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A Assembleia Nacional Constituinte e as Forças Armadas: os trabalhos da subcomissão

The constituent national assembly and the armed forces: the work of the subcommission

Resumo

O artigo pretende compreender a disputa que ocorreu na Assembleia Nacional Constituinte sobre o desenho institucional das Forças Armadas no novo marco constitucional, a partir dos trabalhos da Subcomissão Temática. A pesquisa analisou fontes primárias dos arquivos históricos da Constituinte, sob a ótica da Análise do Discurso. A análise sugere uma disputa entre o discurso de continuidade da Doutrina da Segurança Nacional e a necessidade de submeter as Forças Armadas aos poderes constitucionais.

Palavras-chave:
Assembleia Nacional Constituinte; Forças Armadas; Análise do Discurso

Abstract

The article intends to understand the dispute that occurred in the National Constituent Assembly over the institutional design of the Armed Forces in the new constitutional framework, based on the work of the Thematic Subcommittee. The research analyzed primary sources from the Constituent historical archives, from the perspective of Discourse Analysis. The analysis suggests a dispute between the continuity discourse of the Doctrine of National Security and the need to submit the Armed Forces to constitutional powers.

Keywords:
National Constituent Assembly; Armed forces; Discourse Analysis

Introdução

O presente artigo é fruto de pesquisa voltada para compreender os fragmentos da narrativa sobre o papel das Forças Armadas no regime democrático inaugurado em 1988, a partir do caminho percorrido dentro da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), o que resultou na redação do art. 142 da Constituição Federal. A pesquisa analisou fontes primárias dos arquivos institucionais do Congresso Nacional, o que incluiu atas e transcrições das sessões de Subcomissões e Comissões, audiências públicas, bem como registros visuais, áudios, anais e diários da Constituinte. Este texto retoma os trabalhos da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança, incumbida de repensar, em um plano mais específico, as funções das Forças Armadas na nova ordem constitucional, considerando o contexto contemporâneo de recrudescimento autoritário em que as reflexões sobre a legitimidade do uso da força ganham destaque.

É amplo o espectro das categorias analíticas mobilizadas para compreender a pluralidade de fenômenos que perpassaram a Assembleia Nacional Constituinte, destacando-se aqui, ilustrativamente, as que valeram-se da temporalidade, da articulação entre direito e política, dos movimentos sociais e dos marcos da justiça de transição, sobretudo da memória em relação às graves violações de direitos humanos perpetradas durante o regime autoritário (COSTA e MARQUES, 2018COSTA, Alexandre Bernardino; MARQUES, Magnus Henry da Silva. O processo constituinte de 1987 e a passagem do tempo: uma análise sobre um conflito. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 3, p. 1169-1195, ago. 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/28822. Acesso em: 31 jan. 2021.
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; PAIXÃO, 2014PAIXÃO, Cristiano. Autonomia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência constitucional brasileira. Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n. 1, 2014, pp. 415-458.; BARBOSA, 2012BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil. Brasília: Câmara dos deputados, 2012.; PAIXÃO e FRISSO, 2016). Paralelamente, o papel das Forças Armadas tem sido constantemente debatido no campo das ciências humanas e sociais, sobretudo em reflexões sobre o uso da força, o papel das instituições de segurança pública e sobre períodos de políticas de recrudescimento autoritário (GUERRA e MACHADO FILHO, 2018; SANTOS, 2015SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a palavra do Movimento Negro na Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. Dissertação (Mestrado). Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, 2015.; MUNIZ et al, 2017; MUNIZ, 2001MUNIZ, Jacqueline de Oliveira. A Crise de identidade das Polícias Militares: Dilemas e Paradoxos da Formação. Security and Defense Studies Review, v. 1, p. 187-198, 2001. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/11985. Acesso em: 15 jan. 2021.
https://app.uff.br/riuff/handle/1/11985...
).

Este artigo se propõe a transitar entre esses dois grandes grupos de produção científica analisando as fontes históricas relacionadas a debater qual seria o lugar das Forças Armadas no novo enunciado constitucional a partir da Análise do Discurso de matriz francesa (AD), categoria analítica que se preocupa com a construção de sentidos em espaços contextualmente localizados e permeados pelas condições históricas em que os sujeitos do discurso se inserem. Embora a AD tenha direcionado sua matriz epistemológica para a compreensão de discursos políticos, ela ainda é uma categoria pouco demandada para análise de fenômenos jurídicos, sobretudo no Brasil. Todavia, entende-se que ela propicia um lugar privilegiado para a reflexão sobre as disputas localizadas nos espaços institucionais permeados por tensões e disputas sociais, sendo um importante aparato teórico para compreender criticamente a pluralidade de fenômenos que se entrecruzaram nos trabalhos da Constituinte. As fontes foram analisadas a partir de dois conceitos utilizados pela AD: a paráfrase e a polissemia. Dessa forma, a paráfrase propicia a identificação de marcações discursivas que buscam assegurar a permanência de determinados sentidos, em um contexto de diálogo interdiscursivo, comumente ilustrado pela categoria da memória, categoria fundamental para a reflexão sobre a transição da ditadura para a democracia. Paralelamente, a polissemia é identificada nas tentativas de deslocamento de sentidos prévios, sendo a categoria da AD que, por excelência, instaura a ruptura (PÊUCHEUX, 2010). Assim, a pesquisa retoma os rastros das fontes do projeto democrático, a partir da ressignificação da caminhada constituinte, agora mobilizada a partir dos dispositivos analíticos da Análise do Discurso, em um momento em que o uso de dispositivos de força são cada vez mais demandados pelo Estado, incapaz de formular políticas sociais democraticamente comprometidas.

A mensagem encaminhada pelo Presidente José Sarney ao Congresso Nacional com a proposta de convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte resultou na Emenda Constitucional n° 26, de 27 de novembro de 1985. Conforme o texto, os parlamentares eleitos em 1986 e os Senadores eleitos em 1982 (em um total de 559 congressistas) levariam a cabo a tarefa de construir um novo marco constitucional. A ANC foi instalada em 1° de fevereiro de 1987, mas as Comissões e Subcomissões só iniciaram seus trabalhos em abril do mesmo ano. O trabalho constituinte contou com uma intensa mobilização da sociedade e desenvolveu-se em sete etapas, as quais se desdobraram em outras vinte e cinco fases (OLIVEIRA, 1993OLIVEIRA, Mauro Márcio. Fontes de informações sobre a Assembleia Nacional Constituinte de 1987. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1993., p.11). As fontes primárias sobre os fluxos dos trabalhos não refletem a dinâmica no âmbito das Subcomissões, o que faz com que os temas tendam a ser analisados a partir do início dos trabalhos das Comissões Temáticas, ou seja, já com os resultados dos trabalhos das subcomissões. Esse artigo concentra-se na análise das fontes desse momento inicial dos trabalhos realizados nas subcomissões, especificamente na Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança.

1. A análise do discurso como categoria de análise

A análise do discurso, de matriz francesa, surge em meados na década de 60, fortalecendo-se na década de 70, em um contexto efervescente para as ciências humanas e sociais. A crise do estruturalismo e as demandas sociais por mudanças alavancaram o encontro de um grupo heterogêneo de pesquisadores alinhados a distintas vertentes do pensamento que, em comum, interessaram-se pelo papel do discurso na construção da realidade. Partiu-se, então, da contestação da organização saussuriana da linguagem, que dividia a língua e a fala em espaços herméticos e dicotômicos, em que o discurso era compreendido como um fazer impermeável e descolado do plano social.

A epistemologia da linha francesa da Análise do Discurso (AD), elaborada por Michel Pêcheux e fortemente influenciada pela filosofia de Althusser (MALDIDIER, 2003MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso: (Re) ler Michel Pêcheux hoje. Campinas: Pontes, 2003.), debruçou-se sobre o Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, 2012SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 28. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2012.) a partir de outros referenciais teóricos, a fim de construir um novo parâmetro para os estudos da linguagem que considerassem o fazer social e a compreendessem enquanto materialidade discursiva. Em um dos seus movimentos, portanto, a AD afasta-se da análise linguística clássica e da análise de conteúdo por não reduzir os estudos linguísticos ao exterior do sujeito nem às informações formais do texto. A linguagem, enquanto enunciação, seria mobilizada para a compreensão de aspectos discursivos permeados pelo materialismo histórico e pelas forças sociais em disputa. A AD, assim, rejeita a compreensão sintática dos elementos formais do texto para compreender o discurso como um fazer social, condicionado historicamente, aberto e incompleto, constantemente ressignificado conforme o surgimento de novas mobilizações discursivas. Para a AD, portanto, o discurso é fundamentalmente práxis que condiciona e é permeada pelo contexto social, pelas forças empenhadas nas construções de sentido e pela falibilidade do sujeito discursivo, dada a influência marcante da psicanálise lacaniana na epistemologia da linha francesa.

Interessa, portanto, para este trabalho mobilizar o conceito de discurso, na compreensão conferida pela AD, compreendendo-o dentro do contexto de transição da Assembleia Nacional Constituinte, analisando as fontes disponíveis como elementos importantes de produção e de disputa de sentidos para o projeto democrático. Especificamente, serão mobilizados dois elementos de análise utilizados pela AD, são eles a paráfrase e a polissemia. A paráfrase possibilita a percepção sobre a manutenção do dizer no espaço da memória discursiva. Para tanto, as repetições e as marcações de sentido que retomem elementos identificados com o regime autoritário foram destacados através da utilização desse recurso analítico, que alia as repetições discursivas ao elemento da memória - conceito tão caro para a justiça de transição - trabalhando-as no espaço da interdiscursividade entre sentidos sedimentados pelo regime autoritário e o espaço de efervescência democrática de construção e inauguração de um novo marco constitucional. A polissemia, por sua vez, será utilizada como elemento analítico que possibilita a ressignificação e o deslocamento dos discursos, diante da opacidade dos significados. O sujeito do discurso, ao mover-se nesse espectro, tenderá a naturalizar determinados enunciados, em detrimento de outros. Os sentidos apresentados como evidentes, cristalizados e transparentes são manifestações de condicionantes estruturais consolidadas (PÊCHEUX, 2010PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010., p. 49), perceptíveis, quando inseridas no discurso, através das articulações das paráfrases, em oposição às construções polissêmicas, que indicam tentativas de desconstrução e de explicitação da porosidade dos sentidos até então postos. A transição “lenta, gradual e segura”, como anunciada por Ernesto Geisel, pode ser observada pelas lentes do discurso, em um contexto de disputa sobre o que deveria permanecer e as rupturas.

Os debates sobre qual espaço as Forças Armadas deveriam ocupar no anunciado democrático relacionam-se permanentemente com uma das condições do discurso para a AD: a incompletude. É justamente na identificação dos equívocos e dos rituais discursivos que a produção de sentido de localiza. Considerando que nem os sujeitos, nem os discursos estão acabados, a análise sobre os encontros e os desencontros discursivos nos trabalhos da Subcomissão pode elucidar quais ferramentas foram demandadas naquele espaço na tentativa de manter estruturas e funções cunhadas pelo regime autoritário.

2. A abertura dos trabalhos da ANC: a disposição das peças

Desde o início dos trabalhos das subcomissões ficou presente nos espaços da Assembleia Nacional Constituinte a pressão que as Forças Armadas exerceriam para conseguir uma posição considerada favorável a seus interesses corporativos. No dia das instalações das subcomissões, o Plenário foi palco de acalorados debates sobre qual subcomissão deveria tratar o tema das Forças Armadas. Algumas manifestações no Plenário sugeriam que ora se deveria seguir a divisão da Emenda Constitucional n.1 de 1969, que inseriu os dispositivos sobre as Forças Armadas no capítulo do Poder Executivo, ora da Constituição de 1946, que regulava a matéria em título separado (BRASIL, 1987aBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 41, 08 abr. 1987a. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/041anc08abr1987.pdf#page=. Acesso em: 02 jul. 2020.
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, p. 1133).

A disputa era acerca de qual subcomissão trataria das Forças Armadas e se essa subcomissão estaria vinculada à Comissão Temática que disciplinaria o Poder Executivo. O Constituinte Haroldo Lima propôs questão de ordem logo na abertura da sessão em plenário para que se definisse claramente qual subcomissão trataria sobre o tema “da definição das atribuições constitucionais das Forças Armadas” (BRASIL, 1987aBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 41, 08 abr. 1987a. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/041anc08abr1987.pdf#page=. Acesso em: 02 jul. 2020.
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, p. 1132).

A mesma pauta foi seguida pelo Constituinte Paulo Ramos, em pronunciamento na mesma sessão. Haroldo Lima solicitou que o Presidente da ANC, Ulysses Guimarães, esclarecesse se a matéria das Forças Armadas integraria a Comissão Temática sobre o Poder Executivo ou não, porque “havia rumores de que elas integrariam a comissão sobre organização eleitoral” (BRASIL, 1987aBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 41, 08 abr. 1987a. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/041anc08abr1987.pdf#page=. Acesso em: 02 jul. 2020.
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, p. 1157).

Sr. Presidente, a nossa Constituição tratará de outro item, que diz respeito à organização dos poderes e sistemas de governo. Uma subcomissão tratará do Poder Executivo. Era de se supor que, guardando coerência com toda a tradição constitucional brasileira, fosse neste item tratado o assunto relacionado ao papel das Forças Armadas. Contudo, como as questões naturais nem sempre são as que prevalecem, existe outra comissão, que se chama Comissão de Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições, onde está sendo feito um movimento para que aí seja tratada a questão das Forças Armadas. Segundo os jornais, providências já foram tomadas a fim de que o Coronel Jarbas Passarinho assuma a Presidência dessa Comissão, e o Deputado Prisco Vianna a sua relatoria, objetivando que, com pessoas tão vinculadas ao antigo regime militar, a questão das Forças Armadas fosse aí tratada de uma forma harmoniosa, tranquila e coerente com os desejos da manutenção do status quo. (BRASIL, 1987aBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 41, 08 abr. 1987a. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/041anc08abr1987.pdf#page=. Acesso em: 02 jul. 2020.
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, p. 1159)

De fato, a subcomissão que acabou tratando sobre as Forças Armadas foi vinculada à Comissão Temática que teve Jarbas Passarinho como Presidente e Prisco Vianna como Relator, ambas figuras alinhadas ao regime da época.1 1 Jarbas Passarinho, por exemplo, havia sido Ministro do Trabalho de Costa e Silva, Ministro da Educação de Médici e Ministro da Previdência de João Figueiredo. Paralelamente, a instalação dos trabalhos ANC convivia com narrativas que posicionavam as Forças Armadas como instituições naturalmente democráticas, mas que, em virtude de sua estrutura hierarquizada e disciplinar, não conseguiram se desvincular do regime, sendo forçadas a se comprometer institucionalmente, por vinte anos, com uma ditadura (BRASIL, 1987aBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 41, 08 abr. 1987a. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/041anc08abr1987.pdf#page=. Acesso em: 02 jul. 2020.
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, p. 1165). Esse paradoxo que ora reconhece a excessiva militarização do Estado ora apresenta as Forças Armadas como vítimas das circunstâncias iria permear todo o trabalho da subcomissão responsável por construir a primeira versão do texto sobre as Forças Armadas na futura Constituição.

O jogo de forças, entretanto, não se restringia aos trabalhos corriqueiros das subcomissões e comissões, abrangendo uma construção muito mais ampla de discursos e marcações de sentido pelos meios de comunicação, cujas publicações são constantemente mencionadas nos arquivos da ANC (BRASIL, 1987bBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 38, 02 abr. 1987b. Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/N003.pdf. Acesso em: 06 jul. 2020.
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). A disputa também se faria presente através do que se pode chamar de cooptação individualizada de Constituintes, os quais pouco ou nada se manifestaram durante os trabalhos, mas que teriam papel decisivo na aprovação de textos claramente afinados com a manutenção de um modelo de corporação que se apresentaria como responsável por tutelar interesses considerados essenciais por grupos seletos, postura que pressupunha uma sociedade que não conseguiria governar a si própria. Nesse contexto, os silêncios e não-ditos são elementos constitutivos do discurso, que se apresentam como mecanismos de apagamento da capacidade de interpretação e operam como obstáculo ficto para as tentativas de retomadas ou de deslocamentos de sentido. Para a AD, o não-dito sempre retoma o dito de forma não explícita, fazendo referência a algo que está em outro lugar (PÊCHEUX, 2001PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. In: Gadet; T. Hak. (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux (pp. 61-161). Campinas: Editora da Unicamp, 2001., p. 150). Dessa forma, os não-ditos pelos Constituintes manifestam muito mais um desejo de continuidade dos sentidos postos do que uma tentativa de deslocamento e de ruptura.

3. Os trabalhos na Subcomissão: a paráfrase e a continuidade

A Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança foi uma das três subcomissões integrantes da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições.2 2 A Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições também era composta pela Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e pela Subcomissão de Garantia da Constituição, Reforma e Emendas. Conforme o Regimento Interno da ANC, as Subcomissões Temáticas teriam que elaborar uma proposição (anteprojeto) e encaminhá-la à sua Comissão. As Comissões Temáticas, por sua vez, teriam que elaborar um projeto substitutivo, a partir do material recebido das Subcomissões. A etapa seguinte seria desenvolvida pela Comissão de Sistematização, tendo como base o material recebido das Comissões Temáticas, que encaminharia, ao final, o material para votação em Plenário.

Instalada em sete de abril de 1987, a Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança apresentou uma dinâmica inicial bastante confusa. O regimento da Constituinte previa normas para os trabalhos das Comissões, mas as subcomissões não possuíam regramento próprio, o que fez com que o debate sobre quais procedimentos adotar tomasse boa parte do tempo dos primeiros encontros. A saída foi utilizar o regimento da Constituinte como regra geral e, supletivamente, as normas da Câmara e do Senado. Com exceção do papel das Forças Armadas, que é mencionada pelos integrantes da Subcomissão logo no terceiro encontro, não havia consenso sobre quais outras matérias deveriam ser tratadas naquele espaço, muito menos sobre a terminologia a ser empregada e a dinâmica dos trabalhos.

Esses Regimentos são tão vagos. O título da nossa Comissão, “Defesa da Sociedade, do Estado, da Segurança” é tão abrangente que, se nos perdermos aí, na falta de bom senso, podemos dizer que a educação da criança é defesa do Estado nos próximos cinquenta anos, para evitar a marginalidade da criança que não foi educada, etc., etc. Se não tivermos bom senso, não chegaremos a lugar nenhum. (BRASIL, 1987cBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 2ª reunião (Instalação) realizada em 09 abr. 1987c. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 17 jun. 2020
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 10)

A falta de racionalidade no encadeamento das sugestões dos membros da subcomissão era patente. As pautas sugeridas iam desde a finalidade do poder político do Estado, passando pelo regramento das Polícias Militar e Civil, Estado de Sítio, de Emergência - e um tanto de outras expressões semelhantes que, em comum, comportavam a ideia de exceção - até regulamentações do Poder Judiciário (BRASIL, 1987dBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 3ª reunião (Instalação) realizada em 14 abr. 1987d. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 17 jun. 2020
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 14). A metodologia para sugerir essas pautas não era menos caótica, como bem demonstra o procedimento adotado pelo Relator: “rapidamente, folheando a nossa Constituição em vigor, arrolei alguns temas que poderão vir a ser objeto de discussão e de deliberação na Comissão” (BRASIL, 1987dBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 3ª reunião (Instalação) realizada em 14 abr. 1987d. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 17 jun. 2020
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 15).

A saída encontrada foi convidar instituições que poderiam abordar temas da competência da subcomissão para, a partir daí, localizar as matérias relevantes e seus encadeamentos para, só então, conseguir direcionar as pautas de forma mais específica. De pronto, o Relator Ricardo Fiuza e o Constituinte Ottomar Pinto insistiram para que a Escola Superior de Guerra (ESG) fosse convidada para abordar o papel das Forças Armadas, sob o argumento de que poderia explicar aos Constituintes os conceitos de segurança interna e externa, de segurança nacional e a própria Doutrina de Segurança Nacional “para que a subcomissão criasse outra doutrina a partir daí” (BRASIL, 1987dBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 3ª reunião (Instalação) realizada em 14 abr. 1987d. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 17 jun. 2020
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 15 e 22). De pronto, foram convidadas a ESG e a Ordem dos Advogados do Brasil, cada qual enviando representantes para palestrar na subcomissão.3 3 Posteriormente, também foram convidados pela Subcomissão: Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, Diretor-Adjunto do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Campinas; Cyro Vidal, Presidente da Associação dos Delegados do Brasil (Adepol); os Comandantes Gerais das Polícias Militares de Pernambuco, Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Goiás (para uma exposição sobre o tema "O papel das Polícias Militares"); um representante do Conselho de Segurança Nacional; os Generais Euler Bentes e Antônio Carlos Serpas (para exporem sobre o tema "O Papel das Forças Armadas e Conceito de Segurança Nacional); o Presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal; um representante do Estado-Maior das Forças Armadas (para falar sobre o tema "Ministério de Defesa e Serviço Militar") (BRASIL, 1987e, p. 65). O deslocamento da manifestação da ESG para dentro da Constituinte não rompia, por si só, com os discursos construídos pelo seu aparato teórico durante o regime autoritário. Sediada no Rio de Janeiro, foi responsável por difundir os manuais do regime - baseados na ideia de amigo/inimigo e compilados conforme a lógica da Guerra Fria - através de sedes descentralizadas pelo país, formando o sistema adesguiano. A ideia de convidar a Escola Superior de Guerra para abrir os trabalhos da subcomissão era, por si só, uma contradição com a proposta de ruptura com o regime autoritário, fundada na paráfrase discursiva que pretendia aparentar ressignificações através da reiteração de discursos que defendiam estruturas do regime anterior.

Ubiratan Macedo, primeiro a falar como representante da ESG, mencionou diversas vezes que a ESG não obedecia a ordens do Governo nem do Estado-Maior das Forças Armadas. Ao longo de sua participação, defendeu a ideia de que os conceitos da ESG serviriam tanto para regimes democráticos, quanto autoritários, chegando ao ponto de afirmar que “a teoria exposta serve a qualquer Estado, totalitário ou não, democrático ou não, pois todo Estado vale-se de um conjunto de meios para alcançar determinados fins” (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 31). Nesse quadro, a teoria da ESG é apresentada como permanente e independente do contexto em que inserida, funcionando como uma solução de continuidade da significação, assegurando a manutenção do que já foi dito no momento presente (ORLANDI, 2001ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

O Cel. Luiz Antonio Rodrigues Mendes Ribeiro, Chefe do Gabinete da Secretaria Geral do Conselho Segurança Nacional, apresentou o conceito de Segurança Nacional presente nos materiais que integravam os Ciclos de Estudos da Associação de Diplomados da ESG (ADESG), afirmando que a segurança nacional era “um estado de garantia contra ameaças externas ou internas, latentes ou potenciais, e exercita-se nos diferentes campos do poder nacional (político, econômico, psicossocial e militar)” (BRASIL, 1987hBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 11ª reunião (Instalação) realizada em 30 abr. 1987h. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 118). As exposições são paráfrases dos conceitos da ESG empregados ao longo do regime autoritário e publicados nos seus materiais de estudos nas décadas de 60 e 70 (ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA, 1976ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA. Manual básico da Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: ESG, Departamento de Estudos, 1976.).

Aliando não-ditos com paráfrases, os principais fundamentos dos manuais da ESG foram expostos na subcomissão sem que nenhuma referência fosse feita ao fato de que eles foram utilizados como fundamento teórico do regime autoritário. A fala de Pedro de Figueiredo, um dos professores da ESG que participou da sessão da subcomissão, fez clara referência à necessidade de que a nova ordem previsse instrumentos de segurança contra grupos que se opusessem ao Estado, no que ele chamou de segurança interna, ao passo em que também defendeu a impossibilidade de ordens constitucionais acolherem o poder político de resistência (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 31).

A Segurança Interna prende-se à garantia das “macroestruturas de participação e regulação da sociedade no âmbito do Estado”, contra a atuação “de agentes organizados com vistas à subversão política da ordem social” na medida em que chegam mesmo à violência explícita do terrorismo, da guerrilha, da insurreição e da guerra civil, revolucionária ou não. (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 32)

Os representantes da ESG defenderam a manutenção da Lei se Segurança Nacional ou a criação de outra lei nos mesmos moldes, ou seja, que previsse crimes contra a segurança do Estado. Defenderam, ao final, expressamente a possibilidade de que as Forças Armadas fossem utilizadas pela nova ordem constitucional para coibir o que eles denominaram desordens internas que, por sua vez, estavam relacionadas ao conceito de segurança interna e, portanto, à repressão do que fosse considerado subversivo. Para eles, foi o emprego das Forças Armadas na segurança interna ao longo da história brasileira que “assegurou a integridade e a integração que o país ostentava naquele momento” (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 33). Todavia, conforme Mendes Ribeiro, as Forças Armadas só seriam mobilizadas internamente enquanto o Brasil fosse subdesenvolvido, já que “países que atingiram elevado grau de desenvolvimento as ameaças de origem externa preponderam sobre as internas”, fazendo com que as Forças Armadas se preocupem mais com guerras externas do que com a contenção de movimentos subversivos (BRASIL, 1987hBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 11ª reunião (Instalação) realizada em 30 abr. 1987h. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 118).

Paradoxalmente, considerando tratar-se de trabalhos para construção de um novo projeto democrático, representantes da ESG mencionaram expressamente que nada garantiria que as próprias Forças Armadas não dessem um golpe (chamado de revolução pelo representante da ESG) no regime constitucional para assegurar a segurança interna. Um raciocínio claramente descompassado com a ideia de ordem constitucional, democracia e pluralidade social e ao mesmo tempo alinhado com a Doutrina da Segurança Nacional.

Já se disse que eliminando-se essa destinação das Forças Armadas, não se retira a possibilidade de as Forças Armadas realizarem um golpe contra o Governo (não há dispositivo legal que impeça uma revolução), mas retira-se do Governo a possibilidade de valer-se, em tempo hábil, das Forças Armadas para defender o regime democrático. (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 33)

Ao ser questionado pelos Constituintes sobre a excessiva quantidade de militares no plano federal com status de Ministro, Ubiratan Macedo respondeu ser “evidente que haverá vantagens políticas da maior participação das Forças Armadas no Governo, porque quando ela começa a ficar muito longe do Governo talvez fique desleal a esse Governo” (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 40). A ideia que contornou os debates após as falas dos representantes da ESG era a pertinência ou não de que as Forças Armadas pudessem exercer o “poder de polícia da União” em um regime democrático, ao passo em que caberia a outras instituições o exercício do poder de polícia nos Estados e Municípios (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 41).

Ainda que o discurso seja constantemente interpelado pela abertura e incompletude dos sentidos, a participação da ESG nesse primeiro momento dos trabalhos da subcomissão é um exemplo de como a articulação das paráfrases funcionam na tentativa de manutenção de sentidos postos, através da estabilização de constructos semânticos e retóricos estáveis ao longo do tempo (PÊCHEUX, 2001PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. In: Gadet; T. Hak. (Orgs.). Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux (pp. 61-161). Campinas: Editora da Unicamp, 2001.), fazendo referência ao que a AD chamou de Condições de Produção do Discurso. A utilização de expressões como subversão, ordem interna, terrorismo e golpe presentes nas falas dos representantes da ESG interpelam os sujeitos presentes, mantendo o dizer em um espaço-memória discursivo, ao passo em que abre espaço para que o próprio dispositivo da memória (sobre o não esquecimento das violações de direitos humanos, por exemplo) seja mobilizado para deslocar os sentidos postos, abrindo caminho para uma ruptura discursiva que manifeste a necessidade de ressignificação da função das Forças Armadas, vez que as próprias condições de produção discursivas - que se anunciavam democráticas – estavam sendo modificadas (PÊCHEUX, 2012PÊCHEUX, Michel. O discurso. Estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas: Pontes, 2012., p. 29).

4. Tentativas de polissemia e a necessidade de ruptura

Após as primeiras participações dos professores da ESG, a subcomissão presenciou construções discursivas polissêmicas em relação aos sentidos postos, desta vez através de ditos que interpelaram a opacidade da linguagem, fazendo com que fossem produzidas novas possibilidades de sentido para a instituição das Forças Armadas no enunciado democrático, em uma tentativa de ruptura com sentidos anteriores.

Foi a vez do representante do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Márcio Thomaz Bastos, contribuir com a organização dos trabalhos da subcomissão. O advogado trouxe à pauta o maniqueísmo da ideologia da segurança nacional utilizada pelo regime autoritário para fundamentar a perseguição a opositores. Consoante sua manifestação, não se poderia discutir o assunto Estado, Nação, Segurança Nacional e Defesa do Estado sem compreender que tudo o que aconteceu no Brasil nos últimos anos havia sido fundamentado naquela linha de pensamento. A expressão ideologia, utilizada por Thomaz Bastos, difere na noção de ideologia construída pela Análise do Discurso, vez que, para a corrente francesa, a ideologia não deve ser compreendida como mascaramento ou ocultação de um sentido existente, mas como mecanismo linguístico que permite perceber a norma, mobilizando o que está sedimentado – o que discursivamente sempre esteve lá. A ideologia, para a AD, pode furtar a percepção do sujeito sobre a compreensão dos modos de produção de sentido, saturando sentidos e produzindo noções de obviedade discursiva, tal como ocorreu com o uso da expressão “revolução” ao longo do regime autoritário (AMARAL e FERNANDES, 2018AMARAL, Pedro Luís Fagundes do; FERNANDES, Carolina. A ditadura militar no discurso midiático: uma abordagem discursiva na educação de jovens e adultos. Revista Investigações, v. 31, n. 2, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/238164. Acesso em: 22 nov. 2020.
https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/...
, p. 371).

Conforme Thomaz Bastos, a concepção da segurança nacional era um corpo de princípios fechados, um sistema quase religioso de definições em petição de princípios com conceitos reducionistas, em que o mundo era simplificado de modo que as pessoas ou estão do nosso lado ou estão contra nós; de modo que o inimigo ou é externo ou é interno; de modo que a Nação se torna alguma coisa de absolutamente homogênea onde não há possibilidade de se ter uma opinião diferente e onde não se respeita o que é diferente (BRASIL, 1967i, p. 51).

A opinião diferente passa a ser a opinião do inimigo, do inimigo interno, do inimigo que merece e que precisa ser punido e punido com toda a dureza, como aconteceu tristemente na nossa história política nos últimos anos. E essa ideologia da segurança nacional, que na sua simplicidade e no seu maniqueísmo se baseia, originalmente, numa concepção bipolarizada do mundo, uma concepção dos anos 50, de que o mundo é dividido entre duas potências (...). Essa ideologia da segurança nacional (...) no Brasil encontra a sua cristalização nos conceitos da Escola Superior de Guerra, que na Emenda Constitucional de 1969 entraram e fortemente na Constituição da República que ora nos rege. (BRASIL, 1967i, p. 51)

Em relação às Forças Armadas, Thomaz Bastos posicionou-se pela possibilidade excepcionalíssima de utilização das Forças Armadas na ordem interna, desde que sujeita aos controles democráticos (BRASIL, 1987jBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 8ª reunião realizada em 23 abr. 1987j. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 55). No final de sua manifestação na subcomissão, acrescentou a proposta de dissolução das Polícias Militares Estaduais, bem como o Serviço Nacional de Informações. Quanto aos Chefes de Polícia, tanto na esfera federal, quanto na estadual, as nomeações deveriam ficar condicionadas a prévia aprovação pelo órgão legislativo competente. Os Ministros militares, por sua vez, deveriam ter suas nomeações aprovadas pelo Congresso Nacional (BRASIL, 1987jBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 8ª reunião realizada em 23 abr. 1987j. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 53).

A subcomissão também convidou o Geraldo Cavagnari Filho, do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, para contribuir com os trabalhos. O professor acompanhou o entendimento de que as Forças Armadas estariam subordinadas ao poder civil e só poderiam ser mobilizadas para defesa da ordem interna em situações excepcionais, desde que obedecidos os seguintes princípios: total isenção política das Forças Armadas; proibição de as Forças Armadas exercerem influência na vida política enquanto corpo organizado; intervenção da força armada unicamente a pedido do poder político e não de espontânea iniciativa dos órgãos militares, tanto para a defesa externa quanto interna.

O integrante do Núcleo de Assuntos Estratégicos registrou que a esquerdização do país era utilizada para justificar a resistência das Forças Armadas à subordinação ao poder civil, caso esse fosse considerado não-confiável. Chegava-se novamente à tese do amigo/inimigo, vez que a preocupação das Forças Armadas seria impedir que um suposto inimigo interno viesse a conquistar o poder político. No entendimento de Cavagnari Filho, essa era a grande preocupação das Forças Armadas, que poderia mobilizar sua autonomia para reduzir a liberdade de ação desse inimigo, a fim de evitar a chamada hipótese de guerra interna. Todavia, caso essa mobilização não evitasse a guerra interna, “as Forças Armadas iriam para destruí-lo” (BRASIL, 1987kBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 9ª reunião (Instalação) realizada em 28 abr. 1987k. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 71). Curiosamente, as manifestações que instauraram a polissemia nos trabalhos da subcomissão desaguaram na paráfrase de defesa e eliminação do inimigo interno.

Em qualquer país do terceiro mundo, em qualquer país subdesenvolvido, existe para fins de planejamento militar uma hipótese de guerra interna; considerado conflito de natureza ideológica, com um inimigo definido como ideologicamente de esquerda. Nesta hipótese, o inimigo interno é a esquerda revolucionária (ou potencialmente revolucionária), que deve ser impedida de criar uma situação de guerra interna. Se este “inimigo” reagir, tentando criar uma situação revolucionária, ou mesmo pré-revolucionária, ele deve ser destruído. (BRASIL, 1987kBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 9ª reunião (Instalação) realizada em 28 abr. 1987k. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 68)

Ainda assim, alguns Constituintes retomaram as tentativas de deslocamentos de sentido, rechaçando outros conceitos forjados pela Doutrina da Segurança Nacional: a Constituição não pode tratar da segurança nacional e dos objetivos nacionais “na medida em que a própria ordem constitucional e todos os seus capítulos, a Carta política da Nação já é a síntese, já é a expressão dos objetivos nacionais” (BRASIL, 1987hBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 11ª reunião (Instalação) realizada em 30 abr. 1987h. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 120). Estava colocada em pauta a preocupação de que as Forças Armadas, como instrumento de defesa, ficassem subordinadas aos poderes civis e que a influência militar fosse retirada deste nível de decisão, separando órgão de decisão e órgão de execução. No plano do órgão de execução, as decisões seriam técnicas e não políticas, ao passo que para o uso do instrumento, a decisão seria política. A ideia era que o uso das Forças Armadas na ordem interna deveria ser uma decisão política, cabendo a quem de direito tomar a decisão: o poder político (BRASIL, 1987kBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 9ª reunião (Instalação) realizada em 28 abr. 1987k. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 79).

Além disso, alguns palestrantes afastaram o argumento de que as Forças Armadas teriam atuado ao longo da história como poder moderador, uma vez que, além de não serem um poder, “nunca foram moderadoras porque sempre moderaram favorável ao mesmo tema da alternativa” (BRASIL, 1987kBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 9ª reunião (Instalação) realizada em 28 abr. 1987k. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 81). A ideia de poder moderador voltou a aparecer nos trabalhos da subcomissão na discussão sobre o grau de detalhamento do texto constitucional: “a Constituição deve definir, para as Forças Armadas, atribuições condizentes ao modelo democrático? Acho claro que sim. Há, assim, que desfigurar o papel histórico do chamado poder moderador” (BRASIL, 1987lBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 12ª reunião (Instalação) realizada em 05 maio 1987l. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 128). Conforme a manifestação do Gal. Euler Bentes Monteiro, por exemplo, ficava claro que poder moderador era a expressão que indicava uma atuação arbitrária, fora da área de competência normativa das Forças Armadas e descomprometida com qualquer ordem de princípios: “existe a interpretação dentro das Forças Armadas de que em casos de crises de estado elas se colocam, legitimamente, acima dos Três Poderes e, o passado demonstra, acima do próprio Presidente da República” (BRASIL, 1987lBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 12ª reunião (Instalação) realizada em 05 maio 1987l. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 134).

5. O texto constitucional em disputa

Como referido, a Análise do Discurso compreende a língua como elemento interpelado pela práxis da construção de sentido, permeada pelo sujeito e pela realidade que o contorna. Não há, portanto, palavras com sentidos colados ou imanentes, mas sentidos opacos, que podem ser percebidos e modificados através do uso da linguagem em contextos reais. Dessa forma, o texto constitucional, enquanto corpus de análise, será sempre aberto e incompleto, ainda que conhecidas e estudadas suas condições de produção. O estudo sobre os debates que antecederam a versão final do texto constitucional é um espaço privilegiado para reflexão sobre as condições de produção do discurso e para compreensão dos sentidos mobilizados naquele contexto, mas não servem para encerrar deslocamentos de sentido ou tentativas de manutenção de dizeres, sobretudo em um quadro de interdiscursividade entre o regime anterior e o enunciado democrático que se apresentava. O texto constitucional, compreendido como corpus discursivo, carrega consigo a possibilidade de constante ressignificação e de manutenção de sentido no espaço da memória discursiva (PÊCHEUX, 2012PÊCHEUX, Michel. O discurso. Estrutura ou acontecimento. 6. ed. Campinas: Pontes, 2012.).

O representante do Núcleo de Assuntos Estratégicos foi o primeiro convidado da subcomissão a fazer referência aos textos constitucionais direcionados às Forças Armadas. No caso, Cavagnari Filho endossava o anteprojeto Afonso Arinos por entender que o texto buscava a consolidação das instituições democráticas, o fortalecimento da sociedade civil e a necessidade de redução da autonomia militar no Estado (BRASIL, 1987kBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 9ª reunião (Instalação) realizada em 28 abr. 1987k. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 68), mesmo entendimento apresentado pelo General Euler Bentes Monteiro, ao julgar inteiramente satisfatórias as definições do anteprojeto da Comissão Afonso Arinos, em seus artigos 413 e 414 (BRASIL, 1987lBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 12ª reunião (Instalação) realizada em 05 maio 1987l. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 128). No seu entendimento, essa redação afastava a interpretação de que as Forças Armadas possuiriam autonomia, acima dos Poderes do Estado, para garantir a lei e a ordem (BRASIL, 1987lBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 12ª reunião (Instalação) realizada em 05 maio 1987l. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 134).

A outra clara alusão a textos constitucionais foi feita pelo Relator da subcomissão, ao trazer para discussão a redação do art. 91 da Constituição de 1969, dado pela Emenda Constitucional n° 1. A diferença entre os textos utilizados como parâmetro ilustra a disputa por espaço dentro da subcomissão através da constante interdiscursividade, seja para deslocar, seja para sedimentar os sentidos atribuídos às Forças Armadas.

General Euler Bentes Monteiro - Estamos construindo o novo Estado democrático. V. Ex.as são o Poder Constituinte. Qual o papel das Forças Armadas nessa nova Constituição de um Estado democrático? Quais as pressões de lobby que se desenvolvem, no sentido de influir sobre o trabalho que V. Ex.ª realizam? É claro que devemos ter, de acordo com a opinião que estão manifestando, uma consciência entre formal e o real, quanto às atribuições das Forças Armadas. (BRASIL, 1987lBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 12ª reunião (Instalação) realizada em 05 maio 1987l. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 128)

Acerca dos textos constitucionais, a Constituição de 1946 previa, em seu art. 176, que as Forças Armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. Essa redação foi praticamente mantida no documento de 1967. A diferença textual localizou-se no item que fazia referência à finalidade das Forças Armadas: enquanto a Constituição de 1946 previa que as Forças Armadas se destinavam a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, o documento de 1967 dizia que as Forças Armadas se destinavam a garantir os poderes constituídos. A Emenda Constitucional n° 1 de 1969 não apenas manteve a referência aos poderes constituídos, como acrescentou que “as Forças Armadas são essenciais à execução da política de segurança nacional” (BRASIL, 1969BRASIL. Emenda Constitucional n° 1 de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967.Diário Oficial da União, 20 out. 1969, p. 8865.).

A Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, instituída em 1985 com a finalidade de elaborar um projeto que servisse de base para a Assembleia Nacional Constituinte, apresentou um texto que tentava diminuir consideravelmente a margem de manobra para casos de utilização das Forças Armadas no âmbito interno. O chamado Projeto Afonso Arinos previa, em seu art. 414, que as Forças Armadas se destinavam a assegurar “os poderes constitucionais e, por iniciativa expressa destes, nos casos estritos da lei, a ordem constitucional (BRASIL, 1986BRASIL. Anteprojeto Constitucional. Diário Oficial da União, Seção 1, Suplemento Especial ao n° 185, 26 set. 1986. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p.55).

O relatório do Constituinte Ricardo Fiuza foi apresentado e submetido a emendas na subcomissão em meados de maio. À semelhança do texto projeto Afonso Arinos, o texto previa, em seu art. 12, que as Forças Armadas poderiam atuar desde dentro dos limites da lei. Essa expressão foi questionada por alguns Constituintes em razão de uma pretensa dubiedade, pois pressupunham que o texto, tal como apresentado, permitiria que as Forças Armadas fizessem uma apreciação valorativa sobre a lei emanada do poder civil.

Constituinte José Genoíno - Ela pode dar margem a duas situações contraditórias. A primeira situação eu imagino que seja esta, situação pensada pelo Relator, que o Presidente da República não pode usar da sua autoridade sobre as Forças Armadas, para qualquer situação, mas, apenas, dentro da Lei. Mas existe uma outra situação que nós devemos levar em conta: as Forças Armadas podem fazer nesta expressão, aqui, “dentro dos limites da lei”, fazer um julgamento da ordem do Presidente da República, na medida em que ela possa julgar que não está dentro dos limites da lei. São dois aspectos que nós devemos levar em conta e, por isto, tenho uma proposta, de retirar esta expressão. (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 187)

Acolhendo a emenda dos Constituintes José Genoíno e Haroldo Lima, dentre outros que se manifestaram nesse sentido, a expressão “dentro dos limites da lei” foi retirada do texto do relatório final, eliminando uma cláusula discutida nos textos constitucionais desde 1891. Conforme o Relator, com essa supressão reforçava-se o sentido de que as Forças Armadas deveriam ser essencialmente obedientes aos poderes constitucionais, não lhes sendo facultada a análise do mérito das ordens emanadas por estes poderes legitimamente constituídos pela vontade popular: “a expressão, em boa hora retirada, reafirma a condição de que as Forças Armadas são essencialmente obedientes e não deliberantes” (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 199).4 4 Conforme o Relator Ricardo Fiuza: “O fato de que as Forças Armadas têm na Constituição as fontes de sua legitimidade e o dever especial de garantias aos Poderes constitucionais e à lei, elimina a possibilidade de agirem, sob quaisquer alegações, contra a ordem jurídica estabelecida.” (BRASIL, 1987m, p. 199)

Conforme as transcrições das sessões de análise do relatório do Constituinte Ricardo Fiuza, em nenhum momento os Constituintes que se manifestaram durante os trabalhos da subcomissão aceitaram a interpretação no sentido de que as Forças Armadas pudessem atuar na ordem interna de forma autônoma, ou seja, sem que algum dos poderes constitucionais as demandassem. Ao contrário, as manifestações demonstravam preocupação sobre o texto do relatório, a fim de que a subcomissão conseguisse construir um dispositivo que deixasse claro que as Forças Armadas estavam submetidas aos poderes constitucionais e, apenas sob ordem deles, poderiam agir no âmbito interno. Daí as constantes referências ao texto do anteprojeto Afonso Arinos que, na opinião de muitos Constituintes, tinha encontrado uma solução textualmente adequada.

Constituinte Cesar Maia – (...) com relação à defesa da ordem constitucional, ela prevê a necessidade do acionamento pelos poderes constitucionais. Parece-nos que esse é o tratamento mais adequado, a proposta Arinos trata dessa maneira e acho que, no nosso caso, com os traumas que vivemos, é importante fazer essa afirmação do acionamento. (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 190)

No mesmo sentido, as manifestações deixam claro que essa atuação poderia ser requisitada por quaisquer um dos poderes constitucionais, diante do temor de hipertrofiar os poderes do Executivo. Conforme o Constituinte Roberto Brant, por exemplo, um dos primeiros a se manifestar, as Forças Armadas atuariam para a garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, mas por iniciativa expressa de qualquer deles, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário. O Relator partia do pressuposto de que uma Constituição deveria prever poderes equivalentes: “se vamos continuar nessa hipertrofia do Executivo, então é melhor fechar esta Casa. Nós é que devemos exercer o poder de fiscalização, realmente efetivo, como nos garante a futura Constituição” (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 190).

Constituinte Roberto Brant - As Forças Armadas destinam-se à garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, mas por iniciativa expressa destes. Porque, se as Forças Armadas puderem garantir a lei e a ordem mas por iniciativa própria, eu creio que ela teria um papel extremamente demasiado, eu acho que só os poderes constitucionais seria o Executivo, o Legislativo e o Judiciário que expressamente poderão convocar as Forças Armadas para garantir a lei e a ordem. (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 188)

Pouco antes da apresentação do relatório final da subcomissão, foram encaminhadas propostas no Plenário da ANC para que o texto que previsse a finalidade das Forças Armadas disciplinasse que elas estariam condicionadas ao acionamento pelos poderes civis, como reflete a proposta encaminhada pelo Constituinte José Viana: “que se coloque um dispositivo que impeça a intervenção das Forças Armadas na vida política do País à revelia do poder político instituído, do qual são apenas um instrumento e devem se comportar como tal” (BRASIL, 1987nBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Ata da 60ª sessão da Assembleia Nacional Constituinte, realizada em 6 maio 1987n. Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/N004.pdf. Acesso em: 03 jul. 2020.
http://www.senado.leg.br/publicacoes/ana...
, p. 68). As manifestações dos membros da subcomissão indicam claramente que, no final dos trabalhos, havia a necessidade de demarcar um posicionamento sobre essa questão e traduzir o posicionamento no texto do relatório final que seria encaminhado para a Comissão Temática.

Constituinte Lysâneas Maciel - O que se discute, Sr. Presidente, é se nós vamos ou não vamos manter dentro deste país a ideologia de Segurança Nacional, que dá um papel preponderante às Forças Armadas e uma dicotomia perigosa e meio esquizofrênica. Um idealismo altamente perigoso para a Nação que é Forças Armadas e sociedade civil; Forças Armadas e liberdades civis. (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 191-192)

Apesar das diversas manifestações, o substitutivo do Relator previu uma Seção intitulada “Da Segurança Nacional”, a qual disciplinava a criação de um órgão de assessoria direta ao Presidente da República nos assuntos relacionados com à ideia de Segurança Nacional, chamado de Conselho de Segurança Nacional. O referido órgão teria como membros natos o Vice-Presidente da República e todos os Ministros de Estado, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Seriado e o Presidente do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 201). Conforme o art. 10 do Substitutivo, mantinha-se no texto a expressão “segurança nacional”, tanto debatida e criticada ao longo dos trabalhos da subcomissão. O art. 13 do Substitutivo, que tratava sobre as Forças Armadas, também não refletia as sugestões dos Constituintes, silenciando sobre a competência para acioná-las: “as Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes constitucionais, de lei e da ordem” (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 201).

Após sua apresentação, o substitutivo recebeu dezenas de destaques e emendas ainda na subcomissão. A emenda de autoria do Constituinte Vivaldo Barbosa, por exemplo, pretendia dar uma nova redação ao art. 12 com uma sugestão que limitava a competência de atuação das Forças Armadas à ordem do Presidente da República. Todavia, a proposta ofereceu uma redação bastante extensa e confusa, sendo amplamente rejeitada.

Também foi rejeitada a emenda de autoria do Constituinte Lysâneas Maciel, que pretendia dar ao art. 12 uma nova redação, acrescentando no seu § 1º a previsão sobre a possibilidade de que os Poderes Legislativo e Judiciário também pudessem acioná-las: “As Forças Armadas estão submetidas à Constituição, às leis e aos poderes constitucionais e só serão mobilizadas por estes” (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 217). A sugestão foi rejeitada porque também abrangia proposta de nova redação do caput do art. 12, cuja sugestão foi considerada pouco objetiva.5 5 Emenda proposta pelo Constituinte Lysâneas Maciel para o caput do art.12: "As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, de seu povo, de sua soberania e Território e à garantia da Constituição, dos poderes constitucionais e da lei (BRASIL, 1987o, p. 217). Também surgiram propostas de emendas questionando a expressão “garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem” por sua amplitude e vagueza, como bem ilustra a manifestação do Constituinte Arnaldo Martins: “a redação é bastante abstrata, dando margem a que sejam tomadas muitas previdências invocando-se a Constituição” (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p. 218).

A última sessão da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança foi realizada em 25 de maio. Apesar das inúmeras propostas de emendas para alterar a redação dos dispositivos que normatizavam a finalidade das Forças Armadas e a competência para acioná-las, o Substitutivo do Relator Ricardo Fiuza seguiu praticamente com sua redação original para a Comissão Temática.6 6 “Art. 12. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República. Parágrafo único. Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República; estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. Art. 13. As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes constitucionais, de lei e da ordem. Parágrafo único. Cabe ao Presidente da República a direção de política de guerra e a escolha dos comandantes-chefes” (BRASIL, 1987o, p. 201). Percebeu-se que a subcomissão não conseguiu transpor para o texto as críticas ao regime autoritário e à Doutrina da Segurança Nacional, como bem se referiu o Constituinte Edmilson Valentim: “as Forças Armadas ganharam mais poderes, segundo o Relatório da Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança” (BRASIL, 1987p, p. 2278), poucos dias após a entrega dos Relatórios Finais pelas Subcomissões Temáticas. Na mesma linha, conforme o Constituinte Haroldo Lima, o relatório do Deputado Ricardo Fiúza sobre o papel das Forças Armadas “reproduzia as formulações básicas que o Ministério do Exército escreveu no livrinho que enviou à Constituinte” (BRASIL, 1987qBRASIL. Diário da Assembleia Nacional Constituinte, n. 64, 22 maio 1987q. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/064anc22mai1987.pdf#page=. Acesso em: 01 jul. 2020.
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf...
, p. 2146). Prevaleceu a manutenção dos sentidos discursivos pelo não-dito ao longo dos trabalhos.

Encerrada a primeira fase dos trabalhos da ANC, o texto que seguiu para a Comissão Temática mantinha expressões ligadas à Doutrina da Segurança Nacional e não explicitava claramente quem poderia acionar as Forças Armadas para garantia da lei e da ordem no âmbito interno. O discurso parafrásico e os não-ditos dos generais e militares do primeiro escalão sobre a impossibilidade de o país conseguir administrar seus conflitos sem o uso da força deu resultados. As críticas aos conceitos de inimigo, objetivos nacionais permanentes, militarização do Estado e guerra interna não se refletiram no texto final da Subcomissão.

Considerações finais

A análise do corpus dos trabalhos da Subcomissão foi analisada a partir da mobilização dos conceitos da Análise do Discurso de matriz francesa, sobretudo através das chaves de leitura da paráfrase e da polissemia, utilizadas como marcadores de manutenção ou de rompimento de sentidos, respectivamente. Apesar de pouco demandada pelas pesquisas jurídicas, a AD possibilita a problematização de fenômenos complexos sob o viés da linguagem, a partir da categoria do discurso (PÊCHEUX, 2010PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 5. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010.). Para tanto, a AD analisa o discurso enquanto práxis discursivas, permeado pelos sujeitos e pela realidade social. Os rompimentos e as sedimentações de sentido consideram ditos, condicionados pelos modos de produção do discurso, e por não-ditos, que fazem referência ao que está em outro lugar (ORLANDO, 2001, p. 52). A análise das fontes, a partir da mobilização dos conceitos construídos pela linha francesa da Análise do Discurso, fornece uma problematização privilegiada sobre as mobilizações discursivas ocorridas no âmbito da Constituinte, possibilitando uma compreensão ampliada das tensões e das disputas por direitos, para além das tradicionais categorias jurídicas de análise.

A primeira fase dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte foi marcada pela ampla mobilização popular – o que seguiria até a promulgação da Constituição – e pelos trabalhos das subcomissões, responsáveis pelos primeiros textos de suas respectivas matérias. A Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança ficou encarregada de tratar sobre as funções das Forças Armadas na nova ordem constitucional. Com um início de trabalho bastante confuso, a subcomissão realizou sete audiências públicas ouvindo, preponderantemente e com exceção da Ordem dos Advogados do Brasil, entidades ligadas às Forças Armadas. Ainda assim, as manifestações registradas nos arquivos da ANC indicam que a maioria das intervenções dos Constituintes realizadas ao longo das audiências públicas tinham como preocupação a necessidade de que o texto produzido pela subcomissão deixasse claro que as Forças Armadas estavam subordinadas aos poderes constitucionais e, apenas por iniciativa expressa destes, poderiam intervir na ordem interna.

Paralelamente, as participações dos representantes das Forças Armadas ao longo das audiências públicas refletiram a Doutrina da Segurança Nacional, retomando conceitos como amigo/inimigo, guerra interna, objetivos nacionais permanentes, subversão política e terrorismo (BRASIL, 1987gBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 6ª reunião (Instalação) realizada em 22 abr. 1987g. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
, p.33), através de paráfrases discursivas, voltadas para a manutenção de sentidos sedimentados. Conforme as críticas à permanência dessas concepções eram marcadas ao longo das sessões, formou-se um discurso contraditório pelos representantes das forças militares, no sentido de assegurar o viés democrático da corporação, ao mesmo tempo em que afirmavam a necessidade de que o novo regime prestigiasse as Forças Armadas para assegurar suas lealdades. Do contrário, não haveria dispositivo que assegurasse que as Forças Armadas não dariam um golpe para coibir o que se chamou de desordens internas. Ademais, também apareceram concepções que apresentaram as Forças Armadas como um poder moderador e como tutoras da sociedade.

As inúmeras manifestações sobre a necessidade de subordinar as Forças Armadas aos poderes constitucionais e sobre quem poderia acioná-las no âmbito interno não se refletiram no texto do substitutivo final da subcomissão, demonstrando que os não-ditos integram o discurso e servem como elementos de manutenção dos sentidos. Todas as emendas que buscavam explicitar a subordinação da instituição aos três poderes foram rejeitadas. O substituto também previu um item com a expressão segurança nacional, terminologia fartamente criticada ao longo das reuniões por estar claramente ligada à Doutrina da Segurança Nacional e ao regime autoritário. A disputa iniciada nos trabalhos da subcomissão continuaria nas Comissão Temática e na Comissão de Sistematização. A arena do direito e do projeto constitucional pautavam claramente os interesses corporativos das Forças Armadas, dispostas a não renunciar a espaços de poder e de autonomia, mesmo que essa autonomia pudesse se voltar contra o próprio enunciado democrático. Os arquivos da Assembleia Nacional Constituinte sugerem que as Forças Armadas entraram a contragosto no processo de redemocratização e que a disputa sobre o espaço das Forças Armadas dentro do projeto democrático não se encerrou no texto constitucional, estando permeado pelos movimentos de interdiscursividade que ora mobilizam sentidos passados através do espaço da memória discursiva, ora deslocam o discurso conforme ressignificações discursivas apreendidas através da polissemia na construção de sentidos.

  • 1
    Jarbas Passarinho, por exemplo, havia sido Ministro do Trabalho de Costa e Silva, Ministro da Educação de Médici e Ministro da Previdência de João Figueiredo.
  • 2
    A Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições também era composta pela Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos e pela Subcomissão de Garantia da Constituição, Reforma e Emendas.
  • 3
    Posteriormente, também foram convidados pela Subcomissão: Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, Diretor-Adjunto do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Campinas; Cyro Vidal, Presidente da Associação dos Delegados do Brasil (Adepol); os Comandantes Gerais das Polícias Militares de Pernambuco, Pará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo e Goiás (para uma exposição sobre o tema "O papel das Polícias Militares"); um representante do Conselho de Segurança Nacional; os Generais Euler Bentes e Antônio Carlos Serpas (para exporem sobre o tema "O Papel das Forças Armadas e Conceito de Segurança Nacional); o Presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal; um representante do Estado-Maior das Forças Armadas (para falar sobre o tema "Ministério de Defesa e Serviço Militar") (BRASIL, 1987eBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 8ª reunião (Instalação) realizada em 23 abr. 1987e. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 19 jun. 2020.
    https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
    , p. 65).
  • 4
    Conforme o Relator Ricardo Fiuza: “O fato de que as Forças Armadas têm na Constituição as fontes de sua legitimidade e o dever especial de garantias aos Poderes constitucionais e à lei, elimina a possibilidade de agirem, sob quaisquer alegações, contra a ordem jurídica estabelecida.” (BRASIL, 1987mBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 15ª reunião (Instalação) realizada em 18 maio 1987m. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
    https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
    , p. 199)
  • 5
    Emenda proposta pelo Constituinte Lysâneas Maciel para o caput do art.12: "As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria, de seu povo, de sua soberania e Território e à garantia da Constituição, dos poderes constitucionais e da lei (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
    https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
    , p. 217).
  • 6
    “Art. 12. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República. Parágrafo único. Lei complementar, de iniciativa do Presidente da República; estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. Art. 13. As Forças Armadas destinam-se à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes constitucionais, de lei e da ordem. Parágrafo único. Cabe ao Presidente da República a direção de política de guerra e a escolha dos comandantes-chefes” (BRASIL, 1987oBRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Anexo à Ata da 17ª reunião (Instalação) realizada em 23 maio 1987o. Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/ComESub.pdf. Acesso em: 30 jun. 2020.
    https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
    , p. 201).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2020
  • Aceito
    01 Fev 2021
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