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O trabalho dos enfermeiros na Estratégia Saúde da Família: possibilidades para operar necessidades de saúde

RESUMO

Objetivos:

identificar e analisar, no trabalho do enfermeiro na Estratégia Saúde da Família, possibilidades para o reconhecimento de necessidades de saúde.

Métodos:

estudo qualitativo, com entrevistas e observação do trabalho de enfermeiros no interior paulista. O material empírico foi submetido à análise de conteúdo temática e interpretado à luz do processo de trabalho em saúde.

Resultados:

emergiram dois temas: Possibilidades aproveitadas e Possibilidades negligenciadas para reconhecer necessidades de saúde. A observação cuidadosa, o acolhimento, a atenção, a escuta, o vínculo e o diálogo desenvolvidos pelos enfermeiros, no trabalho vivo em ato com os usuários, afloraram as possibilidades, que aproveitadas, foram evidenciadas em atendimento na demanda espontânea, consulta agendada, exame ginecológico e atividades grupais.

Considerações Finais:

os enfermeiros são capazes de reconhecer necessidades de saúde, o que pode ampliar sua prática clínica e a interprofissionalidade na Saúde da Família.

Descritores:
Estratégia Saúde da Família; Atenção Primária à Saúde; Trabalho; Enfermeiros; Determinação de Necessidades de Cuidados de Saúde

ABSTRACT

Objectives:

to identify and analyze possibilities for recognizing health needs in the nurses’ work at Family Health Strategy.

Methods:

a qualitative study with interviews and observation of the nurses’ work in the countryside of São Paulo. The empirical material was subjected to thematic content analysis and interpreted in the light of the health work process.

Results:

two themes emerged: Possibilities utilized and Possibilities neglected to recognize health needs. Careful observation, welcoming, attention, listening, bonding and dialogue developed by nurses, in live work in action with users, touched on the possibilities, which, taken advantage of, were evidenced in care in spontaneous demand, scheduled consultation, examination gynecological and group activities.

Final Considerations:

nurses are able to recognize health needs, which can expand their clinical practice and interprofessionality in Family Health.

Descriptors:
Family Health Strategy; Primary Health Care; Work; Nurses; Needs Assessment

RESUMEN

Objetivos:

identificar y analizar, en el trabajo de las enfermeras en la Estrategia de Salud Familiar, las posibilidades para el reconocimiento de las necesidades de salud.

Métodos:

estudio cualitativo, con entrevistas y observación del trabajo de enfermeras en el interior de São Paulo. El material empírico fue sometido a análisis de contenido temático e interpretado a la luz del proceso de trabajo de salud.

Resultados:

surgieron dos temas: Posibilidades utilizadas y Posibilidades desatendidas para reconocer las necesidades de salud. La observación cuidadosa, la recepción, la atención, la escucha, el vínculo y el diálogo desarrollados por las enfermeras, en el trabajo en vivo en acción con los usuarios, tocaron las posibilidades que, aprovechadas, se evidenciaron en la atención en la demanda espontánea, consulta programada, examen actividades ginecológicas y grupales.

Consideraciones finales:

las enfermeras pueden reconocer las necesidades de salud, lo que puede ampliar su práctica clínica e interprofesionalidad en salud familiar.

Descriptores:
Estrategia de Salud Familiar; Atención Primaria de Salud; Trabajo; Enfermeros; Evaluación de Necesidades

INTRODUÇÃO

A Estratégia Saúde da Família (ESF) permite produzir cuidados diferenciados para atender não apenas demandas de saúde, mas, fundamentalmente, necessidades dos usuários da Atenção Básica (AB) no Brasil. As práticas de saúde executadas pelas equipes de ESF nos territórios adscritos estão muito próximas do contexto de vida das pessoas(11 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [2019 Aug 19]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
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), em especial, dos determinantes sociais, tomados como condições de distintas naturezas que interferem em seu modo de ser, viver e adoecer(22 Tong ST, Liaw WR, Kashiri PL, Pecsok J, Rozman J, Bazemore AW, et al. Clinician experiences with screening for social needs in primary care. JABFM. 2018;31(3):351-63. doi: 10.3122/jabfm.2018.03.170419
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).

Essa aproximação pode facilitar o entendimento dos trabalhadores sobre a conformação das necessidades de saúde, que se referem a ter boas condições de vida; à garantia de acesso às tecnologias que melhorem e prolonguem a vida; ao vínculo com profissional ou equipe de saúde; e à autonomia e ao autocuidado na escolha do modo de conduzir a vida(33 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPSC/IMS/UERJ/EDUCS; 2006 [2019 Aug 29]. p. 1-8. Available from: https://pt.scribd.com/document/379389202/1-UMA-TAXONOMIA-OPERACIONAL-DE-NECESSIDADES-DE-SAU-DE-Cecilio-Matsumoto-2006
https://pt.scribd.com/document/379389202...
). Ao mesmo tempo, pode qualificar a relação trabalhador-usuário e favorecer a produção de cuidados de saúde mais assertivos(22 Tong ST, Liaw WR, Kashiri PL, Pecsok J, Rozman J, Bazemore AW, et al. Clinician experiences with screening for social needs in primary care. JABFM. 2018;31(3):351-63. doi: 10.3122/jabfm.2018.03.170419
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).

Muitas vezes, esses aspectos aparecem imbricados sob a forma de uma demanda pontual, que se encaixa à oferta de ações e serviços disponibilizada pelas unidades de saúde que, orientada pelo atual modelo de atenção, se traduz em atendimento de uma queixa específica. Essa pode travestir uma necessidade mais complexa, envolvendo diversas questões para além do funcionamento biológico da pessoa, que podem ser percebidas e compreendidas pelo profissional com uma visão mais ampliada do processo saúde-doença(44 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2009 [2019 Aug 22]. Available from: https://cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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-55 Oliveira MAC, Silva TMR. Health needs assessment: a requirement for qualifying health care. Rev Bras Enferm. 2012;65(2):203. doi: 10.1590/S0034-71672012000200001.
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).

A concepção de demandas e necessidades pode ser representada pela imagem de um iceberg, na qual a parte imersa corresponde a uma demanda pontual e a parte submersa corresponde às necessidades de saúde. Nem sempre uma demanda carrega ou esconde uma necessidade que precisa de atenção ou intervenção estritamente clínica. Quando isso acontece, as necessidades podem não ser reconhecidas ou identificadas na demanda expressa pelo usuário.

Dessa forma, associa-se a importância do reconhecimento das necessidades às diretrizes do cuidado centrado na pessoa, da longitudinalidade e da integralidade da atenção propostas pela ESF e AB(11 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [2019 Aug 19]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
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). Essa é uma das razões pelas quais reconhecer as necessidades por meio das demandas parece ser um dos caminhos para reordenar a lógica de produção de cuidados e de organização de serviços, ainda sob a perspectiva hegemônica, que mantém a centralidade na doença(66 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface. 2014;18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
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).

Nesse sentido, entende-se que os caminhos para reconhecer as necessidades podem ser iniciados no trabalho por meio de conhecimentos, atitudes e habilidades desenvolvidas na relação profissional-usuário, quando esse apresenta sua demanda àquele. Nesse encontro, o trabalhador exerce seu autogoverno e oferece os cuidados influenciado pelo modelo de atenção, pela organização do trabalho e pela sua autonomia profissional(77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
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).

Tomando as concepções da micropolítica do trabalho em saúde(77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
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), que se fundamentam na discussão do processo de trabalho em saúde(88 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In: Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história [Internet]. Porto Alegre: Rede Unida; 2017 [2019 Aug 14]. p. 298-374. Available from: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/colecao-classicos-da-saude-coletiva/SaudeSociedadeeHistoria.pdf
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), considera-se que as possibilidades no trabalho para reconhecer as necessidades tem uma sustentação teórica próxima à concepção de dobra(66 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface. 2014;18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
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-77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
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). Essa expressão se caracteriza por um movimento nas relações interpessoais, no momento da realização do trabalho vivo, ou seja, do trabalho em ato onde há expressão autônoma e criativa do trabalhador na produção das ações de cuidado. Esse movimento redesenha, em potência, um caminho e abre novas possibilidades para produzir algo diferente do habitual(66 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface. 2014;18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
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-77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
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).

Segundo o referencial teórico do processo de trabalho em saúde(88 Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processo de trabalho e necessidades. In: Ayres JR, Santos L, organizadores. Saúde, sociedade e história [Internet]. Porto Alegre: Rede Unida; 2017 [2019 Aug 14]. p. 298-374. Available from: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/colecao-classicos-da-saude-coletiva/SaudeSociedadeeHistoria.pdf
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), o homem (genericamente), portador de necessidade, chega aos estabelecimentos de saúde e apresenta essa necessidade, que pode ou não ser atendida pela ação dos profissionais das equipes. Autores(44 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2009 [2019 Aug 22]. Available from: https://cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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) afirmam que o homem pode apresentar necessidades, como, também, demandas de saúde, que podem determinar a produção de cuidados guiada por uma certa finalidade posta para o trabalho.

Uma forma de reconhecer as necessidades de saúde é por meio da escuta ativa(99 Barratt J, Thomas N. Nurse practitioner consultations in primary health care: patient, carer, and nurse practitioner qualitative interpretations of communication processes. Primary Health Care Res Dev. 2019;20(e42):1-9. doi: 10.1017/S1463423618000798
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), escuta qualificada(44 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2009 [2019 Aug 22]. Available from: https://cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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) ou da ausculta(1010 Moraes PA, Bertolozzi MR, Hino P. Perceptions of primary health care needs according to users of a health center. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(1):19-24. doi: 10.1590/S0080-62342011000100003
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) dos usuários dos serviços. Essas tecnologias possibilitam ao trabalhador perceber o usuário de maneira ampla nas distintas dimensões do processo saúde-doença(44 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2009 [2019 Aug 22]. Available from: https://cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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,99 Barratt J, Thomas N. Nurse practitioner consultations in primary health care: patient, carer, and nurse practitioner qualitative interpretations of communication processes. Primary Health Care Res Dev. 2019;20(e42):1-9. doi: 10.1017/S1463423618000798
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-1010 Moraes PA, Bertolozzi MR, Hino P. Perceptions of primary health care needs according to users of a health center. Rev Esc Enferm USP. 2011;45(1):19-24. doi: 10.1590/S0080-62342011000100003
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). Essas ações não são mecânicas ou padronizadas em protocolos, dependem da disponibilidade e da disposição do trabalhador em se colocar de forma diferenciada no trabalho vivo em ato. Entende-se, portanto, que os trabalhadores que se dispuserem a escutar ou “auscultar” o usuário, no encontro entre eles, poderão identificar, na demanda, algo a mais que merece atenção, decodificando a necessidade escondida.

Nesse movimento, o enfermeiro é reconhecido como um dos trabalhadores com potencial de desenvolver competência para promover, em conjunto com a equipe, movimentos de intervenção e reflexão, a fim de alcançar a integralidade da atenção no sentido de abordar o usuário holisticamente e identificar necessidades de saúde. Além disso, o enfermeiro pode ser capaz de planejar, executar, integrar e otimizar diferentes cuidados e intervir em determinantes sociais do processo saúde-doença no contexto da ESF(1111 Backes DS, Backes MS, Erdmann AL, Büscher A. [The role of the nurse in the Brazilian Unified Health System: from community health to the family health strategy]. Ciênc Saúde Coletiva. 2012;17(1):223-30. doi: 10.1590/S1413-81232012000100024 Portuguese.
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-1212 Forte ECN, Pires DEP, Scherer MDA, Soratto J. Muda o modelo assistencial, muda o trabalho da enfermeira na Atenção Básica? Tempus [Internet]. 2018 [2019 Aug 14];11(2):53-68. Available from: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/2338/1795
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).

OBJETIVOS

Identificar e analisar, no trabalho do enfermeiro na ESF, possibilidades para o reconhecimento de necessidades de saúde dos usuários e/ou suas famílias.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A investigação respeitou os preceitos éticos estabelecidos pela Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa segundo Parecer nº 2.493.133.

Na apresentação dos resultados, os enfermeiros entrevistados foram identificados pela letra E, seguida pelo número que indicou a ordem crescente de realização da entrevista (E2 a E32), sendo E1 a entrevista piloto. Os enfermeiros observados foram designados como EO1, 2 e 3, e as observações feitas nas unidades de saúde da família (USFs) foram designadas como OBS da USF1, 2 e 3.

Tipo de estudo

Estudo qualitativo, norteado pelo Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research(1313 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health C. 2007;19(6):349-57. doi: 10.1093/intqhc/mzm042
https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042...
), com suporte teórico no processo de trabalho em saúde(77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
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).

Cenário do estudo

A pesquisa foi realizada em USFs do município de Ribeirão Preto, noroeste do estado de São Paulo, Brasil.

Fonte de dados

As 20 USFs existentes são constituídas por 46 equipes distribuídas pelos cinco distritos de saúde do município. Cada equipe possui um enfermeiro, portanto, 46 enfermeiros atuam na ESF do município nessa modalidade assistencial. Dos 46 enfermeiros, 39 estavam presentes nas USFs durante o período estabelecido para coleta de dados, dentre os quais, 31 aceitaram participar.

Coleta e organização de dados

Uma das autoras da investigação coletou os dados por meio de entrevista semiestruturada e observação participante do trabalho. Inicialmente, 31 enfermeiros foram entrevistados em seu local de trabalho, conforme sua disponibilidade, respondendo questões de roteiro de entrevista sobre demandas e necessidades dos usuários e sobre o processo de trabalho no contexto da ESF. O tempo das entrevistas variou de 28 minutos a 01 hora e 25 minutos, realizadas de abril a outubro de 2017.

Para realizar as observações, identificaram-se, nas entrevistas, aspectos do trabalho relacionados a boas práticas na ESF, com vistas à integralidade da atenção. Em outras palavras, foram observados enfermeiros que compartilharam, nas entrevistas, falas que remeteram ao desempenho desenvolvido sob a perspectiva da integralidade da atenção, organizada conforme a identificação das necessidades de saúde dos usuários(44 Pinheiro R, Mattos RA. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPESC/IMS/UERJ/ABRASCO; 2009 [2019 Aug 22]. Available from: https://cepesc.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Livro-completo.pdf
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). Dessa forma, sete enfermeiros em três USFs distintas foram selecionados e observados em sua rotina de trabalho durante uma semana, mediante roteiro de observação com aspectos voltados à organização, dinâmica e propósito da ação/situação observada, agentes e comunicação entre eles.

Foram totalizadas 99 horas de observação, 33 horas em média em cada uma das três USFs. As observações foram realizadas entre março e abril de 2018; o tempo das observações variou de cinco minutos a 02 horas e 15 minutos; e as ações-reações dos envolvidos e impressões do observador foram anotadas em diário de campo.

Análise de dados

As entrevistas foram áudio gravadas e o conteúdo foi transcrito na íntegra, validado pelos entrevistados, submetido à análise de conteúdo na vertente temática(1414 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.). Na primeira etapa de análise, buscou-se a aproximação ao conteúdo das entrevistas, com leitura flutuante do material. Em seguida, constituiu-se o corpus, ao responder critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência(1414 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.) e, posterior, definição das unidades de contexto e de sentido. Esses elementos foram corrigidos, discutidos e validados pelas autoras, identificando duas categorias temáticas: Possibilidades aproveitadas e Possibilidades negligenciadas, no trabalho do enfermeiro, para reconhecer as necessidades de saúde.

O conjunto das entrevistas compôs o corpus principal do estudo, que foi confrontado pelo das observações (corpus secundário) por meio da técnica da triangulação de dados(1515 Driessnack M, Sousa VD, Mendes IAC. An overview of research designs relevant to nursing: part 3: mixed and Multiple methods. Rev Latino-Am Enfermagem. 2007;15(5):1046-9. doi: 10.1590/S0104-11692007000500025
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). As observações complementaram as entrevistas e permitiram a análise da situação observada naquilo que acontece em ato e na ocorrência de contradições.

RESULTADOS

Possibilidades aproveitadas, no trabalho do enfermeiro, para reconhecer as necessidades de saúde

Nesta primeira categoria temática, os enfermeiros desenvolveram conhecimentos, habilidades e atitudes para avançar no reconhecimento do implícito (necessidades) para além do explícito (demandas), trazido pelo usuário em atendimento de demanda espontânea, consultas agendadas, exame ginecológico e grupos de educação em saúde.

E15 compartilha um encontro, no qual a usuária veio à USF com queixa de atraso menstrual. Durante a conversa, o profissional demonstra disponibilidade para ouvir a jovem usuária e conhecer seu contexto de vida, coletando dados para desenvolver o cuidado em saúde. Essa capacidade, mobilizada no encontro, permitiu que E15 identificasse necessidades, para além da demanda, que mereciam intervenção. Dessa forma, fez orientação sobre infecções sexualmente transmissíveis, uso de preservativo, realização do Papanicolaou, além de reconhecer a importância da ação de outro profissional da equipe, o médico, para prescrever anticoncepcional.

Tinha uma que chegou com uma queixa de atraso menstrual e era uma jovem. A gente começou a conversar, fiz o teste de gravidez, deu negativo, mas aí eu comecei a ver que ela começou a relação sexual já fazia quatro anos, nunca tinha ido no médico, nunca tinha feito Papanicolau, não estava usando nenhum método contraceptivo e o namorado atual tinha acabado de sair da Febem, que ela mal conhecia, fazia dois meses só que ela estava junto. Veio com essa queixa de atraso, mas a gente conseguiu perceber que tinham outras coisas que a gente precisava estar entrando ali. Então, já fiz os pedidos de exame, as sorologias, a gente prescreveu o anticoncepcional, já orientei sobre o preservativo também e já agendei consulta. Ela veio para fazer o teste só, mas a gente conseguiu pegar, fazer o atendimento dela mais global e já agendamos Papanicolau, também. (E15)

E9 refere que o exame de Papanicolaou não se restringe à realização do procedimento técnico, reconhecendo a potencialidade do encontro para identificar necessidades de saúde e levantar aspectos do contexto de vida da usuária. E9 relata ter disponibilidade e interesse para ouvir a história de vida e as subjetividades da usuária que, inicialmente, demonstra surpresa com sua atitude. E9 ainda a orienta quanto à possibilidade de resolução de conflito familiar.

A pessoa vem para colher citologia e aí eu pergunto se tem alguma queixa, faz parte da nossa consulta e a pessoa pergunta: como assim? Ela pensa que tem que ser alguma coisa ginecológica e eu faço a pergunta: em relação à vida, você gostaria de falar alguma coisa que está te incomodando? Essa pergunta abriu para a paciente contar um conflito com a filha, com o companheiro, com o marido da filha. Ela estava no meio de um grande conflito familiar em que ela, percebeu que ela abandonou ela mesma. Ela foi contando, parou assim: Eu acho que eu esqueci quem eu sou, o que eu gosto de fazer. É por isso que eu estou angustiada. Eu quase nem vinha hoje porque eu estava tão mal que não queria nem levantar da cama, mas agora eu estou percebendo que eu esqueci de mim. Eu falei: faz uma carta para você. Fiz uma pequena entrevista de saúde mental. Conversa com a usuária X quem você era há cinco, dez anos. E eu marquei uma semana depois. E ela veio com uma carta com erros de português, muito simples, mas ela conseguiu sentar e conversar com a filha, com o companheiro que vem morar com ela semana que vem. Então, ela precisava de escuta. Num contexto de coleta de citologia, são esses encontros que favorecem a saúde, que é muito especial para mim poder sentir que aquela pessoa está ali inteira, que ela não é um câncer de colo de útero que eu estou preocupada em quantificar. Mas não perder a oportunidade de ser inteira e ela também. (E٩)

E10 relata uma atividade grupal, na qual uma das participantes a procura para compartilhar uma circunstância familiar. E10 orienta a usuária quanto ao atendimento de sua nora na USF. Essa situação evidencia uma possibilidade aproveitada pelo enfermeiro para reconhecer necessidades de saúde de um membro da família que não estava presente no grupo. Essa ação foi operacionalizada mediante a atenção da enfermeira para com a usuária.

Foi um grupo que eu fiz, de Papanicolaou, eu coloquei todos os Papanicolaou de seis meses para cá. De 6٩, vieram 20. E os resultados normais eu entreguei, e os alterados passaram com a doutora. Mas, no dia, a doutora ficou doente e não veio, mas eu tive que resolver todos os problemas. Desse atendimento, uma mulher veio com uma história de que o filho de 15 anos estava namorando, estava tendo relação e eles não estavam utilizando nenhum método. Aí essa menina veio fazer o teste e eu consegui trazer essa menina, porque também tinha uma resistência. No dia que ela veio fazer o teste, veio com a sogra, aí a gente já conseguiu conversar um método para ela. (E10)

Em outro encontro, E20 parece reconhecer outras necessidades, para além da demanda inicial do usuário, avaliando-as como de resolução de outro membro da equipe. E20 busca articular seu conhecimento técnico-científico com o do médico, compartilhando o atendimento do usuário.

Se eu estou em um atendimento e eu vejo que tem alguma queixa, alguma demanda que vai além do que eu possa intervir, eu peço ajuda do médico para avaliar junto comigo, para me ajudar na conduta, entendeu? Muitas vezes, eu faço atendimento compartilhado com o médico ou com outro profissional da equipe. Quando eu vejo que vai além do que eu posso atuar, precisa de uma atuação complementar [...]. Se eu estou fazendo uma consulta, por exemplo, de Teste do Pezinho, aí eu avalio a criança e eu vejo que a puérpera está com alguma queixa, por exemplo, de febre ou de infecção local, mastite, eu oriento a ordenha, os cuidados com a mama, amamentação, mas, às vezes, com a mastite, precisa de antibiótico, então, eu solicito avaliação médica para ele fazer a parte da medicação. (E20)

Uma das observações na USF 2 retrata o encontro entre EO1 e usuária que veio para consulta médica agendada. Na recepção, EO1 fez uma observação cuidadosa do movimento da USF, utilizando-se do vínculo construído com uma usuária e sua família, percebeu um comportamento não usual dessa usuária e a chama para conversar e acolheu-a no consultório.

EO1 cumprimenta usuária na recepção e comenta com a observadora: acho que a dona Fulana não está bem hoje. EO1 verifica no sistema que a usuária tem consulta médica às 8h pede para ela acompanhá-la até o seu consultório. EO1 pergunta: o que está acontecendo, dona Fulana? As pessoas se sentam e a usuária conta o que está acontecendo, começa a chorar e a soluçar. Usuária refere estar em abstinência de um remédio. EO1: eu acho que é toda essa história que a senhora está passando. A senhora está sentindo o quê? Dormência, tontura, falta de ar, angústia? Usuária: dor no peito. A médica mandou um pedido pra psicóloga, mas demora, né? EO1: a senhora tem vontade de se matar? Usuária: de me matar, não, porque eu tenho Deus no coração. Fulano, eu falei pro meu filho que ele precisa ir pra (nome do hospital) tirar aquelas placas. EO1: ele já passou no ortopedista? Usuária: já. Meu filho precisa de ajuda, mas ele tem que querer. E usuária desabafa sobre os problemas com filho que é usuário de álcool e drogas. EO1 escuta atentamente a usuária que enxuga as lágrimas. EO1: a senhora podia ir no CAPS-AD, lá eles cuidam da família também, pois a psicóloga aqui vai demorar. Quando a gente tem um usuário de álcool e drogas dentro de casa, a gente é abusada e fica frágil. Lá, eles ajudam a família e o usuário, é uma porta aberta para cuidar da base. Eles são preparados para isso. A senhora está adoecendo junto com o seu filho. Ele escolheu essa vida e não a senhora. A senhora precisa ir lá, senão a senhora afunda. Para qual remédio a senhora mudou? Usuária: clonazepam. EO1 explica o uso do medicamento [...]. Usuária: fulano, você acha que isso que eu estou sentindo é emocional? EO1 reforça: vai lá no CAPS-AD, lá eles vão ajudar a senhora. EO1 verifica o horário e diz: vamos lá, dona Fulana? Os dois saem do consultório, se despedem e usuária se senta na sala de espera para aguardar a chamada do médico. (OBS da USF 2)

Em outra observação na USF 2, durante a consulta de enfermagem, EO1 realiza auriculoterapia ao mesmo tempo em que demonstra disponibilidade para escutar a história atual da usuária e o motivo da solicitação de um documento médico. No atendimento, a usuária não reconhece esse encontro como um espaço, em potencial, de escuta e de diálogo, definindo-o como um momento onde “se joga conversa fora”.

Usuária entra no consultório, cumprimenta EO1 e bastante à vontade, se acomoda em uma das cadeiras iniciando a conversa sobre sua alimentação. Usuária diz que também veio à unidade para pegar um relatório com o médico. EO1 ouve as dúvidas da usuária e prepara o material para realizar a auriculoterapia. EO1: eu tô sentindo a senhora mais disposta, mais animada. Usuária: eu tô, tô tomando ômega 3 e esse negócio aí que você tá fazendo em mim, tá ajudando também [referindo-se à auriculoterapia]. Usuária conta sobre sua relação com o neto. EO1 executa a auriculoterapia e pergunta: que relatório é esse que a senhora veio pegar? Usuária: é pra levar pra penitenciária X e lá, eles vão ver se o meu filho passa no médico. EO1 e usuária conversam sobre a sentença judicial do filho e da relação dele com o neto e das dificuldades da usuária para cuidar do neto, já que a mãe do menino abandonou a criança. EO1 pergunta como é a alimentação do menino e usuária responde. Usuária diz que o neto é hiperativo e que ela não aguenta ficar correndo atrás dele [...]. EO1: experimenta colocar ele em atividade física, pode ser uma saída. Usuária: mas aonde eu vou? EO1: eu vou ver. Talvez no [nome do parque] ou em algum projeto social. Eu vou ver com o educador físico, depois eu falo pra senhora. Usuária: Deus vai me ajudar a passar essa fase [e conversam mais um pouco sobre alimentação saudável]. Usuária: agora, deixa eu ir lá esperar o médico que já jogamos conversa fora. Tchau, enfermeiro! EO1: tchau, Fulana. (OBS da USF 2)

Possibilidades negligenciadas, no trabalho do enfermeiro, para reconhecer necessidades de saúde

Nesta segunda categoria temática, os depoimentos e as observações revelam possibilidades para o reconhecimento de necessidades de saúde nos encontros entre enfermeiros e usuários, que foram negligenciadas pelos profissionais. Esses tampouco desenvolveram conhecimentos, habilidades e atitudes para avançar na direção da integralidade da atenção, o que indica contradições presentes no trabalho.

E5 alega que a busca por consultas pelos usuários portadores de hipertensão e diabetes é pequena e quando eles agendam, não comparecem às consultas. E5 parece limitar o desenvolvimento de seu trabalho dentro da estrutura física da USF.

Dentro do que a gente chama de consulta-saúde, a procura é muito pequena. É justamente aqueles pacientes que precisariam não só na prevenção de problemas secundários, mas até para prevenir as doenças. Que é na parte de hipertensão, de diabetes, eles não procuram. Eu achei que eu teria uma maior facilidade de penetração, mas eu não consigo. Porque eles marcam e não vêm. Então, isso é muito complicado. (E5)

Nessa mesma direção, E3 parece não reconhecer a potencialidade do encontro com os usuários que faltam em consultas agendadas e que, posteriormente, comparecem na demanda espontânea. E3 aponta que esses usuários exigem atendimento clínico imediato em um determinado dia, mas nem sempre sua demanda é classificada como prioridade no atendimento médico. Essa postura, que se encaixa à padronização do atendimento não agendado, parece não favorecer a escuta dos problemas do usuário, o culpabilizando pela sua condição de saúde e suas escolhas.

Eu acho que a exigência do paciente é incompatível com aquilo que o serviço dá. Ele vem aqui e quer ser atendido no dia. Eu não tenho consulta no dia. Mas, eu entro nos atendimentos dele e ele tem três faltas para trás, mas, naquele dia, ele quer ser atendido e por uma coisa que pela classificação de risco não entra no atendimento do dia. Daí, eu tenho que mais uma vez agendar, e ele perde a consulta de novo. Difícil. (E3)

E25 declara que, em um exame de citologia, é comum usuárias trazerem várias demandas para serem resolvidas. Nessa situação, E25 seleciona aquelas de menor complexidade para serem respondidas naquele momento, agendando a usuária com outro profissional da equipe que avaliará as outras demandas em outros momentos. E25 também parece bloquear atitudes e habilidades que poderiam favorecer a investigação de possíveis necessidades trazidas com as demandas clínicas, para as quais são providenciados cuidados.

A mulher vem para colher a citologia que está atrasada, um exame de mama para a gente fazer e a paciente fala: ah, mas eu estou com dor na perna, dor de estômago, dor de cabeça. Então, a gente tenta ao máximo conseguir resolver esse problema todo do paciente. Mas, a maioria a gente tem que mesmo: olha, então, hoje a gente está aqui para focar nesse tipo de atendimento, não dá para ver tudo. Vamos ver isso e mais uma outra coisa [...]. Ou a gente já deixa até agendado um paciente, mas todos os dias têm pacientes que vêm trazer o filho e aproveitam a consulta: ah, mas aproveitando que eu estou aqui, eu também estou um pouquinho assim. (E25)

A autonomia do usuário em não aderir ao tratamento proposto pela equipe incomoda E24 e dificulta seu trabalho. E24 esclarece que fazer o usuário entender a importância de mudar hábitos é frustrante, pois ele não aceita a proposta indicada pela equipe. E24 parece não se interessar em conhecer o contexto de vida do usuário e estabelecer relações entre as orientações técnicas e as dificuldades/facilidades do usuário em aderir ao tratamento.

Talvez, o que é muito complicado, é você trabalhar com o paciente, tentar fazer com que ele entenda que para melhorar a saúde dele, ele precisa de mudança de hábitos. Isso eu sei que, a longo prazo, às vezes, não vai acontecer. Então, eu acho que isso é uma coisa que frustra, o paciente não aderir ao tratamento. Eu acho que essa é a maior dificuldade. (E24)

Em uma das observações da USF 1, a atitude acolhedora, o diálogo e a escuta de EO2 mostram-se restritos. O encontro de EO2 e a usuária parece ter sido atropelado pelos critérios técnicos de classificação de risco para o atendimento de urgência e emergência e pela organização biomédica do trabalho na USF.

Funcionária entra no consultório e diz para EO2: tem uma moça com sangramento vaginal há três dias e precisa ver o GO urgente. EO2 diz alto: se ela tá sangrando desse jeito ela tem que ir pra Distrital pra atendimento de urgência, porque aqui os pacientes podem esperar. Funcionária insiste: acho que ela não tá bem. EO2 dirige-se à sala de pré-consulta ginecológica e encontra a usuária sentada mexendo no celular. EO2 entra e pergunta em tom de voz alto: o que está acontecendo? [e pega o esfigmomanômetro e o estetoscópio para aferir a pressão arterial da usuária]. Usuária diz que está sangrando há muitos dias e que semana passada esteve na Distrital e o médico passou diclofenaco que cortou o sangramento e que já havia tomado dois comprimidos. EO2 diz alto: o diclofenaco não é para cortar o sangramento. Usuária: mas eu tomei dois e passou. EO2: agora você está sangrando? Usuária: não, agora não. Mas, o médico de lá mandou eu procurar o GO do posto pra fazer exames e passar em consulta [e tenta explicar toda a situação]. EO2 conversa com a usuária em tom ríspido, explicando os sinais de choque e o fluxo de atendimento em casos de urgência e emergência e usuária começa a chorar. EO2 se sensibiliza com a fragilidade emocional da usuária e repete as orientações técnicas que havia feito em tom de voz mais acolhedor. EO2: aqui você pode passar no GO, mas vai demorar, só depois do meio dia. EO2 e funcionária se olham e funcionária balança a cabeça negativamente. EO2 diz: você pode aguardar? Usuária enxuga as lágrimas e responde sim com a cabeça. EO2 sai da sala e vai ao consultório. Depois de uma hora e meia, usuária aparece na porta do consultório, chama a observadora e diz: deu certo, viu? Observadora: o que o doutor falou? Usuária: ele pediu um ultrassom, me deu esse remédio aqui [mostra a receita] e pediu para eu voltar com o exame pra ver o que é. Observadora: ah, que bom. Usuária balança a cabeça positivamente e vai embora da USF. (OBS da USF 2)

DISCUSSÃO

No primeiro conjunto de falas e observações, referentes à primeira categoria temática, são evidenciadas distintas possibilidades aproveitadas pelos enfermeiros para reconhecer necessidades de saúde, para além das demandas inicialmente trazidas. As necessidades se referiram aos aspectos abordados pela Taxonomia das Necessidades de Saúde(33 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPSC/IMS/UERJ/EDUCS; 2006 [2019 Aug 29]. p. 1-8. Available from: https://pt.scribd.com/document/379389202/1-UMA-TAXONOMIA-OPERACIONAL-DE-NECESSIDADES-DE-SAU-DE-Cecilio-Matsumoto-2006
https://pt.scribd.com/document/379389202...
), tendo sido identificadas por habilidades e/ou atitudes proativas relevantes para o acompanhamento de saúde dos usuários(1616 Cowley S, Houston A. Contradictory agendas in health visitor needs assessment: a discussion paper of its use for prioritizing, targeting and promoting health. Primary Health Care Res Dev. 2004;5(3):240-54. doi: 10.1191/1463423604pc209oa
https://doi.org/10.1191/1463423604pc209o...
).

Esse conjunto de ações foi desenvolvido por meio de tecnologias leves, tais como observação cuidadosa, acolhimento, atenção, diálogo, escuta e vínculo. Os enfermeiros assumiram, ainda, a relevância da intervenção de outros profissionais da equipe e de outros serviços da rede de atenção, articulando o cuidado. Todos esses aspectos permitiram o reconhecimento, em ato, das necessidades de saúde dos usuários. Para os usuários, a possibilidade da escuta e do diálogo nas consultas de enfermagem reforça o vínculo, traz confiança e encorajamento para falar sobre suas necessidades de saúde(99 Barratt J, Thomas N. Nurse practitioner consultations in primary health care: patient, carer, and nurse practitioner qualitative interpretations of communication processes. Primary Health Care Res Dev. 2019;20(e42):1-9. doi: 10.1017/S1463423618000798
https://doi.org/10.1017/S146342361800079...
). Dessa forma, a adoção de uma postura aberta na interação social entre enfermeiro-usuário pode redirecionar o modo como os usuários são interpretados quando buscam o serviço de saúde no atual modelo de atenção.

Se o enfermeiro perceber o usuário em seu contexto de vida, poderá captar algo além do que lhe é trazido por uma demanda, identificando necessidades que exigem novos cuidados, abrindo espaço para práticas de saúde diferenciadas(1717 Ilha S, Dias MV, Backes DS, Backes MTS. Professional-patient bond in a team of the family health strategy. Ciênc Cuid Saúde. 2014;13(3):556-62. doi: 10.4025/cienccuidsaude.v13i3.19661
https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v...
). Nos resultados expostos, pode-se identificar um cuidado alternativo, a auriculoterapia, que pode ser agrupado ao conjunto de técnicas de saúde não tradicionais realizadas também em outra USF brasileira(1818 Oliveira AKS, Bezerra IMP, Silva CC, Lima Neto EA, Silva ATMC. Alternative experiences rescuing knowledge for working processes in health. Rev Esc Enferm USP. 2012;46(4):953-9. doi: 10.1590/S0080-62342012000400024
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). No espaço de execução desse cuidado alternativo, estabelece-se uma contradição, pois, ao mesmo tempo em que esse procedimento permeabiliza habilidades e atitudes proativas do enfermeiro, a usuária reproduz a perspectiva biomédica de atenção, “já jogamos conversa fora”.

Esse modelo de atenção, também denominado médico-hegemônico, curativo ou racional, caracteriza-se por um conjunto de interesses que exalta um determinado saber em detrimento de outros conhecimentos técnico-científicos que também podem contribuir para a leitura de necessidades de saúde. Os arranjos hegemônicos são relevantes, sendo eficazes na produção de respostas pontuais aos usuários, mas não são suficientes para acolher demandas e necessidades referentes ao contexto socio familiar e às subjetividades do usuário(1919 Merhy EE, Feuerwerker LC. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Jr H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes [Internet]. Rio de Janeiro: Hexis; 2016 [2019 Aug 31]. Vol. 1, p. 59-72. Available from: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/colecao-micropolitica-do-trabalho-e-o-cuidado-em-saude/politicas-e-cuidados-em-saude-livro-1-avaliacao-compartilhada-do-cuidado-em-saude-surpreendendo-o-instituido-nas-redes
http://historico.redeunida.org.br/editor...
).

O compartilhamento de um atendimento entre membros da equipe parece evidenciar uma interação, uma integração e uma articulação do trabalho que permitem planejar a assistência com mais assertividade e resolver as demandas e necessidades dos usuários(2020 Costa ER, Kolhs M, Frigo J, Busnello G. Tasks performed by professional nurses in family health strategy. Rev Enferm UFPE. 2013;7(9):5421-6. doi: 10.5205/reuol.3529-29105-1-SM. 0709201308
https://doi.org/10.5205/reuol.3529-29105...
-2121 Fernandes HN, Thofehrn MB, Porto AR, Amestoy SC, Jacondino MB, Soares MR. Interpersonal relationships in work of multiprofessional team of family health unit. Rev Pesqui: Cuid Fundam. 2015;7(1):1915-26. doi: 10.9789/2175-5361.2015.v7i1.1915-1926
https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v...
). A coparticipação na produção cuidado e a socialização das diferentes práticas e saberes podem romper com a fragmentação do trabalho e favorecer a interprofissionalidade(2222 Ellery AEL, Pontes RJS, Loiola FA. Common field of expertise of professionals in the Family Health Strategy in Brazil: a scenario construction. Physis. 2013;23(2):415-37. doi: 10.1590/S0103-73312013000200006
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) e a integralidade da atenção.

Nesse sentido, a ESF, por suas especificidades, parece abrir possibilidades para o enfermeiro desenvolver e buscar saberes tecnológicos pertinentes para identificar necessidades e desenvolver um atendimento integral e longitudinal, focado no cuidado à pessoa(11 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [2019 Aug 19]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Entende-se, portanto, que nesse movimento de detectar e aproveitar possibilidades no trabalho para avançar nas demandas em direção às necessidades de saúde, pode-se ampliar a prática clínica do enfermeiro no cuidado ao usuário, providenciar e articular novas ações com a equipe, na perspectiva da construção da prática interprofissional, e, assim, gerenciar o processo de cuidado na AB, com vistas ao acesso e à qualidade da atenção(2323 Felli VEA, Peduzzi M, Leonello VM. Trabalho gerencial em enfermagem. In: Kurcgant P, organizadora. Gerenciamento em enfermagem. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2016. p. 21-32.

24 Pan American Health Organization. Expanding the roles of nurses in primary health care [Internet]. Washington, DC: PAHO; 2018 [2019 Aug 19]. Available from: http://iris.paho.org/xmlui/ bitstream/handle/123456789/34958/9789275120033_eng.pdf?sequence=6&isAllowed=y
http://iris.paho.org/xmlui/ bitstream/ha...
-2525 Peduzzi M, Aguiar C, Lima AMV, Montanari PM, Leonello VM, Oliveira MR. Expansion of the interprofessional clinical practice of Primary Care nurses. Rev Bras Enferm. 2019;72(Suppl 1):121-8. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0759
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

Os enfermeiros parecem reconhecer a importância da prática clínica ampliada, que tem se desenvolvido juntamente com outras práticas no atual modelo de atenção, para responder às necessidades de saúde dos usuários. Porém, sua implementação ainda é um desafio, pois essa ação rompe com a estrita objetividade do trabalho, evidenciando subjetividades em processo (sentimentos, significados, intimidade, desejos, vulnerabilidades), que representam a forma de pensar, agir, ser e estar das pessoas no mundo(2626 Oliveira AE, Trindade E. Notes about the subjectivity and the subjective processes in the modern world and their impact on clinical psychotherapeutic. Rev Psicol Saúde [Internet]. 2015 [2019 Sep 10];7(1):30-8. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v7n1/v7n1a05.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpsaude/v7...
). Esses aspectos subjetivos são dinâmicos, não estão contemplados em protocolos e exigem rearranjo e (re)combinação de outras tecnologias no desenvolvimento da clínica ampliada do enfermeiro(2727 Matumoto S, Fortuna CM, Kawata LS, Mishima SM, Pereira MJB. Nurses’ clinical practice in primary care: a process under construction. Rev Latino-Am Enfermagem. 2011;19(1):123-30. doi: 10.1590/S0104-11692011000100017
https://doi.org/10.1590/S0104-1169201100...
).

Importante ressaltar, ainda, que, desde a década de 1990, a complexidade, a dinamicidade, a diversidade e a subjetividade das necessidades de saúde têm sido estudadas, o que reforça, contemporaneamente, a ideia de que seu atendimento ultrapassa a esfera da intervenção clínica, curativa e individual, exigindo intervenção multifacetária no desenvolvimento do processo de trabalho em saúde(2828 Schraiber LB, Mendes-Gonçalves RB. Necessidades de saúde e Atenção Primária. In: Schraiber LB, Nemes MIB, Mendes-Gonçalves RB. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica [Internet]. São Paulo: Hucitec ; 1996 [2019 Sep 12]. Cap. 1, p. 29-47. Available from: http://www2.fm.usp.br/gdc/docs/preventivapesquisa_130_saude_cap_1.pdf
http://www2.fm.usp.br/gdc/docs/preventiv...
).

No segundo conjunto de resultados, referente às possibilidades negligenciadas, no trabalho do enfermeiro, para reconhecer necessidades de saúde, também foram relacionados aspectos da Taxonomia das Necessidades de Saúde(33 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPSC/IMS/UERJ/EDUCS; 2006 [2019 Aug 29]. p. 1-8. Available from: https://pt.scribd.com/document/379389202/1-UMA-TAXONOMIA-OPERACIONAL-DE-NECESSIDADES-DE-SAU-DE-Cecilio-Matsumoto-2006
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), traduzidos, majoritariamente, sob a forma de demandas de saúde. Essas parecem ter sido expostas em um padrão reativo de organização do trabalho, no qual o usuário é quem vai até à USF agendar consulta quando ele quer ou julga precisar, mediante a disponibilidade de vagas, sendo a consulta médica individual a principal forma de atendimento clínico(2929 Ramos CFV, Araruna RC, Lima CMF, Santana CLA, Tanaka LH. Education practices: research-action with nurses of Family Health Strategy. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1144-51. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0284
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

Nessa seara, os enfermeiros parecem não relacionar a ausência dos usuários nas consultas com a responsabilidade sanitária e epidemiológica da equipe pela população adscrita(1616 Cowley S, Houston A. Contradictory agendas in health visitor needs assessment: a discussion paper of its use for prioritizing, targeting and promoting health. Primary Health Care Res Dev. 2004;5(3):240-54. doi: 10.1191/1463423604pc209oa
https://doi.org/10.1191/1463423604pc209o...
), o que poderia desencadear ações para identificar as causas do absenteísmo e, possivelmente, reduzir essas faltas, além de contribuir com a gestão e o planejamento das ações e serviços na USF(3030 Santos TVC, Penna CMM. Daily demands in primary care: the view of health professionals and users. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1):149-56. doi: 10.1590/S0104-07072013000100018
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201300...
-3131 Tristão FI, Lima RCD, Lima EFA, Andrade MAC. [Accessibility and use in primary health care: reflections about user’s absenteeism]. Rev Bras Pesqui Saúde. 2016;18(1):54-61. doi: 10.21722/rbps.v18i1.15134 Portuguese.
https://doi.org/10.21722/rbps.v18i1.1513...
).

A associação dessa realidade à organização do trabalho permite uma reflexão: o horário imposto para o agendamento da consulta favorece a ida do usuário à USF ou apenas contempla a disponibilidade do profissional que agenda a consulta para o usuário? Cientes do absenteísmo, os enfermeiros poderiam solicitar uma visita do agente comunitário ao usuário faltoso para detectar o motivo de sua ausência, demonstrando compromisso técnico e atitude de cuidado e não necessariamente de controle(3131 Tristão FI, Lima RCD, Lima EFA, Andrade MAC. [Accessibility and use in primary health care: reflections about user’s absenteeism]. Rev Bras Pesqui Saúde. 2016;18(1):54-61. doi: 10.21722/rbps.v18i1.15134 Portuguese.
https://doi.org/10.21722/rbps.v18i1.1513...
).

Ainda, a depender da situação clínica do usuário, os próprios enfermeiros poderiam programar uma visita domiciliar, buscando estabelecer vínculo diferenciado para o acompanhamento de saúde. Nesse sentido, a ESF tem a potência de romper os muros das unidades, à medida em que os profissionais se mobilizam em atividades externas às USFs em busca de especificidades relacionais e sociais, que conformam demandas e necessidades de saúde(55 Oliveira MAC, Silva TMR. Health needs assessment: a requirement for qualifying health care. Rev Bras Enferm. 2012;65(2):203. doi: 10.1590/S0034-71672012000200001.
https://doi.org/10.1590/S0034-7167201200...
,3232 Fonseca AF, Corbo AMD. O território e o processo saúde-doença [Internet]. Rio de Janeiro: EPSJV/Fiocruz; 2007 [2019 Aug 30]. Available from: http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l24.pdf
http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/defaul...
).

Uma outra característica desse conjunto de resultados é a utilização de uma escuta seletiva e classificatória(66 Abrahão AL, Merhy EE. Healthcare training and micropolitics: concept tools in teaching practices. Interface. 2014;18(49):313-24. doi: 10.1590/1807-57622013.0166.
https://doi.org/10.1590/1807-57622013.01...
), que não favorece o diálogo e o reconhecimento de necessidades de saúde. Ainda, no atendimento do usuário, engessado e fragmentado, cada profissional resolve uma parte específica da demanda trazida por ele(1919 Merhy EE, Feuerwerker LC. Novo olhar sobre as tecnologias de saúde: uma necessidade contemporânea. In: Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Jr H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes [Internet]. Rio de Janeiro: Hexis; 2016 [2019 Aug 31]. Vol. 1, p. 59-72. Available from: http://historico.redeunida.org.br/editora/biblioteca-digital/colecao-micropolitica-do-trabalho-e-o-cuidado-em-saude/politicas-e-cuidados-em-saude-livro-1-avaliacao-compartilhada-do-cuidado-em-saude-surpreendendo-o-instituido-nas-redes
http://historico.redeunida.org.br/editor...
). Segundo alguns enfermeiros, a autonomia e o autocuidado, na escolha do modo de conduzir a própria vida, parecem não ter relação com a produção subjetiva e a dinâmica das necessidades de saúde(33 Cecílio LCO, Matsumoto NF. Uma taxonomia operacional de necessidades de saúde. In: Pinheiro R, Ferla AF, Mattos RA, organizadores. Gestão em redes: tecendo os fios da integralidade em saúde [Internet]. Rio de Janeiro: CEPSC/IMS/UERJ/EDUCS; 2006 [2019 Aug 29]. p. 1-8. Available from: https://pt.scribd.com/document/379389202/1-UMA-TAXONOMIA-OPERACIONAL-DE-NECESSIDADES-DE-SAU-DE-Cecilio-Matsumoto-2006
https://pt.scribd.com/document/379389202...
).

Esse entendimento parece reforçar a verticalização das ações de enfermagem, na qual as orientações dos detentores do saber devem ser seguidas por quem não as possui, e somente os trabalhadores sabem e decidem o que é mais adequado para manter a saúde dos usuários(2929 Ramos CFV, Araruna RC, Lima CMF, Santana CLA, Tanaka LH. Education practices: research-action with nurses of Family Health Strategy. Rev Bras Enferm. 2018;71(3):1144-51. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0284
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
). Contraditoriamente a essa ideia, enfermeiros de um Centro de Atenção Primária do Reino Unido revelam não impor suas orientações aos usuários, mas oferecerem informações relevantes para uma tomada de decisão mais consciente sobre sua saúde(99 Barratt J, Thomas N. Nurse practitioner consultations in primary health care: patient, carer, and nurse practitioner qualitative interpretations of communication processes. Primary Health Care Res Dev. 2019;20(e42):1-9. doi: 10.1017/S1463423618000798
https://doi.org/10.1017/S146342361800079...
).

Nesse cenário, questiona-se: em um contexto de vulnerabilidade e exclusão social que atinge grande parte da população adscrita às USFs brasileiras, o usuário tem acesso às propostas da equipe, uma vez que condições precárias de vida determinam a adesão ou não, a tratamentos e à autonomia e ao autocuidado do usuário?(3333 Santos DS, Tenório EA, Brêda MZ, Mishima SM. The health-disease process and the family health strategy: the user’s perspective. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(6):918-25. doi: 10.1590/0104-1169.0002.2496
https://doi.org/10.1590/0104-1169.0002.2...
)

Outra questão é a culpabilização do usuário, seja pelo problema de saúde apresentado, pelas suas escolhas ou pelas formas de viver e trabalhar na sociedade. A culpabilização reduz as demandas e necessidades de saúde ao comportamento individual, sem estabelecer relações com os determinantes sociais do processo saúde-doença(3030 Santos TVC, Penna CMM. Daily demands in primary care: the view of health professionals and users. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1):149-56. doi: 10.1590/S0104-07072013000100018
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201300...
).

Implicitamente, a normatização do trabalho orienta, protocolarmente, as práticas de saúde em algumas das USFs. Ela estabelece quando, como e quem será atendido, desconsiderando a vontade, as necessidades e a autonomia do usuário com relação à própria saúde. Essas ações padronizadas e unidirecionais ceifam a subjetividade e individualidade do usuário, limitam seu atendimento e reforçam o modelo biomédico de atenção(3030 Santos TVC, Penna CMM. Daily demands in primary care: the view of health professionals and users. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1):149-56. doi: 10.1590/S0104-07072013000100018
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201300...
,3333 Santos DS, Tenório EA, Brêda MZ, Mishima SM. The health-disease process and the family health strategy: the user’s perspective. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(6):918-25. doi: 10.1590/0104-1169.0002.2496
https://doi.org/10.1590/0104-1169.0002.2...
).

O trabalhador parece perceber o usuário não como um sujeito portador de necessidades (seu objeto de trabalho)(77 Merhy EE. Em busca do tempo perdido: a micropolítica do trabalho vivo em ato, em saúde. In: Franco TB, Merhy EE, organizadores. Trabalho, produção do cuidado e subjetividade em saúde [Internet]. São Paulo: Hucitec; 2013 [2019 Sep 10]. p. 19-67. Available from: https://www.researchgate.net/publication/ 33023414_Em_busca_do_tempo_perdido_a_micropolitica_do_trabalho_vivo_em_saude
https://www.researchgate.net/publication...
), mas como uma máquina biológica desajustada para a qual será providenciado o conserto, encaixando a demanda do usuário na rotina pré-determinada, característica da perspectiva biomédica(1717 Ilha S, Dias MV, Backes DS, Backes MTS. Professional-patient bond in a team of the family health strategy. Ciênc Cuid Saúde. 2014;13(3):556-62. doi: 10.4025/cienccuidsaude.v13i3.19661
https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v...
). Portanto, a organização e a operacionalização do processo de trabalho fundamentadas em critérios clínicos biomédicos parecem não permitir a identificação de necessidades travestidas em demandas de saúde. Nesse contexto, alguns enfermeiros negligenciaram possibilidades para reconhecer as subjetividades em processo e as particularidades das demandas pontuais que poderiam se abrir para outras intervenções no conjunto de suas atribuições e dos membros da equipe.

Limitações do estudo

Como limitação, indica-se a impossibilidade de generalizar os resultados da pesquisa, pois a cobertura populacional da ESF no município é baixa, refletindo sua lenta progressão na região sudeste brasileira, que ainda apresenta as unidades básicas tradicionais como a principal porta de entrada do sistema de saúde(3434 Neves RG, Flores TR, Duro SMS, Nunes BP, Tomasi E. Time trend of family health strategy coverage in Brazil, its Regions and Federative Units, 2006-2016. Epidemiol Serv Saúde. 2018;27(3):e2017170. doi: 10.5123/S1679-49742018000300008
https://doi.org/10.5123/S1679-4974201800...
).

Contribuições para a área da saúde, enfermagem ou política pública

A investigação sinaliza contribuições para a área da saúde, da enfermagem e das políticas públicas na medida em que aponta possibilidades no trabalho do enfermeiro na ESF para identificar distintas e complexas necessidades de saúde trazidas pelos usuários e/ou famílias e oferecer outras respostas para além das ações preestabelecidas. Ao mesmo tempo, essas proposições podem fundamentar processos de aprimoramento profissional para subsidiar a construção, o desenvolvimento e a implementação de desempenhos para identificar necessidades de saúde.

O movimento para detectar possibilidades no trabalho e reconhecer necessidades de saúde é um aprendizado dinâmico, permanente e em ato, que pode ampliar a prática clínica do enfermeiro, no conjunto de suas atribuições. Considerando a potencialidade do trabalho do enfermeiro e do trabalho da equipe na detecção e no atendimento das necessidades dos usuários, sob a perspectiva da integralidade da atenção, pode-se afirmar que os achados da presente investigação coadunam com os atributos da longitudinalidade e do cuidado centrado na pessoa propostos pela ESF(11 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017 [2019 Aug 19]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As possibilidades para reconhecer necessidades de saúde acontecem no trabalho vivo em ato. Esse movimento é permeabilizado pelas tecnologias leves que auxiliam os enfermeiros a reconhecer necessidades implícitas escondidas em demandas explícitas. Dessa forma, ao reconhecer necessidades de saúde, cuidados diferenciados são produzidos e articulados pelos enfermeiros, que apontam novos caminhos para as práticas no atual modelo de atenção. Tais cuidados podem ser construídos tanto na prática clínica do enfermeiro quanto na interprofissionalidade no contexto da ESF.

Alguns enfermeiros negligenciaram a ocorrência dessas possibilidades no trabalho. Esses profissionais parecem ter renegado conhecimentos, habilidades e atitudes, traduzidos pelo reconhecimento da relevância do trabalho interprofissional e dos serviços da rede de atenção, pela incorporação da escuta, do diálogo, do acolhimento, da observação cuidadosa e do vínculo, utilizados para aflorar esse movimento. Essa realidade reafirma a lógica de trabalho biomédica que reduz o usuário à resposta de sua demanda pontual que, muitas vezes, o culpabiliza pelo seu modo de enfrentar seus problemas de saúde e doença.

Diante dos resultados e das contribuições do estudo, que extrapolam a área de enfermagem, credita-se aos processos de formação e capacitação interprofissional a qualificação da prática clínica do enfermeiro e de outros profissionais da ESF, para o reconhecimento de possibilidades para identificar necessidades de saúde. Tal formação pode oferecer recursos tecnológicos, que qualificam a ação desses trabalhadores, para o desenvolvimento de capacidades a serem mobilizadas nos encontros com os usuários para reconhecer as necessidades que se apresentam em demandas e compreender a conformação das necessidades de saúde e do processo saúde-doença-cuidado. Ademais, pode auxiliar no entendimento do papel da ESF e na identificação das contradições presentes no cotidiano do trabalho.

  • FOMENTO
    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001, por meio de bolsa de doutorado nº 1.639.716.
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) Processo nº 309826/3017-9.

REFERENCES

Editado por

EDITOR CHEFE: Antonio José de Almeida Filho
EDITOR ASSOCIADO: Mitzy Reichembach

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Jan 2020
  • Aceito
    11 Jun 2020
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