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Os argumentos relativos a direitos nas ocupações de escolas no estado de São Paulo (2015): experiências de desrespeito, reconhecimento e política pré-figurativa

The rights-related claims in public school occupations in the state of São Paulo (2015): experiences of disrespect, recognition and prefigurative politics

Resumo

Este trabalho apresenta uma análise e interpretação teórica das reivindicações relacionadas a direitos relatadas pelos estudantes nas ocupações de escolas públicas no estado de São Paulo, em 2015. Primeiro, reconstruo o caso por meio de um recorte de entrevistas realizadas com os estudantes em que mencionam as suas experiências de desrespeito diante da proposta governamental de “reorganização escolar”. Em seguida, mobilizo elementos das concepções de teoria crítica de Axel Honneth e Robin Celikates que podem ser produtivos para interpretar experiências e práticas sociais concretas em contextos de lutas sociais. Por último, considerando as observações sobre a “esfera do direito” no livro Luta por reconhecimento, proponho uma interpretação teórica dos argumentos e reivindicações relacionadas aos direitos como consistindo em um recurso prático e medium compartilhado que permitiu que os protestos reverberassem por todo o estado e em outros setores sociais distantes dos estudantes.

Palavras-chave:
Ocupação; Movimento secundarista; Reconhecimento; Política pré-figurativa; Teoria crítica

Abstract

This paper presents an analysis and theoretical interpretation of claims related to rights reported by students in the public-school occupations in the state of São Paulo, in 2015. First, I perform a reconstruction of the case drawing on a selection of interviews with students, in which they mention their experiences of disrespect in face of the government’s proposal of “school reorganization”. After that, I mobilize elements of Axel Honneth and Robin Celikates' conceptions of critical theory that can be productive for the interpretation of concrete social experiences and practices in contexts of social struggles. Finally, considering the observations on the “sphere of rights” in the book Struggle for Recognition, I propose a theoretical interpretation of the arguments and claims related to rights as consisting a practical resource and shared medium that allowed the protests to reverberate throughout the state and in other social sectors distant from students.

Keywords:
Occupy; Students’ movement; Recognition; Prefigurative politics; Critical theory

Introdução1 1 Este trabalho foi elaborado com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processos nº 2018/00924-1 e 2019/12975-2). Versões parciais e preliminares deste texto foram apresentadas no IX Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo e no X Seminário Nacional de Sociologia & Política da Universidade Federal do Paraná, ambos em 2019, agradeço a todos os participantes por seus comentários nestas oportunidades. Agradeço também a Arthur Bueno, Luiz Phelipe Oliveira Dal Santo, Rafaella Seixa Vianna e aos dois avaliadores anônimos da Revista Direito e Práxis por suas críticas e sugestões para aprimoramento do trabalho. As eventuais falhas e imprecisões remanescentes são de inteira responsabilidade do autor.

O movimento das ocupações de escolas públicas no estado de São Paulo no final de 2015 foi uma mobilização massiva e sem precedentes na história dos movimentos sociais brasileiros. Alunos e alunas das escolas públicas se uniram com o objetivo de barrar a medida governamental da “reorganização escolar”, utilizando para isso diversas táticas de contestação, entre elas a ocupação dos prédios de suas escolas.

Este trabalho discute as motivações para os protestos e as demandas relacionadas a direitos tematizados pelos estudantes, reconstruindo as experiências dos próprios sujeitos envolvidos por meio de um recorte e análise de entrevistas e pesquisas realizadas na época dos protestos e das ocupações. O objetivo dessa análise será uma tentativa de acessar a perspectiva dos próprios estudantes ao articular e relatar as suas experiências, especificamente quando mencionaram seus entendimentos sobre injustiça, violações de direitos e suas aspirações quanto à efetividade e ampliação de direitos constitucionais relacionados à educação pública e à participação social na definição de suas diretrizes.

Este recorte argumentativo é proposto pois, na literatura que discute esse episódio, não há, até o momento, uma análise que trate de forma isolada e específica os argumentos relacionados a direitos e suas consequências para o desenvolvimento dos protestos e ocupações2 2 Para uma visão ampla sobre questões relacionadas às ocupações de escolas em diversos estados brasileiros nesse período, ver a coletânea de pesquisas organizadas em Ocupar e Resistir: Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016) (JANUÁRIO, MEDEIROS, MELO, 2019). . Ao fazer isso, levanto uma hipótese de interpretação da capacidade do movimento de influenciar e receber apoio da sociedade civil em tão curto espaço de tempo, fator decisivo para impedir a implementação da medida governamental à época.

Em um segundo momento, apresento algumas observações sobre as concepções teóricas críticas de Axel Honneth e Robin Celikates em relação à proximidade ou distância do teórico e dos agentes sociais e de suas práticas3 3 No pano de fundo dessa perspectiva está presente a discussão sobre o envolvimento do pesquisador ou pesquisadora com o contexto social e os agentes observados. Nas últimas décadas, com os novos e massivos protestos que explodiram em todas as partes do mundo, que demandavam mudanças complexas e estruturais dos sistemas políticos e econômicos (CASTELLS, 2017; CELIKATES, KREIDE, WESCHE, 2015), qual seria a melhor postura para compreender esses eventos: devem olhar para as conjunturas econômicas e políticas específicas? Focar nas instituições ou nas práticas e mobilizações sociais dos sujeitos insatisfeitos? Devem se afastar ou se aproximar do contexto social? Esclarecer, ouvir ou permanecer próximos aos agentes sociais que estão envolvidos com o fenômeno? Para um aprofundamento destas e de outras questões, ver CELIKATES (2018). . A perspectiva da teoria crítica frankfurtiana, seus pressupostos e metodologia, em uma formulação entre estes dois autores, permite uma “continuação, por meios de uma metodologia científica controlada, do trabalho cognitivo que os grupos oprimidos têm que realizar em suas lutas cotidianas quando trabalham para desnaturalizar padrões hegemônicos de interpretação” (HONNETH, 2017HONNETH, Axel. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer critical theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy. Vol. 25, pp. 908-920, 2017., p. 919), manifestando suas indignações, motivações e interesses. Ou seja, uma postura teórica voltada às experiências de desrespeito vividas, suas consequências e possibilidades, orientada pela busca de produzir conhecimento orientado pela pluralidade social e pela democracia, em que as experiências cotidianas dos sujeitos sejam respeitadas e consideradas na formação política das sociedades.

Nesse sentido, ambos os autores consideram alguns elementos da concepção reconstrutiva de experiências e práticas desenvolvidas por Jürgen Habermas em Conhecimento e Interesse (2014) como sendo produtivos para possibilitar uma maior aproximação da teoria crítica com os agentes sociais. Um dos aspectos que aproxima os autores é que ambos concedem relevância aos sujeitos, suas atitudes críticas e suas práticas motivadas por experiências de desrespeito, com o objetivo de questionar e lutar contra ordens sociais naturalizadas de dominação e desrespeito; o primeiro através de processos de luta por reconhecimento (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.), e o segundo através do desenvolvimento de um conceito atualizado de desobediência civil (CELIKATES, 2016CELIKATES, Robin. Rethinking Civil Disobedience as a Practice of Contestation: Beyond the Liberal Paradigm. Constellations, v. 23, n. 1, p. 37-45, 2016.; 2015CELIKATES, Robin. ‘Learning from the Streets: Civil Disobedience’. In: Peter Weibel (ed.) Global aCtIVISm: Art and Conflict in the 21st Century. Cambridge: MIT Press, 2015), p. 65–72, 2015.; 2014CELIKATES, Robin. ‘Civil Disobedience as a Practice of Civic Freedom’. In: On Global Citizenship: James Tully in Dialogue. London: Bloomsbury, p. 207–228, 2014.).

Neste texto, utilizamos o termo “práticas sociais contestatórias” para fazer referência às variadas formas de manifestações críticas contra experiências de desrespeito que visam garantir ou alcançar o cumprimento de diversos tipos de reivindicações sociais. Esse tipo de prática visa manifestar o desrespeito e as injustiças sofridas pelos agentes, a fim de dar vazão às condutas críticas – estas constituídas pelas suas motivações e justificativas – e, ao mesmo tempo, ao interesse emancipatório dos agentes – isto é, seus anseios visando a possibilidade de superação da situação considerada injusta.

Na última etapa deste trabalho, apresento uma possibilidade de interpretação teórica sobre os argumentos relativos a direitos no caso das ocupações das escolas no estado de São Paulo, bem como de seu potencial de influência e de obtenção de apoio de outros setores da sociedade civil, por meio da forma como Axel Honneth concebe a esfera do direito no livro Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais (2003).

A teoria do reconhecimento de Honneth pode ser produtiva para levar a efeito essa análise pois nos fornece elementos teóricos para compreender as motivações e os pleitos de lutas sociais partindo das experiências de desrespeito que foram vivenciadas pelos sujeitos críticos. Uma perspectiva teórica que apresenta uma correlação entre a origem da indignação social dos sujeitos, considerados individualmente, com os seus desdobramentos coletivos e efeitos sociais.

Além disso, Honneth fornece uma concepção de direitos que pode ser compreendida como um recurso prático e um medium compartilhado tanto no sentido “estatal-institucional” quanto em uma “concepção social”, constituída pela capacidade de “generalização” das demandas e, consequentemente, de ampla difusão das experiências de desrespeito sofridas individualmente.4 4 A despeito do foco deste trabalho recair nos argumentos relacionados a direitos no caso estudado, isso não significa uma desconsideração da importância das questões afetivas e psicológicas. Estas também foram de suma importância para a mobilização dos alunos e alunas, no entanto tais questões necessitam de uma análise diversa da que é aqui proposta. Assim, ficarão em segundo plano para apresentar uma interpretação de que é o ponto de vista das violações de direitos que permitiu, nessa experiência particular, de forma mais objetiva do que nas outras esferas de reconhecimento da teoria honnethiana (amor e solidariedade), “ver o que eles veem”. Concepção que permite analisar os novos levantes sociais e suas relações com seus ideais de organização social e de direitos que permeiam suas práticas contestatórias e suas demandas.

Importante deixar claro que o objetivo do projeto desenvolvido em Luta por Reconhecimento é elaborar uma teoria crítica social centrada nos processos de reconhecimento intersubjetivo. Em nenhum momento Honneth pretende elaborar conhecimento propriamente jurídico ou um conceito definido de direito em sua teoria crítica social centrada no reconhecimento, ao mesmo tempo em que não se posiciona nos debates contemporâneos entre os teóricos e filósofos do direito. Suas considerações sobre o direito são dedicadas ao objetivo de demonstrar o papel cumprido pelo direito moderno, ao lado das outras esferas do reconhecimento, na formação da gramática moral dos conflitos sociais – o que é feito por meio de um processo que combina a formação da identidade pessoal por meio da internalização das expectativas normativas de respeito igualitário, o sofrimento gerado por formas sistemáticas de seu desrespeito e a luta motivada pela ampliação das estruturas de reconhecimento factualmente existentes (2003, p. 257-261). É exatamente a sua perspectiva “não-convencional” do direito que parece ser adequada para organizar uma explicação teórica sobre os argumentos aqui analisados, que também escapam a uma leitura tradicional de demandas por direitos.

Dessa forma, a violação de direitos e as experiências de desrespeito causadas pela não efetivação das expectativas de reconhecimento, bem como a sua tematização podem ser observadas como um vetor interpretativo para a reflexão sobre a emergência da conduta crítica dos estudantes e sua reverberação para outros setores sociais. Possuindo, portanto, uma função motivacional e impulsionadora para a organização e fortalecimento de movimentos sociais, funcionando como um medium para comunicar e reverberar suas experiências individuais e coletivas de desrespeito e almejar por mudanças sociais.

1 As ocupações de escolas no estado de São Paulo em 2015

Entre setembro e dezembro de 2015, surgiu um movimento social sem precedentes na história brasileira, tanto pela sua dimensão quanto pelas suas táticas inovadoras. Após o anúncio da proposta de “reorganização escolar” pelo Governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB-SP), estudantes de escolas públicas iniciaram diversas manifestações contrárias à proposta governamental que pretendia adotar a organização de ciclo único em algumas escolas5 5 Um ciclo consiste nos primeiros nove anos de escolaridade (ensino fundamental) ou nos três anos finais (ensino médio). Uma organização de ciclo único é uma especialização da educação na qual cada escola inclui apenas o ensino fundamental ou médio, com base no argumento principal de que esta medida aprimoraria a qualidade da educação no estado, por concentrar nas escolas apenas estudantes de idades próximas. , realocar mais de 300.000 estudantes e fechar 94 escolas estaduais, entre outras medidas.

A proposta foi recebida pelos estudantes como mais uma medida de precarização do ensino público no estado e considerada de caráter autoritário e excludente. A medida, que seria implementada já no início do ano letivo de 2016, foi comunicada sem qualquer consulta ou participação dos estudantes e da comunidade escolar. Nas semanas seguintes ao anúncio, entre os meses de setembro e a primeira semana de novembro de 2015, os estudantes reagiram com abaixo-assinados, comparecendo e cobrando esclarecimentos nas Diretorias Regionais de Ensino e na Secretaria de Educação, realizando ao menos 163 manifestações de rua por todo o estado (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 41-43). Nessas manifestações, pleitearam, principalmente, a participação dos estudantes e de suas famílias, de funcionários e professores, na elaboração de propostas mais adequadas para a melhoria do ensino público estadual e o debate público da proposta de “reorganização escolar”.

Apesar da mobilização massiva contrária à proposta, o Governo do Estado permaneceu irredutível, evitando dialogar com a comunidade escolar e sem esclarecer os pontos mais criticados nas manifestações públicas dos estudantes, mantendo genérico o teor da proposta. Aliado a isso, a mídia tradicional de grande alcance também concedeu pouca ou nenhuma atenção às reivindicações. Visando obter respostas do governo, os estudantes resolveram mudar suas táticas de protesto. Inspirados na “Rebelion Pinguina” ocorrida em 2006 no Chile6 6 Um dos fatores que contribuiu para a inspiração dos estudantes foi o contato de alguns deles com o documentário “La Rebelion Pinguina” em exibições públicas organizadas por movimentos sociais (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kYzkDql56yw [acesso em Mai. 2020]). Outro fator fundamental foi a tradução de uma cartilha denominada “Como ocupar um colégio?” utilizada por estudantes na Argentina e no Chile, produzido pelo coletivo “O Mal-Educado” ainda em 2013, muito antes das ocupações ocorrerem. , decidiram partir para uma forma de protesto mais radical: a ocupação dos prédios de suas escolas de modo a forçar o abandono da medida, e obrigar a abertura de algum diálogo com representantes do governo. A primeira escola foi ocupada no dia 9 de novembro de 2015. A partir daí, em menos de um mês, o movimento das ocupações atingiu mais de 2007 7 O gráfico que mostra o aumento do número de escolas ocupadas no período indicado pode ser consultado em http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=12 (acesso em Jul. 2022). escolas ocupadas em todo o Estado de São Paulo8 8 É importante ressaltar que o governo tentou interromper as ocupações utilizando a polícia militar estadual em várias ocasiões, como pode ser visto em cenas de documentários e reportagens, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=j42hfZiOfSU e https://www.youtube.com/watch?v=LK9Ri2prfNw (acesso em Mai. 2020). (CAMPOS, JANUÁRIO, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; JANUÁRIO, Adriano; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social. Revista Fevereiro, v. 9, p. 166-198, 2016.), algo até então inédito na história dos movimentos sociais no Brasil.

A prática social contestatória de ocupação das escolas públicas demonstrou grande capacidade de influência e de obtenção de apoio também em outros setores da sociedade. As escolas ocupadas receberam apoio daqueles que estavam próximos aos estudantes, como de suas famílias, vizinhos, comerciantes locais e professores; mas também de setores sociais mais distantes que se mobilizaram para apoiar as ocupações, como vários canais de mídia independente e alguns setores da mídia mainstream, universitários, advogados ativistas, intelectuais, setores do Judiciário, como o Grupo de Atuação Especial de Educação (GEDUC) do Ministério Público e a Defensoria Pública, além de inúmeros artistas, músicos, personalidades públicas e torcidas organizadas de clubes de futebol (CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 257-267).

No dia 4 de dezembro de 2015, diante da enorme repercussão do movimento das ocupações, o governo anuncia a suspensão da proposta da “reorganização escolar”. Em seguida, o então Secretário da Educação do Estado entrega o seu cargo. Pesquisas também apontaram uma vertiginosa queda de popularidade do governador Geraldo Alckmin durante o período. O movimento das ocupações atingiu tamanha repercussão e aceitação na esfera pública, causando enormes custos para o governo, que não deixou outra alternativa a não ser recuar.

1.1 A voz dos estudantes: afetividade, solidariedade, direitos e crítica

As experiências de desrespeito provocadas pela proposta governamental foram as mais variadas, como demonstram entrevistas realizadas com os estudantes e a análise de suas publicações em redes sociais no período das ocupações (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016.; CAMPOS, JANUÁRIO, MEDEIROS, RIBEIRO, 2015). Utilizo aqui, para fins didáticos, a divisão dos argumentos elaborada por Medeiros e Januário (2017)MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano. Desrespeito, indignação ou injustiça: o que motivou os secundaristas paulistas a ocuparem suas escolas? In: Anais do 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, Brasília. 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017.: a) razões emocionais ou afetivas; b) argumentos racionais contra aspectos substanciais da medida; e c) críticas políticas e morais em relação à forma autoritária com que o Estado tratou os estudantes.

Um primeiro argumento mencionado pelos estudantes para responder por qual motivo resolveram protestar e ocupar suas escolas, foram relativos à afetividade em relação a escola e a comunidade escolar. Muitos estudantes relatam que possuíam laços e vínculos duradouros com suas escolas e, por isso, na medida em que concebiam a possibilidade de destruição destes laços, decidiram aderir aos protestos:

Mano, lá é nossa casa... nosso lar [...] e tipo não dá pra sai assim do nada sem mais nem menos... não dá pra esquecer sua casa... seu lar e toda aquela família... não são de sangue e sim de coração... lá não somos amigos... somos uma família e sei que se todos agirmos juntos... não vão nos tirar de lá... não podem fazer isso, é nosso futuro que está em jogo e acho que falo por todos quando digo que não vamos deixar nossa casa nem nossa família para trás [...] (Trecho de post no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 33)

ALUNA 1: “Por que a gente quer tanto [a escola]? Primeiro vamos começar pelo amor que a gente tem pela nossa escola.”

ALUNA 2: “É, já tem um vínculo criado ali com todos os alunos, com os funcionários da escola, os professores [...] que a gente criou essa convivência desde o Ensino Fundamental e não é uma coisa que você vai... não vai ser assim, ninguém chega na casa de uma pessoa e fala ‘Não, não é mais aqui que você fica [...].” (Transcrição de vídeo postado no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 34)

Outros estudantes, no entanto, não consideravam que esta seria uma motivação tão fundamental para os protestos:

Eu particularmente detestava a escola, desculpa a sinceridade, mas eu detestava a escola por ela ser um ambiente muito opressor [...], só que eu detesto a escola mas eu acho que quem faz a escola somos nós [...], porém, tipo eu falo que eu não gosto assim só que é a minha escola, sabe, tipo eu quero estar aqui, eu quero mudar esse costume chato dos professores entrarem aqui e jogarem qualquer coisa na lousa, porque a escola pode ser do jeito que for mas é um ambiente nosso que a gente tem que lutar por ele [...]. (Trecho de entrevista com estudante. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 34)

O núcleo desta categoria de argumentos é a valorização da sociabilidade no interior das escolas, que foi ameaçada pelo projeto do governo: amizades, os vínculos e sentimentos em torno das relações sociais e afetivas tanto entre estudantes quanto entre alunos, professores e funcionários das escolas. No entanto, nem todos os alunos e alunas dividem experiências emocionais e afetivas em relação às suas escolas.

Também encontramos argumentos que combatem o conteúdo da política pública, defendendo que a motivação para os protestos seria barrar a proposta, pois ela não seria a melhor medida para a melhoria da educação pública no estado:

Nas condições em que as escolas estaduais se encontram, não é possível fazer uma reorganização em algo que não está organizado. Acho que primeiro ele deveria investir na estrutura escolar, em vários outros fatores, no salário dos professores por exemplo, nas salas superlotadas que já existem e ele ainda vai piorar com essa reorganização. Então acho que tem várias outras coisas em que ele podia investir antes de pensar em reorganizar ou reestruturar alguma coisa dentro das escolas. (Trecho de entrevista com estudante. Disponível em CAMPOS, JANUÁRIO, MEDEIROS, RIBEIRO, 2015, p. 9)

Outros argumentos invocam uma noção de democracia participativa. No sentido de que, em um Estado democrático de direito, os cidadãos têm o direito de participar da elaboração das leis e políticas públicas pelas quais estarão submetidos:

“E, assim, é uma coisa que não foi... conversada.”

“É... nós somos contra porque... assim, pra fazer uma reorganização escolar, acho que não teria que ser só consultado os diretores de escola e sim os alunos, os professores também.”

“Eu sou contra porque... ao invés deles recorrerem à sociedade pra saber a opinião do povo, se... está de acordo ou não, eles meio que impuseram isso.”

“Até porque, tipo, foi uma decisão tomada sem consultar... ninguém, entendeu?”

“Então, tipo, assim, eles [os pais] acham que foi de uma forma que, tipo... eles [o governo] colocaram e obrigaram a gente, tipo, a obedecer aquilo, entendeu?

“Pensamos em fazer algo, em participar também contra a reorganização... porque isso não foi algo decidido pelos alunos, pelos pais... foi algo imposto, então a gente não concordou nisso na hora.”

Aluna 1: “Primeiramente eu sou contra porque não houve diálogo...”

Aluna 2: “A gente tá sendo praticamente expulso da escola.”

Aluna 1: “É, não foi perguntado, sabe... se você vai mudar uma coisa que interfere na vida das pessoas, você pergunta antes, porque é isso que um representante do povo faz.” (Trechos de entrevistas com estudantes. Disponíveis em MEDEIROS e JANUÁRIO, 2017MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano. Desrespeito, indignação ou injustiça: o que motivou os secundaristas paulistas a ocuparem suas escolas? In: Anais do 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, Brasília. 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017., p. 16)

Podemos considerar que esses argumentos, de acordo com a legislação brasileira, pleiteiam efetivação ao direito à participação e à gestão democrática das políticas públicas referentes à educação. Dessa forma, esses argumentos evidenciam a violação do direito político de participação dos estudantes garantido pela Constituição Federal de 19889 9 Conforme expresso no art. 206, VI da Constituição Federal: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei”. , pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 1996).

A falta de consulta da comunidade escolar evidenciou os contornos autoritários da forma de se fazer política do governo estadual, excluindo do processo decisório aqueles que seriam diretamente afetados pela proposta de política pública. Ou seja, a proposta constituiu uma violação de direitos sofrida por um certo grupo social – estudantes do ensino público paulista – excluindo-os do processo de decisão sem qualquer justificativa, considerando-os como cidadãos de “segunda classe”, aumentando a percepção de distanciamento entre o poder público e os estudantes, consistindo em um tratamento desrespeitoso e injustificado que revelou a desigualdade de tratamento direcionado aos estudantes das escolas públicas paulistas.

Outros argumentos mencionam especificamente o direito constitucional à educação pública, mencionando que o propósito de barrar a “reorganização escolar” seria apenas uma pauta provisória e urgente, sendo que a luta por melhorias e pela efetividade dos direitos constitucionais à educação iriam muito além disso:

A ocupação tem um propósito, o propósito é de lutar pela educação. Sendo assim, aproveitamos que estamos o dia todo na escola para cuidar dela da melhor forma [...], além de reivindicar por mudanças [...] estamos cuidando do que é nosso por direito [...]. (Post no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 142)

O foco da nossa luta é contra a reorganização, mas nós secundaristas entendemos que essa pauta é apenas o começo de diversas reivindicações. (Post no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 148)

A despeito do foco deste trabalho recair nos argumentos relacionados a direitos, isso não significa uma desconsideração das questões afetivas e psicológicas. Estes também foram de suma importância para a mobilização dos alunos e alunas, porém tais questões necessitam de uma análise diversa da que é aqui proposta. Argumentos dessa natureza possuem, em maior ou menor medida, uma capacidade de compartilhamento e de “generalização” limitada, já que dependem de sentimentos e emoções que não são plenamente apreendidos por outras camadas da sociedade. Por isso, ficarão em segundo plano no momento para evidenciar que, nesse caso específico, os argumentos relacionados aos direitos e o ponto de vista das experiências de desrespeito a eles relacionadas permitiu, nesta experiência particular, acessar o que os agentes sociais experimentavam naquele momento de forma mais objetiva do que os argumentos relativos às violações de afetividades ou da cultura de valores.

As experiências de desrespeito relacionada aos direitos, aqui representados pelo direito à educação e à participação em sua gestão, podem ser consideradas como um dos motivos para a surpreendente força adquirida pelo movimento dos estudantes e do apoio social que recebido durante a sua existência. Ou seja, este tipo de argumento possuiu uma maior capacidade de reverberação, compartilhamento e adesão, devido à sua semântica comum e a sua objetividade.

Por detrás dessas motivações, também se encontra presente nessas experiências uma progressiva noção de luta por direitos que foi crescendo e se desenvolvendo no interior do movimento e de acordo com os protestos. A ideia de “Escola de Luta”, nome da canção que embalou os protestos e as ocupações10 10 MC Foice e Martelo, “Escolas de Luta”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QvdrLD1RbTI (acesso em Mai. 2020). , não é por acaso. Nas ocupações os estudantes relataram que puderam aprender mais sobre os seus direitos e como lutar para garanti-los. Foram realizados, por exemplo, debates políticos, oficinas, apresentações culturais e aulas públicas, selecionadas e organizadas pelos próprios estudantes participantes das ocupações.

Este aprendizado ativado pelas experiência de desrespeito sofrida pelos estudantes também contribuiu para o advento e aprofundamento da “conduta crítica” dos participantes do movimento. Só é possível compreender as motivações dos agentes sociais e formular a hipótese, na medida em que eles apresentam o interesse na superação de sua condição. Isso pode ser ilustrado pelo seguinte trecho:

É, a gente passa a ser críticos quando afeta a gente né? Quando a gente vê que... que, pô, caraca, é complicado mesmo esse governo, quando você... só quando você é atingido, quando você tá... tudo tranquilo, você tá de boa, 'Ah, tá tranquilo, tá de boa'. Mas quando você vê que te atinge, assim, de uma forma... e eles mesmos te prejudicaram... você fica mais revoltado, assim, sabe, mais crítico, você começa a ver tudo diferente, né? Você quer sempre criticar de alguma forma. (Trecho de entrevista com estudante. Disponível em MEDEIROS e JANUÁRIO, 2017MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano. Desrespeito, indignação ou injustiça: o que motivou os secundaristas paulistas a ocuparem suas escolas? In: Anais do 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, Brasília. 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017., p. 2)

A noção de lutar pelos direitos e essa cultura de direitos em formação também está associada a uma “consciência intergeracional” do já mencionado direito constitucional à educação. Alguns estudantes mencionaram que estavam lutando pelo direito de educação de toda a população brasileira, incluindo suas futuras gerações, como pode ser visto no seguinte trecho:

É... por mim seria porque, também, é... os direitos que são nossos, mesmo que no futuro não faça mais parte da nossa vida, também são dos que virão depois de nós, né, nossos filhos, assim como nós também passamos hoje ou vivemos coisas que nossos antepassados lutaram. E... nada mais do que a gente também continuar, porque o ensino também já estava ficando muito ruim, já tava mudando bastante coisa, não é só apenas isso que ia acontecer, a gente já tem que colocar um passo nisso aí. (Trecho de entrevista com estudante. Disponível em MEDEIROS e JANUÁRIO, 2017MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano. Desrespeito, indignação ou injustiça: o que motivou os secundaristas paulistas a ocuparem suas escolas? In: Anais do 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, Brasília. 18° Congresso Brasileiro de Sociologia, 2017.)

Junto a todos estes argumentos, é importante mencionar que o funcionamento das ocupações seguiu a lógica da chamada “política pré-figurativa” (prefigurative politics), característica marcante de muitos outros movimentos de ocupação que utilizam espaços públicos para conduzir protestos (CELIKATES, 2012CELIKATES, Robin. O não-reconhecimento sistemático e a prática da crítica. Novos Estudos CEBRAP, 93, p. 29-42, 2012., p. 68; BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 238-239). Este tipo de organização antecipa, de forma experimental, a transformação que o grupo social busca mediante ações que “prefiguram” e demonstram, dentro dos espaços ocupados, as mudanças que desejam efetivar em sua realidade social mais ampla (VAN DE SANDE, 2015VAN DE SANDE, Mathijs. Fighting with Tools: Prefiguration and Radical Politics in the Twenty-First Century. Rethinking Marxism – A journal of Economics, Culture & Society, 27:2, p. 177-194, 2015.; RAEKSTAD, 2017RAEKSTAD, Paul. Revolutionary practice and prefigurative politics: A clarification and defense. Constellations, 00, p. 1-14, 2017.)11 11 Sobre as performances da lógica da política pré-figurativa e as lutas contemporâneas dos novos movimentos sociais, vale a pena mencionar essa esclarecedora passagem de Judith Butler em Corpos em aliança e a política das ruas: “Um movimento social é em si uma forma social, e quando um movimento social reivindica um novo modo de vida, uma forma de vida possível de ser vivida, então deve, no mesmo momento, representar os próprios princípios que busca realizar. Isso significa que, quando funciona, há uma representação performativa de democracia radical nesses movimentos que sozinha pode articular o que pode significar levar uma vida boa no sentido de uma vida possível de ser vivida. Tentei sugerir que a condição precária é a condição contra a qual vários novos movimentos sociais lutam; esses movimentos não buscam a superação da interdependência ou mesmo da vulnerabilidade enquanto lutam contra a precariedade. Ao contrário, o que buscam é produzir as condições nas quais a vulnerabilidade e a interdependência se tornem vivíveis. Essa é uma política na qual a ação performativa toma uma forma corporal e plural, chamando a atenção crítica para as condições de sobrevivência corporal, persistência e florescimento dentro do enquadramento da democracia radical. Se vou levar uma vida boa, vai ser uma vida vivida com outros, uma vida que não é uma vida sem esses outros; não vou perder esse eu que sou; seja quem eu for, serei transformado pelas minhas conexões com os outros, uma vez que a minha dependência do outro e a minha confiança são necessárias para viver e para viver bem. Nossa exposição compartilhada à condição precária é apenas um fundamento de nossa igualdade potencial e das nossas obrigações recíprocas de produzir conjuntamente as condições para uma vida possível de ser vivida. Ao admitir a necessidade que temos um do outro, admitimos do mesmo modo princípios básicos sobre as condições sociais e democráticas do que ainda podemos chamar de ‘a vida boa’. Essas são condições críticas da vida democrática no sentido de que fazem parte de uma crise em andamento, mas também porque pertencem a uma forma de pensamento e de ação que responde às urgências do nosso tempo.” (BUTLER, 2018, p. 238-239). .

O movimento de ocupações seguiu uma forma horizontal de organização, visando permitir a participação dos estudantes nas decisões, por mais cotidianas que fossem, mediante a realização de assembleias. Isso pode significar uma tentativa de quebrar com as figuras paternalistas e autoritárias que foram, de acordo com os próprios estudantes, a característica marcante da forma como o governo anunciou e tentou implementar a proposta da “reorganização escolar”. O movimento suas ações e modos de operação de acordo com a crítica e a imaginação de seus participantes e do que eles consideram ser uma forma de sociedade mais justa. Assim, construindo por meio de suas imaginações institucionais uma “mini-sociedade”12 12 Em artigo analisando os protestos do denominado 15M na Espanha – que apresenta alguns aspectos práticos e organizacionais semelhantes com as ocupações escolares em São Paulo – Pablo Ouziel indaga que, em síntese, essas presenças coletivas estariam questionando a si mesmos e ao público em geral: “como nós podemos nos governar?” (Disponível em https://www.politika.io/fr/notice/a-nonstatecentric-conception-of-social-transformation-in-spain-15m [acesso em Mai. 2020]). , como mencionado por uma estudante13 13 “A experiência de conviver todos os dias, 24hrs, com colegas e amigos de escola foi sensacional, aprendi e amadureci muito dentro da mini-sociedade que construímos, todos têm um lugar muito especial no meu coração e essa convivência me deixou ainda mais forte e preparada para o que der e vier! NÃO TEM ARREGO!” (Post no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016, p. 148) (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 294).

As ocupações eram administradas através de comissões, como de limpeza, cozinha, comunicação e segurança, e as próprias relações sociais de gênero foram subvertidas para não refletir as tarefas comumente dividas entre meninos e meninas, com destaque para um nítido protagonismo feminino14 14 Como é demonstrado no documentário LUTE como uma menina. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA&t=261s (acesso em Mai. 2020). , assim como a tolerância e reconhecimento de questões LGBT (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016., p. 135-136).

Embora as ocupações compartilhassem demandas comuns e experiências de desrespeito que mantiveram os estudantes unidos para superar essa situação, também é possível dizer, nas palavras de Judith Butler, que houve “também o desejo de produzir uma nova forma de sociabilidade no local” (2015, p. 200). As ocupações das escolas em São Paulo demandaram um novo modo de vida, exaltando em cada momento os próprios princípios que gostariam de ver realizados em sua realidade social mais ampla. Nesse sentido, a melhoria radical da educação básica para todos, a participação na definição de políticas públicas e o desejo de um processo decisório mais democrático e inclusivo em relação à educação pública, podem ser vistos como alguns dos princípios de uma “nova sociedade” que estes jovens estudantes desejam realizar em seu futuro.

1.2 Alguns resultados do movimento das ocupações

O movimento foi capaz de suspender a medida governamental e trazer a proposta para discussão na esfera pública. Além disso, o Secretário da Educação responsável pela proposta entregou o seu cargo e pesquisas apontaram uma vertiginosa queda de popularidade do governador Geraldo Alckmin durante o período dos protestos15 15 “Fechamento de escolas faz Alckmin ter rejeição recorde, diz Datafolha” (El País, 4 de dezembro de 2015. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/04/politica/1449231992_254699.html. [acesso em Mai. 2020]). “Popularidade de Alckmin atinge pior marca, aponta Datafolha” (Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 2015. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1714813-popularidade-de-alckmin-atinge-pior-marca-aponta-datafolha.shtml [acesso em Mai. 2020]) . O movimento das ocupações atingiu tamanha repercussão e custos para o governo que não deixou outra possibilidade a não ser recuar.

As hipóteses para a vitória parcial dos estudantes, conforme Campos, Medeiros e Ribeiro (2016)CAMPOS, Antonia M.; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio M. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016. e Medeiros, Januário e Melo (2019)MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. “Sociedade civil, esferas públicas e desobediência civil: uma comparação entre dois movimentos de ocupação de escolas”. In: MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. Ocupar e Resistir. Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019. é que o movimento apresentou: 1) flexibilidade e criatividade na adaptação dos repertórios de ação coletiva conforme a mudança da conjuntura, deliberando “viradas táticas” que se espalhavam rapidamente entre os apoiadores; 2) capacidade para construir uma densa rede de apoio na sociedade civil (tanto nas ruas quanto nas redes); e 3) possibilidade de aproveitar a existência de alguma “porosidade” do Poder Judiciário a fim de reconhecer a ação direta e a desobediência civil enquanto um direito legítimo de manifestação.

A partir desta primeira experiência, nos anos seguintes a ocupação de escolas se tornou uma forma de ação coletiva concebível no Brasil. Depois dos estudantes paulistas, diversos outros estados16 16 Por exemplo, nos estados de Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo. passaram por mobilizações de grandes proporções, com diferentes pautas, mas que convergem na defesa do direito ao ensino público e no pleito por maior participação em sua gestão.

2 “Ver o que eles estão vendo”: teoria crítica e práticas sociais

A análise da experiência do movimento de ocupação das escolas no estado de São Paulo foi realizada através do contato com entrevistas dos estudantes e uma seleção de passagens específicas para compreender suas motivações relacionadas ao desrespeito de seus direitos. A escolha de apresentação do tema visa privilegiar a narrativas e os argumentos dos próprios sujeitos, orientada por certos elementos da tradição de pensamento da teoria crítica frankfurtiana que serão expostos brevemente nesta seção, os quais sustentam a centralidade das práticas sociais para instruir análises teóricas vinculadas à busca por mudanças sociais. No pano de fundo dessa perspectiva, a questão sobre o envolvimento do pesquisador ou pesquisadora com o contexto social e os agentes observados está sempre presente. Dessa forma, as dinâmicas entre a posição de observador e a de participante em relação ao fenômeno a ser compreendido resultaram em diferentes visões teóricas e produziram teorias sociais que partem de diversos pontos de partida (CELIKATES, 2018CELIKATES, Robin. Critique as Social Practice: Critical Theory and Social Self-Understanding. London; New York: Rowman and Littlefield International, 2018.; BOLTANSKI, HONNETH, CELIKATES, 2014BOLTANSKI, Luc; HONNETH, Axel; CELIKATES, Robin. “Sociology of Critique or Critical Theory? Luc Boltanski and Axel Honneth in Conversation with Robin Celikates”. In: SUSEN, Simon; TURNER, Bryan S. The Spirit of Luc Boltanski: Essays on the Pragmatic Sociology of Critique. London: Anthem Press, 2014.).

Na tradição da teoria crítica, o tema está diretamente ligado à ideia essencial de um interesse emancipatório dos sujeitos, precisamente uma das características que diferenciaram a ideia original de “teoria crítica” daquela denominada “teoria tradicional” 17 17 Horkheimer apresenta o seu método de pesquisa no famoso ensaio Teoria tradicional e teoria crítica, publicado em 1937 (HORKHEIMER, 1975). A teoria crítica, compreendida como um modo de produção de conhecimento ciente de seu contexto social de origem e de aplicação, é desenvolvida com base em uma tentativa de superar as deficiências diagnosticadas da denominada teoria tradicional. Esta proposta tinha, inicialmente, a pretensão de desenvolver e atualizar as intenções marxistas clássicas em um novo contexto histórico, de modo a sanar os problemas que a história apresentou para os diagnósticos da época, visando levar seus conceitos para o momento histórico presente, reformulando e repensando a teoria em vista das novas condições histórico-sociais. Horkheimer apresenta críticas às atitudes positivistas da ciência tradicional burguesa na qual, por meio das pretensões de “totalidade” e de “neutralidade” científicas perante o saber, não se admitia outras formas de conhecimento para integrarem-se ao saber científico produzido e nem mesmo à reflexão interna sobre a própria teoria tradicional. Horkheimer constata que o método positivista da época era influenciado e determinado pelo capitalismo de uma forma a prejudicar a produção de conhecimento científico, visando apenas legitimar a forma das sociedades capitalistas, sem possuir interesse em sanar suas imperfeições ou operar uma crítica efetiva da realidade, no sentido de que “‘entender’ como ‘as coisas funcionam’ é já aceitar que essas ‘coisas’ são assim e que não podem ser radicalmente de outra maneira” (NOBRE, 2013, p. 17). O objetivo da proposta da teoria crítica frankfurtiana seria unir diversos saberes para produzir teorias sociais com alto grau de complexidade, orientada para superar as deficiências e desigualdades geradas pelo sistema capitalista. Horkheimer divulga uma proposta de trabalho interdisciplinar em que economistas, cientistas sociais, historiadores, psicólogos, teóricos do direito, da política e da literatura, filósofos e críticos de arte, trabalhariam em torno de um mesmo campo orientado pelos princípios norteadores da teoria crítica, principalmente o do “interesse orientado à emancipação”, tentando esgueirar-se dos limites da filosofia especulativa e, ao mesmo tempo, dos limites das ciências empíricas. Isso de modo a evitar as construções abstratas desprovidas de demonstrações e descrições empíricas consideradas autônomas, porém carentes de embasamento teórico que lhe concedesse sustento, colaborando, também, para um objetivo comum: produzir um diagnóstico do tempo capaz de fornecer uma compreensão precisa e ao mesmo tempo complexa do momento histórico e de seus potenciais e bloqueios emancipatórios. (NOBRE, 2014NOBRE, Marcos. A Teoria Crítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2014., p. 34-35). Uma das contribuições relacionadas a este tema está na obra Conhecimento e Interesse, de Jürgen Habermas (2014)HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. São Paulo: Unesp, 2014., em que o autor sustenta que a proposta original apresentada por Max Horkheimer (1975)HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. In: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, v. XLVIII. p. 125–162, 1975. de que a teoria crítica, para se estabelecer como um contraponto à teoria tradicional, deveria partir da observação de uma forma distinta de ação humana – uma espécie de “conduta crítica” dos agentes sociais que seria determinada pelo interesse em superar e lutar contra ordens sociais naturalizadas de dominação, procurando diagnosticar as possibilidades de superá-las inscritas na realidade social.

Neste livro, publicado em alemão em 1968, uma das propostas de Habermas é que a teoria crítica poderia adotar o método reconstrutivo psicanalítico, no qual o trabalho intelectual é divido entre o psicanalista e o paciente na sessão terapêutica. O primeiro reconstrói o que foi esquecido através de descrições ou “textos” imprecisos expressados pelo último. É a sua recordação em si que define a precisão da construção que será elaborada pelo psicanalista. A teoria crítica poderia tirar proveito de elementos deste método, elevando-o do nível individual para o nível social.

De acordo com a interpretação feita por Robin Celikates em Critique as Social Practice (2018, p. 142-144), na psicanálise e na teoria crítica, o processo de transformação da crítica se baseia em condições prévias subjetivas dos destinatários. Em uma sessão de psicanálise a história da vida de uma pessoa é reconstruída, a concepção de reconstrução envolve as restaurações de uma estrutura que foi perdida ou escondida. O paciente, portanto, deve estar envolvido no processo por ser uma oportunidade de autorreflexão na qual é um agente e não um mero objeto, no sentido de que “a análise não é um processo natural controlado, [...] é um movimento de autorreflexão” (HABERMAS, 2014HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e Interesse. São Paulo: Unesp, 2014., p. 374).

Caso os sujeitos não possuam interesse na autorreflexão, isto é, se não sofrerem as obstruções psicológicas e sociais para o desenvolvimento interno e para o exercício de suas capacidades, a própria noção de crítica não faria sentido. Essa postulação é apoiada pela premissa de Habermas da existência de um interesse cognitivo emancipatório antropológico fundamentado, que visa permitir a própria reflexão. Sem esse objetivo final, a reflexão não teria nenhuma consequência prática, e nem a psicanálise ou a teoria crítica teriam um ponto de partida.

O objetivo desse tipo de concepção de teoria crítica e a sua adequação para a análise aqui proposta seria, portanto, necessariamente prático, pois visaria em alguma medida “reorganizar” a autocompreensão de seus destinatários. Dessa forma, a reconstrução psicanalítica seria elevada do individual para o nível da sociedade, reconstruindo as narrativas sociais através dos sujeitos para elaborar o conhecimento científico social de caráter crítico.

No entanto, apesar de ser considerada promissora à época, a analogia entre a psicanálise e a teoria crítica após Conhecimento e Interesse não foi aproveitada em todos os seus potenciais. O próprio Habermas desistiu da proposta após s década de 70, seguindo outro modelo crítico baseado nas condições linguísticas de interação comunicativa entre sujeitos (HABERMAS, 1984HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action. Boston: Beacon Press, 1984). Porém, a abordagem não foi completamente abandonada no interior das produções da teoria crítica.

De acordo com Axel Honneth, a proposta de Habermas não foi levada adiante porque ele escolheu a abordagem psicanalítica para explicar “o papel das lutas” no processo de social de desenvolvimento dos sujeitos (HONNETH, 2017HONNETH, Axel. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer critical theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy. Vol. 25, pp. 908-920, 2017., p. 910). Honneth, ao mesmo tempo, considera que o pensamento inaugurado por Habermas de que as teorias críticas sociais deveriam proceder de forma “reconstrutiva” deve ser preservado, já que esta perspectiva permite identificar caminhos teóricos na pesquisa social que podem ser considerados como atualizações de normas que já haviam sido aceitas previamente, o que permitiria diagnosticar também desvios que marcam os processos de desenvolvimento social (HONNETH, 2017HONNETH, Axel. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer critical theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy. Vol. 25, pp. 908-920, 2017., p. 912).

Robin Celikates também destaca as possibilidades deste caminho, atualizando-o e permitindo uma abordagem dos fundamentos e significados originais da teoria crítica. Em síntese, ele propõe uma relação de construção conjunta entre agentes sociais e o teórico crítico, na medida em que o primeiro possa providenciar sua autointerpretação de suas posições, insatisfações e entendimentos sociais para o teórico. A tarefa do pesquisador ou pesquisadora, portanto, seria reconstruir uma interpretação destas questões junto com os agentes sociais, e não realizar uma ruptura entre “observador” e “participante”, como proposto em outras vertentes de pensamento social (CELIKATES, 2018CELIKATES, Robin. Critique as Social Practice: Critical Theory and Social Self-Understanding. London; New York: Rowman and Littlefield International, 2018.; BOLTANSKI, HONNETH, CELIKATES, 2014BOLTANSKI, Luc; HONNETH, Axel; CELIKATES, Robin. “Sociology of Critique or Critical Theory? Luc Boltanski and Axel Honneth in Conversation with Robin Celikates”. In: SUSEN, Simon; TURNER, Bryan S. The Spirit of Luc Boltanski: Essays on the Pragmatic Sociology of Critique. London: Anthem Press, 2014.).

Celikates vai além no objetivo de libertar a concepção de Habermas das “amarras psicologizantes” que não permitem que as reflexões se desenvolvam, reestabelecendo as práticas sociais dos agentes com a crítica social que as motiva e que também constitui seu resultado. Isso por meio da necessidade e tentativa de um trabalho duplo que possa aproximar a voz dos agentes sociais e do teórico, assim seria possível encontrar ou mesmo reconectar o interesse emancipatório imanente nas práticas sociais com a teoria crítica (CELIKATES, 2018CELIKATES, Robin. Critique as Social Practice: Critical Theory and Social Self-Understanding. London; New York: Rowman and Littlefield International, 2018., p. 191-192).

Nesse sentido, a interpretação psicanalítica e a reconstrução como possibilidade de método de uma teoria crítica social consistem em uma tentativa de explicar como a produção crítica pode mover-se para um outro nível, diferenciando as restrições sociais às quais os membros da sociedade estão sujeitos ao desenvolvimento de suas capacidades críticas. Será necessário, então, observar os agentes sociais como agentes reflexivos e evidenciar as experiências determinantes para a supressão ou surgimento da “conduta crítica”.

Levando em conta as concepções metodológicas expostas por Robin Celikates, bem como a aproximação da teoria crítica de Axel Honneth18 18 Aproximação que pode ser concebida dessa forma: “Dependendo de sua posição social, os atores possuem ‘voz’ e poder social de justificação — poder de demandar justificações e produzi‑las — em graus que variam radicalmente. A Teoria Crítica tem, portanto, de perguntar‑se sob quais condições sociais — ou, mais especificamente e seguindo Axel Honneth, dentro de quais relações de reconhecimento — os atores podem formar e exercer suas capacidades reflexivas.” (CELIKATES, 2012, p. 38). , mais especificamente por meio de sua teoria do reconhecimento – que considera que experiências de desrespeito e injustiça que violam expectativas sociais de afeto, moralidade, respeito, participação política e solidariedade, constituem o motor das lutas sociais e da formação dos movimentos sociais –, parece ser produtivo elaborar uma análise de práticas sociais contestatórias, por exemplo, tendo a voz dos próprios agentes como elemento central, visando, em alguma medida, reconstruir suas próprias experiências19 19 Marcos Nobre considera que essa abordagem: “Pretende dar sentido aos acontecimentos a partir da perspectiva de quem age, é uma perspectiva de interpretação que dá a palavra a quem faz o movimento, que busca entender a mobilização segundo categorias elaboradas por quem dela participa. Para isso, combina perspectivas disciplinares diferentes, como as da história, da antropologia, do direito e da sociologia” (NOBRE, 2019, p. 7). Sobre as recentes transformações das lutas sociais e as relações entre teoria e práticas nas diferentes vertentes de teorias críticas, Nobre menciona “"Esta nova relação com a ação transformadora também precisa ser desenvolvida distinguindo novamente entre dois níveis de engajamento: um direcionado para ações únicas, e outro para um maior compromisso com uma sociedade emancipada. [...] A razão pela qual a nova configuração da relação entre teoria e prática no que diz respeito ao diagnóstico do tempo tem precedência, deve-se principalmente a uma situação em que tanto a prática como a teoria dependem inerentemente do ativismo na esfera pública e, em uma medida mais ampla, das disputas democráticas.” (NOBRE, 2015, p. 168). .

De forma similar a esta concepção, em recente texto sobre o tema, Honneth argumenta que, de forma a acessar o interesse emancipatório que ainda existe nos sujeitos, é necessário adotar uma concepção de teoria crítica como uma espécie de “continuação” das motivações e demandas de grupos oprimidos quando visam “desnaturalizar” ou superar os padrões hegemônicos de dominação social (HONNETH, 2017HONNETH, Axel. Is there an emancipatory interest? An attempt to answer critical theory’s most fundamental question. European Journal of Philosophy. Vol. 25, pp. 908-920, 2017., p. 919), por meio de suas condutas críticas e do interesse emancipatório nelas inscrito.

Seguindo essas diretrizes metodológicas, na próxima seção é proposta uma interpretação teórica alinhada com a reconstrução das experiências de desrespeito dos sujeitos e dos argumentos relativos a direitos mencionados por eles expostos na primeira seção. O ponto central é que os argumentos relativos a direitos funcionaram nesse episódio como um recurso prático e um medium compartilhado capaz de reverberar as demandas dos estudantes por todo o estado de São Paulo. Porém, isso apenas foi possível pois os argumentos relativos a direitos foram sendo desenvolvidos em conexão íntima com as práticas dos estudantes, ou seja, não sendo completamente dependentes da estrutura jurídico-institucional do direito “formal”. A interpretação proposta é que estes argumentos relativos a direitos providenciaram elementos de uma visão do direito não-centralizada no paradigma estatal, uma “concepção social do direito”.

3 A “esfera do direito” em Luta por Reconhecimento: recurso prático e medium compartilhado

Como foi exposto na primeira seção, a forma autoritária pela qual o governo do Estado formulou e tentou impor a chamada “reorganização escolar” motivou a onda de protestos contra a medida e ativou a conduta crítica dos alunos e alunas, que consideraram seu conteúdo e forma de implementação como constituindo um tratamento injusto e desigual. No movimento dos estudantes para impedir a proposta governamental e em suas reivindicações de melhorias na educação pública estadual observamos alguns argumentos relacionados ao desrespeito de seus direitos constitucionais. A partir desta análise, é possível considerar a hipótese de que o uso da “linguagem” dos direitos20 20 Nas últimas décadas, pode-se considerar que os chamados movimentos sociais progressistas concentraram grande parte de seus esforços em reivindicações sobre direitos e leis. Wendy Brown e Janet Halley (2002) organizaram uma contribuição fundamental sobre o tema, trazendo um conjunto de reflexões sobre o significado dos direitos para a luta social no contexto norte-americano, destacando seus desafios e limitações (por exemplo, sobre o papel do direito na naturalização de categorias [Brown, 2002]). Sobre os limites e potenciais ambivalentes do processo de “juridificação” e sua relação com a teoria crítica, ver também Daniel Loick (2014). Apesar dessas reflexões críticas, considero que a linguagem dos direitos permite que indivíduos ou grupos chamem a atenção da esfera pública para pontos de vista que têm sido amplamente negligenciados. Ainda mais em países periféricos como o Brasil, onde os direitos constitucionais são violados cotidianamente, causando experiências rotineiras e intensas de injustiça e desrespeito na população, em especial em grupos mais marginalizados. Nesse sentido, também pode ser produtivo confrontar a perspectiva de Axel Honneth sobre a esfera de direitos apresentada nesta seção, em relação a essas limitações, uma tarefa que poderá ser realizada em outra ocasião. para expressar as injustiças sofridas pode ser uma das razões da rápida reverberação das demandas do movimento por todo o estado de São Paulo, sustentando uma base comum de entendimento entre os estudantes e outros setores sociais sobre a luta pelo direito à educação e pela participação social na definição de suas diretrizes.

Apesar dos diversos contextos locais – ou seja, das peculiaridades de cada cidade onde ocorreram protestos, dos vários e diversos atores sociais e das inúmeras variações de narrativas na cobertura midiática e nas redes sociais – é possível considerar a hipótese de que esses argumentos formaram uma base compartilhada entre o diversificado grupo de alunos de escolas públicas paulistas. Mais ainda, esses argumentos também foram passíveis de compreensão e de apoio em outros setores sociais externos às comunidades escolares, setores estes que não compartilharam as mesmas experiências negativas que foram vivenciadas pelos estudantes diretamente envolvidos nos protestos e nas reivindicações.

Para interpretar esse episódio do ponto de vista das violações dos direitos, a teoria do reconhecimento de Axel Honneth pode nos fornecer elementos teóricos para compreender as motivações e os pleitos de lutas sociais a partir de uma perspectiva negativa, ou seja, partindo das experiências de desrespeito que foram vivenciadas pelos agentes sociais. Olhar para essas experiências deste ponto de vista nos leva a compreender a motivação por trás das práticas e a própria argumentação desses sujeitos críticos, em uma perspectiva teórica que conecta a origem individual da indignação motivadora com os seus desdobramentos coletivos e, de forma ampla, as suas consequências na sociedade como um todo. Além disso, Honneth também realiza uma divisão das esferas de reconhecimento que parece corresponder, em alguma medida, com as características dos argumentos dos estudantes nesse caso.

No livro Luta por Reconhecimento, Honneth elabora uma teoria social centrada na categoria de reconhecimento, definindo três esferas de reconhecimento para a autorrealização através de relações intersubjetivas, sendo uma delas a esfera do direito, além das esferas do amor e da solidariedade. O significado dos direitos, nesse momento de sua teoria social, diz respeito às lutas individuais e coletivas pelo reconhecimento jurídico e às relações sociais que se referem a eles, que constituiriam parte fundamental do processo de reconhecimento intersubjetivo. Assim, a negação de certos direitos e a exclusão jurídica poderiam prejudicar a capacidade do sujeito de sustentar uma compreensão própria e interna de ser livre e igual perante outros membros da sociedade.

Nesse sentido, existiriam três tipos fundamentais de luta por reconhecimento relacionados com direitos na modernidade: lutas por novos direitos, ou novos requisitos de exercício e expressão da autonomia, luta pela ampliação dos direitos já existentes para grupos antes marginalizados e luta por garantias de direitos já conquistados. O que estaria em disputa, em todos os casos, seria a superação de relações compreendidas como reprodutoras de desrespeito e injustiças contra indivíduos e grupos sem o mesmo status de tratamento jurídico. Ao ser excluído da posse de direitos, o sujeito é impedido de participar em patamar de igualdade com os outros na vida social e deixa de compreender-se como um parceiro de interação de igual valor, perdendo o autorrespeito que havia desenvolvido ao ser reconhecido como sujeito de direito. Sobre as experiências de desrespeito relacionados a esfera do direito. Nas palavras de Honneth:

Se a primeira forma de desrespeito está inscrita nas experiências de maus-tratos corporais que destroem a autoconfiança elementar de urna pessoa, ternos de procurar a segunda forma naquelas experiências de rebaixamento que afetam seu autorrespeito moral: isso se refere aos modos de desrespeito pessoal, infligidos a um sujeito pelo fato de ele permanecer estruturalmente excluído da posse de determinados direitos no interior de uma sociedade. De início, podemos conceber como “direitos”, grosso modo, aquelas pretensões individuais com cuja satisfação social uma pessoa pode contar de maneira legítima, já que ela, como membro de igual valor em urna coletividade, participa em pé de igualdade de sua ordem institucional; se agora lhe são denegados certos direitos dessa espécie, então está implicitamente associada a isso a afirmação de que não lhe é concedida imputabilidade moral na mesma medida que aos outros membros da sociedade. (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 216)

As experiências de desrespeito, como as existentes na privação de direitos, na marginalização ou na exclusão social, não representam somente a limitação violenta da autonomia pessoal para o sujeito, mas também suscitam o sentimento de não possuir o status de um parceiro de interação em igualdade; a privação de direitos concedidos naquela sociedade significa uma lesão na própria expectativa de ser considerado e de sentir-se um sujeito “capaz de formar juízo moral” (2003, p. 216), ou seja, a experiência da privação de direitos leva diretamente a uma “redução” do autorrespeito, ou seja, “uma perda da capacidade de se referir a si mesmo como parceiro em pé de igualdade na interação com todos os próximos” (2003, p. 217).

Devido a centralidade concedida ao “respeito social” na compreensão da esfera do direito em Luta por Reconhecimento, Honneth afirma que os direitos podem ser compreendidos como símbolos despersonalizados do respeito social (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 194; ZURN, 2015ZURN, Christopher. Axel Honneth. A critical theory of the social. Cambridge: Polity Press, 2015., p. 35), apesar de suas particularidades no que diz respeito às identidades, ocupações e posições sociais. Os direitos constituem símbolos do respeito social necessários para o desenvolvimento da personalidade e da autonomia, além de conferir a possibilidade de reivindicações legítimas por parte de grupos e indivíduos que experimentem violações e desrespeitos em suas interações sociais.

Pode-se dizer que a esfera do direito possui uma vantagem em sua estruturação teórica porque o autor considera que nem todas as três esferas de reconhecimento contém as tensões morais necessárias para pôr efetivamente em movimento as lutas sociais. Uma luta só pode ser caracterizada como “social” se seus objetivos puderem ser generalizados para além do horizonte das intenções dos sujeitos, a ponto de se tornarem o fundamento de um movimento coletivo (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 256).

A forma de desrespeito e injustiça experimentada pelos estudantes como violação do direito à educação, privação de participação e consequente exclusão da comunidade jurídico-política, funcionou mobilizando vários agentes sociais e fortalecendo suas práticas contestatórias e reivindicações. Assim, o movimento foi capaz de demonstrar suas experiências “como algo que afeta não só o eu individual, mas também um círculo de muitos outros sujeitos” (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 258). Segundo a teoria de reconhecimento de Axel Honneth, este exemplo pode ser considerado como uma mobilização que fez uso de uma “linguagem comum” para compartilhar as experiências dos sujeitos envolvidos, compartilhando de forma inteligível a necessidade de resistência contra a medida.

A partir da “tradução” de suas experiências para a linguagem coletiva e compartilhável dos direitos, o movimento ganhou inclusive o apoio de instituições judiciais, como do Ministério Público e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e também influenciou uma variação interpretativa inesperada no tradicional e conservador Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em relação à discussão do direito de propriedade e de posse contra o direito de manifestação21 21 Sobre este tema, ver TAVOLARI et al. (2018); e TAVOLARI e BARBOSA (2019). .

Por meio das dinâmicas de protestos e ações utilizando argumentos relativos a direitos, é possível afirmar que relações recíprocas de reconhecimento estavam sendo estabelecidas e amplificadas. Os estudantes foram reconhecidos como sujeitos políticos sustentando demandas legítimas, este processo ocorreu entre os alunos e alunas e também em relação a outros setores sociais, como exemplificado pelas instituições Judiciárias – que tradicionalmente rejeitam atos de desobediência civil e de ocupações de espaços públicos para fins de protesto –, mas também em setores como canais da imprensa tradicional e até entre moradores dos arredores das escolas ocupadas.

Nos argumentos mencionados pelos estudantes, também podemos observar uma certa forma de “empatia social” que também visava proteger os direitos de sujeitos que não estariam diretamente envolvidos nas ocupações, como crianças mais jovens, estudantes mais velhos dos períodos noturnos e do EJA, bem como professores e funcionários das escolas, que poderiam perder seus empregos. Considerando-os em uma perspectiva de “outros generalizados” e intergeracional, baseada na ideia comum do direito constitucional à educação e à participação na administração da educação pública. Como sustenta Honneth, seguindo Hegel e Mead:

só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um “outro generalizado”, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões. (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 179)

Essa perspectiva generalizada e intergeracional possibilitada pela utilização dos argumentos e demandas relativas a direitos invariavelmente produz um tipo de “vinculação social”, já que buscando garantir reconhecimento jurídico e autorrealização individual ou coletiva, a luta é amplificada visando que outros sujeitos ou grupos também alcancem a mesma condição, reivindicando direitos para sujeitos indeterminados ou futuros. De acordo com Honneth, a esfera do direito está relacionada a uma forma de relação intersubjetiva caracterizada não pelo afeto de um estreito círculo de pessoas próximas, mas pelo respeito formal e anônimo de cada um como pessoas que possuem direitos, compartilhados por todos os membros da sociedade (HONNETH, 2003HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003., p. 194-195).

Em recente texto publicado, Honneth menciona que em sua visão a esfera do direito possui a característica de ser “onipresente” nas sociedades modernas, estando disponível como um “recurso prático e um medium compartilhado” para, entre outras funções, rejeitar demandas irrazoáveis, justificar reformas sociais ou conceder poder às instituições para implementar mudanças sociais (HONNETH, 2021HONNETH, Axel. Os limites do direito. Réplica a William Scheuerman. Dissonância, Advanced Online Publication – AOP, 2021., p. 9-10)22 22 Para uma reconstrução do debate acerca destas questões em meio à teoria crítica recente, ver SILVA (2020). . Assim, as outras esferas sociais estarão inevitavelmente – em diferentes graus – sempre conectadas de alguma forma com o direito, isto é, não devem ser consideradas como espaços “livres de direito”, completamente desconectadas dos direitos e de sua linguagem.

De acordo com essa compreensão, o direito e os direitos podem ser compreendidos como um recurso prático no sentido de que todos os sujeitos podem, em alguma medida, dispô-lo como um “instrumento” disponível para preencher suas demandas sobre os mais variados temas e áreas sociais; levando adiante suas demandas e práticas por meio de uma linguagem comum compartilhada em sua comunidade. Ao mesmo tempo, também pode ser visto como um medium compartilhado: um “instrumento” com o potencial de permitir um canal de entendimento mútuo entre os sujeitos através do respeito social que é tornado possível pela esfera de reconhecimento dos direitos, e não apenas como um fim em si mesmo.23 23 Sobre o papel dos “mediums” nos processos de luta por reconhecimento, Judith Butler menciona que “o indivíduo, não importa quão intensamente autorreferente, está sempre se referindo a si mesmo através de uma forma mediadora, através de uma mídia, e a sua própria linguagem para reconhecer a si mesmo é proveniente de outro lugar. O social condiciona e medeia esse reconhecimento que empreendo de mim mesmo. Como sabemos a partir de Hegel, o ‘eu’ que vem a reconhecer a si mesmo, à sua própria vida, reconhece a si mesmo sempre também como a vida de outro. O ‘eu’ e o ‘você’ são ambíguos porque cada um está ligado a um sistema distinto de interdependência, o que Hegel chama de Sittlichkeit [eticidade]. E isso significa que embora eu faça esse reconhecimento de mim mesmo, um determinado conjunto de normas sociais está sendo trabalhado ao longo dessa performance da qual sou autor, mas o que quer que esteja sendo trabalhado não se origina comigo, mesmo que eu não seja pensável sem isso.” (BUTLER, 2018, p. 235)

O que é fundamental nesta construção teórica, e que representa um potencial teórico ainda não devidamente explorado, é que ela não consiste em uma concepção de direito (law) e de direitos (rights) que é dependente e centrada no Estado, mas sim mais uma “concepção social” que permite o uso da linguagem dos direitos como um medium não apenas para demandar direitos dentro da estrutura institucional judiciária. Como mencionado anteriormente, os estudantes fizeram uso desses argumentos principalmente para moldar e comunicar as experiências de desrespeito que estavam vivenciando, considerando que essa forma de apresentar suas reivindicações poderia ser melhor compreendida na esfera pública, incluindo para setores sociais que não sofreram as mesmas experiências de desrespeito e violações de seus direitos, mas que são capazes de compreendê-las por meio de uma base compartilhada comum.

De acordo com Axel Honneth, a estrutura do significado do direito e das reivindicações relacionadas aos direitos em movimentos sociais e manifestações populares não podem ser restritas apenas à forma jurídica moderna ou consideradas como possuindo espaço apenas dentro das arenas oficiais. Pelo contrário, a esfera do direito é compartilhada de forma generalizada em distintos espaços sociais. Esta concepção parece ser produtiva para observar aquelas novas formas de protestos e reivindicações que procuram evitar instituições e decisões centradas unicamente no Estado e em suas instituições, ao mesmo tempo em que se organizam com base em uma espécie de normatividade interna e independente que pode transformar ou se instalar definitivamente na esfera pública.

Considerações finais

A proposta de teoria crítica adotada neste trabalho para investigar um levante social específico considera como sendo centrais as experiências e as práticas sociais contestatórias dos sujeitos críticos. A finalidade desta proposta é tentar se aproximar o quanto for possível de um trabalho conjunto entre o teórico e os sujeitos críticos, por meio de uma perspectiva que esteja de acordo com as suas vozes, o que torna possível elaborar conhecimento de forma coletiva e em conexão com as práticas sociais concretas e cotidianas. Adotando uma orientação teórica que busca “ver o que eles estão vendo”, ou seja, compreender as motivações que levaram os estudantes a protestar e a ocupar suas escolas, procurei analisar seus argumentos por meio de suas vozes e assim acessar algumas das experiências de desrespeito24 24 Para um estudo focado nas experiências de desrespeito na perspectiva de uma teoria do reconhecimento, ver RENAULT (2019, p. 181-201). relacionadas a direitos que estavam comunicando nas entrevistas realizadas e também à esfera pública, por meio de suas reivindicações.

Dentre os argumentos analisados, destaquei que aqueles relativos às violações de seus direitos constitucionais possuiriam potencial para compreender a reverberação e força adquirida pelo movimento, constituindo, portanto, uma linguagem comum que pôde ser compartilhada e apreendida também por outros setores sociais distantes dos estudantes. Além disso, a própria forma como as ocupações foram organizadas, através da participação direta, inclusiva e horizontal em suas decisões e direcionamentos, também indicam a importância da violação dos direitos mencionados pelos estudantes.

Nas escolas ocupadas, os estudantes reivindicaram a efetividade de direitos já garantidos pela Constituição Federal, como o direito à educação e à participação democrática na gestão do ensino público e, ao mesmo tempo, também manifestaram um desejo de maior controle de sua vida em sociedade (CAMPOS, MEDEIRO, RIBEIRO, 2016, p. 127-140; RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das Lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: LiberArs, 2019., p. 124). Essas demandas relativas a direitos mostraram capacidade para influenciar e obter suporte de outros setores sociais, prefigurando e realizando nas ocupações as mudanças que esperam ocorrer em sua realidade social mais ampla. As escolas ocupadas receberam apoio daqueles setores próximos aos estudantes, mas também reverberaram em setores sociais mais distantes, que não sofriam das mesmas experiências ou sequer conheciam o sistema de educação pública paulista, mas que puderam apreender as motivações e decidir pelo apoio aos protestos e às ocupações.

Há quem entenda que essa não seria uma demanda especificamente relativa a direitos, mas sim relativa a um desejo por uma vida em sociedade que não esteja centrada no paradigma do Estado e de suas instituições. Discordo da primeira parte desta afirmação, e concordo com a segunda. Não é que o movimento das ocupações não estaria reivindicando direitos, na realidade suas demandas são moldadas por uma outra concepção de direitos e, consequentemente, da própria vida em sociedade. Uma concepção que é orientada pelo princípio de auto-organização democrática e pela horizontalidade entre seus membros, características que o aparato estatal não foi e não é capaz de efetivar. Em outras palavras, as demandas dos estudantes não abandonaram completamente a forma jurídico-constitucional, porém, ao mesmo tempo, apontaram para uma concepção diferente de instituições, de forma pré-figurativa. Isso pode ser observado nas características da própria organização das ocupações, bem como nas falas dos estudantes sobre as violações de seus direitos constitucionalmente garantidos.

Nesse sentido, um desdobramento teórico da análise e da interpretação aqui proposta é que certas modalidades de ocupações de espaços públicos e de formação de movimentos sociais carregam a sua própria “normatividade” interna, no sentido de sua autorregulação. Os estudantes reivindicaram e buscaram concretizar em seu microcosmo social a imaginação institucional (CASTORIADIS, 1995CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.; RODRIGUEZ, 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das Lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: LiberArs, 2019., p. 314) que desejam ver em funcionamento em toda a sociedade. Movimentos de ocupações ou atos de desobediência civil quando investidos de alguma legitimidade social e aceitação, são formas de instituir diferentes ordens normativas, sustentando e atualizando relações de reconhecimento25 25 Essas novas formas de protesto, constituindo possibilidades de práticas inovadoras para reivindicações mediadas pela linguagem dos direitos, podem permitir outro ponto de vista de observação de novos arranjos e formas de normatividade que já estão em atividade nas práticas dos agentes sociais. , possibilitando também a sua liberação na esfera pública26 26 Nesse sentido, a desobediência civil pode ser mobilizada em contextos de fechamento institucional também para forçar uma possível reabertura institucional. Aliado a isso, formas de contestação política podem também visar a democratização e a pluralização da própria esfera pública (Ver CELIKATES, 2016; MEDEIROS, JANUÁRIO, MELO, 2019). .

A própria concepção da esfera do direito em Axel Honneth que aparece neste trabalho como um vetor interpretativo das motivações dos sujeitos críticos não é uma concepção que está limitada à forma jurídica estatal e em suas instituições judiciárias. A imagem que Honneth nos fornece é mais próxima a uma “concepção social do direito”, que dispensa mais atenção às relações intersubjetivas mediadas por direitos do que para as funções das arenas institucionais nesses processos.

Em um momento como o atual, de acirramento de conflitos políticos, descrença com as instituições e com a própria democracia, é necessário considerar a importância e o sentido de outras formas de manifestação da sociedade por reivindicações de direitos – formas não convencionais, que não se encaixam nos canais normalmente utilizados para promover a reivindicação de direitos e expandir participação social na condução das políticas públicas e das legislações. Como mencionado na descrição e interpretação aqui exposta sobre a atuação do Governo do Estado de São Paulo no papel de violador das expectativas de reconhecimentos dos estudantes, adotar posturas agressivas e restritivas perante essas manifestações parece mais contribuir para que estas encontrem outros canais ligados ou não às instituições formais (RODRIGUEZ, 2016RODRIGUEZ, José Rodrigo. Luta por direitos, rebeliões e democracia no século XXI: algumas tarefas para a pesquisa em direito. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 3, n. 3, p. 609-635, 2016.; 2019RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direito das Lutas: democracia, diversidade, multinormatividade. São Paulo: LiberArs, 2019., p. 42), desenvolvendo novos desenhos e articulações ao redor do reconhecimento de direitos.

As experiências de desrespeito causadas pela não efetivação das expectativas de reconhecimento são fundamentais no sentido de impulso à conduta crítica dos sujeitos. A violação de direitos e a sua tematização como argumentos podem ser vistos como uma forma de parâmetro para a reflexão sobre a indignação, as demandas e para a compreensão da emergência da conduta crítica dos estudantes e sua reverberação para outros setores sociais. No sentido de que externar a indignação e a crítica social, isto é, dar “voz” ao sofrimento, resistindo a opressão e a dominação social é, ao mesmo tempo, lutar por reconhecimento27 27 Sobre o tema, ver o capítulo “Social Critique as a Voice for Suffering” em RENAULT (2019, p. 181-201). .

  • 1
    Este trabalho foi elaborado com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (processos nº 2018/00924-1 e 2019/12975-2). Versões parciais e preliminares deste texto foram apresentadas no IX Seminário Discente da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de São Paulo e no X Seminário Nacional de Sociologia & Política da Universidade Federal do Paraná, ambos em 2019, agradeço a todos os participantes por seus comentários nestas oportunidades. Agradeço também a Arthur Bueno, Luiz Phelipe Oliveira Dal Santo, Rafaella Seixa Vianna e aos dois avaliadores anônimos da Revista Direito e Práxis por suas críticas e sugestões para aprimoramento do trabalho. As eventuais falhas e imprecisões remanescentes são de inteira responsabilidade do autor.
  • 2
    Para uma visão ampla sobre questões relacionadas às ocupações de escolas em diversos estados brasileiros nesse período, ver a coletânea de pesquisas organizadas em Ocupar e Resistir: Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016) (JANUÁRIO, MEDEIROS, MELO, 2019).
  • 3
    No pano de fundo dessa perspectiva está presente a discussão sobre o envolvimento do pesquisador ou pesquisadora com o contexto social e os agentes observados. Nas últimas décadas, com os novos e massivos protestos que explodiram em todas as partes do mundo, que demandavam mudanças complexas e estruturais dos sistemas políticos e econômicos (CASTELLS, 2017CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e esperança. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.; CELIKATES, KREIDE, WESCHE, 2015CELIKATES, Robin; KREIDE, Regina WESCHE, Tilo (eds.). Transformations of democracy: crisis, protest and legitimation. London; New York: Rowman and Littlefield International, 2015.), qual seria a melhor postura para compreender esses eventos: devem olhar para as conjunturas econômicas e políticas específicas? Focar nas instituições ou nas práticas e mobilizações sociais dos sujeitos insatisfeitos? Devem se afastar ou se aproximar do contexto social? Esclarecer, ouvir ou permanecer próximos aos agentes sociais que estão envolvidos com o fenômeno? Para um aprofundamento destas e de outras questões, ver CELIKATES (2018)CELIKATES, Robin. Critique as Social Practice: Critical Theory and Social Self-Understanding. London; New York: Rowman and Littlefield International, 2018..
  • 4
    A despeito do foco deste trabalho recair nos argumentos relacionados a direitos no caso estudado, isso não significa uma desconsideração da importância das questões afetivas e psicológicas. Estas também foram de suma importância para a mobilização dos alunos e alunas, no entanto tais questões necessitam de uma análise diversa da que é aqui proposta. Assim, ficarão em segundo plano para apresentar uma interpretação de que é o ponto de vista das violações de direitos que permitiu, nessa experiência particular, de forma mais objetiva do que nas outras esferas de reconhecimento da teoria honnethiana (amor e solidariedade), “ver o que eles veem”.
  • 5
    Um ciclo consiste nos primeiros nove anos de escolaridade (ensino fundamental) ou nos três anos finais (ensino médio). Uma organização de ciclo único é uma especialização da educação na qual cada escola inclui apenas o ensino fundamental ou médio, com base no argumento principal de que esta medida aprimoraria a qualidade da educação no estado, por concentrar nas escolas apenas estudantes de idades próximas.
  • 6
    Um dos fatores que contribuiu para a inspiração dos estudantes foi o contato de alguns deles com o documentário “La Rebelion Pinguina” em exibições públicas organizadas por movimentos sociais (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kYzkDql56yw [acesso em Mai. 2020]). Outro fator fundamental foi a tradução de uma cartilha denominada “Como ocupar um colégio?” utilizada por estudantes na Argentina e no Chile, produzido pelo coletivo “O Mal-Educado” ainda em 2013, muito antes das ocupações ocorrerem.
  • 7
    O gráfico que mostra o aumento do número de escolas ocupadas no período indicado pode ser consultado em http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=09&t=12 (acesso em Jul. 2022).
  • 8
    É importante ressaltar que o governo tentou interromper as ocupações utilizando a polícia militar estadual em várias ocasiões, como pode ser visto em cenas de documentários e reportagens, por exemplo: https://www.youtube.com/watch?v=j42hfZiOfSU e https://www.youtube.com/watch?v=LK9Ri2prfNw (acesso em Mai. 2020).
  • 9
    Conforme expresso no art. 206, VI da Constituição Federal: “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei”.
  • 10
    MC Foice e Martelo, “Escolas de Luta”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QvdrLD1RbTI (acesso em Mai. 2020).
  • 11
    Sobre as performances da lógica da política pré-figurativa e as lutas contemporâneas dos novos movimentos sociais, vale a pena mencionar essa esclarecedora passagem de Judith Butler em Corpos em aliança e a política das ruas: “Um movimento social é em si uma forma social, e quando um movimento social reivindica um novo modo de vida, uma forma de vida possível de ser vivida, então deve, no mesmo momento, representar os próprios princípios que busca realizar. Isso significa que, quando funciona, há uma representação performativa de democracia radical nesses movimentos que sozinha pode articular o que pode significar levar uma vida boa no sentido de uma vida possível de ser vivida. Tentei sugerir que a condição precária é a condição contra a qual vários novos movimentos sociais lutam; esses movimentos não buscam a superação da interdependência ou mesmo da vulnerabilidade enquanto lutam contra a precariedade. Ao contrário, o que buscam é produzir as condições nas quais a vulnerabilidade e a interdependência se tornem vivíveis. Essa é uma política na qual a ação performativa toma uma forma corporal e plural, chamando a atenção crítica para as condições de sobrevivência corporal, persistência e florescimento dentro do enquadramento da democracia radical. Se vou levar uma vida boa, vai ser uma vida vivida com outros, uma vida que não é uma vida sem esses outros; não vou perder esse eu que sou; seja quem eu for, serei transformado pelas minhas conexões com os outros, uma vez que a minha dependência do outro e a minha confiança são necessárias para viver e para viver bem. Nossa exposição compartilhada à condição precária é apenas um fundamento de nossa igualdade potencial e das nossas obrigações recíprocas de produzir conjuntamente as condições para uma vida possível de ser vivida. Ao admitir a necessidade que temos um do outro, admitimos do mesmo modo princípios básicos sobre as condições sociais e democráticas do que ainda podemos chamar de ‘a vida boa’. Essas são condições críticas da vida democrática no sentido de que fazem parte de uma crise em andamento, mas também porque pertencem a uma forma de pensamento e de ação que responde às urgências do nosso tempo.” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 238-239).
  • 12
    Em artigo analisando os protestos do denominado 15M na Espanha – que apresenta alguns aspectos práticos e organizacionais semelhantes com as ocupações escolares em São Paulo – Pablo Ouziel indaga que, em síntese, essas presenças coletivas estariam questionando a si mesmos e ao público em geral: “como nós podemos nos governar?” (Disponível em https://www.politika.io/fr/notice/a-nonstatecentric-conception-of-social-transformation-in-spain-15m [acesso em Mai. 2020]).
  • 13
    “A experiência de conviver todos os dias, 24hrs, com colegas e amigos de escola foi sensacional, aprendi e amadureci muito dentro da mini-sociedade que construímos, todos têm um lugar muito especial no meu coração e essa convivência me deixou ainda mais forte e preparada para o que der e vier! NÃO TEM ARREGO!” (Post no Facebook. Disponível em CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016, p. 148)
  • 14
    Como é demonstrado no documentário LUTE como uma menina. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA&t=261s (acesso em Mai. 2020).
  • 15
    “Fechamento de escolas faz Alckmin ter rejeição recorde, diz Datafolha” (El País, 4 de dezembro de 2015. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/04/politica/1449231992_254699.html. [acesso em Mai. 2020]). “Popularidade de Alckmin atinge pior marca, aponta Datafolha” (Folha de S. Paulo, 4 de dezembro de 2015. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/12/1714813-popularidade-de-alckmin-atinge-pior-marca-aponta-datafolha.shtml [acesso em Mai. 2020])
  • 16
    Por exemplo, nos estados de Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Ceará, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo.
  • 17
    Horkheimer apresenta o seu método de pesquisa no famoso ensaio Teoria tradicional e teoria crítica, publicado em 1937 (HORKHEIMER, 1975HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. In: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, v. XLVIII. p. 125–162, 1975.). A teoria crítica, compreendida como um modo de produção de conhecimento ciente de seu contexto social de origem e de aplicação, é desenvolvida com base em uma tentativa de superar as deficiências diagnosticadas da denominada teoria tradicional. Esta proposta tinha, inicialmente, a pretensão de desenvolver e atualizar as intenções marxistas clássicas em um novo contexto histórico, de modo a sanar os problemas que a história apresentou para os diagnósticos da época, visando levar seus conceitos para o momento histórico presente, reformulando e repensando a teoria em vista das novas condições histórico-sociais. Horkheimer apresenta críticas às atitudes positivistas da ciência tradicional burguesa na qual, por meio das pretensões de “totalidade” e de “neutralidade” científicas perante o saber, não se admitia outras formas de conhecimento para integrarem-se ao saber científico produzido e nem mesmo à reflexão interna sobre a própria teoria tradicional. Horkheimer constata que o método positivista da época era influenciado e determinado pelo capitalismo de uma forma a prejudicar a produção de conhecimento científico, visando apenas legitimar a forma das sociedades capitalistas, sem possuir interesse em sanar suas imperfeições ou operar uma crítica efetiva da realidade, no sentido de que “‘entender’ como ‘as coisas funcionam’ é já aceitar que essas ‘coisas’ são assim e que não podem ser radicalmente de outra maneira” (NOBRE, 2013NOBRE, Marcos. “Introdução: modelos de teoria crítica”. In: NOBRE, Marcos (org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, p. 9-20, 2013., p. 17). O objetivo da proposta da teoria crítica frankfurtiana seria unir diversos saberes para produzir teorias sociais com alto grau de complexidade, orientada para superar as deficiências e desigualdades geradas pelo sistema capitalista. Horkheimer divulga uma proposta de trabalho interdisciplinar em que economistas, cientistas sociais, historiadores, psicólogos, teóricos do direito, da política e da literatura, filósofos e críticos de arte, trabalhariam em torno de um mesmo campo orientado pelos princípios norteadores da teoria crítica, principalmente o do “interesse orientado à emancipação”, tentando esgueirar-se dos limites da filosofia especulativa e, ao mesmo tempo, dos limites das ciências empíricas. Isso de modo a evitar as construções abstratas desprovidas de demonstrações e descrições empíricas consideradas autônomas, porém carentes de embasamento teórico que lhe concedesse sustento, colaborando, também, para um objetivo comum: produzir um diagnóstico do tempo capaz de fornecer uma compreensão precisa e ao mesmo tempo complexa do momento histórico e de seus potenciais e bloqueios emancipatórios.
  • 18
    Aproximação que pode ser concebida dessa forma: “Dependendo de sua posição social, os atores possuem ‘voz’ e poder social de justificação — poder de demandar justificações e produzi‑las — em graus que variam radicalmente. A Teoria Crítica tem, portanto, de perguntar‑se sob quais condições sociais — ou, mais especificamente e seguindo Axel Honneth, dentro de quais relações de reconhecimento — os atores podem formar e exercer suas capacidades reflexivas.” (CELIKATES, 2012CELIKATES, Robin. O não-reconhecimento sistemático e a prática da crítica. Novos Estudos CEBRAP, 93, p. 29-42, 2012., p. 38).
  • 19
    Marcos Nobre considera que essa abordagem: “Pretende dar sentido aos acontecimentos a partir da perspectiva de quem age, é uma perspectiva de interpretação que dá a palavra a quem faz o movimento, que busca entender a mobilização segundo categorias elaboradas por quem dela participa. Para isso, combina perspectivas disciplinares diferentes, como as da história, da antropologia, do direito e da sociologia” (NOBRE, 2019NOBRE, Marcos. “Apresentação”. In: MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. Ocupar e Resistir. Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019., p. 7). Sobre as recentes transformações das lutas sociais e as relações entre teoria e práticas nas diferentes vertentes de teorias críticas, Nobre menciona “"Esta nova relação com a ação transformadora também precisa ser desenvolvida distinguindo novamente entre dois níveis de engajamento: um direcionado para ações únicas, e outro para um maior compromisso com uma sociedade emancipada. [...] A razão pela qual a nova configuração da relação entre teoria e prática no que diz respeito ao diagnóstico do tempo tem precedência, deve-se principalmente a uma situação em que tanto a prática como a teoria dependem inerentemente do ativismo na esfera pública e, em uma medida mais ampla, das disputas democráticas.” (NOBRE, 2015NOBRE, Marcos. “How Practical Can Critical Theory Be?”. In: LUDOVISI, Stefano G. (ed.). Critical Theory and The Challenge of Praxis. Farnham: Ashgate Publishing, p. 159-172, 2015., p. 168).
  • 20
    Nas últimas décadas, pode-se considerar que os chamados movimentos sociais progressistas concentraram grande parte de seus esforços em reivindicações sobre direitos e leis. Wendy Brown e Janet Halley (2002) organizaram uma contribuição fundamental sobre o tema, trazendo um conjunto de reflexões sobre o significado dos direitos para a luta social no contexto norte-americano, destacando seus desafios e limitações (por exemplo, sobre o papel do direito na naturalização de categorias [Brown, 2002]). Sobre os limites e potenciais ambivalentes do processo de “juridificação” e sua relação com a teoria crítica, ver também Daniel Loick (2014)LOICK, Daniel. Juridification and politics: from the dilemma of juridification to the paradoxes of rights. Philosophy and Social Criticism, v. 40, issue 8, p. 757-778, 2014.. Apesar dessas reflexões críticas, considero que a linguagem dos direitos permite que indivíduos ou grupos chamem a atenção da esfera pública para pontos de vista que têm sido amplamente negligenciados. Ainda mais em países periféricos como o Brasil, onde os direitos constitucionais são violados cotidianamente, causando experiências rotineiras e intensas de injustiça e desrespeito na população, em especial em grupos mais marginalizados. Nesse sentido, também pode ser produtivo confrontar a perspectiva de Axel Honneth sobre a esfera de direitos apresentada nesta seção, em relação a essas limitações, uma tarefa que poderá ser realizada em outra ocasião.
  • 21
    Sobre este tema, ver TAVOLARI et al. (2018TAVOLARI, Bianca; LESSA, Marília R.; MEDEIROS, Jonas; MELO, Rurion; JANUÁRIO, Adriano. As ocupações de escolas públicas em São Paulo (2015-2016): entre a posse e o direito à manifestação. Novos Estudos Cebrap, 111, p. 291-310, 2018.); e TAVOLARI e BARBOSA (2019)TAVOLARI, Bianca; BARBOSA, Samuel. “Judiciário e reintegrações de posse de escolas ocupadas: jurisprudência comparativa”. In: MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. Ocupar e Resistir. Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019..
  • 22
    Para uma reconstrução do debate acerca destas questões em meio à teoria crítica recente, ver SILVA (2020)SILVA, Felipe Gonçalves. Para além da legalidade: Direito e antilegalismo na teoria crítica recente. Cadernos de Filosofia Alemã, v. 25, n. 3, p. 113–136, 2020..
  • 23
    Sobre o papel dos “mediums” nos processos de luta por reconhecimento, Judith Butler menciona que “o indivíduo, não importa quão intensamente autorreferente, está sempre se referindo a si mesmo através de uma forma mediadora, através de uma mídia, e a sua própria linguagem para reconhecer a si mesmo é proveniente de outro lugar. O social condiciona e medeia esse reconhecimento que empreendo de mim mesmo. Como sabemos a partir de Hegel, o ‘eu’ que vem a reconhecer a si mesmo, à sua própria vida, reconhece a si mesmo sempre também como a vida de outro. O ‘eu’ e o ‘você’ são ambíguos porque cada um está ligado a um sistema distinto de interdependência, o que Hegel chama de Sittlichkeit [eticidade]. E isso significa que embora eu faça esse reconhecimento de mim mesmo, um determinado conjunto de normas sociais está sendo trabalhado ao longo dessa performance da qual sou autor, mas o que quer que esteja sendo trabalhado não se origina comigo, mesmo que eu não seja pensável sem isso.” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 235)
  • 24
    Para um estudo focado nas experiências de desrespeito na perspectiva de uma teoria do reconhecimento, ver RENAULT (2019RENAULT, Emmanuel. The Experience of Injustice: A Theory of Recognition. New York: Columbia University Press, 2019., p. 181-201).
  • 25
    Essas novas formas de protesto, constituindo possibilidades de práticas inovadoras para reivindicações mediadas pela linguagem dos direitos, podem permitir outro ponto de vista de observação de novos arranjos e formas de normatividade que já estão em atividade nas práticas dos agentes sociais.
  • 26
    Nesse sentido, a desobediência civil pode ser mobilizada em contextos de fechamento institucional também para forçar uma possível reabertura institucional. Aliado a isso, formas de contestação política podem também visar a democratização e a pluralização da própria esfera pública (Ver CELIKATES, 2016CELIKATES, Robin. Rethinking Civil Disobedience as a Practice of Contestation: Beyond the Liberal Paradigm. Constellations, v. 23, n. 1, p. 37-45, 2016.; MEDEIROS, JANUÁRIO, MELO, 2019MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. “Sociedade civil, esferas públicas e desobediência civil: uma comparação entre dois movimentos de ocupação de escolas”. In: MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion. Ocupar e Resistir. Movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.).
  • 27
    Sobre o tema, ver o capítulo “Social Critique as a Voice for Suffering” em RENAULT (2019RENAULT, Emmanuel. The Experience of Injustice: A Theory of Recognition. New York: Columbia University Press, 2019., p. 181-201).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2020
  • Aceito
    27 Jan 2021
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