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O Apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital

The Apartheid of law: reflections on legal positivism at the periphery of capital

Resumo

No artigo “O apartheid do direito: reflexões sobre o positivismo jurídico na periferia do capital”, tematizo como a ideologia positivista foi adaptada no Brasil e se expressa por meio de alguns elementos que são constitutivos da forma jurídica tal qual se desenvolveu nos países periféricos do capitalismo. Parte das discussões travadas na tese de doutorado “Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica Universitária Popular” (2015), o presente artigo apresenta alguns elementos da pesquisa de campo realizada para o trabalho doutoral, baseando-se no materialismo histórico-dialético. O marco teórico transita no campo da tradição marxista, em especial as análises de G. Luckács, E. Pachukanis, I. Mészáros e Florestan Fernandes; dialogando também com as análises de Roberto Schwartz e Sérgio Buarque de Holanda, além de algumas formulações de teóricos críticos no campo jurídico.

Palavras-chave:
direito e marxismo; positivismo jurídico; ideologia

Abstract

The article “The apartheid of Law: reflections on legal positivism at the periphery of capital” approaches how the positivist ideology adapted to Brazil and how it is expressed through elements that constitutes the legal form as it has developed in peripheral capitalist countries. Being a part of the discussions held in the doctoral thesis “A snap in law schools: ideological perspectives of university students’ popular legal counsels” (2015), this article presents some elements of the field research that was executed for the doctoral work, based on historical and dialectical materialism. The theoretical framework transits in the field of Marxist tradition, especially the analysis of G. Luckács, E. Pachukanis, I. Mészáros and Florestan Fernandes; also dialoguing with the analysis of Roberto Schwartz and Sergio Buarque de Holanda, as well as some formulations by critical theorists in the legal field .

Keywords:
law and marxism; juridical positivism; ideology

Introdução

Na primeira semana de aula na faculdade de direito da Universidade Federal do Piauí, Lucas1 1 São fictícios os nomes dos estudantes aqui mencionados com a devida autorização. ficou estarrecido com o andamento de um debate promovido por certo professor do primeiro período. Estava em questão uma situação hipotética sobre o apartheid sul-africano: qual seria a atitude dos estudantes caso tivessem que julgar uma pessoa negra que houvesse cometido um crime2 2 Encontram-se grafados em itálico os termos estrangeiros, os que carregam dubiedade analítica e os termos e expressões próprios do campo de pesquisa (êmicos). tal qual estabelecido por aquele regime – por exemplo, o crime de um negro entrar no ônibus reservado aos brancos. Os estudantes, na condição de juízes, o condenariam ou não? Perguntava o professor. O estarrecimento de Lucas deveu-se ao fato de praticamente todos os alunos terem optado pela condenação, argumentando que a lei deveria ser cumprida sob pena de conivência com o caos social. “Basicamente isso”, arrematou Lucas, ao narrar o episódio.

Indignado, ele pensou: “Onde é que eu tô?” Afinal, seus colegas, mesmo sabendo que as opções legais que arregimentavam o regime do apartheid consistiam em racismo, ainda assim decidiam privilegiar a abstração da lei em detrimento de um valor muito mais sólido para ele, o da igualdade. Lucas comparou, em sua mente, que o nazismo também se processava dentro do amparo legal e possivelmente aqueles aprendizes de juristas também julgariam correta a aplicação das leis nazistas.

Ele então começou a “entrar num estado de tristeza muito grande” com o ambiente da faculdade de direito; com a sua sala “totalmente elitizada”, percebendo as “camadas econômicas que têm ali dentro”, e começava a pensar que a universidade era “tudo aquilo” que ele “não esperava encontrar”; era “totalmente o contrário” do que imaginava. Lucas tinha a ideia de que a universidade era um espaço “totalmente diferenciado do ensino médio”, em que as pessoas teriam uma “maturidade maior e por isso teriam um senso crítico mais desenvolvido”. Mas, logo na primeira semana, sofreu uma “decepção total”.

A controvérsia sobre o apartheid na UFPI também marcou a memória de Daniela, da mesma sala de Lucas. Ela, que havia escolhido estudar direito buscando ajudar a diminuir as desigualdades sociais, “achando que o direito ia servir muito pra isso”. Decepcionou-se bastante ao perceber que ninguém mais estava ali para aquilo. Na “Semana do Calouro”, na mesma época em que seus colegas saíram em defesa do apartheid, pediram aos estudantes de sua turma que expressasse por meio de um desenho o porquê de cada um ter escolhido aquele curso. “Aí o povo desenhava dinheiro, festa, e eu sou muito tímida, ficava calada, não sei... Pensando em desenhar o mapa do Brasil. Aí eu falei: pra ajudar a melhorar nosso país, alguma coisa assim”.

Tive a oportunidade de conversar com Lucas, Daniela e mais dezenas de estudantes no ano de 2013, a propósito da tese de doutorado “Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular” (ALMEIDA: 2015ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB.). Ali, buscava compreender as possibilidades, as contradições e as limitações da assessoria jurídica universitária popular3 3 Os grupos de AJUP desenvolvem diversas atividades, comumente compreendidas como relativas à “defesa e promoção dos direitos humanos” e tradicionalmente relacionadas à educação popular e à orientação/ acompanhamento jurídico lato sensu de movimentos sociais e organizações populares em geral (ALMEIDA: 2013; RIBAS: 2009). , na tarefa de se contrapor à orientação ideológica dominante no direito, absolutamente comprometida com reprodução da ordem social. Para a pesquisa doutoral, analisei por meio de entrevistas coletivas e observação participante oito grupos4 4 O Projeto Cajuína - UFPI, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Negro Cosme - UFMA, o Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária e o Centro de Assessoria Jurídica Universitária - UFCE, o Programa Motyrum - UFRN, o Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru - UFPB, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Direito nas Ruas - UFPE e o Serviço de Apoio Jurídico Universitário – UFBA. de assessoria jurídica universitária popular do Nordeste. Este artigo aproveita esta pesquisa de campo para sintetizar um dos problemas contidos na tese: como a ideologia do positivismo jurídico foi adaptada no Brasil e se expressa no direito e na maneira de ensiná-lo por meio de alguns elementos que são constitutivos da forma jurídica tal qual se desenvolveu na periferia do capitalismo.

O modo como o direito se reproduz na formação de seus especialistas foi apreendido por teóricos ligados a tradições bem distintas. Pierre Bourdieu (2006)BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., por exemplo, identificou-o como o “habitus” do campo jurídico em O Poder Simbólico, responsável pela propagação de um ponto de vista sobre o mundo “que em nada de decisivo se opõe ao ponto de vista dos dominantes” (BOURDIEU: 2006BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p.245). Muitos dos teóricos brasileiros ligados a perspectivas críticas também se dedicaram a este campo de análise, como Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Luiz Fernando Coelho, José Geraldo de Sousa Júnior, Maria Inês Porto, entre tantos outros. Uma das formulações mais difundidas, a de Luís Alberto Warat, identificou a existência do que denominou de “senso comum teórico dos juristas”, uma espécie de pano de fundo das atividades cotidianas dos juristas, “uma para-linguagem, alguma coisa que está mais além dos significados para estabelecer em forma velada a realidade jurídica dominante” (WARAT, 1994WARAT, Luís Alberto. Introdução geral ao direito. Interpretação da lei. Temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994., p.15). O núcleo desse “senso comum” consistiria na visão dogmática a respeito do direito, concebida como um sistema lógico-dedutivo centrado na lei, por sua vez considerada ideologicamente neutra.

Em algumas dessas formulações, especialmente nas ligadas ao que se convencionou chamar de “teorias críticas do direito”, identifica-se uma espécie de “modelo central” da educação jurídica reproduzido por meio de um ensino acrítico, dogmatizado, formalista e comprometido com as elites. O passo seguinte a este diagnóstico é defender outro modelo de direito a ser construído e ensinado, um “direito emancipatório”, por assim dizer, voltado à transformação social. Quero aqui problematizar as limitações desse empreendimento, argumentando pelos laços constitutivos do direito com a sociedade de classes e o consequente modo como esses vínculos se expressam na educação jurídica.

O ensino do direito, ao difundir e reforçar a crença de que o direito consiste num sistema de normas “lógico”, “neutro” e “independente” dos demais âmbitos da vida social, cumpre com certas funções indispensáveis à reprodução da sociedade de classes. Na América Latina e no Brasil, tal funcionalidade subordina-se, ainda, à acumulação de capital nos países centrais, implicando num modelo de reprodução do complexo jurídico plenamente adaptado às condições do capitalismo periférico. No âmbito da educação jurídica, este processo conformou uma espécie de positivismo de periferia que se expressa por meio do ensino abstrato e retórico das leis; por meio da superficialidade teórica e tautologias típicas dos “doutrinadores” do direito; por meio de formalismos e caricaturas de um dogmatismo manualesco etc. Este apartheid do direito, no entanto, não é algo passível de “correção”, sendo, antes, constitutivo mesmo da forma jurídica que se processou na periferia do capitalismo.

1. Os inescapáveis aspectos do modelo “central” da educação jurídica

Assim como Daniela, também Flora entrou no curso com “aquela visão romantizada de que o direito é que traz justiça e através do direito você pode humanizar o mundo; de que a justiça é que vai trazer mais igualdade social, e que você vai poder ajudar as pessoas”. Levou um choque ao perceber que não era nada daquilo e que o direito servia para manter o que está posto. Então, pensou: “pô, o que é que eu tô fazendo aqui?” Sua colega Roberta, por sua vez, comentou:

Quando eu cheguei na faculdade era como se aquele ambiente não me dissesse respeito. Eu era absolutamente diferente daquelas pessoas em classe social, em raça, em forma de me vestir e me sentir no mundo, e senti uma barreira naquela faculdade a pessoas como eu, que não vinham do espaço de onde a maioria daquelas pessoas vinha. E a forma de organização da faculdade e da sala de aula é de sistema de desvinculo, como diz Galeano. Nada ali lhe aproxima dos outros e nem lhe faz sentir como alguém que tenha alguma coisa a acrescentar. Você vê que tudo que é ensinado em sala de aula é uma farsa ou simplesmente uma questão formal isolada de qualquer contexto, apresentada sem qualquer responsabilidade com a realidade (Roberta; Entrevista com o NAJUP Direito nas Ruas realizada em Recife no dia 24 de agosto de 2013).

Muitos estudantes sentem essa desilusão, um desencanto profundo com o curso de direito a ponto de pensarem em desistir dele quando percebem ali a reprodução das relações opressoras que marcam a sociedade. “Cala a boca, seu cotista!”, ouviu um estudante negro de um colega ligado ao Centro Acadêmico na Universidade Federal do Ceará. Malu, filha de trabalhadores rurais que ingressou na faculdade de direito da UFPI através das cotas, percebia sua sala como um ambiente “totalmente opressor”. “Eu via pessoas de outra classe social, que não conversavam com a gente, a sala totalmente dividida, e, num primeiro momento, pensei em desistir”. A imensa maioria dos estudantes eram provenientes de escolas privadas, já que apenas 10% das vagas estavam reservadas às cotas na UFPI, à época. “Você vê, na minha sala, claramente: os alunos cotistas ficam na parte esquerda da turma e os alunos não-cotistas ficam na parte direita, vê esse racha na turma”, relatou-me Malu.

Pouca gente negaria hoje que “os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reprodução estão intimamente ligados”, como argumenta István Mészáros (2005________. Educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005., p.25). Na verdade, a educação é indispensável para reproduzir a divisão social do trabalho, garantindo o funcionamento da sociedade de classes com todos os seus antagonismos. Basta pensar no importante papel que a escola cumpre no fortalecimento de valores como hierarquia, obediência, disciplina, competição etc.; além do reforço dos padrões dominantes de gênero e sexualidade, raça/etnia, geração, entre outros; todos indispensáveis ao “bom” funcionamento das relações sociais nos moldes impostos pelo capital. Este “bom” funcionamento, contudo, não é assegurado apenas pela da educação.

A partir de funções diferentes, a escola e todos os demais complexos5 5 A noção de complexo provém do quadro analítico de Luckács, para quem a totalidade social é compreendida como um complexo composto por complexos parciais, um complexo de complexos, “onde se estabelecem ininterruptamente interações, tanto dos complexos parciais entre si quanto do complexo total com suas partes” (Lukács , 2013, p.162). Cada indivíduo é, em si, um complexo e, à medida que, coletivamente, vão interagindo com a natureza ao longo do desenvolvimento histórico, vão produzindo e (reproduzindo) o ser social, criando novos complexos para atender às necessidades que se colocam no curso desse desenvolvimento, sempre a partir dessa troca com a natureza – o trabalho. relevantes para a reprodução da totalidade social (política, direito, arte, religião etc.) incidem nesse processo de internalização dos elementos necessários ao desenvolvimento das relações sociais nos moldes como estão postas na sociedade de classes, reforçando seus valores centrais. Chico, a propósito, compreendeu bem a complementaridade entre esses espaços a partir dos quais ele tomava consciência do mundo:

(...) a minha formação era assim: eu tava me preparando pro vestibular lendo a Veja, toda semana - eu tinha assinatura da Veja [risos] -, achando que tinha que ter aquele muro pra parar de crescer as favelas, porque senão as favelas iam tomar conta da cidade; aí eu assistia o Jornal Nacional todo dia com aquela empolgação... Lógico que eu discordava de algumas coisas, achava exagerado, eu nunca fui tão conservador. Mas o Projeto Cajuína foi me dando todo esse debate, tipo, como posso dizer, eu não era homofóbico, mas tinha aquela coisa assim: “rapaz, não sei não...”; e dentro da sala de aula eu percebia que existia aquela discriminação, por mais que não era algo “ah, fulano não gosta de fulano de tal porque é mais pobre”; não, é algo mais espontâneo. Assim também com o racismo, muita gente quer dizer que não existe o racismo porque “ah, eu não tenho raiva de negro”, mas é espontâneo, como posso explicar, não é algo que, na boca, você vai dizer que não gosta de negro, mas é algo espontâneo na sociedade que segrega o negro, e assim vai acontecendo na nossa sala de aula (Chico; Entrevista com o Cajuína realizada em Teresina no dia 14 de junho de 2013)

Esta aparente espontaneidade com que a Revista Veja e o Jornal Nacional influenciavam o modo de ser de Chico, contribuindo para que ele julgasse adequada a construção de um muro para “parar de crescer as favelas”, ajustava-se bem ao modo como seus colegas da faculdade de direito espontaneamente não gostavam de negros nem de pobres. As instituições formais de educação são apenas uma parte desse processo de internalização, embora uma parte importante. Mas, mesmo que os indivíduos não participem dela (ou participem por poucos anos), devem ser induzidos a uma “aceitação ativa (ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade, adequados à sua posição na ordem social, e de acordo com as tarefas reprodutivas que lhe foram atribuídas” (Mészáros: 2005________. Educação para além do capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2005., p.44).

Estes processos de internalização a que se refere Mészáros estão relacionados à questão da ideologia. Ao falar em ideologia, não me refiro a uma falsa consciência da realidade (sentido usual conferido ao termo), mas a processos de consciência absolutamente voltados à práxis, ou seja, orientados para a ação. Não se trata de algo encerrado ao plano da consciência, portanto. Consiste em ideologia, ademais, tanto os processos de consciência voltados à conservação da ordem posta como aqueles implicados na transformação da mesma. Este sentido de ideologia se depreende da própria obra marxiana6 6 A propósito, remeto à leitura de “Ideologia e formação humana em Marx, Lukács e Mészáros”. (PINHO: 2013); e “Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica Universitária Popular” (ALMEIDA: 2015). , como também da do último Lukács (2013)LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., em Para uma Ontologia do Ser Social, e, especialmente, da obra de Mészáros (2004)MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004., sobretudo em O Poder da Ideologia, donde se toma a noção exata de ideologia como uma consciência prática e inevitável da sociedade de classes.

Quanto ao ambiente ideológico das faculdades de direito, é de se reconhecer o conservadorismo e a elitização por meio dos quais ocorre a socialização daqueles que serão responsáveis pela “correta aplicação das leis” em nome do “bem comum” e da “paz social”. Via de regra, este ambiente tem como pano de fundo uma adaptação grosseira da ideologia liberal-positivista, conformando por assim dizer, um positivismo jurídico periférico, isto é, próprio da periferia latino-americana do capitalismo. Como reflito noutro trabalho, “O papel das ideologias para a formação do campo jurídico” (ALMEIDA, 2014________. O papel das ideologias na formação do campo jurídico. Revista Direito e Práxis, vl. 5, nº 9. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014. p.34-59. Disponível em: < http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju>. Acesso em junho de 2016.
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), as especificidades do modo como esse projeto se configurou no Brasil e na América Latina, com o tom personalista e conservador próprio das nossas elites, deve ser compreendido de forma imbricada no desenvolvimento dependente do capitalismo que se consolidou aqui, conforme as teses de Florestan Fernandes (2009)FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009.. Afinal, se o regime democrático e a nova concepção das relações de trabalho passam a ser uma necessidade do ocidente liberal, igualmente necessários eram os arranjos que justificavam, entre outras coisas, a escravidão do povo africano nas nossas terras para a divisão internacional do trabalho então vigente.

Havia, portanto, uma singular complementaridade entre as instituições burguesas e as coloniais, marcando a história das ex-colônias latino-americanas em geral, não só do Brasil. Desse modo, a “democracia” e o “trabalho livre” europeus, de um lado, e, de outro, a escravidão do povo negro complementavam-se dialeticamente. Antes de constituir uma estranheza para a ordem capitalista, era esta mesma ordem a causa do “atraso” da formação social na América Latina, com o avanço do capital a se desenvolver de modo desigual e combinado entre centro e periferia (FERNANDES: 2009FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009., p.50-101). Esta dinâmica própria estabelecida entre progresso e atraso engendra, nos termos de Florestan Fernandes, uma “modernização do arcaico” simultaneamente a uma “arcaicização do moderno”.

Nesses termos, a nossa adaptação arcaica das “novas ideias” do Séc. XIX (positivismo, naturalismo, evolucionismo) assumiu “ridículos particulares” no Brasil, conferindo um “quê gratuito, incongruente e iníquo” ao ideário liberal, como analisa Roberto Schwartz (2000SCHWARTZ, Roberto. Um Mestre na Periferia do Capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 2000., p.38). Isto porque, ao lado das concepções burguesas que chegavam do ocidente, convivíamos com uma ordem socioeconômica efetivamente colonial, e essas contradições exigiam ajustes ainda mais impossíveis na nossa conformação social. Valores como o da impessoalidade e da objetividade, discursivamente caros ao liberalismo, encontravam-se completamente subordinados à fantasia individual e aos caprichos das elites brasileiras. Desse modo, essa “ideia fora do lugar” que é o positivismo jurídico no Brasil, tomando emprestada a expressão de Scwartz (1999), deve ser compreendida entre nós sob o ponto de vista da sua funcionalidade enquanto orientação ideológica de todo implicada na posição periférica que o Brasil e América Latina ocupavam - e ainda ocupam - na divisão internacional do trabalho.

Este aspecto da nossa formação social já havia sido antes problematizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (2006, p.175). Segundo suas conhecidas formulações, “a ideologia impessoal do liberalismo jamais se naturalizou entre nós”7 7 Ao compreender o “lamentável mal-entendido" (HOLLANDA, 2006, p.176) que é a ideia de democracia no Brasil, não devemos desconsiderar o significado histórico geral da “democracia” enquanto projeto político ligado à classe burguesa. Isso porque, tampouco nos países centrais as promessas do liberalismo – traduzidas nas bandeiras da Revolução Francesa “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” – tinham condições de ser cumpridas além dos recuados e contraditórios limites postos pela sociedade mercantil. . Sendo assim, a adaptação do positivismo jurídico no Brasil ocorreu por meio da “cordialidade” que se expressa na nossa tendência ao personalismo, de todo conformada por uma mentalidade doméstica. A cordialidade consiste, portanto, num elemento constitutivo da “praga do bacharelismo”, na expressão de Sérgio Buarque de Holanda, à qual nunca correspondeu uma formação intelectual sólida. Pelo contrário, a intelectualidade brasileira é marcada por uma inclinação à superficialidade, que se manifesta, entre outras coisas, num desenfreado gosto pela retórica.

Muitas vezes o expressou Machado de Assis em sua literatura, revelando aspectos importantes do universo analisado aqui através das suas personagens. Numa passagem de Memórias Póstumas de Brás Cubas8 8 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997. , a personagem principal se compara a um cabeleireiro conhecido seu, que, durante o trabalho, cheio de entusiasmo, contava casos e gracejos tão fúteis quanto saborosos.

Não tinha outra filosofia. Nem eu. Não digo que a universidade me não tivesse ensinado alguma, mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Trateia-a como tratei o latim; embolsei três versos de Virgílio, dous de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornamentação (ASSIS, 1997, p.50).

Desnecessário dizer que Brás Cubas bacharelou-se em direito. A falsa erudição das poucas frases decoradas em latim, os floreios na fala e na escrita para compensar o raso conteúdo das ideias são muito bem conhecidos entre os juristas. Esta falsa erudição está também implicada no personalismo, pois, em última análise, busca criar prestígio em torno dos sujeitos que dela se utilizam. Bastante emblemático a respeito é o sucesso que vem encontrando atualmente nas faculdades de direito os grupos voltados ao exercício da retórica, que promovem competições, inspiradas nos norte-americanos, nas quais os participantes devem “ganhar o debate” acerca de um tema qualquer.

Um exemplo desses grupos, na faculdade de direito da Universidade Federal do Ceará, chama-se Sociedade de Debates. Caracterizado como um projeto de extensão, existe desde 2010 e é um dos mais famosos da UFC. Trata-se de um projeto voltado ao exercício da retórica, um treino para a “habilidade de argumentar” em “meio competitivo”. Em vídeo oficial do projeto9 9 Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=CaMOO_kYodw>. Acesso em fevereiro de 2014. , seus idealizadores sustentam que a iniciativa contribui para a formação de profissionais de direito “mais qualificados”, preparados para o convencimento. O ponto central é estimular a forma competitiva de debater, como descrevem em sua página oficial na internet10 10 Disponível em: < http://www.sddufc.com.br/missao-e-valores/>. Acesso em julho de 2015. ,

A Sociedade de Debates da UFC (SdD-UFC) tem por objetivo principal difundir a cultura de debates competitivos no Brasil, desenvolvendo a prática de habilidades oratórias e argumentativas, contribuindo para a formação de sujeitos ideologicamente autônomos e intelectualmente hábeis a convencer (SOCIEDADE DE DEBATES, s/d).

“É como se o direito fosse lábia”, explica Mila. Os temas dos debates são compreendidos como secundários; o mais importante parece ser “a cultura de debates competitivos”, como eles próprios descreveram. Já debateram acerca da masturbação infantil; sobre ser preferível uma ditadura forte a uma democracia fraca – inspirando-se no filme e nos quadrinhos homônimos “V de vingança” -; e também a respeito de Noé ser culpado ou inocente por ter deixado baratas entrarem na arca. Alguns temas, como esse último, são fantasiosos, mas, segundo Nina, “cumprem claramente um papel ideológico na faculdade”. Afinal de contas, certamente existe um propósito de classe no fato de estudantes de direito – numa universidade pública, em um país tão cheio de problemas, numa região tão pobre – estarem centralmente tão ocupados em desenvolver a retórica.

O projeto é orientado pelo diretor da Faculdade, que, no vídeo, aparece falando da importância da iniciativa, já que dali sairão os futuros dirigentes do país, que devem se preocupar, antes de tudo, com uma “formação cidadã”. A cidadania, no entanto, não é pautada em mais nenhum momento do vídeo nem parece ser o foco do projeto, realmente centrado no desenvolvimento da habilidade de convencer.

Figura 1
- Sociedade de Debates 1 Figura 2 - Sociedade de Debates 2

Segundo os entrevistados, os fundadores deste projeto integraram gestões à direita no centro acadêmico, mais um elemento que nos permite desconfiar da falta de vínculos políticos do culto à retórica. Como arremata Nina: “Tem uma carga ideológica, eles defendem um grupo, defendem uma classe. Eles podem não sair dizendo: ‘sou da direita, tô aqui defendendo tal e tal’, mas eles fazem isso de outra forma”.

As aspirações positivistas às ideias claras, lúcidas e definitivas, representaram para nós um “repouso para o espírito”, na expressão de Sérgio Buarque de Holanda (2006, p.173). Entre os juristas, essa espécie de licença para não pensar, por assim dizer, conformou-se como um pano de fundo do positivismo jurídico brasileiro, com as devidas ornamentações em latim. A valorização da retórica é, portanto, um traço característico das nossas elites, e por isso se encontra presente de modo tão marcante no ensino jurídico brasileiro. Vale a pena transcrever, a respeito, uma significativa passagem de um famoso manual intitulado Lições Preliminares do Direito, do já falecido professor Miguel Reale11 11 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002. :

Cada cientista tem a sua maneira própria de expressar-se, e isto também acontece com a Ciência do Direito. Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho da sua linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar. (...) À medida que forem adquirindo o vocabulário do Direito, com o devido rigor, – o que não exclui, mas antes exige os valores da beleza e da elegância – sentirão crescer pari passu os seus conhecimentos jurídicos (REALE, 2002, p.8 e 9).

A Ciência do Direito, assim escrita com iniciais maiúsculas e toques de latim, segue o seu destino multimilenarmente apartado dos trabalhadores e dos demais sujeitos subalternizados na sociedade de classes. O livro citado acima, em que Miguel Reale registrou tão afetadamente seu orgulho pela “linguagem multimilenar” do direito, é um dos mais difundidos exemplares do tipo de material privilegiadamente utilizado para a instrução dos especialistas desse campo: os autodenominados manuais de direito. Através desses manuais, o bacharelismo retórico encontra o devido repouso para os estudos do direito de forma fácil e rápida, sem maiores esforços, com soluções teóricas que estejam à mão (ALMEIDA: 2013b________. et al. À torto e à direita: a ideologia nos manuais de Introdução ao Estudo do Direito. Trabalho apresentado no Seminário do Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais, 3. 2013. Natal - RN. (2013b)., p.3).

A mentalidade despudoradamente manualesca dos juristas revela certa preguiça de desenvolver capacidades analíticas, algo bastante conveniente para manter a dominação de classe. O positivismo jurídico foi vulgarmente adaptado ao Brasil como um dogmatismo barato, manualesco e paralisante, mas de todo disposto aos favoritismos personalistas e ao reforço dos compromissos com as classes dominantes. Sendo assim, temos muito mais intimidade com o ditado popular “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” do que com o brocardo latino “dura Lex, sed lex” – a lei é “dura”, mas é a lei.

Relacionado a isto encontra-se a desvalorização generalizada das disciplinas presentes no currículo que oferecem um ponto de vista exterior ao direito, como a de sociologia, filosofia, antropologia e economia.

Já vi amigos meus dizendo, no primeiro período, quando tinha filosofia, sociologia, “ah, eu quero saber é de lei, eu não quero saber de história...” Então eu fico pensando: acho que esse sujeito entrou no curso errado, porque sociologia, filosofia, são base, são matérias importantes que servem pra o raciocínio crítico, então eu fiquei muito triste ao constatar essa realidade, que acho que é geral no curso de direito da UFMA (Luís; Entrevista com o NAJUP Negro Cosme realizada em São Luís no dia 18 de maio de 2013).

Ainda que o estudante tenha alguma tendência a problematizar essa perspectiva, muitas vezes acaba por se adequar ao pensamento dogmático; pois “se o professor está dizendo que direito é só a lei, então eu vou estudar só a lei, porque se não fizer isso, eu vou ser marginalizado, excluído”, como analisa um estudante da UFMA. Bia, por exemplo relata com incômodo a postura de seus colegas de sala para com a sua inclinação a uma visão mais ampliada e contextualizada do direito:

tem muitas pessoas na minha sala que me perguntam por que eu faço direito, porque eu não tenho nada a ver com o direito... Aí eu penso “gente, pelo amor de deus, tu que não tem nada a ver com o direito (risos), porque tu que tá limitando o direito a umas folha de papel”... Eles tem muito esse estereótipo. Se eu tô na sala lendo alguma coisa de filosofia, sociologia, o que seja, até direitos humanos (que não seja a “lei” de direitos humanos), algumas pessoas brincam “Menina, vai estudar direito” (grifos meus). Mas é isso que eu tô fazendo aqui. (Bia; Entrevista com o NAJUP Negro Cosme realizada em São Luís no dia 18 de maio de 2013).

O questionamento do positivismo manualesco e abstrato é um dos pontos sensíveis da inquietude de certos estudantes perante a educação jurídica. Segundo Luís, a culpa disso, “o ensino jurídico amazelado, deficiente, mesmo”, é dos próprios professores. Ele lembra que teve apenas um único professor que buscava ligar a sociedade ao direito.

Então aquele aluno que questiona, que quer fazer um debate mais aprofundado daquele tema, ele acaba sendo visto pelos demais como o antipático ou aquele que quer se mostrar. Já aconteceu muito em sala de aula comigo por aqueles colegas que acham que o direito só tem de ser mesmo aquela lei seca. Mas os professores também se incomodam, acabam dizendo: “depois a gente discute, depois a gente tenta olhar por esse lado, mas agora vamos focar nisso” (Luís; Entrevista com o NAJUP Negro Cosme realizada em São Luís no dia 18 de maio de 2013).

Na reprodução desse modelo de ensino acrítico, manualesco e apenas aparentemente “alheio” – não ao mundo, mas a certos interesses de classe, os professores, obviamente, cumprem um papel fundamental. Mas os estudantes, de uma forma geral, tampouco parecem estar preocupados com a necessidade de problematizar os conteúdos ministrados em sala de aula. Essa indiferença generalizada insere-se num contexto mais profundamente problemático, relacionado a uma desestimulante precarização do ensino universitário. Essa realidade é bastante perceptível no Maranhão, por exemplo:

Na minha sala eu percebo assim: no início, os professores faltavam muito, ou não davam o conteúdo, ou faltavam às disciplinas, então chegou pelo sexto período e já tava todo mundo muito cansado, só querendo terminar de qualquer jeito, ninguém quer debater nada (grifos nossos), só querem fazer as provas e passar por cima.. A última experiência que eu tive foi numa aula de processo penal em que o professor falava da redução da maioridade penal, dizendo que era retrógrado proteger o menor. Aí eu fiquei muito indignada e olhei pras pessoas, mas elas só queriam que aquilo acabasse, não é nem que elas concordassem, mas não tinham a menor paciência pra discutir...Daí eu comentei com um amiga e fiz um comentário [irônico] “um argumento muito válido, o dele”... mas ela estava preocupada com a prova... Até eu mesma não sinto mais vontade de ir pra faculdade, porque é um espaço em que tu não aprende muita coisa, nem a lei positiva a gente tá aprendendo, porque o nosso curso está muito sucateado. São 16 cadeiras sem professor, as que tem são professores ou muito retrógrados ou que não dão aula, enfim... Que só enrolam [comentário de Bia: eu fico em dúvida se prefiro que tenha professor ou não]. Então ninguém mais tem prazer em cursar, tu tem que passar por aquela etapa porque tu quer o diploma, sabe, que profissional vai sair daí? Isso é o mais preocupante (Mônica; Entrevista com o NAJUP Negro Cosme realizada em São Luís no dia 18 de maio de 2013. Meus grifos).

Mônica preocupa-se que seu professor defenda a redução da maioridade penal e ninguém sequer pareça escutá-lo. A apatia dos estudantes é uma espécie de resposta à falência da educação jurídica, que passa também pela precarização das condições de ensino (as 16 disciplinas sem professor que denuncia Mônica), mas também por uma profunda falta de compromisso dos professores com a docência. Os estudantes se queixaram disso também unanimemente. Eram comuns as referências a professores que faziam da docência uma espécie de “bico”, exercendo outras profissões jurídicas as quais privilegiavam em detrimento da carreira de professor.

A realidade de professores que não são dedicados exclusivamente à docência é dominante nos cursos de direito, de modo que as atividades de extensão e pesquisa, por exemplo, restam bastante prejudicadas pelo fato de os professores não estarem voltados centralmente ao ensino jurídico. Em geral, são também advogados, juízes, promotores etc., e a carreira de professor é secundária em suas atividades profissionais. Muitos estão submetidos a um regime de trabalho de 20 horas semanais, o que, por si só, compromete a dedicação mais intensa a atividades extra-sala de aula. O problema vai além, contudo.

Os estudantes se queixam de que muitos de seus professores simplesmente não dão aulas ou “só enrolam”, como disse Mônica, faltando nos dias de aula sem justificativa prévia ou não cumprindo com a carga horária prevista da disciplina, entre outras coisas. Além disso, as aulas são percebidas, em geral, como desestimulantes por conta da abstração manualesca com que é ministrado o conteúdo da disciplina, daí o comentário sobre as dúvidas a respeito de ser melhor que tenha ou que não tenha professor para ministrar as disciplinas.

Não tem nada de positivo na formação jurídica atual. Nem a formação técnica. A gente chega ao ponto de ir pra aula só pra não reprovar por falta, o único estímulo que eu tenho pra ir pra UFMA todos os dias é que eu preciso não reprovar, só isso. Por que quando a gente chega lá e escuta aquele bando de atrocidades que cada professor leva, a gente tenta dialogar e ele não deixa, daí se tu continuar discutindo ele ainda te reprova... Então a única coisa que tu faz é ir e tentar não partir pra cima deles. Não chamar de idiota (Mônica; Entrevista com o NAJUP Negro Cosme realizada em São Luís no dia 18 de maio de 2013).

Ao reclamar do bando de atrocidades que os professores levam para a sala de aula, Mônica exprimia a inquietação dos estudantes da AJUP com o que consideram posicionamentos conservadores defendidos na educação jurídica, a exemplo e do apoio à redução da maioridade penal. No posicionamento a respeito de temas como este, a desfaçatez de classe do liberalismo periférico se expressa de forma cortante na educação jurídica. O modo peculiar como as elites brasileiras e latino-americanas transitam violentamente entre o arcaico e o moderno no trato com as questões sociais, analisado por Florestan Fernandes, incorre em “brutais sutilizas e sutis brutalidades”, como notaram Roberto Efrem Filho e Douglas Bezerra (2012). Daí a brutal sutileza do professor de Daniela na defesa fácil da redução da maioridade penal ajustar-se perfeitamente à particular truculência da dominação das elites do capitalismo periférico - “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Esta brutal sutileza é facilitada, ainda, diante da capacidade do sistema prisional em selecionar os “criminosos” dentre as fileiras da classe trabalhadora e dos demais sujeitos subalternizados do capital.

Apesar das preocupações de certos estudantes sobre a “apatia”, o “distanciamento da realidade”, o “dogmatismo”, a “abstração” e a “elitização” imperantes na educação jurídica, estes aspectos centrais da formação dos especialistas do direito devem ser compreendidos sob o ponto de vista da sua funcionalidade enquanto orientação ideológica, de todo imbricada nas necessidades engendradas pela posição periférica que o Brasil e a América Latina sempre (isto é, desde que fomos “descobertos”) ocuparam na divisão internacional do trabalho.

2. “Poderá o direito ser emancipatório?” Dos laços constitutivos do direito (e da educação jurídica) com a sociedade de classes.

A percepção dos elementos que configuram o positivismo jurídico periférico leva, muitas vezes, ao entendimento de que existe uma compreensão tradicional do direito, propagada, evidentemente, na educação jurídica, que estaria “em crise”. A respeito deste debate há uma vasta produção no Brasil, sobretudo a partir dos anos 80, com a contribuição inestimável de teóricos críticos do direito como Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, José Geraldo de Sousa Júnior, Luís Alberto Warat, Antônio Carlos Wolkmer e inúmeros outros. A despeito das inúmeras diferenças entre estas formulações, é possível identificar nelas, de modo geral, uma expectativa de que, superada a “crise” desse paradigma tradicional, em algum ponto da história seria possível conjugar direito e emancipação, voltando-se a forma jurídica para cumprir seu efetivo papel, que é o da transformação social.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, cujo pensamento em muito influenciou (e até hoje influencia) este campo “crítico” dentro do direito, escreveu, no início dos anos 2000 um ensaio intitulado Poderá o direito ser emancipatório? O “prudente sim” é respondido a partir da identificação do que chama de legalidade cosmopolita subalterna, surgida de uma “ampla variedade de lutas, iniciativas, movimentos e organizações, quer de âmbito local, quer de âmbito nacional ou global, em que o direito figura como um dos recursos utilizados para fins emancipatórios” (SOUSA SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais. n°65. Coimbra: 2003. p.03-76., p.70-71). Este uso, segundo ele, iria além do cânone jurídico modernista, recorrendo também a formas de direito informal e não oficial que muitas vezes não são reconhecidas como direito.

Doze anos depois, a mesma questão é recolocada no dossiê temático da Revista Direito e Práxis12 12 A Revista Direito e Práxis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, vem sendo um importante espaço de difusão das ideias ligadas a um campo crítico no direito. Sua editoria executiva tem à frente Carolina Alves Vestena, figura atuante na assessoria jurídica universitária popular à época de sua graduação em direito. (2015) intitulado RevisitandoPoderá o direito ser emancipatório?”. Apresentando o dossiê, Sousa Santos e Andrade comentam que estão reunidos ali os resultados de uma reflexão coletiva que se iniciou em 2010, junto ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sobre o “potencial emancipador” que o direito pode assumir onde quer que se apresente como “um recurso de resistência ou de luta para as coletividades que lutam pela transformação social” (SOUSA SANTOS e ANDRADE, 2015________; ANDRADE, Orlando Aragón. Revisitando “Poderá o direito ser emancipatório?”. In: Revista Direito e Práxis, vol. 6 n°10, Dossiê Temático Revisitando “Poderá o Direito ser emancipatório”. 2015. Disponível em: < http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju>. Acesso em junho de 2015.
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, p.05).

Na verdade, a discussão sobre as possibilidades emancipatórias do direito remonta a estudos anteriores de Boaventura a respeito do pluralismo jurídico, ainda nos anos 70, quando investigou a realidade de uma comunidade periférica brasileira a que deu o nome fictício Pasárgada. Ali, Boaventura argumentava que “cada unidade social constitui-se em centro de produção de juridicidade com uma vocação universalizante circunscrita à esfera dos interesses econômicos ou outros dessa mesma unidade” (SOUSA SANTOS, 1993________. Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. In SOUSA JR., José Geraldo (Org). Introdução crítica ao direito. 4a edição. Vol.1. Brasília: UNB, 1993., p.46), e que podem surgir conflitos entre diferentes centros individuais de juridicidade, caracterizando o choque entre distintas ordens jurídicas. Esta análise teve grande influência para a consolidação de um campo crítico entre os juristas brasileiros, inclusive tendo sido publicada, em versão sintetizada, no primeiro dos cadernos do Direito Achado na Rua, organizados por José Geraldo de Sousa Júnior (1993)SOUSA JR., José Geraldo (Org). Introdução crítica ao direito. 4a edição. Vol.1. Brasília: UNB, 1993., sob o título Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada. Como nota José Geraldo de Souza Júnior (2008)________. Direito como liberdade: o Direito Achado na Rua. Experiências populares emancipatórias de criação do direito. 2008. 338 fl. Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília. Brasília/DF., boa parte dos trabalhos no campo da sociologia jurídica dos anos 80 resultou da interlocução com as ideias de Boaventura e também com as de Roberto Lyra Filho.

Dialogando com a perspectiva do pluralismo jurídico, Roberto Lyra Filho13 13 A compreensão pluralista de Roberto Lyra Filho aparece, entre outros escritos, no seu difundido O que é direito, publicado na coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense, em 1982. A Lyra Filho ainda voltaremos, por conta de sua influência na crítica jurídica brasileira. e Luiz Fernando Coelho14 14 Ver COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. fizeram importantes contribuições, ainda nos anos 80, para o pensamento jurídico crítico no Brasil. Depois deles, Antônio Carlos Wolkmer se projetaria, nos anos 90, como o principal difusor na América Latina da ideia do pluralismo jurídico emancipatório, sustentando que a produção jurídica não residiria apenas no Estado, podendo também surgir a partir de outras instâncias sociais. Sendo assim, o pluralismo jurídico consistiria na “multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sociopolítico, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais” (WOLKMER, 2006WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. São Paulo: Alfa Omega, 2006. , p.186). Esta vertente pluralista, formaria junto com a do direito alternativo as mais difundidas perspectivas da tradição jurídica crítica no Brasil.

Direito alternativo é a síntese dada a outra orientação ideológica do campo crítico entre os juristas. Mais especificamente, refere-se a um movimento, na passagem dos anos 80 para os 90, protagonizado pela magistratura progressista no Brasil inspirada em movimentações análogas na Itália e na França. Os juízes estavam ocupados, no novo cenário democrático, em se posicionar ao lado do povo nos embates travados junto ao Judiciário. Mas a expressão direito alternativo também se refere à perspectiva mais ampla de construir uma alternativa ao modelo tradicional ou dominante de conceber a dimensão do jurídico.

O direito alternativo teve grande importância como oportunidade de pôr em movimento sujeitos progressistas, em especial ligados à magistratura no centro-sul do país (máximas referências ao Rio Grande do Sul). É o caso, por exemplo, de Amilton Bueno de Carvalho, Lédio Rosa de Andrade e Rui Portanova15 15 Ver a respeito CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992; ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. São Paulo: Acadêmica, 1992; e PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992. . As formulações de José Eduardo Faria16 16 Ver a respeito FARIA, José Eduardo. “Ordem legal X mudança social: a crise do judiciário e a formação do magistrado”. Em: _____ (org.). Direito e justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989. tiveram grande influência nesse meio, assim como as de Edmundo Lima de Arruda Júnior17 17 Ver a respeito ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____. (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992; ARRUDA JÚNIOR, E. L. de. Direito moderno e mudança social: ensaios de sociologia jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. . Com este último se consolidou a tipologia dos âmbitos de atuação do direito alternativo junto aos planos do “instituído sonegado” (reivindicando a aplicação das normas de teor progressista voltadas aos interesses do povo), do “instituído relido” (incidindo para conformar orientação diversa à interpretação dominante conservadora das normas jurídicas) e do “instituinte negado” (campo aberto para a construção de outro tipo de direito, na direção da transformação social) (ARRUDA JÚNIOR, 1992ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____. (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992, p. 159-177.).

Estas duas orientações da tradição jurídica crítica, a pluralista e a alternativista, sem dúvida possuíam íntima afinidade como possibilidades de enfrentamento à perspectiva dominante no direito. Polarizavam-se, também, em torno de algumas tensões entre si. Havia, como notaram Moisés Soares e Ricardo Pazello (2014Soares, M. e Pazello, R. Direito e Marxismo: entre o antinormativo e o insurgente. Revista Direito e Práxis, vl. 5, nº 9. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2014. p.475-500. Disponível em: < http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju>. Acesso em junho de 2015.
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, p.482), certa disputa entre essas perspectivas quanto às opções de concentrar esforços na transformação do direito “por dentro” (mais próxima da prática dos juízes alternativistas) ou rejeitar o que era considerado seu “paradigma central” em detrimento da construção de “formas plurais” e “emancipatórias” de direito (atitude mais próxima às referências do pluralismo jurídico). Ambas, contudo, padecem da perspectiva de totalidade necessária para situar as inexoráveis relações do complexo jurídico com a sociedade de classes. Por isso buscam um fundamento alternativo ou plural para o direito nos marcos da emancipação, a despeito da impossibilidade desse empreendimento. Escapa-lhes a dimensão histórica da forma jurídica, tida, antes, como universal; fundante, mesmo, das relações humanas.

Com tal entendimento reproduzem um modo peculiar de fetichismo jurídico – o fetichismo jurídico de esquerda (ALMEIDA: 2015ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB.). Enquanto os juristas tradicionais eternizam a forma jurídica e reproduzem a crença na autonomia e na neutralidade do direito a despeito de seus compromissos de classe; os juristas críticos atribuem ao direito a responsabilidade pela emancipação social, desistoricizando-o de modo semelhante.

Ao postular que a forma jurídica de regulamentar as relações sociais sempre esteve e sempre estará presente, “desde os primórdios” das sociedades humanas; sugerem de certa forma que é o direito, mesmo, que cria a própria sociedade. Por que o direito surgiu? Porque surgiu a sociedade. A sociedade, por sua vez, somente pode existir se contar com a ordenação jurídica. De acordo com esse cacoete tautológico dos juristas, peculiarmente reproduzido pelos “juristas críticos”, o direito é concebido como algo desde sempre dado, cujas raízes históricas dispensam maiores problematizações.

No entanto, como deveria ser óbvio, o direito não é algo eterno, desde sempre presente nas sociedades. Como todos os complexos da vida social, ele possui uma história. O desenvolvimento das relações sociais que resultaram na necessidade desse âmbito de regulamentação responde a uma questão colocada num dado momento histórico: a divisão da sociedade em classes. As próprias necessidades históricas do desenvolvimento da sociedade de classes fizeram com que esta regulamentação assumisse uma forma específica com a consolidação do capitalismo.

A necessidade de um complexo cuja função é “a regulação jurídica das atividades sociais” surge “num estágio relativamente baixo da divisão social do trabalho” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.229), mas a história também nos ensina que foi apenas tardiamente que essa necessidade adquiriu “uma figura própria na divisão social do trabalho, na forma de um estrato particular de juristas, aos quais foi atribuída como especialidade a regulação desse complexo de problemas” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.230). A simples cooperação para atender às necessidades humanas mais básicas, como a alimentação, já implicava alguma regulamentação para que as tarefas de cada um estivessem colocadas da forma mais exata possível. No processo da caça, por exemplo, os homens singulares precisavam estabelecer quem iria abater os animais, quem iria carregá-los etc. Entretanto, não havia um âmbito específico da vida social para cumprir com esta função; ela era exercida, entre outras, pelos caciques, pelos caçadores mais experientes, guerreiros respeitados, anciões etc. Estas figuras cumpriam com a função de ajudar a regular as relações sociais juntamente com as demais atividades que exerciam, resolvendo os conflitos de acordo com a tradição a partir da experiência adquirida ao longo do tempo. Desse modo, uma divisão social do trabalho própria para regulamentar a vida em sociedade era absolutamente desnecessária.

Esta regulamentação, portanto, resultava do processo concreto de trabalho, com a divisão de tarefas que então se apresentava de maneira muito simples. Não se tratava ainda da “divisão social do trabalho”, que surgiu muito mais tarde, com a separação entre trabalho intelectual e trabalho braçal, bem como com a separação entre campo e cidade; entrecruzadas ao aparecimento das classes e ao antagonismo entre elas.

Só quando a escravidão instaurou a primeira divisão de classes na sociedade, só quando o intercâmbio de mercadorias, o comércio, a usura etc. introduziram, ao lado da relação “senhor-escravo”, ainda outros antagonismos sociais (credores e devedores etc.), é que as controvérsias que daí surgiram tiveram de ser socialmente reguladas e, para satisfazer essa necessidade, foi surgindo gradativamente o sistema judicial conscientemente posto, não mais meramente transmitido em conformidade com a tradição (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.230).

Há quem entenda que a essa regulamentação muito simplificada das formações anteriores às sociedades de classe devamos chamar “direito”. De toda sorte, tratava-se de algo radicalmente diverso do que conhecemos hoje, especialmente porque seu desenvolvimento ocorria de forma integrada aos demais âmbitos da vida social, em vez de conformar um complexo específico, com sujeitos especialistas voltados unicamente para o exercício desta função, instituições específicas e uma lógica própria de funcionamento.

Não podemos contestar que entre os animais existe igualmente uma vida coletiva e que esta é também disciplinada de uma maneira ou de outra. Porém, fica longe de cogitação afirmar que as relações das abelhas ou das formigas sejam disciplinadas juridicamente. Se passarmos aos povos primitivos, vemos aí certamente o embrião de um direito, mas a maior parte das relações é disciplinada extrajuridicamente, por exemplo, sob a forma de preceitos religiosos (PACHUKANIS, 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.42).

A própria distinção entre o direito e “as demais ordens normativas” (como a moral e a religião), ponto sensível da teoria burguesa, somente se processou ao longo do séc. XIX, diante da necessidade da circulação mercantil. Até hoje, em alguns recantos do planeta, a noção de “direito” é estranha no interior de alguns grupos sociais “tradicionais” (anteriores à sociedade burguesa), como os indígenas. Os indígenas mexicanos de Chiapas organizados no Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), por exemplo, deram-se conta, ao formular suas reivindicações “jurídicas” perante o Estado, que não conheciam em seus idiomas uma expressão para se referir ao “direito”. Por isso, aludiam a “lo nuestro”, exigindo do Estado “el respeto a lo nuestro”– aquilo que é nosso, o respeito ao que é nosso (DE LA TORRE RANGEL: 2013DE LA TORRE RANGEL, Jesus Antonio de La Torre. Pluralismo Jurídico y Derechos Humanos em la experiência indígena mexicana de los últimos años. Revista Direito e Práxis, v. 4, n. 6, 2013, p. 129-163., p.140).

Parte da tradição teórica crítica do direito costuma localizar aqui o espaço do pluralismo jurídico, postulando que o “direito estatal” reconheça e conviva com essas “outras formas jurídicas” que nascem diretamente do povo. Problema análogo esteve posto na conflituosa transição da sociedade feudal para a burguesa ao longo da Idade Média, como aponta Lukács (2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.235), fazendo com que, “naqueles tempos, a imposição de um decreto emanado do direito estatal muitas vezes se tornasse uma questão de combate aberto entre o poder central e a resistência contra ele”. Lukács (2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.235-236) nota que, a partir daí, surgem as mais variadas teorias sobre um “direito à revolução” – “a aspiração absurda de ancorar, em termos de conhecimento e em termos morais-legais, no próprio sistema da ordem social vigente, as transformações radicais dessa ordem, que naturalmente abrangem também as de seu sistema jurídico”. Voltarei ao tema adiante. Por ora, destaco que o que conhecemos por direito é um âmbito de regulamentação social específica cuja gênese está associada à divisão da sociedade em classes antagônicas, e que alcançou uma forma peculiar na consolidação do capitalismo.

Isto não significa que o direito simplesmente não existia sob nenhuma forma antes do capitalismo ou mesmo das sociedades de classes anteriores à burguesa. Mas “apenas a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico esteja plenamente determinado nas relações sociais” (PACHUKANIS: 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.24). Somente nessa sociedade se tornou possível o surgimento dos pares opostos fora dos quais a forma jurídica não pode ser captada: direito objetivo e direito subjetivo; direito público e privado etc. Estas dicotomias só puderam surgir com a oposição entre o indivíduo como pessoa singular e o indivíduo como membro da comunidade política – o homem e o cidadão -, cuja aparição, por sua vez, está ligada ao longo processo histórico que resultou na conformação das cidades em oposição ao campo e na cada vez mais especializada divisão social do trabalho. Todo este processo é inimaginável para as primeiras sociedades, e por isso “só a custo se consegue extrair o direito da massa total dos fenômenos sociais de caráter normativo” (PACHUKANIS, 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.24). Mas mesmo na Europa medieval, as formas jurídicas ainda se encontram muito pouco desenvolvidas porque

todas as oposições acima mencionadas se fundem num todo indiferenciado. Não existe fronteira entre o direito como norma objetiva e o direito como justificação. A norma geral não se distingue de sua aplicação concreta. Consequentemente, a atividade do juiz e a atividade do legislador acabam por confundir-se. Vemos a oposição entre o direito público e o direito privado quase que totalmente apagada, tanto na comunidade rural como na organização do poder feudal (PACHUKANIS, 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.24).

Portanto, para que estas distinções necessárias à caracterização plena da forma jurídica pudessem se consolidar, foi necessário um longo processo histórico que teve como palco principal as cidades e como principal sujeito a burguesia. Mas é óbvio que as relações sociais sempre foram regulamentadas de um modo ou de outro, e que antes de culminar na sua forma específica mais plenamente acabada com a sociedade burguesa, já existia algo a que se podia chamar de “direito” – e assim o fizeram os romanos, como também os medievais. Havia “direito” porque havia sociedade de classes. Não havia, contudo, um complexo específico voltado para a regulamentação jurídica das relações sociais, ou seja, isto a que chamamos “direito” a partir de então.

A forma específica que o direito passou a assumir em determinado estágio do desenvolvimento social se relaciona ao surgimento da forma da mercadoria no plano das relações materiais de produção. O desenvolvimento desta tese coube a Eugeny Pachukanis em Teoria Geral do Direito e Marxismo. Ao aproximar a forma jurídica da forma da troca mercantil, Pachukanis (1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.08) não “descobriu a América”, como ele mesmo observa no prefácio, pois os elementos suficientes para essa análise já haviam sido fornecidos por Marx.

O caminho trilhado por Pachukanis ao dar continuidade e aprofundar a tese da correspondência entre a forma jurídica e a forma da circulação mercantil seguia as indicações de Marx em O Capital a respeito da íntima relação entre o sujeito de direito e o proprietário de mercadorias. Em O Capital, Marx sustenta que a relação entre os possuidores de mercadorias por meio de um contrato para realizar o processo de troca é uma relação jurídica cujo conteúdo “é dado por meio da relação econômica mesma”. Para que a troca aconteça, eles devem “reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados”, dotados de personalidade e vontade autônomas. Portanto, “para que essas coisas se refiram umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas (...)” (MARX, 1988MARX, Karl. O Capital. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. Vol.1. Tomo 1. 3a edição. São Paulo: Nova Cultural, 1988., p.79). Com tais considerações, Marx indica que, ao mesmo tempo em que o produto do trabalho vira mercadoria e porta valor, o homem se torna sujeito jurídico e portador de direitos para poder negociar estas mercadorias.

Como bem resumiu Pachukanis (1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988.; p.70), a “sociedade capitalista é, antes de tudo, uma sociedade de produtores de mercadorias”. Por isso ele concebe a categoria de sujeito como a célula da teoria geral do direito. O sujeito de direito é, na verdade, uma abstração que corresponde materialmente aos proprietários – “um proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens” (PACHUKANIS: 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p. 78).

A sua vontade, juridicamente falando, tem o seu fundamento real no desejo de alienar, na aquisição, e no desejo de adquirir, na alienação. Para que tal desejo se realize, é necessário que haja mútuo acordo entre os desejos dos proprietários de mercadorias. Juridicamente esta relação aparece como contrato, ou como acordo, entre vontades independentes. Eis porque o contrato é um conceito central do direito, pois ele representa um elemento constitutivo da ideia de direito. No sistema lógico dos conceitos jurídicos, o contrato é somente uma variedade do ato jurídico em geral, ou seja, é somente um dos meios de manifestação concreta da vontade, com a ajuda do qual o sujeito age sobre a esfera jurídica que o cerca. Na realidade e historicamente, ao contrário, o conceito do ato jurídico tem sua origem no contrato. Independentemente do contrato, os conceitos de sujeito e de vontade em sentido jurídico existem somente como abstrações mortas. É unicamente no contrato que tais conceitos se movem autenticamente. Simultaneamente, a forma jurídica, na sua forma mais simples e mais pura, recebe também no ato de troca um fundamento material. Por conseguinte, é para o ato de troca que convergem os momentos essenciais tanto da economia política como do direito (PACHUKANIS: 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.78-79)

Nessa passagem, Pachukanis descortina a operação ideológica das teorias burguesas que, ao apresentar o contrato como apenas uma dentre as várias espécies de ato jurídico (e não como a relação que historicamente o origina), oculta que a forma jurídica se fundamenta materialmente no ato da troca. Simultaneamente, a condição de sujeito de direito parece pertencer abstratamente às pessoas em geral, mas de fato cabe especificamente aos proprietários de mercadorias. O direito, desse modo, “representa a forma, envolvida em brumas místicas, de uma relação social específica” (PACHUKANIS, 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.42): a relação dos proprietários de mercadorias entre si18 18 Dialogando com Stucka, Pachukanis (1988; p.46) observa, nessa passagem, que as análises daquele estavam parcialmente corretas ao considerar o problema do direito como um problema de relações sociais (e não de normas ou outro elemento). Mas pondera que a forma jurídica não diz respeito às relações sociais em geral, e sim à relação específica entre os proprietários de mercadorias. .

A forma jurídica decorre da necessidade da troca mercantil que em dado momento histórico (o surgimento e consolidação da sociedade burguesa) transforma o produto do trabalho humano em mercadorias que precisam “mudar de mãos” para se realizar como valor no mercado. A troca mercantil, desse modo, é o ponto histórico central no qual se fundamenta tanto a economia política como o direito (PACHUKANIS, 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.80). O direito assume, então, a função de garantir essa troca, a sua forma, mesma, equivale à forma dessa troca.

Tendo por fundamento a existência da sociedade de classes e alcançando a sua forma plena na sociedade mercantil, o direito “é por sua essência necessariamente um direito de classe: um sistema ordenador para a sociedade que corresponde aos interesses e ao poder da classe dominante”, como afirma Lukács (2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.233) na Ontologia do Ser Social. No entanto, ele mesmo o objeta, a constatação do caráter de classe do direito não nos autoriza a tirar “nenhuma conclusão esquemático-simplificadora precipitada” (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.234), pois a dominação de classe não pode ser simplesmente transposta para o sistema do direito. A luta de classes frequentemente impede que a classe dominante imponha através das leis seus interesses particulares de modo totalmente ilimitado. Por sua vez, no interior mesmo da classe dominante há posições divergentes que dificultam esta imposição. “Trata-se da dialética inerente à própria história em que a dominação e a hegemonia se entrelaçam de maneira, sempre, contraditória. Assim, o Direito é uma mediação que se interpõe entre o domínio direto e os conflitos entre as diversas classes sociais com interesses diversos”, como comenta Vitor Sartori (2010SARTORI. Vítor. Lukács e a crítica ontológica ao direito. São Paulo: Cortez, 2010., p.80).

As contradições típicas das sociedades de classes implicaram no desenvolvimento de uma forte autonomia do direito em relação aos demais complexos da vida social. Esta autonomia, no entanto, não consiste numa independência absoluta, tendo em vista que todos os complexos estão articulados numa totalidade e interagem entre si ininterruptamente para a reprodução do ser social. Trata-se de uma autonomia relativa, característica dos complexos em geral, nos quais se conforma um desenvolvimento peculiar “ao mesmo tempo em que o momento predominante se encontra na totalidade, no complexo total do ser social” (SARTORI, 2010SARTORI. Vítor. Lukács e a crítica ontológica ao direito. São Paulo: Cortez, 2010., p.52). Tais complexos conseguem “cumprir suas funções dentro do processo total tanto melhor quanto mais enérgica e autonomamente elaborarem a sua particularidade específica” (LUKÁCS: 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.249).

Nessa questão, o marxismo vulgar não foi além da declaração de uma dependência niveladora, mecânica, em relação à infraestrutura econômica (o neokantismo e o positivismo do período revisionista representaram um castigo justo da história por essa vulgarização). O período stalinista, por sua vez, exacerbou novamente essa concepção mecanicista e a transpôs para a práxis social pela força; os resultados são conhecidos de todos (LUKÁCS, 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.249).

Lukács, nessa passagem, explicita suas discordâncias com o marxismo vulgar, responsável pela difusão do entendimento de que o âmbito jurídico, localizado numa “superestrutura ideológica”, “refletiria” ou estaria “mecanicamente determinado” pela “base” ou “estrutura econômica”. O âmbito do direito não é idêntico ao âmbito no qual se processam as relações materiais de produção, tampouco é “determinado” unilateralmente pela “economia”. São complexos que cumprem funções diferentes, mas estão igualmente articulados e comprometidos com a reprodução da totalidade social de que fazem parte. Refletindo sobre as relações entre o Estado e a “esfera de reprodução material”, Mészáros (2004MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004., p.495) adverte que, em vez dessa “determinação unilateral”, o que existe é “uma genuína interdependência entre o funcionamento do Estado e as exigências objetivas da reprodução material na estrutura da divisão social do trabalho prevalecente”.

Em outras palavras, a existência da autonomia relativa do Estado se deve ao fato de as estruturas e funções reprodutivas materiais da sociedade serem constituídas de tal modo – sob a forma de sistemas historicamente específicos de domínio e subordinação – que são incapazes de desempenhar a função necessária de coordenação geral sem conferir sua garantia fundamental a um corpo alienado, externo; de tal maneira que este coloque o selo de aprovação na imposição espontânea, materialmente exercida, de uma modalidade de produção e distribuição totalmente injustificável – pois profundamente exploradora – sobre o processo de trabalho e, através dele, legitimando este último em seu próprio nome contra todas as reivindicações adversárias que possam surgir em sociedades antagônicas (MÉSZÁROS, 2004MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Paulo Cézar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2004., p.495).

De modo análogo, a autonomia relativa do direito se deve à contradição de que esse complexo cumpre com a sua função de regular as relações sociais segundo uma lógica de funcionamento específica e aparentemente distanciada dos demais âmbitos da totalidade social, e, por causa mesmo dessa especificidade, isto é, apresentando esta regulação como “neutra” e indiferente à dominação de classe, confere legitimidade à reprodução desta totalidade. Portanto, esta autonomia relativa consiste numa genuína interdependência entre o direito e as relações materiais de produção, sem que um “determine” mecanicamente o outro, tampouco que esses âmbitos se encontrem apartados absolutamente, como pretende o discurso liberal ao reivindicar a “neutralidade”, a “imparcialidade” e a “autonomia” do direito em relação à “economia”, à “política” etc. Daí que o funcionamento do direito baseie-se no método de:

manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso surja não só um sistema unitário, mas um sistema capaz de regular na prática o acontecer social contraditório, tendendo para a sua otimização, capaz de mover-se elasticamente entre os polos antinômicos – por exemplo, entre a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade -, visando implementar, no curso das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classe que se modifica de modo lento ou mais ou menos acelerado, as decisões em cada caso mais favoráveis para essa sociedade, que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social (LUKÁCS: 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.247. Meus grifos).

Sendo assim, o direito é ideologia não porque as representações jurídicas distorçam a realidade, consistindo numa “falsa consciência” para encobrir a dominação de classe. O que faz do direito ideologia é a sua capacidade de regulação prática das contradições sociais, tornando esse complexo indispensável para a reprodução da sociedade de classes. A mediação jurídica tem, portanto, um “objetivo prático” que consiste em “garantir a marcha da produção e da reprodução social” (PACHUKANIS: 1988Pachukanis, E. B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Ed. Acadêmica, 1988., p.13). Por meio de seus especialistas, o direito opera eficazmente a força e o consenso necessários para garantir a continuidade do tipo de sociedade da qual ele se originou, e o faz tanto melhor quanto mais for capaz de desenvolver suas particularidades de modo relativamente independente em relação aos demais complexos da vida social.

Tal regulação prática exercida pelo direito exige uma técnica de manipulação bem peculiar, como aponta Lukács (2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.247), o que “já basta para explicar o fato de que esse complexo só é capaz de se reproduzir se a sociedade renovar constantemente a produção dos ‘especialistas’ (de juízes e advogados até policiais e carrascos) necessários para tal”.

Exatamente aqui se apresenta a educação jurídica, como um complexo específico voltado à formação dos especialistas necessários à reprodução do complexo do direito. Portanto, a questão da formação dos juristas – os especialistas do direito – se situa dentro do problema da reprodução do complexo jurídico, que, por sua vez, é absolutamente indispensável para a reprodução da totalidade do ser social no modo como ele se caracteriza nas sociedades de classe.

3. Considerações finais

A literatura ligada a uma perspectiva “crítica” do direito vem empreendendo, desde os anos 80, valiosas caracterizações ideológicas do campo jurídico. Falta-lhes, contudo, a compreensão de que aquilo que buscam superar, como o dogmatismo acrítico, o bacharelismo, o gosto pela retórica, o compromisso de classe etc. são aspectos constitutivos da forma jurídica, diante dos vínculos inescapáveis do direito com a sociedade de classes, bem como a implicação da educação jurídica com a reprodução desse tipo de sociedade.

Pontuei também que tal reprodução tem suas particularidades ligadas ao modo como o capitalismo se constituiu na América Latina e no Brasil, implicando em certas adaptações à ideologia liberal importada dos países centrais. Estas adaptações conformaram um positivismo jurídico periférico, tecendo o complexo jurídico e a formação de seus especialistas por meio das brutais sutilezas e das sutis brutalidades das elites brasileiras, evidenciando sem pudores a sua desfaçatez de classe.

A propósito da alardeada “crise” do ensino do direito, cumpre analisar friamente o papel funcional do dogmatismo, da abstração etc., para a educação jurídica. Isso quer dizer que o alarde sobre uma crise no ensino jurídico, portanto, alude a questões que lhe são constitutivas, e também que a saída para esta crise não se encontra no interior do complexo da educação jurídica. Qualquer mudança pretendida no campo da educação não pode ter êxito se não estiver acompanhada de uma mudança nas relações materiais de produção, se não incidir no modo exploratório através do qual se organiza o trabalho dos homens e das mulheres na sociedade de classes. A despeito desse fato, é comum a percepção de que a educação pode “mudar o mundo”, ou de que “a raiz do problema social está na falta de educação”. Certamente a educação pode contribuir para estimular processos ideológicos que orientem certos avanços sociais, no entanto, enquanto uma transformação não incidir sobre a forma de organizar o trabalho na produção das condições materiais da vida humana, não pode haver nenhuma mudança radical na ordem social, muito menos protagonizada pela educação.

Sendo assim, o nosso problema frente à educação jurídica não é exatamente o fato de ela ser “muito dogmática”, “abstrata”, “positivista”, “alheia aos problemas do povo” etc. Ela é tudo isso, mas não pode deixar de sê-lo. Ela não pode ser “salva” dessa crise, nem mesmo por algum tipo de direito crítico ou emancipatório. Enquanto a totalidade social da qual o complexo jurídico é parte – com a formação dos especialistas necessária à sua reprodução – prosseguir marcada pelos antagonismos que lhe são fundantes, o ensino jurídico expressará de modo funcional a maneira de lidar com esses antagonismos, em nosso caso, com as devidas especificidades da adaptação arcaica do positivismo jurídico na periferia do capitalismo.

  • 1
    São fictícios os nomes dos estudantes aqui mencionados com a devida autorização.
  • 2
    Encontram-se grafados em itálico os termos estrangeiros, os que carregam dubiedade analítica e os termos e expressões próprios do campo de pesquisa (êmicos).
  • 3
    Os grupos de AJUP desenvolvem diversas atividades, comumente compreendidas como relativas à “defesa e promoção dos direitos humanos” e tradicionalmente relacionadas à educação popular e à orientação/ acompanhamento jurídico lato sensu de movimentos sociais e organizações populares em geral (ALMEIDA: 2013________. A ideologia e os grupos de assessoria jurídica popular. In: SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS, 2. 2012, Cidade de Goiás. Anais. ISBN: 978-85-67551-00-5. Cidade de Goiás: Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais, 2013. p.17-43.; RIBAS: 2009RIBAS, Luiz Otávio. Direito Insurgente e Pluralismo Jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960 – 2000). 2009. 148 fl. Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em Filosofia e Teoria do Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis/SC.).
  • 4
    O Projeto Cajuína - UFPI, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Negro Cosme - UFMA, o Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária e o Centro de Assessoria Jurídica Universitária - UFCE, o Programa Motyrum - UFRN, o Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru - UFPB, o Núcleo de Assessoria Jurídica Popular Direito nas Ruas - UFPE e o Serviço de Apoio Jurídico Universitário – UFBA.
  • 5
    A noção de complexo provém do quadro analítico de Luckács, para quem a totalidade social é compreendida como um complexo composto por complexos parciais, um complexo de complexos, “onde se estabelecem ininterruptamente interações, tanto dos complexos parciais entre si quanto do complexo total com suas partes” (Lukács , 2013LUKÁCS, Gyorgy. Para uma ontologia do ser social - vol.2. Tradução de Nélio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Vielmi Fortes. 1a edição. São Paulo: Boitempo, 2013., p.162). Cada indivíduo é, em si, um complexo e, à medida que, coletivamente, vão interagindo com a natureza ao longo do desenvolvimento histórico, vão produzindo e (reproduzindo) o ser social, criando novos complexos para atender às necessidades que se colocam no curso desse desenvolvimento, sempre a partir dessa troca com a natureza – o trabalho.
  • 6
    A propósito, remeto à leitura de “Ideologia e formação humana em Marx, Lukács e Mészáros”. (PINHO: 2013PINHO, Maria Teresa Buonomo. Ideologia e formação humana em Marx, Lukács e Mészáros. 2013. 195 fl. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Federal do Ceará. Fortaleza/CE.); e “Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideológicas da Assessoria Jurídica Universitária Popular” (ALMEIDA: 2015ALMEIDA, Ana Lia. Um estalo nas faculdades de direito: perspectivas ideológicas da assessoria jurídica universitária popular. 2015. 342 fls. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa - PB.).
  • 7
    Ao compreender o “lamentável mal-entendido" (HOLLANDA, 2006HOLLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2006., p.176) que é a ideia de democracia no Brasil, não devemos desconsiderar o significado histórico geral da “democracia” enquanto projeto político ligado à classe burguesa. Isso porque, tampouco nos países centrais as promessas do liberalismo – traduzidas nas bandeiras da Revolução Francesa “Igualdade, Liberdade e Fraternidade” – tinham condições de ser cumpridas além dos recuados e contraditórios limites postos pela sociedade mercantil.
  • 8
    ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997.
  • 9
    Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=CaMOO_kYodw>. Acesso em fevereiro de 2014.
  • 10
    Disponível em: < http://www.sddufc.com.br/missao-e-valores/>. Acesso em julho de 2015.
  • 11
    REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002.
  • 12
    A Revista Direito e Práxis, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, vem sendo um importante espaço de difusão das ideias ligadas a um campo crítico no direito. Sua editoria executiva tem à frente Carolina Alves Vestena, figura atuante na assessoria jurídica universitária popular à época de sua graduação em direito.
  • 13
    A compreensão pluralista de Roberto Lyra Filho aparece, entre outros escritos, no seu difundido O que é direito, publicado na coleção Primeiros Passos da editora Brasiliense, em 1982. A Lyra Filho ainda voltaremos, por conta de sua influência na crítica jurídica brasileira.
  • 14
    Ver COELHO, Luiz Fernando. Teoria crítica do direito. 3 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
  • 15
    Ver a respeito CARVALHO, Amilton Bueno de. Magistratura e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992; ANDRADE, Lédio Rosa de. Juiz alternativo e poder judiciário. São Paulo: Acadêmica, 1992; e PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992.
  • 16
    Ver a respeito FARIA, José Eduardo. “Ordem legal X mudança social: a crise do judiciário e a formação do magistrado”. Em: _____ (org.). Direito e justiça: a função social do judiciário. São Paulo: Ática, 1989.
  • 17
    Ver a respeito ARRUDA JÚNIORARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____. (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992, p. 159-177., Edmundo Lima de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____. (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992; ARRUDA JÚNIORARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. “Direito alternativo no Brasil: alguns informes e balanços preliminares”. Em: _____. (org.). Lições de direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, vol. 2, 1992, p. 159-177., E. L. de. Direito moderno e mudança social: ensaios de sociologia jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
  • 18
    Dialogando com Stucka, Pachukanis (1988; p.46) observa, nessa passagem, que as análises daquele estavam parcialmente corretas ao considerar o problema do direito como um problema de relações sociais (e não de normas ou outro elemento). Mas pondera que a forma jurídica não diz respeito às relações sociais em geral, e sim à relação específica entre os proprietários de mercadorias.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2016
  • Aceito
    25 Out 2016
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