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Olhar soberano na fotografia de José Domingo Laso

Sovereign view in José Domingo Laso’s photography

Resumo

A série fotográfica Quito a la vista, de José Domingo Laso Acosta, retrata os principais pontos turísticos da cidade em 1911. Entretanto, por meio de intervenções nos negativos fotográficos, Laso literalmente apagou a presença indígena das paisagens da cidade. A partir da noção de vida nua (Agamben), analisa-se a relação entre arte, política e direito na fotografia de Laso: a fotografia como correlato iconográfico do olhar soberano da época.

Palavras-chave:
Direito; Fotografia; Vida nua; José Domingo Laso Acosta

Abstract

José Domingo Laso Acosta show the main tourist landscape of the Quito in 1911. However, through interventions in the negatives and photographic retouches, Laso literally erased the presence of the Indian from the city scene. Through the concept of bare life (Agamben), the relationship between art, politics and Law in Laso’s photography is analyzed: photography as an iconographic correlate of the sovereign view.

Keywords:
Law; Photography; Bare life; José Domingo Laso Acosta

1 Introdução

Quito a la vista é uma série de imagens do fotógrafo equatoriano José Domingo Laso Acosta, publicada em 1911, na forma de um fotolivro. São imagens da cidade de Quito que se inscrevem, à primeira vista, no gênero da fotografia documental. Fotografias com foco preciso, nítidas, com controle de exposição equilibrado. Não há qualquer intenção de estabelecer uma comunicação abstrata, simbolista ou surrealista. Pelo contrário, as imagens apresentam limites iconográficos bem definidos, claros e objetivos. Não há ambiguidades, ambivalências ou elementos que designem intenções simbolistas. São fotografias que apresentam uma intenção documental e dialogam com a linguagem da verdade e da representação.

Todavia há fantasmas nessa série fotográfica. Rastros de sentidos apagados. Palimpsestos iconográficos que sinalizam presenças cuidadosamente excluídas. Ausências construídas. Presenças calculadas. Os índios foram, literalmente, apagados das paisagens da cidade de Quito.

Discriminação visual? Retoque fotográfico moral? Cartões-postais da imagem-desejo das elites da época? A fotografia não é apenas registro ou ilustração de um passado que aconteceu, mas também um dispositivo de poder. Um dispositivo que constrói sentido e que, desse modo, permite ver desejos. Ao observar uma fotografia não vemos apenas uma ilustração do “isso foi” (BARTHES, 2015BARTHES, Roland. A câmara clara: notas sobre a fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.: 68), mas sobretudo uma ilustração do sistema de desejos da época e das formas de construção da realidade projetadas por esse sistema de desejos. Laso entregou para a elite quitenha a imagem de Quito que ela desejava ver e viver.

A obra de Laso constitui um monumento da relação entre arte, política e direito na América Latina. Ela revela a sutil irrelação entre cena, cenário e encenação. Laso fotografava a cidade sem índios e, no estúdio, fotografava os índios sem cidade. Em Quito a la vista, um cenário sem índios. Nos retratos indígenas, entretanto, índios sem cenários. Na relação entre cena e cenário, a encenação de uma vida colonizada.

A assimetria entre cena e cenário revela, precisamente, o lugar da vida nua. Segundo a noção de Agamben (1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 11; 2014: 43), vida nua é o limiar da indiferenciação entre uma vida política qualificada e uma vida animal descartável. Na série de Laso, a imagem do índio apagado simboliza a vida nua. Uma vida que não é nem qualificada como a dos colonizadores, mas que também não é simplesmente descartável como a dos animais. É a vida situada exatamente no campo da exceção dos direitos, em algum lugar entre a vida qualificada e a descartável. O índio retirado do cenário não é apenas a simbolização das relações coloniais de exploração e dominação dos corpos, mas também a forma pictórica da segregação (LASO, 2016: 126). O lugar onde cena, cenário e encenação se tornam indistintos. Índios sem cenários e cenas sem índios, para a encenação de uma vida teatralizada.

Neste artigo, queremos observar aquilo que não está presente na imagem. Os rastros de elementos cuidadosamente excluídos da composição fotográfica. Genuínos fantasmas que, paradoxalmente, existem e não existem ao mesmo tempo. Giorgio Agamben (1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 94) os chama de homines sacri: aqueles indivíduos que vivem uma vida no limiar da indiferença entre vida politicamente qualificada e vida animal sacrificável. Didi-Hubermann (2013: 43 e 174), dialogando com a problemática da Nachleben der Antike de Aby Warburg, fala de “imagem sobrevivente”: uma estranha relação entre sobrevivência e supervivência das imagens. Fantasmas rebeldes que, mesmo reprimidos ou mortos, “supervivem” em nossa cultura.

Nessa perspectiva, este artigo objetiva estabelecer uma conexão entre a impresença indígena no cenário da cidade e a impresença do cenário na cena indígena. Essa assimetria na estética indigenista da época permite propor uma releitura jurídica das fotografais de Laso não a partir do que elas mostram, mas a partir dos rastros que elas encobrem e que sobrevivem em uma reabertura histórica.

Para serem alcançados esses resultados, como metodologia, utilizaremos três chaves de leitura, a) a imagem do paraíso exótico reproduzida pelas formas de arte latino-americanas do século XIX, influenciadas pela narrativa fantástica de Alexander von Humboldt; b) a estética que comandava as formas de composição, organização e enquadramento das fotografias indigenistas daquele tempo; e c) as políticas públicas de estetização e higienização urbana vigentes naquele período. Escolhemos quatro fotografias retocadas com o apagamento da presença indígena da série Quito a la vista e quatro retratos feitos por Laso e outros fotógrafos importantes no início do século XX, que permitem observar a relação, como um quiasma visual, entre a cidade sem índios e os índios sem cidade.

Nossa leitura utiliza a noção de forma de observação de segunda ordem, desenvolvida no âmbito da teoria dos sistemas sociais autopoiéticos (LUHMANN, 2005LUHMANN, Niklas. El arte de la sociedad. Tradução de Javier Torres Nafarrate. México: Herder Editorial e Universidad Iberoamericana, 2005.: 102), que permite estabelecer relações entre a imagem e aquilo que dela foi apagado, negado ou subtraído. A forma é uma diferença que estabelece a identidade a partir da diferença. Uma diferença entre o que ela indica e o que dela fica distinto como um suposto implícito da própria distinção. Trata-se de uma forma de conhecimento, nem melhor, tampouco pior, apenas diferente e que, por isso, pode oportunizar uma leitura ressignificante da relação que estabelecemos entre arte e direito, entre as imagens da Lei e aquilo que em nome dela fazemos.

Este artigo faz parte do projeto de pesquisa Imagens da Lei, do Grupo de Pesquisa Margens do Direito (PPGD/FDSM), que procura analisar obras de artes visuais a partir da relação com o direito. A série fotográfica de Laso é importante para nosso projeto porque possibilita observar, dentre outras coisas, aspectos da relação entre arte, direito e colonização na cultura latino-americana.

A série de fotografias de José Domingo Laso Acosta constitui uma forma do olhar soberano da época. O olhar da exceção soberana, que segrega a vida cuidável da vida sacrificável e, desse modo, institucionaliza mecanismos de controle dos corpos e das populações. Uma forma de olhar que transforma sujeitos em sombras, pessoas em fantasmas, signos em rastros. Uma mirada que produz a interessante assimetria entre cena, cenário e encenação, diante da qual os índios são colocados no limiar entre uma cena sem cenário, de um lado, e um cenário sem cena, de outro.

Em um sentido documental, as fotografias são de Quito. Mas em um sentido epistêmico, elas são de toda América Latina. A obra de Laso fala das sutilezas do pensamento colonial. Seus retoques fotográficos, ao contrário de esconderem a verdade, revelaram-na. Precisamente ao alterar a superfície visual da imagem, Laso revelou a verdade mais profunda: a negação do espaço para a vida política do índio na cidade de Quito. São retratos da essência das relações de desigualdade que existem em nosso mundo latino-americano. São fotografias do nosso DNA, da nossa herança histórica colonial. Os índios apagados das imagens somos eu, você, somos todos nós.

2 O retoque fotográfico de José Domingo Laso Acosta

José Domingo Laso Acosta foi um importante fotógrafo equatoriano do início do século XX. Em 1911, publicou Quito a la vista, um livro de fotografias de sua autoria sobre aquilo que hoje poderíamos chamar de os principais pontos turísticos da cidade de Quito, capital do Equador. Laso fotografava retratos de família em seu estúdio e imagens para a venda de cartões postais e revistas. Trabalhou também como fotógrafo para o historiador e arqueólogo Jacinto Jijón y Caamaño, em um projeto de fotografia documental da fisionomia ameríndia (LASO CHENUT, 2017: 29).

Entretanto, ao contrário da grande parte dos artistas da época, Laso não seguiu o caminho da romantização da figura ameríndia, tampouco da reprodução do imaginário europeu da “visão do paraíso” (HOLANDA, 2000HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2000.: 16), que enxergava na América Latina o lugar do exótico, selvagem e da conquista aventureira. Ele possui uma obra imensa de retratos de índios, realizados para vender a revistas e cartões postais. Mas Quito a la vista é um lado diferente da sua obra. Um lado em que os índios são deliberadamente apagados das imagens.

Discriminação visual? Higienização? Um retoque fotográfico moral? Racismo? Mais do que um catálogo de imagens urbanas de Quito, essa série de Laso é uma atitude política, uma forma de produção de sentido cuidadosamente elaborada, de modo a produzir uma versão imagética específica. Através de intervenções tanto nos negativos, quanto nas pranchas de impressão das fotográficas1 1 Na época da fotografia analógica, as técnicas de intervenção nas imagens consistiam em intervenções diretas na placa fotográfica (no negativo original), como é o caso da fotografia da Iglesia de la Compañía de Jesus (Figura 4); ou intervenções sobre os clichês de vidro de impressão por fototipia. No primeiro caso, a intervenção era permanente. Todas as cópias decorrentes da impressão do negativo original reproduziriam a imagem retocada. No segundo caso, a imagem original, registrada no negativo, permanece inalterada e o retoque é realizado apenas na fase de impressão das imagens, o que possibilitaria futuras impressões com ou sem fantasmas. , Laso apagou a presença indígena das suas fotografias de Quito ou desenhou, de modo sobreposto aos negativos ou às pranchas, vestidos e outras roupas europeias sobre os corpos indígenas, para esconder-lhes a identidade étnica.

Figura 4
– José Domingo Laso Acosta, Igreja da Companhia de Jesus (1911) Cortesia do Fondo Jijón y Caamaño, Quito.

Os recursos tecnológicos de impressão da época não eram sofisticados como os atuais. Naquele tempo, as imagens eram impressas em pequenos formatos e com baixa qualidade de resolução, o que permitia esconder os artifícios técnicos de manipulação e edição das imagens. Desde o surgimento da fotografia existem técnicas de intervenção química ou física, tanto no processo de revelação dos negativos, quanto no de impressão dos suportes fotossensíveis. Laso foi apenas mais um, entre vários fotógrafos, que realizava intervenções nos suportes fotográficos, de modo a corrigir ou adulterar a imagem.

No detalhe da fotografia intitulada Catedral e Praça da Independência (Figura 2) (1911) pode-se observar as marcas do apagamento de dois índios da imagem, bem como o desenho manual de roupas de estilo europeu, com chapéu, sobre a figura central, transformando-a em uma figura feminina europeia. Essas intervenções, do ponto de vista da técnica fotográfica, não eram difíceis de serem feitas e hoje, com os softwares de tratamento e manipulação de imagens digitais, o processo tornou-se ainda mais perfeito e comum. O que chama a atenção, portanto, não é a intervenção na imagem em si, mas a escolha de Laso no sentido de apagar a identidade étnica indígena dos cartões postais de Quito. A intervenção de Laso nas fotografias não é apenas uma questão de técnica fotográfica, mas uma intervenção política, um ato político de negação e segregação de um grupo social inteiro.

Figura 2
– José Domingo Laso Acosta, detalhe de Catedral e Praça da Independência (1911). Cortesia do Arquivo Histórico do Ministério da Cultura do Equador

Na mesma fotografia, contudo, a presença indígena vestida com a farda militar não foi apagada ou adulterada. Observa-se a formação do pelotão militar sob a escadaria à esquerda (Figura 1), composto quase que exclusivamente por indígenas. A formação parece estar marchando em direção à rua. Laso poderia, se quisesse, esperar alguns minutos para o pelotão militar desocupar a região do seu enquadramento fotográfico. Entretanto, como observou Raymundo Faoro (2001FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 2001.: 227) na história do Brasil, “a patente embranquece e nobilita”. Talvez para a Quito de Laso também: o mesmo grupo étnico que, situado no meio da rua, foi apagado da imagem, foi, no entanto, poupado enquanto vestido com uma farda militar.

Figura 1
– José Domingo Laso Acosta, Catedral e Praça da Independência (1911). Cortesia do Arquivo Histórico do Ministério da Cultura do Equador

Na fotografia da Rua Guayaquil (Figura 3), Laso escolhe, cuidadosamente, um enquadramento que exibe a Farmácia Inglesa e a fiação elétrica, símbolo de modernidade tecnológica, construindo a imagem de uma cidade moderna, semelhante às cidades da Europa na época. Mas para completar o conceito da sua imagem, o fotógrafo também esconde os corpos indígenas presentes no cenário. Um deles foi apagado, deixando apenas os rastros de uma intervenção na imagem. O outro foi transformado em uma figura feminina europeia, vestida com chapéu e uma roupa fantasmagoricamente branca, como se quisesse anular qualquer resquício da presença indígena na imagem da capital do Equador.

Figura 3
– José Domingo Laso Acosta, Rua Guayaquil (1911) Cortesia do Arquivo Histórico do Ministério da Cultura do Equador

Uma fotografia é apenas uma versão da realidade. Não é exatamente um registro de realidade. A imagem fotográfica depende não apenas das pré-condições definidas pelo dispositivo tecnológico que a produz – a combinação entre câmera, ótica e suporte fotossensível –, mas sobretudo do fotógrafo que se encontra atrás da câmera (FLUSSER, 2011FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma future filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume, 2011.: 48). Uma fotografia conta muito mais sobre o fotógrafo e sua cultura do que a realidade que ela pretende designar dentro do seu frame fotográfico, dentro do seu enquadramento e da relação seletiva entre foco e distância focal.

A Quito de Laso, como toda narrativa fotográfica, é uma construção de realidade. É a Quito em conformidade com a intencionalidade política do olhar soberano de Laso. Um correlato visual da intencionalidade política da elite equatoriana da época. Uma Quito duplamente encenada: cenário europeu situado na Amazônia equatoriana, mas livre da presença indígena. Livre da presença indígena que era necessária para a realização dos trabalhos semiqualificados, mas ao mesmo tempo indesejada para a imagem moderna da cidade.

Os trajes ingleses do homem solitário em frente à Igreja da Companhia de Jesus (Figura 4) demonstram não só o desejo, mas também o esforço em se fazer parecer uma sociedade europeia. Ao lado do homem vestindo, sob a humidade e as altas temperaturas equatorianas, pesadas roupas inglesas, um fantasma, um espectro da identidade étnica colonizada: um indígena deliberadamente apagado no processo fotográfico. Um indígena que, como todos, devia ocupar apenas seu lugar de trabalhador semiqualificado. Nas imagens que definem a identidade moderna de Quito, construída segundo o olhar-desejo soberano das elites da época, não há espaço político para o índio2 2 Na Argentina aconteceu algo parecido com as populações negras (CAGGIANO, 2012: 69). Apagavam-se os negros não através de borrões, mas colocando-os apenas no pano de fundo das imagens, como trabalhadores insignificantes, transeuntes, figurantes de cenários cujos atores eram os colonizadores. Em ambos os casos, tratam-se de fotografias que colocam os índios e os negros nos lugares de trabalhadores semiqualificados. Uma existência negada também na Argentina, não como inexistência ou ausência, mas como existência silenciada, escondida, ocultada, através de um mecanismo de produção de inadequação e ilegitimidade dos corpos (CAGGIANO, 2012: 86). Há relatos também desse mesmo tipo de olhar soberano na fotografia da época no Peru (POOLE, 1997: 139). .

Cena, cenário e encenação se misturam nessas imagens. Um cenário de modernidade cuidadosamente construído sem a presença indígena, porque, apagada das fotografias, a imagem do índio foi colocada, exatamente, naquela zona da exceção soberana que Agamben (1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 11; 2014: 43) chamou de vida nua: a vida que se encontra no limiar da diferença entre vida política e vida sacrificável, entre bíos e zoé.

3 Entre bíos e zoé: o lugar do índio no campo da vida nua

O interessante da fotografia de Laso, portanto, não é apenas o fato dele intervir no processo fotográfico visando alterar a realidade pretensamente documental das suas imagens. Isso todos os fotógrafos faziam e os contemporâneos também o fazem. O interessante é tentar entender o que essa intervenção significa. O que esses borrões iconográficos nos dizem. Apagar a presença indígena dos cartões postais de Quito não constitui apenas um retoque fotográfico estético, mas uma atitude política que reflete o desejo das elites quitenhas daquele tempo, de colocar os índios em outro lugar. Mas que lugar é esse?

A impresença dos índios na cidade marca uma diferença importante daquilo que seria simplesmente sua ausência. Não estar na cidade é ausência. Estar lá, como os colonizadores, é marcar presença. A situação dos índios é diferente. Eles estão na cidade, mas se encontram negados, cancelados, apagados. Sua imagem não está presente, mas também não está ausente. É a imagem da impresença, o retrato do lugar situado entre a presença e a ausência3 3 Podemos pensar a impresença na fotografia de Laso a partir da noção de “presença imaterial” de Lyotard (2013: 101). Mas se para Lyotard as novas tecnologias na arte tornaram possível presentificar o impresentificável, a técnica fotográfica de Laso permitiu impresentificar o presente. .

Agamben (1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 11; 2014: 43) chama esse lugar de vida nua. É o limiar da distinção aristotélica entre bíos e zoé, entre vida politicamente qualificada e vida animal de sobrevivência. A impresença dos índios nos cartões-postais de Quito sinaliza a presença negada. Eles estão e não estão lá ao mesmo tempo. É o paradigma do campo (AGAMBEN, 1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 132): quem vive no campo, não vive nem na bíos, tampouco na zoé, mas naquela zona de exceção sobre a qual o poder soberano pode escolher, segundo seu arbítrio, se a vida nua será tratada como vida politicamente qualificada ou como vida sacrificável ou, ainda, se essa decisão será indefinidamente diferida para um futuro que nunca chega.

Suas fotografias são imagens da exceção soberana: o poder de segregar os grupos que merecem aparecer nos cartões postais da cidade e os que deles devem ser excluídos. Uma forma de olhar que separa os grupos politicamente qualificados e os desqualificados, para representar as formas de ocupação dos espaços políticos da cidade. Imagens não simplesmente “higienizadas” no sentido de negar a presença de grupos sociais indesejados, mas cartões-postais da cidade que colocam os índios em campos de concentração simbólicos, dentro dos quais a vida já não é mais nem uma vida humana qualificada, tampouco uma vida animal de sobrevivência, mas uma vida que se encontra exatamente em algum lugar entre bíos e zoé.

Os índios, na série fotográfica de Laso, não são humanos dignos de marcar presença política nos espaços urbanos da cidade. Mas também não são animais ou bens objetos de propriedade. São seres situados exatamente no limiar entre humanos e animais. Seres situados no palimpsesto, nos rastros e marcas de signos apagados ou escritos por cima. Indivíduos ocupando, na imagem de Quito, o lugar equivalente a um campo de concentração simbólico: segregados, isolados, presentes e ao mesmo tempo ausentes, reconhecíveis, mas ao mesmo tempo negados. A fotografia do Teatro Sucre (Figura 5) apresenta as marcas, na região central à esquerda, da presença de um índio apagado. Os animais e as posses, contudo, encontram-se presentes. Como um palimpsesto, Laso reescreve a história imagética de Quito colocando os índios no limiar entre bíos e zoé.

Figura 5
– José Domingo Laso Acosta, Teatro Sucre (1911) Cortesia do Arquivo Histórico do Ministério da Cultura do Equador
Figura 6
– José Domingo Laso Acosta, detalhe de Teatro Sucre (1911) Cortesia do Arquivo Histórico do Ministério da Cultura do Equador

O lugar do índio na série Quito a la vista é o do campo de concentração simbólico no qual os direitos se encontram em estado de exceção: eles existem, mas estão suspensos; ninguém pode assassinar um índio, mas se alguém o fizer, as consequências não serão as mesmas de se assassinar um homem branco. Nesse campo simbólico, os índios são humanos, mas não como os outros; são cidadãos, mas nem tanto; merecem o cuidado do Estado, mas apenas na medida em que os interesses dos colonizadores já estiverem garantidos. A vida nua, para Agamben (1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 11; 2014: 43), não é exatamente a vida animal: é a vida que se encontra em algum lugar entre a vida política e a vida animal. É ali que reside o poder soberano como poder de exceção: o poder de segregar quem será cuidado e quem poderá ser sacrificado em nome, justamente, daquele cuidado.

A fotografia de Laso demonstra, sob uma linguagem pictórica, o processo de segregação entre quem é bem-vindo à encenação e quem não é. Segregação entre quem merece ocupar os espaços políticos da cidade e quem deles deve ser excluído. A arte também veicula estruturas biopolíticas de controle e segregação e a série fotográfica de Laso é um monumento histórico dessa correlação entre arte, política e direito na América Latina.

4 Três chaves de leitura

Podemos organizar os referentes de sentido da série fotográfica de Laso em três dimensões, as quais se encontram profundamente conectadas: a) as políticas públicas de higienização e ornamentação que existiam na época e que a fotografia de Laso incorpora sob a forma de uma estética; b) o imaginário europeu da América Latina como “visão do paraíso”, do exótico e do pitoresco; c) a referência estética aos retratos indigenistas da época, baseados em um tipo de olhar antropológico, colonial, seletivo e descontextualizado dos costumes ameríndios.

  1. a

    Desde o final do Século XIX havia em Quito, como em toda América Latina, a influência de teorias racistas da evolução e do comportamento humano e social: o hispanismo4 4 O hispanismo era uma doutrina que colocava a cultura espanhola e a religião católica como os motores do desenvolvimento e do progresso da nação equatoriana. (FERNÁNDES SALVADOR & COSTALES SAMANIEGO, 2007: 63; CAPELLO, 2003: 60; LASO CHENUT, 2017: 139). . O conceito das políticas públicas da época baseava-se em políticas de planejamento urbano, higienização e ornamentação (KINGMAN, 2006: 301). Havia uma ênfase na modernização da cidade e na estilização dos costumes ameríndios (NAVARRETE, 2017NAVARRETE, José Antonio. Fotografiando en América Latina: ensayos de crítica histórica. Montevideo: CdF Ediciones, 2017.: 111). Na verdade, eliminação dos mesmos. O “apagamento” dos índios, segundo Laso Chenut (2017, p. 124), encontrava-se coerente com as políticas de ornamentação e higienização da cidade de Quito. Esconder os índios era uma forma de apagar também aquilo que afetava a paisagem e empobrecia a cultura quitenha ao olhar europeu. Era uma forma de apagar a miséria, a marginalidade e as desigualdades sociais.

As intervenções e retoques nas fotografias, como os vestidos brancos parisienses desenhados sobre os corpos indígenas, não eram apenas formas de higienização estética da superfície visível da cidade, mas também um retoque fotográfico moral (LASO CHENUT, 2017: 133). Fotografia de tipos ideais, situados entre uma moralidade burguesa e o desejo (LASO CHENUT, 2017: 167). A fotografia de Laso incorpora, na forma de uma estética, essas políticas públicas de higiene e ornamentação da época.

  1. b

    Além das políticas públicas da época, a série de Laso também dialoga com uma referência ideológica muito importante daquele tempo: a “visão do paraíso” (HOLANDA, 2000HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2000.), isto é, a narrativa visual da América Latina como uma terra de aventura, conquistável, repleta de maravilhas, mas também de perigos mortais.

Alexander Von Humboldt foi talvez o fundador de um dos grandes relatos sobre as nações pós-coloniais (PRATT, 1997: 321; LASO CHENUT, 2017: 81). Seus textos desenharam no imaginário europeu uma América Latina virgem e selvagem, misteriosa e pitoresca (HUMBOLDT, 1810HUMBOLDT, Alexander Von. Vues des Cordillères, et monumens des peuples indigènes de l’Amérique. Paris: J. H. Stone, 1810.: XVII). Humboldt foi uma das figuras mais conhecidas da Europa no século XIX. Construiu uma imagem de cientista, aventureiro e desbravador. Seus relatos de viagem às Américas são fantásticos. Traduzidos para quase todas as línguas da Europa, seus relatos descrevem uma terra selvagem, pitoresca, virgem e cheia de perigos. Uma ambivalência entre a imagem judaico-cristã do paraíso intocado de Éden, combinada com perigos mortais restritos aos corajosos e aventureiros.

Esse referente ideológico de Humboldt, contudo, desvia a atenção da Europa apenas para a “visão do paraíso”. As relações coloniais ficaram fora de cena. Como se a América pudesse ser um projeto expansionista da Europa (PRATT, 1997: 331, LASO CHENUT, 2017: 83). A escravidão, as desigualdades e a violência colonial não faziam parte dessa narrativa. E a fotografia da época parecia seguir exatamente o mesmo caminho. Uma fotografia que apenas confirmava, como um correlato visual, a narrativa do exótico, fantástico, paradisíaco e pitoresco da América Latina.

Laso também participou desse tipo de narrativa. Paralelamente à série Quito a la vista, vendia seus cartões postais com retratos de índios reproduzindo o conceito de Humboldt para turistas europeus e norte-americanos (LASO CHENUT, 2017: 86). Através da estetização das imagens, ele transformava o relato visual da América virgem em mercadoria para comercialização e consumo no exterior.

Na série Quito a la vista, o fotógrafo apagou os índios para olhar apenas o cenário, mas nas fotografias dos índios ele apagou o cenário para olhar apenas o exótico, o pitoresco e o selvagem dos traços ameríndios. Essa correlação entre a série Quito a la vista e o restante da produção fotográfica de José Domingo Laso Acosta demonstra o lugar do índio na “vida nua” (AGAMBEN, 1995AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 1995.: 132), a vida no limiar entre bíos e zoé. Excluído tanto da cidade, quanto da floresta, o lugar para sua imagem é o dos estúdios fotográficos, com cenários controlados, esteticamente artificiais e historicamente descontextualizados.

  1. c

    Os retratos indígenas da época eram construídos na forma de retratos romantizados, descontextualizados e realizados em cenários artificialmente controlados (CHIRIBOGA & CAPARRINI, 1994CHIRIBOGA, Lucía; CAPARRINI, Silvana. Identidades desnudas: Ecuador, 1860-1920. La temprana fotografía del indio de los Andes. Quito: ILDIS, Aby-Yala e Taller Visual, 1994.: 19). Retratos construídos em estúdios fotográficos burgueses, que desconectavam a imagem dos índios dos seus lugares históricos e da sua cultura, transformando-os em objetos exóticos de consumo5 5 Segundo pesquisa de Fitzel (1994: 28), as imagens indígenas que circulavam na Europa daquele tempo comunicavam apenas três formas de experiência visual do índio americano: o índio como burro de carga, como pagão exótico ou como subversivo. No Brasil há um correlato com a imagem do negro como força animal (escravo), incapaz (sem oportunidades) ou perigoso (o capoeira) (BALABAN, 2015: 419). .

Figura 7
– Pedro José Vagas, Índio de Otavalo (1870) Cortesia do Leibniz-Institut für Länderkunde, Leipzig.

No campo da pintura, Camilo Egas e Joaquín Pinto foram duas importantes referências visuais da construção e organização da estética equatoriana indigenista da época (PÉREZ, 2006: 157). Já no campo específico da fotografia, Pedro José Vargas e Benjamín Rivadeneira foram as principais referências. Rivadeneira foi um importante fotógrafo equatoriano do início do século XX, autor do livro El Ecuador em Chicago (Rivadeneira, 1892), que influenciou toda a estética da fotografia indigenista da época e uma das mais importantes referências visuais de Laso (2017: 72).

Há nas fotografias dos índios da américa latina uma oposição implícita entre natureza e cultura, ou civilização e barbárie. Oposições entre superioridade cultural hispânica e natureza selvagem dos ameríndios. As imagens indígenas parecem tematizar a diferença entre racionalização e disciplina, de um lado, e selvageria e barbárie, do outro (LASO CHENUT, 2017: 25).

Os retratos de família (Figura 8) eram feitos com poses formais e indicavam a hierarquia e costumes morais das famílias (pais sentados, filhos de pé etc.). A organização também: todos olhando para a câmera, ninguém escondido atrás de ninguém. Nenhum gesto improvisado, pose previamente estudada, combinada e ensaiada. A essência de uma ordem patriarcal, com a imagem dominante do pai, acompanhado pela mãe com gestos de ternura e rodeado pelos filhos e netos, sobre os quais repousa o legado familiar (PONCE, 2013PONCE, Betty Salazar. Benjamín Rivadeneira: El fotógrafo de la ciudad. La representación de la sociedad quiteña a finales del siglo XIX a través de la fotografía. Quito: Pontifícia Universidad Católica del Ecuador, 2013.: 46). Nas fotografias dos índios, todavia, ressaltava-se justamente o exótico: a desordem, a falta de hierarquia, uns de perfil, outros de frente, uns olhando, outros não.

Figura 8
– Benjamín Rivadeneira, El General Eloy Alfaro con su família, Quito (1910) Cortesia do Archivo Audiovisual del Ministerio de Cultura y Património del Ecuador.

Nos retratos de família ocidentais, os corpos são organizados na cena fotográfica de acordo com sua altura, de modo a produzir um equilíbrio na imagem. Todos os rostos devem estar claramente expostos, para permitir a identificação. Os personagens do centro são os mais importantes (pais, avós), a partir dos quais são organizados os demais membros da família (BOURDIEU, 1990BOURDIEU, Pierre. Photography: A Middle-brow Art. Tradução de Shaun Whiteside. Cambridge: Polity Press, 1990.: 22). Para os índios, contudo, a lógica é outra: a fotografia precisa explorar a desordem, o paganismo, a irracionalidade e o exótico (Figura 9).

Figura 9
– Fotógrafo desconhecido, Una comida familiar, Pichincha, ca. (1900)

Mirada colonial: o olhar, construído e comercializado por artistas, de uma versão exótica de si mesmos, inspirada nos relatos fantásticos dos viajantes do século XIX para os europeus (CHIRIBOGA & CAPARRINI, 1994CHIRIBOGA, Lucía; CAPARRINI, Silvana. Identidades desnudas: Ecuador, 1860-1920. La temprana fotografía del indio de los Andes. Quito: ILDIS, Aby-Yala e Taller Visual, 1994.: 19). Essas fotografias parecem possuir uma intenção documental, mas na verdade são cenas simbólicas. Nos retratos de famílias ocidentais, constrói-se um cenário atrás de um palco sobre o qual os atores narram uma vida cotidiana semelhante à vida na Europa: teatralização de uma vida colonizada. Por outro lado, nos retratos indigenistas retira-se o cenário para descontextualizar a cultura ameríndia e ressaltar o exótico, a desordem e a irracionalidade: o caráter selvagem da figura indígena.

Na fotografia do barrendero de Laso (Figura 10), há uma aparente dignidade na relação entre a pose e o enquadramento fotográfico. A posição da câmera, montada na altura do peito do índio varredor de rua produz o efeito visual de colocar o olhar do observador na posição de um olhar infantil, como o de uma criança a contemplar a autoridade de um adulto. O índio varredor, desse modo, situa seu olhar um pouco de cima para baixo, denotando dignidade, equilíbrio e confiança. Mas por outro lado, o índio se encontra aprisionado em um cenário artificial, que opera a desconexão entre a imagem indígena e sua cultura, suas raízes e suas tradições.

Figura 10
– José Domingo Laso, Costumbres de índios: Barrendero, Quito (1900) Cortesia do Archivo Audiovisual del Ministerio de Cultura y Património del Ecuador.

A vassoura e as roupas são os únicos objetos permitidos nesse enquadramento fotográfico, que sinalizam alguns poucos índices da cultura ameríndia. A história, cultura, tradições, as relações entre esses objetos e a cosmologia ameríndia, são absolutamente silenciados nesses retratos. No lugar do cenário real que permitiria entender a relação entre o índio e seu modo de vida, a fotografia utiliza um cenário artificial: um tecido de linho branco, simulando uma atmosfera etérea, iluminada e ventilada, que conecta a imagem do índio selvagem ao ambiente iluminista do olhar soberano europeu.

Profundamente conectadas entre si, a prática de retratos indígenas descontextualizados reforçava a visão do paraíso construída pelas narrativas fantásticas dos exploradores europeus. Por outro lado, as políticas higienistas da época, combinadas com a ideologia hispanista da superioridade cultural e espiritual do colonizador reforçavam a necessidade de apagar a imagem do índio do cenário da cidade. Uma tensão dialética entre cidade sem índios e índios sem cidade.

Como Adões e Evas expulsos do paraíso, o olhar soberano da fotografia de Laso apaga os índios do cenário da cidade, mas também lhes nega o cenário da floresta. O campo a eles permitido é apenas o da vida nua: cenários do estúdio fotográfico, fechado, descontextualizado e controlado por uma estética burguesa que os aprisiona. A imagem indígena confinada em estúdios fotográficos burgueses, sem floresta, sem cidade, sem lugar e sem história.

5 Considerações finais

CHIRIBOGA E CAPARRINI (1994: 17-18) resgataram escritos originais de Laso e seu editor, Roberto Cruz, sobre Quito a la vista. Publicados originalmente em 1911, eles declaram a intenção de fazer justiça à Quito, por meio das paisagens urbanas sem índios:

Queremos llamar la atención de las personas imparciales hacia el cuidado especial que hemos puesto en ofrecerles una colección de vistas, que se halle exenta del principal de los defectos de que, generalmente adolecen y han adolecido todas o casi todas las fotografías de la capital, que han sido tomadas por los turistas extranjeros y que han circulado en el exterior.

Pocos, muy pocos se han preocupado de seleccionar el objetivo de aquellas vistas, de manera que nos han presentado casi como un país salvaje o conquistable; pues sea que se hubiese tratado de exhibir edificios, sea que hubiesen elegido las costumbres populares, paisajes, etc., en sus trabajos aparece como dominante, por no decir exclusivo, el elemento indígena, afeándolo todo y dando pobrísima idea de nuestra población y de nuestra cultura.

Outra citação de um texto de Laso sobre sua série fotográfica pode ser encontrada em Navarrete (2017NAVARRETE, José Antonio. Fotografiando en América Latina: ensayos de crítica histórica. Montevideo: CdF Ediciones, 2017.: 177):

Nos ha parecido que haríamos una obra reivindicadora, una obra de perfecto patriotismo al demostrar, gráficamente, que la capital de Ecuador, tanto por su población como por su aspecto exterior, en nada desmerece, si se la compara con las ciudades de nuestro continente.

Laso queria construir uma imagem de Quito moderna, burguesa, civilizada. Uma cidade que não deixava nada a desejar para qualquer outra cidade da Europa. Realizou um ato de resistência à construção da imagem de Quito como um lugar exótico, selvagem e pitoresco. Ao apagar a presença indígena dos espaços públicos urbanos, Laso acreditava estar fazendo justiça à imagem da cidade. Acreditava estar corrigindo o erro, cometido pelos turistas europeus, de fotografar e fazer circular pela Europa uma imagem distorcida de Quito. Os turistas buscavam apenas o exótico, o selvagem e a estilização da cultura ameríndia. Quando esses turistas voltavam para seus países de origem, faziam circular fotografias de uma Quito que não correspondia ao imaginário e desejo das elites quitenhas.

Laso queria afirmar a soberania cultural e política do Equador. Mas ao sacrificar justamente a identidade ameríndia, acabou por reconhecer, paradoxalmente, a soberania cultural e política da Europa. Ao invés de construir uma imagem da cidade revelando a possível riqueza do diálogo entre a cultura europeia e a ameríndia, a supressão da presença indígena reforçou, paradoxalmente, a relação de dependência e colonialidade do hispanismo da época. Transformou os índios em fantasmas, flutuando entre ruas reais e imaginárias. A imagem do desejo em sua forma consumada. Entretanto, apagados, seus espectros falaram mais alto. Justamente por estarem borrados, eles apareceram mais. Como observou Didi-Huberman (2013DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e do tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.: 136), o que sobrevive em uma cultura é aquilo que mais foi nela reprimido.

A fotografia é uma arte que, como a pintura, não tem a ver com verdade ou com representação do real. Tem a ver com formas de expressão, linguagem e escolhas altamente seletivas sobre os elementos que comporão o enquadramento fotográfico e os que dele foram excluídos (SIMIONI, 2018SIMIONI, Rafael Lazzarotto. “A fotografia contemporânea em uma perspectiva decolonizadora”. Err01: Revista de Fotografia, vol. 1, 2018. Disponível em: <http://www.err01.com.br/index.php/2018/03/15/editorial-a-fotografia-contemporanea-em-uma-perspectiva-descolonizadora/>. Acesso em: 01 mai. 2019.
http://www.err01.com.br/index.php/2018/0...
: 12). Todo enquadramento fotográfico é uma atitude política, uma decisão entre fotografar isso ou outra coisa, de um jeito ou de outro, estabelecendo relações entre alguns elementos e não entre outros. Quer se trate de um ato consciente ou não, cada clique fotográfico não capta apenas um instante da realidade do mundo, mas constrói uma forma de sentido seletiva a respeito daquele instante da realidade.

A fotografia de José Domingo Laso Acosta fala da violência seletiva do olhar soberano. Olhar de exceção que desconstrói a relação entre cena e cenário e subverte o direito à ocupação dos lugares no espaço político e histórico da nossa existência. A fotografia de Laso revela o processo de desterritorialização dos índios. A transformação da imagem do índio em objeto de desejo, sem cenário, sem contexto e sem história. Imagem à disposição do desejo do seu possuidor.

Como rastros de vidas apagadas dos espaços de convivência política da cidade, os borrões somos nós.

  • 1
    Na época da fotografia analógica, as técnicas de intervenção nas imagens consistiam em intervenções diretas na placa fotográfica (no negativo original), como é o caso da fotografia da Iglesia de la Compañía de Jesus (Figura 4); ou intervenções sobre os clichês de vidro de impressão por fototipia. No primeiro caso, a intervenção era permanente. Todas as cópias decorrentes da impressão do negativo original reproduziriam a imagem retocada. No segundo caso, a imagem original, registrada no negativo, permanece inalterada e o retoque é realizado apenas na fase de impressão das imagens, o que possibilitaria futuras impressões com ou sem fantasmas.
  • 2
    Na Argentina aconteceu algo parecido com as populações negras (CAGGIANO, 2012CAGGIANO, Sergio. El sentido común visual: disputas en torno a género, “raza” y clase en imágenes de circulación pública. Buenos Aires: Niño y Dávila, 2012.: 69). Apagavam-se os negros não através de borrões, mas colocando-os apenas no pano de fundo das imagens, como trabalhadores insignificantes, transeuntes, figurantes de cenários cujos atores eram os colonizadores. Em ambos os casos, tratam-se de fotografias que colocam os índios e os negros nos lugares de trabalhadores semiqualificados. Uma existência negada também na Argentina, não como inexistência ou ausência, mas como existência silenciada, escondida, ocultada, através de um mecanismo de produção de inadequação e ilegitimidade dos corpos (CAGGIANO, 2012CAGGIANO, Sergio. El sentido común visual: disputas en torno a género, “raza” y clase en imágenes de circulación pública. Buenos Aires: Niño y Dávila, 2012.: 86). Há relatos também desse mesmo tipo de olhar soberano na fotografia da época no Peru (POOLE, 1997POOLE, Deborah. Vision, Race, and Modernity: a visual economy of the Andean image world. Princeton: Princeton University Press, 1997.: 139).
  • 3
    Podemos pensar a impresença na fotografia de Laso a partir da noção de “presença imaterial” de Lyotard (2013LYOTARD, Jean-François. Que peindre?/What to paint? Adami, Arakawa, Buren. Tradução para o inglês de Antony Hudek, Vlad Ionescu e Peter W. Milne. Leuven: Leuven University Press, 2013.: 101). Mas se para Lyotard as novas tecnologias na arte tornaram possível presentificar o impresentificável, a técnica fotográfica de Laso permitiu impresentificar o presente.
  • 4
    O hispanismo era uma doutrina que colocava a cultura espanhola e a religião católica como os motores do desenvolvimento e do progresso da nação equatoriana. (FERNÁNDES SALVADOR & COSTALES SAMANIEGO, 2007: 63; CAPELLO, 2003CAPELLO, Ernesto. “Hispanismo casero: la invención del Quito hispano”. Procesos: Revista Ecuatoriana de Historia, n. 20, 2003, pp. 55-77.: 60; LASO CHENUT, 2017: 139).
  • 5
    Segundo pesquisa de Fitzel (1994: 28), as imagens indígenas que circulavam na Europa daquele tempo comunicavam apenas três formas de experiência visual do índio americano: o índio como burro de carga, como pagão exótico ou como subversivo. No Brasil há um correlato com a imagem do negro como força animal (escravo), incapaz (sem oportunidades) ou perigoso (o capoeira) (BALABAN, 2015BALABAN, Marcelo. “Transição de cor: raça e abolição nas estampas de negros de Angelo Agostini na Revista Illustrada”. Topoi, Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, 2015, pp. 418-441.: 419).

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    » http://www.err01.com.br/index.php/2018/03/15/editorial-a-fotografia-contemporanea-em-uma-perspectiva-descolonizadora/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2020
  • Aceito
    11 Jan 2021
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