação da interseccionalidade nas teorizações sobre violência doméstica tem razões históricas ligadas às próprias dificuldades no desenvolvimento dos movimentos lésbicos enquanto movimentos autônomos no Brasil, em especial quando observamos a história de suas tensões internas e alianças frustradas com os movimentos LGBT+ e heterofeministas3 3 Para um resgate da história de fricções e invisibilizações que levou à criação das primeiras organizações de mulheres lésbicas feministas no Brasil, incluindo o desenvolvimento de movimentos de mulheres negras lésbicas feministas, conferir Marisa Fernandes (2018) e Ana Cristina Conceição Santos (2018). . A lógica do “eixo único” identificada por Kimberlé Crenshaw (1989CRENSHAW, Kimberlé. “Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist policies”. University of Chicago Legal Forum, n. 1, 1989.: 140) em sua análise das concepções dominantes sobre discriminação nos Estados Unidos dos anos 80 também pode ser identificada na realidade brasileira: no caso dos movimentos LGBT+, as reivindicações dos homens gays sempre tiveram prioridade interna; no caso dos movimentos heterofeministas, as pautas contemplaram prioritariamente suas militantes heterossexuais.

A violência entre casais homossexuais ainda permanece tema periférico nesses espaços e as pesquisas acadêmicas ainda são poucas na América Latina, com números crescentes somente a partir dos anos 2000: em levantamento nas ferramentas de busca Periódicos Capes, Scielo e Google Acadêmico, foram encontradas apenas 48 obras entre 2002 e 2019, sendo que apenas 22 delas tratavam exclusivamente de violência em relacionamentos entre mulheres e, dessas, 10 eram provenientes do Brasil (a maior parte na área das Ciências Sociais) (MACEDO, 2020). A falta de estudos empobrece o debate, mantém violações de direitos humanos impunes e dificulta o desenho de políticas públicas, inclusive relacionadas ao SJC.

Essa indisposição geral para pautar o tema é absolutamente antitética com nossos discursos de interseccionalidade e os dados, ainda que poucos, são implacáveis com a nossa complacência. Palavras de uma mulher negra que se identifica como “sapatão” e que sofreu violência em um relacionamento com uma mulher branca em Brasília:

Mas, é isso, essa falta de informação e de visibilidade de que existe esse tipo de violência, que isso é violência em relacionamentos entre mulheres, às vezes faz com que essas mulheres lésbicas [...] nem se sentirem no direito de falar. Nem sei se ela lia como violência, ela lia como um incômodo. E foi isso que ela falou: cara, que merda! Ela não pode fazer isso com você. Mas não tinha um nome. Por que ela não podia fazer isso comigo? Ah, não sei. Naquela época eu não perguntei. Mas todo mundo sabia que era errado. Ninguém sabia porque era errado. Não tinha um nome (MACEDO, 2020: 185).

Nomear é um gesto político, uma forma inicial de apreensão de experiências ou fenômenos escondidos” (DINIZ; COSTA; GUMIERI, 2015DINIZ, Débora; COSTA, Bruna Santos; GUMIERI, Sinara. “Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e punir”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 114, 2015.: 225). Aqui, não é diferente. O ato de nomeação não serve apenas para descrever o fenômeno, serve também para uma melhor inteligibilidade, o que não necessariamente significa a ampliação de castigos e novas tipificações penais. Quebrar o silêncio continua sendo uma questão de sobrevivência e uma luta contra resistências das mais variadas ordens, tanto dentro quanto fora dos feminismos.

2. A violência doméstica em relacionamentos homossexuais entre mulheres: a importância de uma análise interseccional sensível à orientação sexual

O estado atual das pesquisas4 4 As pesquisas no Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Austrália remontam desde os anos 80, embora a maioria ainda enfatiza as experiências de vitimização de mulheres em relacionamentos homossexuais. Lá, como aqui, ainda são poucos os estudos sobre experiências de pessoas trans ou das pessoas LGBT+, inclusive mulheres, que adotam comportamentos violentos em seus relacionamentos familiares/domésticos. Em razão disso, Janice Ristock (2011) sustenta que o campo ainda representa, no máximo, um apêndice ao campo da violência doméstica heterossexual. demonstra que relacionamentos entre mulheres lésbicas, assim como entre casais heterossexuais, também são marcados por relações assimétricas de poder e controle, especialmente quando uma parceira detém mais recursos que a outra (educação formal e renda, por ex.) (RENZETTI, 1988RENZETTI, Claire. “Violence in Lesbian Relationships: A Preliminary Analysis of Causal Factors”. Journal of Interpersonal Violence, v. 3, n. 4, 1988.; BURKE, FOLLINGSTAD, 1999BURKE, Leslie K.; FOLLINGSTAD, Diane R. “Violence in Lesbian and Gay Relationships: Theory, Prevalence, and Correlational Factors”. Clinical Psychology Review, v. 19, n. 5, 1999.). Similarmente, esses relacionamentos violentos também se caracterizam pela diminuição da autoestima da parceira (“eu vou arranjar alguém, mas você não”), pela utilização de termos pejorativos (“puta”, “louca”), pelo monitoramento de redes sociais, por humilhações e pelo medo que causa autocensura e vigilância sobre seus próprios atos (MACEDO, 2020: 167-168).

Há, todavia, aspectos particulares que somente uma análise interseccional sensível às configurações de subordinação atravessadas pela orientação sexual permite observar, sobretudo quando vislumbramos que o heterossexismo ajuda a criar um ambiente de impunidade ao isolar as vítimas/sobreviventes e impedi-las de acessar suas famílias, serviços públicos apropriados e o SJC (MERRILL, 1996MERRILL, Gregory. “Ruling the Exceptions: Same-Sex Battering and Domestic Violence Theory”. Journal of Gay & Lesbian Social Services, v. 4, n. 1, 1996.). Em razão disso, a literatura qualifica essas experiências como uma espécie de “duplo armário”, isto é, formas de violência que são únicas aos relacionamentos homossexuais/lésbicos e decorrentes da natureza sexista e homofóbica da sociedade, o que justificaria nosso olhar mais apurado, inclusive enquanto juristas.

Dentro desse duplo armário, o que já se sabe é que há maiores chances de encontrarmos os seguintes obstáculos: a) autoculpabilização em razão da lesbofobia internalizada; b) medo de uma dupla estigmatização social pela sociedade mais ampla - inclusive por parte do SJC - caso venha a denunciar; c) medo do “outing”, isto é, a utilização da orientação sexual enquanto mecanismo de manipulação e barganha para manter a vítima/sobrevivente silenciada; d) “fusão lésbica”, ou seja, é comum que a rede de amizades e de apoio entre a vítima/sobrevivente e sua companheira seja a mesma, o que pode gerar medo de perda dessas relações com o fim do relacionamento e um consequente aprofundamento do isolamento social; e) indisposição da própria comunidade lésbica e de familiares em ajudar5 5 Ilustrando esse aspecto, vale ler as palavras de uma vítima/sobrevivente brasileira: “se na época, se eu tivesse uma rede... Mas a coisa de ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’ também é em briga de mulher e mulher, sabe, as pessoas não querem se intrometer. Não querem meter a colher em relacionamento nenhum” (MACEDO, 2020: 186). ; f) persistência de mitos sobre relacionamentos lésbicos que dificultam ou impedem a identificação das violências, como o igualitarismo e a violência mútua (VICKERS, 1996VICKERS, Lee. “The Second Closet: Domestic Violence in Lesbian and Gay Relationships: A Western Australian Perspective”. Murdoch University Electronic Journal of Law, v. 3, n. 4, 1996.; GIRSHICK, 2002GIRSHICK, L. B. Woman-to-woman sexual violence: does she call it rape? Boston: Northeastern University Press, 2002.; LUSA, 2008LUSA, Mailiz Garibotti. “Desconstruindo o heterocentrismo da violência nas relações conjugais”. Revista Katálysis, v. 11, n. 1, 2008.; FERNANDES, 2016FERNANDES, Cátia. Violência nas relações de intimidade entre pessoas do mesmo sexo: estudo exploratório sobre os mecanismos de apoio à vítima de violência na intimidade. Dissertação (mestrado). Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Coimbra, 2016.; MACEDO, 2020).

Assim como em relacionamentos heterossexuais, poder e controle também são aspectos presentes nas dinâmicas de relacionamentos homossexuais, mas isso não se dá porque um dos polos da relação necessariamente assume uma identidade masculina: o poder circula nas relações interpessoais, assim como também é efeito das instituições sociais (DAVIS; GLASS, 2011DAVIS, Kierrynn; GLASS, Nel. “Reframing the heteronormative constructions of lesbian partner violence: an Australian case study”. In: RISTOCK, Janice (ed.). Intimate Partner Violence in LGBTQ Lives. New York / London: Routledge, 2011.). Assumir que nesses relacionamentos a violência é praticamente impossível ou raríssima (e que, quando acontece, ela é mútua ou então praticada por mulheres mais masculinizadas6 6 Entrevistando mulheres lésbicas estadunidenses que adotaram comportamentos violentos com suas parceiras, Carrol Smith (2011: 139) anota que uma das participantes relatou que, nas vezes em que a polícia foi chamada para lidar com a violência ocorrida, ela foi levada com muito mais frequência pela polícia por ter aparência mais masculina do que suas parceiras. , emulando um padrão do homem agressor), deixa de considerar as diversas configurações possíveis de relações de poder e simplifica essa complexidade em binários generificados de vítima impotente (feminina)/agressor poderoso (masculino)7 7 Em pesquisa com mulheres estadunidenses que sofreram violência doméstica de seus parceiros (homens trans), Brown (2011: 158) aponta que a dificuldade inicial das vítimas/sobreviventes de reconhecer a violência se deu em parte por causa das explicações feministas baseadas no gênero, visto que esse modelo avança a ideia de que a pessoa abusiva é a que detém também o poder social. Nesse sentido, a visão de que seus parceiros transexuais eram “mais oprimidos” como consequência da transfobia institucionalizada acabou interferindo e adiando o processo de significação pelas vítimas/sobreviventes de que o que estavam vivendo era violência doméstica. (BROWN, 2011BROWN, Nicola. “Holding tensions of victimization and perpetration: partner abuse in trans communities”. In: RISTOCK, Janice (ed.). Intimate Partner Violence in LGBTQ Lives. New York / London: Routledge, 2011.). Insiste-se em uma história incompleta de que esses relacionamentos constituem um idílio descolado da ordem de gênero e da heterossexualidade compulsória da sociedade mais ampla.

É preciso fugir da dualidade redutora do tipo algoz e vítima que implica no agressor ativo e na vítima passiva a partir da construção de uma “relação típica” (GREGORI, 1993GREGORI, M. F. Cenas e Queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e a prática feminista. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 1993.: 130). Existe um movimento que implica “combinações, ambiguidades e, portanto, diversidades” entre os padrões de gênero e o comportamento violento propriamente dito. “A identidade se perfaz na trajetória”, sustenta Gregori (2004)GREGORI, Maria Filomena. “Deslocamentos semânticos e hibridismos: sobre os usos da noção de violência contra mulher”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 48, 2004., em meio a relações e em um processo de “espelhamentos e contrastes que não se esgota”. Essa perspectiva relacional da violência, em que os marcadores de gênero estejam articulados com outros eixos de opressão também fundamentais (classe, raça e orientação sexual, por exemplo), torna-se muito mais potente para dar conta da violência nesses e em todos os outros relacionamentos íntimos de afeto, ainda mais quando consideramos que já há pesquisas que denotam que as dinâmicas de poder podem ser flutuantes nas relações lésbicas8 8 Em outra pesquisa realizada por Janice Ristock (2003: 335), uma das entrevistadas significou sua experiência da seguinte forma: “É uma dança de submissão e domínio entre duas pessoas”. .

O duplo armário ecoa o perigo das nossas heranças teóricas, cristalizando a noção (ainda que nossos floreios linguísticos tentem ocultar) de que, ao fim e ao cabo, ainda estamos falando sobre aquela “violência contra a mulher” como “expressão radical da relação hierárquica entre os sexos no núcleo familiar” dos anos 809 9 A teoria de Heleieth Saffioti (2004: 72), referência inegável do feminismo brasileiro, é uma expressão dessa moldura teórica heterocentrada. Em suas palavras: “[Mulheres violentas] São, todavia, muito raras, dada a supremacia masculina e sua socialização para a docilidade”. (GREGORI, 2004GREGORI, Maria Filomena. “Deslocamentos semânticos e hibridismos: sobre os usos da noção de violência contra mulher”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 48, 2004.). A importância dessa geneologia não pode ser diminuída, sobretudo porque a LMP é laureada (justamente, diga-se) como reflexo de uma “sensibilidade feminista” (CAMPOS, 2011CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e lei Maria da Penha”. In: ______. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.: 9) e um “esteio para resgatar a memória que envolve a luta contra as violências às mulheres no Brasil” (MACHADO, 2013Machado, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. Tese (Doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.: 67). A despeito do ineditismo trazido por seu art. 5º, parágrafo único, a moldura teórica que dá fundamento ao conceito de violência doméstica e familiar previsto na lei permanece imperturbada, continuando marcada por uma compreensão heterocentrada da violência de gênero: ela decorre fundamentalmente de uma relação de poder de dominação do homem e de submissão da mulher, definição que ainda se vê na literatura especializada (TELES; MELO, 2003TELES, Maria Amélia de Almeida; MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003.; SAFFIOTI, 2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.; BIANCHINI, 2014BIANCHINI, Alice. “Aplicação da Lei Maria da Penha a transexual e a homossexual?”. In: DIAS, Maria Berenice (coord.). Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.).

3. As raízes da subalternização jurídica de sexualidades dissidentes vividas por mulheres

O diagnóstico feminista do falocentrismo do discurso jurídico ajuda a entender como as lesbianidades podem ser construídas como condutas incompreensíveis e anormais. O falocentrismo é a expressão de uma cultura estruturada para atender as necessidades do “imperativo masculino”: a sexualidade é referenciada às experiências e aos significados masculinos, o que, embora não impossibilite a homossexualidade, tem certamente o efeito de torná-la incompreensível e patológica, já que desconectada do serviço ao prazer do Falo (“Phallus”) (SMART, 1989SMART, C. Feminism and the Power of Law. London / New York: Routledge, 1989.: 27-28). É a partir desse falocentrismo que se cristaliza o discurso do ímpeto sexual masculino insaciável e da mulher passiva e objetificada, cosmovisão que legitima a menoridade da mulher quanto às decisões sobre sua própria sexualidade: as teses da legítima defesa da honra e da impossibilidade do estupro marital são exemplos eloquentes dessa custódia das mulheres pelo SJC.

O falocentrismo enquanto elemento estruturante do discurso jurídico-penal, portanto, ajuda a produzir uma definição patriarcal da sexualidade da “Mulher” que, através da “erotização do domínio e da submissão” (MACKINNON, 1989MACKINNON, C. Toward a feminist theory of the State. Cambridge / London: Harvard University Press, 1989.), serve tanto para reforçar o binarismo fundacional Homem/Mulher (ativo/passivo) quanto para marcar a diferença entre a “mulher boa” (heterossexual e modesta) e a “mulher perigosa” (lésbica e indomável). Lembremos que, até 2005, o Código Penal ainda empregava a categoria “mulher honesta” como elementar de diversos tipos penais, assim como a categoria “mulher virgem” no caso do crime de sedução, condicionando a vitimização à comprovada modéstia da mulher e excluindo de seu regime de inteligibilidade todas aquelas que fugissem do padrão da mulher recatada cuja sexualidade é devotada ao marido/proprietário. A heteronormatividade toma corpo na linguagem e nos sentidos desses crimes: abstratamente, somente mulheres poderiam ser vítimas e a “conjunção carnal” (penetração pênis-vagina) era central para a configuração de diversos delitos, inclusive o estupro (que não se confundia com o atentado violento ao pudor, que abarcava outros “atos libidinosos” que não envolvessem penetração). Notadamente, o bem jurídico protegido por esses crimes não era a integridade psicofísica ou a liberdade sexual da mulher, mas sim os “costumes” (ou seja, a moralidade sexual dominante).

A falta de um homem em uma interação sexual, a partir desse modelo (que ainda persiste, diga-se), torna as vivências sexuais entre mulheres invisíveis ou ininteligíveis, colocando-as fora da “ontologia sexual tácita” do direito (NAFFINE, 2002NAFFINE, Ngaire. “Can Women be Legal Persons?”. In: JAMES, Susan; PALMER, Stephanie (ed.). Visible Women: essays on feminist legal theory and political philosophy. Oxford / Portland: Hart, 2002.: 86). O erotismo dissidente, nesse caso, desloca e expõe as bases históricas (e não naturais) do falocentrismo, representando um desafio muito concreto à heterossexualidade compulsória voltada à manutenção de um direito masculino de acesso físico, econômico e emocional às mulheres (RICH, 1980RICH, Adrienne. “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”. Signs, v. 5, n. 4, 1980.). Trata-se de um “desafio muito concreto” porque esse diagnóstico em parte explica a violência imposta a essas sujeitas, incluindo o assassinato de mulheres lésbicas enquanto ferramenta de controle social da “mulher perigosa”.

Nesse ponto, existe uma certa convergência entre as teorias feministas e queer, já que ambas estão radicadas na crítica e desconstrução desse falocentrismo ou “ideal do macho”: tanto a misoginia quanto a homofobia se constituíram a partir desse paradigma da masculinidade heterossexual que provoca tanto a opressão da mulher quanto a anulação da diversidade sexual (CARVALHO; DUARTE, 2017CARVALHO, Salo de; DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do Preconceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Saraiva, 2017.). A despeito desse ponto de contato, fazemos eco à necessidade esposada por Gayle Rubin (1999)RUBIN, Gayle. “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality”. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (ed.). Culture, Society and Sexuality: a reader. London / New York: Routledge, 1999. por uma “teoria radical do sexo” que se contraponha tanto ao conservadorismo moral e retrógrado das instituições e práticas sociais dominantes quanto a algumas correntes do feminismo que rejeitam certas expressões da sexualidade (como a prostituição e o sadomasoquismo) enquanto meras manifestações do poder masculino. Isso significa entender, concordando com Rubin, que: a) não é possível fundir a sexualidade e o gênero como se fossem eixos de opressão indistintos, tornando irrelevantes suas dinâmicas próprias; b) é preciso afastar o essencialismo sexual que dissimula o sexo enquanto uma força natural, imutável, associal e trans-histórica; c) é necessário questionar o sistema hierárquico de valorização sexual que etiqueta a sexualidade hetero/marital/monógama/reprodutiva/doméstica como “boa” e estigmatiza todas as outras vivências eróticas contrahegemônicas como “más”. Esse último ponto é fundamental para entender o papel desempenhado pelo direito, tido por Rubin (1999RUBIN, Gayle. “Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of the Politics of Sexuality”. In: PARKER, Richard; AGGLETON, Peter (ed.). Culture, Society and Sexuality: a reader. London / New York: Routledge, 1999.: 157) como o “instrumento mais inflexível de estratificação sexual e perseguição erótica” que assujeita indivíduos posicionados na base dessa hierarquia a uma série de suposições ligadas à doença mental e à criminalidade.

Os discursos das ciências criminais desempenham um papel importante para a formatação desse sistema hierárquico de valorização sexual, especialmente quando resgatamos sua contribuição histórica na facilitação, reforço e manutenção das pré-concepções mais aviltantes sobre pessoas LGBT+: até os anos 70, qualquer forma de sexualidade fora do enquadramento heteronormativo sacralizado pelo matrimônio foi significada enquanto desviante, anormal e em si criminosa por esses saberes hegemônicos (WOODS, 2014WOODS, Jordan Blair. “‘Queering Criminology’: Overview of the State of the Field”. In: PETERSON, Dana; PANFIL, Vanessa R. (org.). Handbook of LGBT Communities, Crime and Justice. New York: Springer, 2014.). As perspectivas da criminologia positivista, em especial, ainda ecoam em nosso léxico jurídico, ainda que ocultadas nas sutilezas próprias do nosso tempo. Existe um acúmulo discursivo que associa certos tipos de mulheres à anormalidade e do qual ainda não nos desvencilhamos completamente: as “invertidas”, as “safistas”, as mulheres com “excesso de sexualidade”, as lascivas, as prostitutas, as sedutoras, aquelas com “características físicas e comportamentais masculinas” etc. Todas elas já foram inseridas em uma tipologia de criminosas potenciais (WODDA, PANFIL, 2018WODDA, Aimee; PANFIL, Vanessa R. “Insert sexy title here: moving toward a sex-positive criminology”. Feminist Criminology, v. 13, n. 5, 2018.: 586; MENDES, 2012MENDES, Soraia da Rosa. (Re)pensando a criminologia: reflexões sobre um novo paradigma desde a epistemologia feminista. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2012.: 52).

A entrada dessas teorias em solo brasileiro não é desconhecida: nos anos 1880, as Academias de Medicina e Direito, em especial a Faculdade de Medicina na Bahia, formaram parte importante dos “partidários tropicais” de Lombroso, Ferri e Garófalo, expoentes da criminologia positivista. Embora essas perspectivas não façam mais parte do discurso penal oficial, a sua heternormatividade subjacente, que faz parte da própria constituição científica do saber criminológico, permanece largamente incontestada inclusive pelas vertentes mais críticas da criminologia brasileira. Essa invisibilidade ajuda a ocultar a operacionalização de estereótipos que não estão mais no texto da lei, mas que continuam vivos nas “teorias de todos os dias” dos agentes punitivos do SJC (policiais, promotores/as, magistrados/as), atualizando constantemente a violência simbólica e material da anormalidade imposta às vivências sexuais que não se conformam à heterossexualidade (CARVALHO; DUARTE, 2017CARVALHO, Salo de; DUARTE, Evandro Piza. Criminologia do Preconceito: racismo e homofobia nas Ciências Criminais. São Paulo: Saraiva, 2017.: 26, 49). Estamos de acordo com a criminóloga e jurista feminista Soraia da Rosa Mendes (2012MENDES, Soraia da Rosa. (Re)pensando a criminologia: reflexões sobre um novo paradigma desde a epistemologia feminista. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Brasília, 2012.: 45) quando conclui: “Lombroso, Ferri e os demais positivistas, enfim, são bem mais atuais do que se possa imaginar”.

Essa imbricação entre sexualidade e criminalidade não deve ser minimizada, já que ela circula uma narrativa dominante que somente aceita enunciar o sexo em termos negativos, como algo pecaminoso, perigoso e destrutivo, vinculado sobretudo à discussão da violência. Uma perspectiva sex-positive, por outro lado, abriria espaços não somente para discutir tanto as experiências de pessoas LGBT+ com o SJC, como também assumiria uma intervenção no discurso jurídico-penal a partir do entendimento de que o prazer em si é um valor que merece reconhecimento. A partir disso, é possível desvelar os mecanismos moralistas e não democráticos pelos quais o SJC atua para impedir o acesso a certas fruições do desejo, a depender de variáveis como gênero, raça, classe e deficiência (WODDA; PANFIL, 2018WODDA, Aimee; PANFIL, Vanessa R. “Insert sexy title here: moving toward a sex-positive criminology”. Feminist Criminology, v. 13, n. 5, 2018.). Essa chave de interpretação fornece outra perspectiva de análise de uma série de ingerências punitivistas que têm a finalidade de controlar a sexualidade feminina “excessiva”10 10 O direito penal brasileiro é cheio de exemplos: o finado crime de adultério (revogado somente em 2005), as persistentes criminalizações de atos relacionados à prostituição (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, casa de prostituição e rufianismo) e do próprio aborto, além da criminalização do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, vigente até 2016, que presumia forçada toda atividade de prostituição, independente das circunstâncias. .

Também não é insignificante o afastamento inicial da pauta da sexualidade (com exceção da contracepção), por questões conjunturais e de estratégia política, pelo movimento feminista brasileiro na década de 70 e sua reintrodução através de uma reivindicação encapsulada na luta contra a violência masculina (em especial feminicídios) na virada para os anos 80. É sintomático que o maior símbolo de legislação feminista pós-redemocratização seja sobre violência doméstica. Como diz Katherine Franke (2001FRANKE, Katherine. “Theorizing Yes: an essay on feminism, law, and desire”. Columbia Law Review, v. 101, 2001.: 197), analisando o pressuposto equivocado de que o sexo seria algo apenas imposto e não também realizado pelas mulheres, para muitas juristas feministas “dizer não ao sexo tem sido entendido como uma das principais maneiras de dizer sim ao poder”. As juristas feministas brasileiras, assim como as estadunidenses, também cederam aos/às teóricos/as queer o trabalho de imaginar o corpo feminino como um lugar também de prazer, intimidade e possibilidades eróticas.

A perspectiva deste trabalho, embora esteja organizado a partir da fala de juristas que investigam situações de negatividade do sexo no âmbito doméstico/familiar, não pretende concordar com a perspectiva de certos feminismos que apostam acriticamente no direito, acreditam no punitivismo do Estado e repetem a moldura da violência de gênero como manifestação do patriarcado e/ou da dominação masculina (representada na figura congelada no tempo do homem agressor e da vítima feminina) enquanto a explicação universal da negatividade do sexo vivenciada por mulheres. As críticas feministas ao direito podem contribuir para “dessacralizar a alquimia sexo-perigo” (FRANKE, 2001FRANKE, Katherine. “Theorizing Yes: an essay on feminism, law, and desire”. Columbia Law Review, v. 101, 2001.: 201) e desconstruir essencialismos sobre o sexo como algo necessariamente negativo e masculino aos olhos do direito. Para fazer isso, no entanto, não deveríamos somente perguntar sobre a mulher (asking the woman question), também é preciso perguntar para elas (asking the woman a question): para mulheres lésbicas, quais os sentidos de suas relações afetivas e sexuais? Que papel a violência desempenha nessas relações? As explicações que os feminismos oferecem são suficientes? Há lugar para o direito nessa história?

4. “Mulher” e “Mulher lésbica” sobrevivendo à violência doméstica e ao Judiciário

A LMP, como é da natureza dos engajamentos de minorias políticas com o direito conservador, é fruto de contradições da práxis feminista: a intrusão do sujeito “Mulher” pelas frestas da ordem jurídica; a legitimação do recrudescimento penal (representada sobretudo pelo afastamento da aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais) com a assunção de uma certa validação do próprio SJC; e, ao mesmo tempo, a inscrição de uma “sensibilidade feminista” (CAMPOS, 2011CAMPOS, Carmen Hein de. “Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e lei Maria da Penha”. In: ______. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.: 9) que, como sustentamos aqui, inclui na mesma medida que exclui certos sujeitos e certas experiências do campo do pensável. Todavia, antes de analisar os casos jurisprudenciais do TJMG, precisamos fazer algumas breves considerações sobre a relação entre “Mulher”, “Mulher lésbica” e violência.

O desconforto que a figura da “Mulher” causa nos operadores do SJC não é por acaso. O direito penal brasileiro, em verdade, designou um papel secundário a essa “Mulher”, preocupando-se em categorizá-la expressamente na condição de sujeito passivo dos crimes sexuais. A “Mulher” era a vítima por excelência, já que o papel de criminoso cabia ao “Homem”, o sujeito ativo, dominador e perigoso por definição. A grande preocupação do direito (principalmente do direito civil) era de limitar a mulher em sua capacidade civil, no exercício de direitos patrimoniais, no acesso à educação e, no geral, em seu poder de decisão tanto na família quanto na sociedade (MELLO, 2010MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. “Da mulher honesta à lei com nome de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira”. Videre, ano 2, n. 3, 2010.).

A criminologia feminista foi um dos campos do saber a apontar para essa posição secundária e essencialista da “Mulher” enquanto vítima do SJC (embora saibamos que o processo de vitimização também não é igualmente distribuído para todas as mulheres que reivindicam essa posição). As expectativas de gênero também influenciam a dogmática penal e a atuação das agências formais de controle: o crime é algo esperado dos homens por serem homens, de modo que a relação crime-homens-masculinidade chega a ser tão íntima a ponto de naturalizar essa tríade socialmente construída (NAFFINE, 1997NAFFINE, N. Feminism & Criminology. Cambridge / Malden: Polity Press, 1997.). A vitimização dessa “Mulher” é o outro lado da moeda da criminalização de seu par, servindo como verdadeira fiadora da estabilidade da categoria “Homem” (que não é nomeada, porque não precisa ser): sua definição é por contraste, como tudo aquilo que não é feminino, ou seja, aquilo que não é doméstico, modesto, passivo, estuprável, violável... enfim, aquilo que não é vítima.

Tudo isso, no entanto, não significa que os saberes criminológicos dominantes silenciem completamente sobre a criminalidade feminina: significa, apenas, que as explicações dadas é que deixam muito a desejar (SMART, 1977SMART, C. Women, Crime and Criminology. London / Henley / Boston: Routledge / Kegan Paul, 1977.). Essa “Mulher” é única apenas na superfície: ela também convive com suas dicotomias internas, que estabelecem a mulher “excessiva” ou “sem limites” como necessária para a construção e estabilização da categoria “Mulher” dentro do falocentrismo. Em estudo sobre a invenção da figura da lésbica e as representações culturais de mulheres agressivas, Lynda Hart (1994)HART, L. Fatal Women: lesbian sexuality and the mask of aggression. London: Routledge, 1994. retraça a história da emergência da homossexualidade feminina enquanto identidade discursiva a partir da figura da “invertida”, construída pela sexologia do séc. XIX. Essa categoria facilitou a entrada da “Mulher lésbica” no discurso, estabelecendo uma série de características a serem lidas e interpretadas por sujeitos autorizados que, ao mesmo tempo, impossibilitaram sua visualização como uma mulher de verdade. A principal marca da “invertida” é a sua agressividade, sua paixão desenfreada, e não somente o sexo do objeto de seu desejo, sendo essa característica profundamente masculina o que a torna desviante e perigosa. A inversão sexual, portanto, funciona para preservar o desejo ativo dentro da masculinidade11 11 Segundo a descrição do jurista brasileiro Viveiros de Castro (1934: 191), as chamadas “tribades” (ou safistas) são marcadas por uma “inversão psychica de gostos e tendencias”: preferem os brinquedos dos homens, amam as roupas masculinas, adquirem “vicios do homem” como fumar charuto e beber, não suportam os “trabalhos de agulhas” e ambicionam “a existencia livre do estudante, a vida aventureira do soldade”. As lésbicas têm “alma masculina, encerrada em um peito de mulher”, o que “dá expansão nestes exercícios violentos á sua coragem e aos seus sentimentos viris”. . Em conjunto com a “mulher criminosa nata” de Lombroso (aquela que se parece mais com um homem do que com uma mulher normal), a “invertida congênita” opera para marcar os limites da feminilidade. A “Mulher” é, paradoxalmente, violenta e incapaz de agredir ao mesmo tempo.

Esse paradoxo ainda é visível nas decisões do TJMG, que segue uma tendência similar já vista em outros tribunais de segunda instância do país, como os tribunais de justiça do Sul (DURÃES; MACHADO, 2017DURÃES, Thaís da Silva; MACHADO, Isadora Vier. “Lesbianidades e Lei Maria da Penha: problematizações a partir de uma análise jurisprudencial nos tribunais do sul do país”. Revista Gênero & Direito, v. 6, n. 2, 2017.): ainda que a jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça (daqui em diante STJ) afirme que tanto homens quanto mulheres possam ser sujeitos ativos dos crimes relacionados à violência doméstica, as decisões analisadas demonstram uma confusão por parte da magistratura brasileira em relação à violência praticada pela “Mulher lésbica”. Diversos casos aqui analisados chegam à segunda instância através de conflitos de jurisdição causados por divergências de concepções de variados operadores do SJC (delegados/as, juízes/as de piso, promotores/as) sobre a aplicabilidade da LMP em relações íntimas de afeto entre mulheres. A realidade é que a possibilidade abstrata de aplicação da LMP para relações íntimas de afeto entre mulheres lésbicas oculta a real ambiguidade do SJC ao lidar com essas situações e, mais ainda, a domesticação dessa figura que acompanha a nomeação de sua existência.

Existe uma tensão subjacente às próprias condicionantes históricas e ideológicas que fizeram nascer a LMP. Essa lei é, em vários sentidos, uma quimera dentro da legislação brasileira: coloca a “Mulher” como categoria central para a interpretação e aplicação de seus dispositivos; adota a perspectiva da integralidade, voltada à assistência, prevenção da violência e penalização dos agressores; cria juízos de competência mista (criminal e cível) para evitar peregrinações na busca por uma tutela jurisdicional; adota, pela primeira vez na história do direito brasileiro (CAMPOS; CASTILHO, 2018CAMPOS, Carmen Hein de; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. “Sistema de Justiça Criminal e Perspectiva de Gênero”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 146, 2018.), uma perspectiva de gênero em uma legislação e, ainda, traz a primeira referência infraconstitucional às famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo em seu art. 5º, parágrafo único (DIAS, 2013DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.). A mulher que dá nome a essa lei, Maria da Penha, diz muito sobre a representação dominante da violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil: uma mulher heterossexual, à época casada, sobrevivente de várias tentativas de feminicídio, crente no SJC e obstinada na busca pela penalização do seu agressor. Ela é o símbolo encarnado de uma das maiores conquistas jurídicas dos feminismos brasileiros.

Deixando de lado, por ora, a discussão sobre os perigos de eleger uma pessoa para dar nome a uma lei, queremos aqui chamar atenção para dois fatores: por um lado, a LMP, a despeito de seu art. 5º, parágrafo único, já nasceu carregada de representações reducionistas sobre quem é vítima e quem é agressor em uma relação doméstica/familiar violenta (o que diz muito sobre o estado da práxis feminista hegemônica nesse assunto). Por outro, a sensibilidade feminista (provavelmente sua característica mais celebrada), verdadeira alma de suas disposições, passa por um processo largamente oculto de cooptação e domesticação quando analisamos os processos rotineiros de criminalização e vitimização do SJC.

Em relação ao primeiro ponto, é preciso dizer que a incorporação da categoria “gênero” na LMP não implicou em um abandono da categoria “Mulher”. Ao contrário, o que se vê é que a perspectiva de gênero subsidiou o nascimento de duas interpretações do fenômeno da violência contra as mulheres no Brasil: a primeira, identificada com uma matriz feminista marxista ou radical, compreende a violência como um reflexo do patriarcado e da dominação masculina; outra, mais relativista, considera a violência como parte de um jogo de dominação/submissão nas relações de gênero, com maiores possibilidades de mobilidade de posições entre os sujeitos envolvidos. A primeira corrente, mais ligada à sociologia, predomina junto às produções das feministas do direito (CAMPOS; SEVERI, 2019CAMPOS, Carmen Hein de; SEVERI, Fabiana Cristina. “Violência contra mulheres e crítica jurídica feminista: breve análise da produção acadêmica brasileira”. Revista Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 2, 2019.). Isso tem consequências diretas para a compreensão da violência em relações afetivo-conjugais entre mulheres lésbicas. O modelo explicativo do patriarcado e da dominação masculina não se aplica confortavelmente a essas relações e, nas raras ocasiões em que elas são discutidas, o movimento mais fácil é tentar entendê-las a partir da emulação das relações heterossexuais: uma sujeita ativa, exercendo o papel de gênero masculino; uma sujeita passiva, representando o papel de gênero feminino. Nesse ponto, concordamos com Adrienne Rich (1980)RICH, Adrienne. “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”. Signs, v. 5, n. 4, 1980.: qualquer teoria ou criação cultural/política que trate a existência lésbica como a imagem espelhada das relações heterossexuais ou das relações homossexuais masculinas já está profundamente enfraquecida, independentemente de suas outras contribuições eventuais.

Quanto ao segundo ponto, o movimento paradoxal dos aplicadores da lei em Minas Gerais tem três movimentos: a) a não aplicação da LMP, já que a “Mulher lésbica” não é mulher aos olhos da lei (a “Mulher” da LMP é fisicamente inferior, hipossuficiente e submissa em suas relações afetivo-sexuais/conjugais, já a lésbica não é nenhuma dessas coisas); b) a não aplicação da LMP, já que a “Mulher lésbica” efetivamente é uma mulher e, portanto, não consta o elemento de “gênero” e a submissão/dominação que caracterizam as relações heterossexuais; c) a repetição mecânica do entendimento majoritário do STJ pela aplicabilidade da LMP, sem discussão dos eventuais aspectos específicos dessas relações. Apenas o último movimento é mais visível aos leitores incautos: dá a impressão equivocada de que o SJC brasileiro é muito avançado, superando a história de vitimização estereotipada da “Mulher” pela legislação penal. Sugerimos cautela com essa conclusão, porque ela é apressada: uma leitura atenta dos acórdãos, em especial dos fatos narrados nos relatórios das decisões, visibiliza uma complexidade maior na parafernália discursiva produzida pelo direito sobre as lesbianidades.

Em relação a outros tribunais do Sul-Sudeste do país, o TJMG apresenta uma quantidade comparativamente maior de casos de mulheres em situação de violência e que compartilham um relacionamento afetivo-sexual/conjugal: doze decisões entre os anos de 2010 e 2020 (listadas abaixo)12 12 As palavras-chaves utilizadas no buscador de jurisprudência disponível no sítio institucional do tribunal foram as seguintes: “violência E doméstica E homoafetivo”; “violência E doméstica E homoafetiva”; “violência E doméstica E agressora”; “violência E doméstica E orientação E sexual” e “violência E doméstica E homossexual”. , enquanto o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, por exemplo, apresentaram apenas dois casos, cada um, entre 2006 e janeiro de 2017 (DURÃES; MACHADO, 2017DURÃES, Thaís da Silva; MACHADO, Isadora Vier. “Lesbianidades e Lei Maria da Penha: problematizações a partir de uma análise jurisprudencial nos tribunais do sul do país”. Revista Gênero & Direito, v. 6, n. 2, 2017.), e o Tribunal de Justiça de São Paulo teve apenas dois casos até março de 2016 (SEVERI; NASCIMENTO, 2019SEVERI, Fabiana Cristina; NASCIMENTO, Flávia Passeri. “Violência doméstica e os desafios na implementação da Lei Maria da Penha: uma análise jurisprudencial dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e São Paulo”. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, v. 7, n. 3, 2019.)13 13 Com a devida cautela ao fazer comparações definitivas (visto que os critérios de busca foram diferentes em cada pesquisa citada e que os repositórios de jurisprudência não são uniformizados), a diferença de casos é digna de nota, em especial em relação ao Estado de São Paulo, que tem uma população duas vezes maior que Minas Gerais. .

Nº processo TJMG Ano de julgamento Natureza darelação Aplicou a LMP? 1.0000.10.050729-2/000 2010 Ex-companheiras Sim 1.0024.07.791863-9/001 2011 Companheiras Sim 1.0000.11.037325-5/000 2011 Ex-namoradas Sim 1.0024.09.636529-1/001 2012 Ex-companheiras Sim 1.0024.13.125196-9/001 2014 Ex-namoradas Sim 1.0024.12.115844-8/001 2014 Ex-namoradas Sim 1.0000.15.061345-3/000 2015 Ex-companheiras Sim 1.0024.10.119034-6/001 2015 Ex-companheiras Sim 1.0024.15.134061-9/001 2016 Ex-companheiras Sim 1.0024.15.130528-1/001 2017 Ex-companheiras Sim 1.0024.14.008433-6/001 2019 Ex-namoradas Não 1.0694.10.000385-4/001 2020 Companheiras Sim Fonte: elaborada pelos autores.

Em onze casos o TJMG entendeu pela aplicação da LMP. Há uma diversidade de argumentos para fundamentar sua aplicação: em quatro deles, o tribunal entendeu haver uma relação doméstica, familiar ou de afetividade; em três, aplicou-se o art. 5º, parágrafo único; em um, agregou-se o argumento da natureza da relação com o art. 5º, parágrafo único; em um, utilizou-se o argumento da existência de uma relação de dominação combinado com o art. 5º, parágrafo único; em um, não se discutiu a aplicabilidade da LMP, mas tão somente a condenação em primeira instância. No único caso em que não se aplicou a lei, discutiu-se a inexistência de uma relação íntima de afeto (entendeu-se que não havia namoro ou envolvimento amoroso, duradouro e estável). A fundamentação da maior parte das decisões pela admissibilidade da aplicação da LMP é fortemente ancorada em precedentes do STJ que determinam que o polo ativo pode ser ocupado por homens e mulheres (desde que o polo passivo seja mulher), sem maiores aprofundamentos sobre as nuances do caso concreto.

Embora o tribunal tenha aplicado a LMP na esmagadora maioria dos casos, isso não significa em absoluto que há uma pacificação de entendimento quanto ao âmbito de aplicação da norma. A sensibilidade de uma corte quanto a questões de gênero não se define apenas pelos resultados pretensamente benéficos do processo: importa analisar também os argumentos utilizados por seus integrantes quando se manifestam, especialmente quando baseados em estereótipos e preconceitos, já que são capazes de transmitir um recado contraditório e incompleto a grupos minorizados (GOMES, 2016GOMES, Juliana Cesario Alvim. “O Supremo Tribunal Federal em uma perspectiva de gênero: mérito, acesso, representatividade e discurso” Revista Direito & Práxis, v. 7, n. 15, 2016.). Dito isso, as confusões e paradoxos estão presentes, seja no processo em primeira instância ou no próprio tribunal de justiça. É digno de nota que dez dos onze casos supracitados chegaram ao TJMG em razão de discussões quanto à competência material do juízo de primeira instância (em nove deles, o juízo de piso entendeu não ser aplicável a lei; em um deles, o Ministério Público entendeu que o caso deveria seguir no Juizado Especial Criminal).

Vamos aos argumentos. A inferioridade física, a fragilidade em relação ao homem, a hipossuficiência e a vulnerabilidade são marcantes no discurso dos magistrados nos casos de violência doméstica em geral, critérios inventados pela jurisprudência e que funcionam para traduzir a radicalidade da sensibilidade feminista da LMP em termos mais palatáveis à sensibilidade conservadora do Judiciário. Esse mesmo argumento aparece com certa frequência nos casos analisados, como se pode ver a seguir:

[...] o juiz declinou a competência para julgamento do feito em uma das unidades jurisdicionais do Juizado Especial Criminal da comarca de Belo Horizonte/MG, ao argumento de que: “(...) o sujeito ativo deve ser homem, e o passivo mulher, de tal forma que haja uma situação de vulnerabilidade ou de inferioridade física ou econômica que possa justificar a aplicação da Lei Maria da Penha em conflitos envolvendo relações domésticas e familiares entre mulheres (...)” (TJMG, Recurso em Sentido Estrito nº 1.0024.15.134061-9/001, 2016; argumentos do juízo a quo).

A hipossuficiência não está caracterizada em toda e qualquer relação doméstica. Entre ex-companheiras envolvidas no fato em apuração, nada há a indicar tal condição (TJMG, Recurso em Sentido Estrito nº 1.0024.15.130528-1/001, 2017; voto vencido).

No presente caso, entendo que não incide a Lei 11.340/06, vez que conforme já exposto, para que se caracterize violência doméstica é necessário que se verifique presente o requisito da fragilidade ou hipossuficiência proveniente do gênero, o que não ocorreu nos fatos em comento, posto que as supostas agressões e ameaças ocorreram entre duas mulheres maiores, uma com 29 e a outra com 37 anos de idade, sem haver nos autos qualquer menção à alguma causa de vulnerabilidade que poderia acometer a ofendida. [...] não configurada a relação de fragilidade, inferioridade, vulnerabilidade ou hipossuficiência entre a ré e a vítima, a aplicação da Lei 11.340/06 deve ser afastada (TJMG, Habeas Corpus nº 1.0000.15.061345-3/000, 2015; voto vencido).

[...] até mesmo a diferença de força física do homem em relação à mulher serviu de base a lei em comento, sendo que o Congresso Nacional ao editar a lei, o fez por entender ser e estar a mulher em condição de hipossuficiência frente ao homem. Com isso, não se enquadrando os autos em tela a tal situação, já que em hipótese alguma podemos dizer que em uma mulher esteja em condição de submissão e inferioridade em relação a outra mulher, é carecedor de uma das condições de ação, ou seja, a possibilidade jurídica do pedido (TJMG, Apelação Criminal nº 1.0024.12.115844-8/001 e Apelação Criminal nº 1.0024.13.125196-9/001, ambos de 2014; argumentos do juízo a quo).

Remetidos os autos ao Juízo de Primeiro Grau, as medidas protetivas por ela pleiteadas foram indeferidas pelo MM Juiz a quo, ao argumento que o pedido não é juridicamente possível, uma vez que “em hipótese alguma podemos dizer que uma mulher esteja em condição de submissão e inferioridade em relação a outra mulher” (TJMG, Recurso em Sentido Estrito nº 1.0024.10.119034-6/001, 2015; argumentos do juízo a quo).

O Judiciário insiste na demonstração individual de uma motivação de gênero que, em verdade, é estrutural. Além de impor um ônus adicional à mulher em situação de violência, também faz parecer que a própria razão de ser da LMP é o fato autoevidente de que algumas mulheres merecem a proteção do Estado porque são frágeis, hipossuficientes e fisicamente/economicamente inferiores aos homens. É estabelecida uma expectativa de impotência feminina como pré-condição à proteção legal. O binômio vítima impotente/agressor poderoso é reforçado, sem possibilidade de reconhecimento de como o poder circula nessas relações. Voltemos ao início: em nenhum momento a exposição de motivos anexada ao projeto de lei apresentado pelo Executivo à Câmara dos Deputados em 2004 faz menção a essas supostas características femininas. Muito pelo contrário, deixa claro que as desigualdades de gênero advêm de uma “construção sócio-cultural que não encontra respaldo nas diferenças biológicas dadas pela natureza”14 14 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node018ulmp1xiz3wf15120r8tww8bf22260420.node0?codteor=256085&filename=Tramitacao-PL+4559/2004. Acesso em: 15 jan. 2022. . Trata-se, portanto, de uma inovação argumentativa limitadora, parida pelos agentes do SJC, sem “DNA” feminista.

Além disso, o discurso jurisprudencial acima também avança estereótipos com base na orientação sexual: a “Mulher lésbica”, como se vê, não é exatamente a “Mulher” que merece a atenção esporádica do legislador penal, já que ela, diferentemente das mulheres heterossexuais, não é fisicamente inferior à sua parceira e não é frágil e vulnerável à sua violência. Aqui, há uma repetição do mito da igualdade nas relações entre mulheres lésbicas, como se a sujeição de gênero dependesse necessariamente da presença de um homem para poder emergir. A violência é questionada e relativizada em razão do contexto homoerótico em que aconteceu.

Em conjunção com esse movimento, outros argumentos circulam para fundamentar a não aplicação da LMP porque a “Mulher lésbica”, mesmo não sendo heterossexual, continua pertencendo ao sexo feminino e, portanto, a violência que sofreu não preenche os requisitos legais, já que não haveria violência de gênero em seu caso:

Sustenta, em síntese, o Juízo Suscitante (f. 70-71), que “sendo ambos os envolvidos pessoas do sexo feminino, verifica-se que o móvel das condutas delituosas da suposta agressora não contém o elemento normativo que configura a violência doméstica, ou seja, violência de gênero” (TJMG, Conflito de Jurisdição nº 1.0000.10.050729-2/000, 2010; argumento não foi aceito pelo tribunal).

Não se pode, desta forma, igualar situações que, ainda que unidas pela característica da violência, apresentam diversidade de valor. É dizer: o marido que espanca a esposa não comete a mesma violência da esposa que agride o marido. Não se trata de situações idênticas, a não ser que os olhos do intérprete estejam cerrados para o conceito de violência de gênero e a forma como os valores sociais são consolidados ao longo dos tempos (TJMG, Recurso em Sentido Estrito nº 1.0024.15.130528-1/001, 2017; voto vencido).

Aos olhos do julgador, violência doméstica exige diversidade de gênero no casal. A violência praticada é minimizada em razão da feminilidade de quem a pratica. Há uma clara hierarquia de gravidade aos olhos do SJC, o que não surpreende se lembrarmos que a representação de mulher desenhada por seus agentes em nada se assemelha à feminilidade reimaginada pelas feministas que ajudaram a escrever o texto da LMP. Nesse estado de coisas, a “Mulher lésbica” permanece ambígua: às vezes reconhecida como mulher de pleno direito, às vezes penalizada por ser mulher “de menos”, às vezes ignorada por ser, ao fim e ao cabo, mulher. Diante dessas contradições, sua presença significa elemento de desordem na ordem falocêntrica e heteronormativa produzida e cristalizada pelo discurso jurídico-penal, ao mesmo tempo agressiva e incapaz de praticar violências que importam.

Esse retrato puído das relações íntimas de afeto - sejam heterossexuais ou homossexuais - denota um ranço patriarcal e heterossexista: as mulheres heterossexuais ocupam uma posição fixa de vítima à espera da proteção paternalista do Estado; a violência praticada e vivida por mulheres lésbicas, por sua vez, é naturalizada e não mobiliza (pelo menos não da mesma maneira) as agências estatais, ecoando a histórica ligação entre lesbianidade e agressividade e a ideia de violência mútua. A cooptação do discurso feminista pelo SJC transformou a inovação da LMP em um dispositivo de essencialização de identidades e condutas. Esse essencialismo impede uma visão intersubjetiva da violência (SJOBERG; GENTRY, 2007SJOBERG, Laura; GENTRY, Caron. Mothers, Monsters, Whores: women’s violence in global politics. London / New York: Zed Books, 2007.) que dê conta tanto do contexto de desigualdades estruturais em que essas relações afetivo-conjugais se desenrolam quanto das escolhas individuais tomadas por essas sujeitas. Parafraseando Carol Smart (1989)SMART, C. Feminism and the Power of Law. London / New York: Routledge, 1989., de nada adianta uma lei avançada e declaradamente feminista se, quando as mulheres falam, elas são escutadas da mesma maneira como sempre foram.

Considerações finais

Estamos convencidos de que a saída não está fora dos feminismos. Este não é um trabalho que pleiteia a substituição total de nossas matrizes teóricas, mas a reavaliação, com amor, de nossas premissas diante da realidade que se impõe. Hoje, a realidade posta é que nossas explicações estão falhando para muitas mulheres, que também desejam e merecem viver uma vida sem violência. Pois bem: que façamos novas teorias, como sempre fizemos. Assim, quando uma mulher LBT+ decidir bater à porta da delegacia ou compartilhar o que está passando com seus amigos, familiares ou colegas de trabalho, ela terá maiores chances de ser devidamente acolhida por pessoas capazes de escutá-la ativamente sem revitimizá-la, porque um nome, então, já estará disponível.

Ao mesmo tempo, este artigo também é um ato de reivindicação de uma conquista duramente travada por quem nos precede, após mais de quinze anos de institucionalização do combate à violência doméstica e do nosso engajamento com o SJC. O que ganhamos e o que perdemos com esse movimento? A LMP adentrou os meandros burocráticos do Estado, conseguindo benefícios inquestionáveis (capilaridade, continuidade dos serviços, financiamento, legitimidade da pauta, acesso a dados mais confiáveis etc.), mas isso não veio sem custos. O discurso jurídico-penal reforça um “mito de origem” sobre essa lei que acaba por distorcer os processos políticos/sociais que a fizeram nascer, as responsáveis por esses processos e a quem ela se destina, com o resultado nefasto de reinscrevê-las aos papéis de vítimas e aos estereótipos de gênero produzidos pelo direito (SEVERI; NASCIMENTO, 2019SEVERI, Fabiana Cristina; NASCIMENTO, Flávia Passeri. “Violência doméstica e os desafios na implementação da Lei Maria da Penha: uma análise jurisprudencial dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e São Paulo”. Revista Eletrônica Direito e Sociedade, v. 7, n. 3, 2019.: 31-32). Quarenta anos depois, ainda dizem às mulheres que elas são o que sempre disseram que eram: frágeis, vulneráveis e fisicamente inferiores. Já passou da hora de dizermos outro direito, com nossas palavras e nossas dores, em toda a sua diversidade.

  • ERRATA

    No artigo A mulher lésbica é mulher para a Lei Maria da Penha?, com número de DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2022/66798, publicado no periódico Revista Direito e Práxis, 13(2): 1168-1199, na página 1197:
    Onde se lia:
    “LUSA, Mailiz Garibotti. “Desconstruindo o heterocentrismo da violência nas relações conjugais”. Revista Katálysis, v. 11, n. 1, 2008.
    Machado, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. Tese (Doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.”
    Leia-se:
    “LUSA, Mailiz Garibotti. “Desconstruindo o heterocentrismo da violência nas relações conjugais”. Revista Katálysis, v. 11, n. 1, 2008.
    Macedo, Ana Cláudia Beserra. Colonialidade da sexualidade: uma análise comparada e colaborativa sobre violência em relações lésbicas em Bogotá, Brasília e Cidade do México. Tese (Doutorado). Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília. Brasília, 2020.
    Machado, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. Tese (Doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2013.”
  • 1
    Fazemos referência a mulheres lésbicas pela importância de nomear essas existências ao mesmo tempo perseguidas e invisibilizadas pela ordem jurídica. Não pretendemos com isso presumir que todas as mulheres em relacionamentos homossexuais se identifiquem necessariamente com essa categoria.
  • 2
    Com isso, não estamos dizendo que os feminismos brasileiros são provenientes apenas desses lugares, mas queremos justamente nomear e criticar a geopolítica do conhecimento que também atravessa os estudos feministas no Brasil. A explicação feminista dominante sobre violência doméstica ainda coloca mulheres do Sul/Sudeste como as protagonistas dessa bandeira, alçadas a verdadeiras guardiãs de nossa história, de modo que esse elemento do pertencimento regional também merece menção e exige reflexão futura.
  • 3
    Para um resgate da história de fricções e invisibilizações que levou à criação das primeiras organizações de mulheres lésbicas feministas no Brasil, incluindo o desenvolvimento de movimentos de mulheres negras lésbicas feministas, conferir Marisa Fernandes (2018)FERNANDES, Marisa. “Ações lésbicas”. In: GREEN, James N. et al. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018. e Ana Cristina Conceição Santos (2018)SANTOS, Ana Cristina Conceição. “Lésbicas negras (re)existindo no movimento LGBT”. In: GREEN, James N. et al. (org.). História do Movimento LGBT no Brasil. São Paulo: Alameda, 2018..
  • 4
    As pesquisas no Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e Austrália remontam desde os anos 80, embora a maioria ainda enfatiza as experiências de vitimização de mulheres em relacionamentos homossexuais. Lá, como aqui, ainda são poucos os estudos sobre experiências de pessoas trans ou das pessoas LGBT+, inclusive mulheres, que adotam comportamentos violentos em seus relacionamentos familiares/domésticos. Em razão disso, Janice Ristock (2011)RISTOCK, Janice. “Introduction: intimate partner violence in LGBTQ lives”. In: ______. Intimate Partner Violence in LGBTQ Lives. New York / London: Routledge, 2011. sustenta que o campo ainda representa, no máximo, um apêndice ao campo da violência doméstica heterossexual.
  • 5
    Ilustrando esse aspecto, vale ler as palavras de uma vítima/sobrevivente brasileira: “se na época, se eu tivesse uma rede... Mas a coisa de ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’ também é em briga de mulher e mulher, sabe, as pessoas não querem se intrometer. Não querem meter a colher em relacionamento nenhum” (MACEDO, 2020: 186).
  • 6
    Entrevistando mulheres lésbicas estadunidenses que adotaram comportamentos violentos com suas parceiras, Carrol Smith (2011SMITH, Carrol. “Women who abuse their female intimate partners”. In: RISTOCK, Janice (ed.). Intimate Partner Violence in LGBTQ Lives. New York / London: Routledge, 2011.: 139) anota que uma das participantes relatou que, nas vezes em que a polícia foi chamada para lidar com a violência ocorrida, ela foi levada com muito mais frequência pela polícia por ter aparência mais masculina do que suas parceiras.
  • 7
    Em pesquisa com mulheres estadunidenses que sofreram violência doméstica de seus parceiros (homens trans), Brown (2011BROWN, Nicola. “Holding tensions of victimization and perpetration: partner abuse in trans communities”. In: RISTOCK, Janice (ed.). Intimate Partner Violence in LGBTQ Lives. New York / London: Routledge, 2011.: 158) aponta que a dificuldade inicial das vítimas/sobreviventes de reconhecer a violência se deu em parte por causa das explicações feministas baseadas no gênero, visto que esse modelo avança a ideia de que a pessoa abusiva é a que detém também o poder social. Nesse sentido, a visão de que seus parceiros transexuais eram “mais oprimidos” como consequência da transfobia institucionalizada acabou interferindo e adiando o processo de significação pelas vítimas/sobreviventes de que o que estavam vivendo era violência doméstica.
  • 8
    Em outra pesquisa realizada por Janice Ristock (2003RISTOCK, Janice. “Exploring dynamics of abusive lesbian relationships: preliminary analysis of a multisite, qualitative study”. American Journal of Community Psychology, v. 31, n. 3-4, 2003.: 335), uma das entrevistadas significou sua experiência da seguinte forma: “É uma dança de submissão e domínio entre duas pessoas”.
  • 9
    A teoria de Heleieth Saffioti (2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.: 72), referência inegável do feminismo brasileiro, é uma expressão dessa moldura teórica heterocentrada. Em suas palavras: “[Mulheres violentas] São, todavia, muito raras, dada a supremacia masculina e sua socialização para a docilidade”.
  • 10
    O direito penal brasileiro é cheio de exemplos: o finado crime de adultério (revogado somente em 2005), as persistentes criminalizações de atos relacionados à prostituição (favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual, casa de prostituição e rufianismo) e do próprio aborto, além da criminalização do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, vigente até 2016, que presumia forçada toda atividade de prostituição, independente das circunstâncias.
  • 11
    Segundo a descrição do jurista brasileiro Viveiros de Castro (1934CASTRO, V. Attentados ao Pudor. 3 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1934.: 191), as chamadas “tribades” (ou safistas) são marcadas por uma “inversão psychica de gostos e tendencias”: preferem os brinquedos dos homens, amam as roupas masculinas, adquirem “vicios do homem” como fumar charuto e beber, não suportam os “trabalhos de agulhas” e ambicionam “a existencia livre do estudante, a vida aventureira do soldade”. As lésbicas têm “alma masculina, encerrada em um peito de mulher”, o que “dá expansão nestes exercícios violentos á sua coragem e aos seus sentimentos viris”.
  • 12
    As palavras-chaves utilizadas no buscador de jurisprudência disponível no sítio institucional do tribunal foram as seguintes: “violência E doméstica E homoafetivo”; “violência E doméstica E homoafetiva”; “violência E doméstica E agressora”; “violência E doméstica E orientação E sexual” e “violência E doméstica E homossexual”.
  • 13
    Com a devida cautela ao fazer comparações definitivas (visto que os critérios de busca foram diferentes em cada pesquisa citada e que os repositórios de jurisprudência não são uniformizados), a diferença de casos é digna de nota, em especial em relação ao Estado de São Paulo, que tem uma população duas vezes maior que Minas Gerais.
  • 14

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2022
  • Aceito
    28 Abr 2022
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