Open-access Reflexão sobre a importância da temática saúde da família no ensino da graduação em enfermagem

Reflections on the importance of the theme family health in the nursing undergraduation course

Reflexión sobre la importancia de la temática salud de la familia en la enseñanza de enfermería

Resumos

O estudo aborda a inserção e atuação dos enfermeiros recém-formados no Programa de Saúde da Família. Teve como objetivos: analisar as contribuições do processo de formação para a prática do enfermeiro no PSF; verificar se os enfermeiros sentem-se capacitados para trabalhar no Programa de Saúde da Família, tendo em vista o currículo vigente no curso de graduação; discutir as dificuldades enfrentadas pelos enfermeiros frente a vivência do Programa de Saúde da Família. Pesquisa qualitativa do tipo descritiva analítica, cujos dados foram obtidos através de entrevista semi-estruturada aplicada a 15 enfermeiros formados a partir do ano de 1997. A análise dos dados possibilitou a formação de duas categorias: qualificação do profissional enfermeiro na atenção primária e dificuldades e satisfação dos enfermeiros na prática de saúde da família. O estudo ao investigar o processo de formação do enfermeiro, desperta a atenção para a necessidade de melhoria da qualidade da abordagem da saúde da família na graduação do curso de enfermagem.

enfermagem; Programa de Saúde da Família; formação profissional


This study is about the insertion and performance of the recently graduated nurses in the Family Health Program (FHP). Its aims are: to analyze the contributions of the educational process for the nursing practice in the FHP; to verify if nursing professionals feel secure about their capacity to work FHP after going through the nursing course with its specific curriculum; to discuss the difficulties faced by these professionals in this program. This is a qualitative, descriptive and analytical research. Data was obtained through semi-structured interviews with 15 nursing professionals graduated since 1997.Through data analysis two categories were identified: the first was the professional qualification of first aid nursing professionals, the second was difficulties and satisfaction of these professionals as participating in the FHP. Results showed that there is a need for a better approach regarding family health in the undergraduation courses.

nursing; Family Health Program; professional development


El estudio aborda la inserción y actuación de los enfermeros recién recibidos dentro del Programa de Salud de la Familia. Tiene como objetivos: analizar las contribuciones del proceso de formación para la práctica del enfermero en el PSF; verificar si los enfermeros se sienten capacitados para trabajar en el Programa de Salud de la Familia, teniendo en vista el currículo vigente en el curso de graduación y discutir las dificultades que ellos enfrentan al desarrollar el Programa de Salud de la Familia. Investigación calitativa de tipo descriptivo-analítica, cuyos datos se han obtenido a través de entrevista semiestructurada aplicada a 15 enfermeros recibidos a partir del año 1997. El análisis hace posible la formación de dos categorías: calificación del profesional enfermero en la atención primaria y dificultades y satisfacción del profesional en la práctica de salud de la familia. El estudio despierta la atención hacia la necesidad de mejorar la calidad respecto al tema de la salud de la familia en el curso superior de enfermería

enfermería; Programa de Salud de la Familia; formación profesional


PESQUISA

Reflexão sobre a importância da temática saúde da família no ensino da graduação em enfermagem*

Reflections on the importance of the theme family health in the nursing undergraduation course

Reflexión sobre la importancia de la temática salud de la familia en la enseñanza de enfermería

Clarissa Irineu de Sousa CarrijoI; Daniela Oliveira PontesII; Maria Alves BarbosaIII

IEnfermeira do Programa Saúde da Família do município de Bela Vista de Goiás-Go

IIEnfermeira do Programa Saúde da Família do município de Piracanjuba-Go

IIIEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás

RESUMO

O estudo aborda a inserção e atuação dos enfermeiros recém-formados no Programa de Saúde da Família. Teve como objetivos: analisar as contribuições do processo de formação para a prática do enfermeiro no PSF; verificar se os enfermeiros sentem-se capacitados para trabalhar no Programa de Saúde da Família, tendo em vista o currículo vigente no curso de graduação; discutir as dificuldades enfrentadas pelos enfermeiros frente a vivência do Programa de Saúde da Família. Pesquisa qualitativa do tipo descritiva analítica, cujos dados foram obtidos através de entrevista semi-estruturada aplicada a 15 enfermeiros formados a partir do ano de 1997. A análise dos dados possibilitou a formação de duas categorias: qualificação do profissional enfermeiro na atenção primária e dificuldades e satisfação dos enfermeiros na prática de saúde da família. O estudo ao investigar o processo de formação do enfermeiro, desperta a atenção para a necessidade de melhoria da qualidade da abordagem da saúde da família na graduação do curso de enfermagem.

Descritores: enfermagem; Programa de Saúde da Família; formação profissional

ABSTRACT

This study is about the insertion and performance of the recently graduated nurses in the Family Health Program (FHP). Its aims are: to analyze the contributions of the educational process for the nursing practice in the FHP; to verify if nursing professionals feel secure about their capacity to work FHP after going through the nursing course with its specific curriculum; to discuss the difficulties faced by these professionals in this program. This is a qualitative, descriptive and analytical research. Data was obtained through semi-structured interviews with 15 nursing professionals graduated since 1997.Through data analysis two categories were identified: the first was the professional qualification of first aid nursing professionals, the second was difficulties and satisfaction of these professionals as participating in the FHP. Results showed that there is a need for a better approach regarding family health in the undergraduation courses.

Descriptors: nursing; Family Health Program; professional development

RESUMEN

El estudio aborda la inserción y actuación de los enfermeros recién recibidos dentro del Programa de Salud de la Familia. Tiene como objetivos: analizar las contribuciones del proceso de formación para la práctica del enfermero en el PSF; verificar si los enfermeros se sienten capacitados para trabajar en el Programa de Salud de la Familia, teniendo en vista el currículo vigente en el curso de graduación y discutir las dificultades que ellos enfrentan al desarrollar el Programa de Salud de la Familia. Investigación calitativa de tipo descriptivo-analítica, cuyos datos se han obtenido a través de entrevista semiestructurada aplicada a 15 enfermeros recibidos a partir del año 1997. El análisis hace posible la formación de dos categorías: calificación del profesional enfermero en la atención primaria y dificultades y satisfacción del profesional en la práctica de salud de la familia. El estudio despierta la atención hacia la necesidad de mejorar la calidad respecto al tema de la salud de la familia en el curso superior de enfermería

Descriptores: enfermería, Programa de Salud de la Familia; formación profesional.

1 Introdução

Os cuidados domiciliares constituíam-se como a principal prática das ações de saúde, sendo que na Europa, na virada do século XVIII, a enfermagem domiciliar era majoritária e autônoma na área de saúde(1). No Brasil, no início do século XX as visitas domiciliares foram largamente utilizadas para o combate às endemias que assolavam os grandes centros do país(2).

Deste modo, o domicílio configurava-se como o local de prática da enfermagem e das ações de saúde. Entretanto, com a expansão dos hospitais, ainda no século XIX, este exercício liberal foi se reduzindo e a enfermagem foi se enquadrando em uma hierarquia de saberes, poderes e funções na área hospitalar, sendo que no Brasil em meados do século XX houve grande transferência do trabalho da enfermagem domiciliar para a área hospitalar(1), respaldada pelo modelo de ensino biomédico e hospitalocêntrico, atendendo à política assistencial então vigente no país.

Entretanto, tornou-se evidente que o atendimento primário, base de entrada para o sistema público de saúde, necessitava de uma nova abordagem, uma vez que a estrutura clássica de unidades básicas de saúde vinha apresentando, em diversos locais do país, uma baixa resolutividade(3).

Para construir uma nova maneira de prestar assistência, mais próxima da necessidade da comunidade, criou-se o Programa Saúde da Família (PSF), baseado em Equipes de Saúde da Família - ESF, que são constituídas de no mínimo, por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde. Desde meados dos anos 80, a temática Saúde da Família tem sido foco de atenção seja na assistência, ensino ou na pesquisa. Percebe-se que nestas duas décadas, o assunto Saúde da Família tem sido discutido tanto na graduação, como na pós-graduação de enfermagem, sendo neste último nível de modo mais expressivo(4).

Essa estratégia vem não só melhorando o acesso da população ao sistema, como tem proporcionado considerável melhoria na qualidade do atendimento oferecido, traduzido por um atendimento mais resolutivo e integrado das equipes de saúde com a comunidade a que assiste, o que traz um admirável grau de satisfação da população e das próprias equipes de saúde(5).

Para a implementação deste novo modelo é imprescindível a qualificação de profissionais. Torna-se então necessário instrumentalizá-los, reparando as deficiências de conhecimentos, habilidades e fortalecendo práticas referentes à atenção primária de saúde.

O PSF tem sua atenção centrada na família e isso exige da equipe de saúde uma compreensão ampliada do processo saúde - doença e da necessidade de intervenções que vão além das práticas curativas.

Influenciada pelo paradigma cartesiano, a formação dos profissionais da saúde foi construída de forma fragmentada, ocasionando incompatibilidade com o cuidado à família e ao trabalho em equipe(6). Portanto, vale questionar, por exemplo: como os profissionais estão enfrentando esta nova realidade de atenção à saúde?

Uma das importantes interseções entre saúde e educação diz respeito à adequação dos "produtos" acadêmicos - graduandos, conhecimento produzido e serviços prestados - às necessidades sociais, situação que ainda está longe da ideal. Os órgãos de formação superior seguem, na maioria das vezes, sua lógica própria, reafirmando sempre a tradição de autonomia. Se, por um lado, essa autonomia foi positiva, livrando as universidades de imposições conjunturais, por outro propiciou o afastamento de seu constituinte principal, que é a sociedade, na qual prevalecem vários problemas de resolução complexa. Uma das traduções dessa autonomia indesejada é fortemente expressa nos perfis da formação dos médicos, cuja tendência, ao longo das últimas décadas, foi de extensão e de segmentação(7).

Procurando investir na qualificação profissional, o Ministério da Saúde começou a apoiar financeiramente cursos de especialização e residência em Saúde da Família em nível de pós - graduação na tentativa de atingir os profissionais inseridos no PSF. Ao mesmo tempo em que se investe nos profissionais, é preciso induzir mudanças ainda na graduação, para que os futuros profissionais recebam formação adequada ao novo perfil de trabalho(8).

Em 2002, foi lançado o Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina (Promed). Com esse programa, o Ministério da Saúde estará apoiando, financeiramente, iniciativa de escolas médicas que estejam reorientando a formação de seus alunos, com ênfase nas mudanças no modelo de atenção à saúde, em especial naqueles voltados para o fortalecimento da atenção básica. Logicamente outras áreas de formação em saúde, a exemplo dos cursos de enfermagem, deverão ser contempladas, uma vez que diante desta mudança de assistência à saúde, torna-se inquestionável a necessidade de adaptação nos currículos frente ao surgimento de um novo paradigma.

2 Objetivo

- Analisar as contribuições do processo de formação em saúde da família para a prática do enfermeiro no PSF.

2.1 Objetivos Específicos

- Verificar se os enfermeiros sentem-se capacitados para trabalhar no Programa de Saúde da Família, tendo em vista o currículo vigente no curso de graduação;

- Discutir as dificuldades enfrentadas pelos enfermeiros frente à vivência do Programa de Saúde da Família.

3 Metodologia

Pesquisa qualitativa do tipo descritivo exploratória, considerada adequada para esta investigação, os locais de coleta de dados foram as Unidades Básicas de Saúde integrantes da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia- Goiás. Participaram da pesquisa 15 enfermeiros inseridos no Programa Saúde da Família a partir de 1997, ano em que o Programa foi implantado em Goiânia.

A coleta de dados foi iniciada com levantamento na Secretaria Municipal de Saúde para localizar os enfermeiros inseridos no PSF a partir de 1997 que, posteriormente, foram entrevistados individualmente, através de entrevista semi-estruturada, gravada em fita cassete, com permissão dos participantes. A entrevista constituiu-se da seguinte pergunta norteadora: "Como você se sentiu ao sair da faculdade e imediatamente se inserir no PSF?"

Segundo normas da Resolução 196 de 1996, do Conselho Nacional de saúde foram cumpridas todas as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Sendo assim, o presente artigo passou pelo Comitê de Ética em Pesquisa Médica, Humana e Animal do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás UFG de Goiânia/GO. O termo de Consentimento Livre e Esclarecido dos participantes foi obtido mediante entrega e informações adicionais sobre o mesmo aos que se dispunham a participar do trabalho.

Os resultados encontrados deram origem a duas categorias: qualificação do profissional enfermeiro para a atenção primária e dificuldades e satisfação dos enfermeiros na prática de saúde da família, apresentadas a seguir:

4 Qualificação do profissional enfermeiro para a atenção primária

Os princípios que regem a formação do enfermeiro devem passar por questões contextuais, eliminando-se a dicotomia entre pensar e fazer(9). O mercado de trabalho tem exigido uma mudança na formação e no exercício profissional, o que vem demandando, por parte das escolas, mudanças em seus currículos e em suas práticas pedagógicas. Esta constatação pode ser evidenciada na fala dos enfermeiros: A formação acadêmica em si, foi pobre, não por negligência da faculdade, mas porque PSF é uma coisa nova. (Enfermeiro 2).

Não tive informação nenhuma na faculdade, nem mesmo sobre o que era o PSF. Saí da faculdade, recebi informação de colegas sobre o Programa. (Enfermeiro 7)

O desafio é construir a prática de enfermagem dentro do PSF e capacitar os enfermeiros para atuarem segundo essa prática. A tarefa educativa deve buscar ensinar os enfermeiros a aprender a aprender. Ou seja, construir profissionais que sejam capazes não só de executar técnicas de trabalho, mas que sejam críticos de sua prática e interpretem e construam as mudanças que forem necessárias segundo a realidade em que vivem.

No presente estudo alguns enfermeiros tiveram durante a graduação disciplinas como saúde coletiva, vigilância epidemiológica, entre outras, cujo enfoque era essencialmente teórico, não oferecendo subsídios para a prática da saúde pública, o que dificultou o ingresso destes profissionais na estratégia de Saúde da Família.

Parece haver um consenso no mundo hodierno sobre a impossibilidade de convivência entre o modelo médico anteriormente citado já que esse influencia a formação dos profissionais de saúde como um todo e o acesso universal e eqüitativo da população ao serviço de saúde. Nem sempre maiores gastos revertem melhores condições de saúde, o que leva a revisão deste paradigma organizacional da prática médica, mudando o discurso e tendo como caminho a conscientização de que é melhor promover a saúde e prevenir a doença do que remediar posteriormente, levando a gerar a exclusão de um bem essencial como é a saúde(10).

A formação desses profissionais em sua maior parte aconteceu sob as bases do modelo tradicional de assistência, orientado para a cura de doenças e centrado no hospital. Os relatos que se seguem evidenciam estas questões:

Quando fazia faculdade, tinha uma visão meio errada do que era trabalhar com a comunidade até mesmo trabalhar com a saúde pública; porque a gente vê aquelas disciplinas de saúde pública é muita teoria. (Enfermeiro 12)

Nos últimos anos, o Brasil vem implementando uma política de inclusão social que tem expressões concretas nas áreas sociais do Governo, especialmente nas de saúde e educação. Na saúde, há um consistente esforço para reorganizar e incentivar a atenção básica. No âmbito educacional, programas de fortalecimento da educação básica apontam na mesma direção(7).

Esta nova política de inclusão social é extremamente importante para adequar os profissionais que trabalham no PSF com o propósito do programa de oferecer um cuidar holístico à comunidade. Alguns enfermeiros relatam suas experiências da graduação frente a uma formação acadêmica descontextualizada com o novo enfoque da assistência à saúde:

Se eu tivesse que usar o conhecimento adquirido dentro da faculdade, não teria muito a oferecer. A própria formação da Universidade é muito na área curativa, e no PSF não é por aí que a gente caminha, é na prevenção, é na promoção, é na fala, é na mobilização social, na formação de grupo, é na mudança de conscientização das pessoas, e isso a faculdade não preparo. (Enfermeiro 1)

Diante dos novos paradigmas assistenciais, os profissionais enfermeiros, assim como os outros profissionais, enfrentam o desafio de rever sua prática, isso pode gerar, por um lado, inseguranças e frustrações, mas por outro, expectativas. Baseando-se na complexidade que é considerar a família e seu contexto como núcleo básico da abordagem e não o indivíduo isoladamente; assistir de forma integral, resolutiva, contínua e com boa qualidade; intervir sobre os fatores de risco; humanizar as práticas de saúde, criar vínculos de compromisso e co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a comunidade; desenvolver ações intersetoriais por meio de parcerias; democratizar o conhecimento do processo saúde-doença, da organização do serviço e da produção social da saúde; lutar para o reconhecimento da saúde como um direito do cidadão e contribuir com a organização da comunidade para efetivo exercício do controle social(11). O enfermeiro depara-se com sentimentos que revelam sua deficiência de conhecimentos, como demonstram os relatos abaixo: tive que trabalhar do jeito que achava que era PSF, porque não tinha nenhuma orientação do que devia fazer (Enfermeiro 15).

Considerando-se o ensino das profissões da saúde diante das mudanças do modelo assistencial, a formação e educação de médicos, enfermeiros e outras categorias profissionais para as equipes do PSF é um desafio crucial para o êxito da proposta(12). O relato abaixo evidencia esta realidade:

Nós vamos levar um tempo muito grande pra chegar a essa formação, ainda que fizesse um curso sobre PSF, os profissionais que dariam esse curso têm uma visão curativa, uma formação tradicional, então as cabeças das pessoas que dariam esse curso, não é completamente voltada para o PSF, e vão formar profissionais com uma miscigenação de conhecimentos, uma coisa tradicional misturada com a inovação do PSF. (Enfermeiro 3)

Com o tempo é que esses profissionais vão poder estar formando outros com visão de PSF. Eu tenho uma perspectiva de mais ou menos 10 anos pra gente estar caminhando e estar formando profissionais com concepção de PSF. (Enfermeiro 9)

É preciso voltar às nossas origens para compreendermos as razões pelas quais a Enfermagem vem assumindo, em linha de frente, o processo de formulação, implantação e implementação do PSF no Brasil. Se analisarmos a prática de enfermagem anterior ao século XIX, nos deparamos com uma assistência voltada às famílias sem recursos para cuidar de seus doentes, portanto, uma Enfermagem independente da Medicina, pois suas ações não pressupõem ordens médicas ou planos terapêuticos e sim uma origem e finalidade de cunho comunitário, religioso(11).

A principal atividade da enfermagem, o cuidado, deve ser pensada como um fenômeno contextual, valendo afirmar que se difere entre culturas e envolve dimensões antropológica e histórica.

O cuidado é uma atividade profissional de extrema importância para quem o recebe, contribui para a cura e mesmo se não houver cura proporciona conforto.

A retomada dessa assistência histórica, em conjunto com outras disciplinas abordadas durante a graduação faz vislumbrar a possibilidade de construir o pilar da estratégia de Saúde da Família, como novo modelo de atenção básica e diante dele, o profissional vem acumulando experiências positivas: Não foi um impacto que me deixou preocupado, eu já vinha sendo preparado pra essa medicina, pra essa saúde preventiva. (Enfermeiro 4)

A Enfermagem está retomando a visão sistêmica e integral do indivíduo em seu contexto familiar e social, desenvolvendo ações de promoção, proteção específica, diagnóstico precoce, rápida limitação do dano de recuperação da saúde e de reabilitação. Ela deve trabalhar com as reais necessidades locais, por meio de uma prática apropriada, humanizada e tecnicamente competente, sincronizando o saber popular com o saber técnico científico, em um verdadeiro encontro de gente cuidando de gente(11).

5 Dificuldades e satisfação dos enfermeiros na prática de saúde da família

O processo de formação tem sofrido críticas, entre as quais se destacam: descontextualização entre realidades regionais e às práticas que realiza; desconsideração do trabalho como princípio pedagógico; valorização excessiva do domínio da habilidade técnica em contextos de alta complexidade em detrimento da visão macro do sistema; reduzida ênfase no trabalho multiprofissional apesar da prática assim o exigir; currículos pouco flexíveis; dicotomia teoria/prática, pensar/fazer, cuidar/administrar, apesar da necessidade de que na prática tudo isto aconteça de forma integrada.

O encontro entre o ensino, o serviço e a comunidade pode tornar-se o vetor de construção de uma utopia, que é a de fazer chegar saúde a todas as famílias brasileiras(13).

Nos relatos percebe-se que as instituições, cujo ensino está mais voltado para o social, facilitam a adaptação de seus egressos no PSF. Vale considerar a diversidade de projetos pedagógicos existentes nas instituições de ensino do Brasil encontrando-se enfoques diferenciados, conforme a realidade de cada curso.

Diante da problemática que envolve a formação do enfermeiro, para atuar no PSF, a inadequação dos currículos gera o despreparo dos profissionais, sendo detectadas as dificuldades com relação ao trabalho com a comunidade, trabalho em equipe, compreensão das diretrizes do programa e trabalhar a prevenção. Apesar disto, há satisfação dos profissionais em trabalhar no programa. Eu senti dificuldade até de saber direito o que fazer, até onde fazer, qual o papel do PSF e do enfermeiro do PSF. (Enfermeiro 13)

O acompanhamento sistemático das necessidades de saúde dos indivíduos não é uma tarefa fácil. Os profissionais precisam conhecer o modo de viver e de adoecer, as crenças, os pensamentos e as experiências das famílias que assistem. Além das informações científicas, eles devem ter noções sobre os conhecimentos populares e sua cultura(5).

Na tentativa de superar a precária disponibilidade de profissionais dotados de visão humanística e preparados para prestar cuidados contínuos e resolutivos à comunidade, os gestores do SUS e das instituições acadêmicas vêm empreendendo esforços para resolver os urgentes problemas da incorporação de profissionais à estratégia de Saúde da Família, por intermédio da implantação de Pólos de Capacitação em Saúde da Família, na maioria das Unidades Federadas(7).

A atuação tradicional da saúde conduz a comunidade a uma compreensão fragmentada da sua realidade familiar e comunitária, gerando dependentes sociais. Dessa forma, tem-se enfrentado problemas com o desenvolvimento de um novo modelo assistencial: A comunidade não entende o que é o PSF, como o PSF trabalha. O PSF não é uma medicina curativa ela é uma medicina preventiva. (Enfermeiro 5)

O modo de vida das pessoas e das famílias é diversificado, tornando mais complexo o trabalho no PSF. Para não adotar condutas centradas apenas no seu próprio modo de ver a vida, o profissional necessita adquirir uma visão mais ampliada da realidade.

Acostumada com a complexidade da medicina curativa, a comunidade, não percebe a importância e a simplicidade da atenção primária(5). Por muitos séculos, os únicos instrumentos de que os médicos dispunham para exercer sua prática eram os sentidos, a astúcia, a perspicácia, entre tantos outros dons que a natureza lhes concedia. A prática se iniciava e se encerrava no médico enquanto ser, e nestas condições, ele estabelecia diagnóstico e tratamento(14).

Atenção primária não pode ser entendida como assistência de menor custo. Vale lembrar que os gastos em prevenção muitas vezes podem ser superiores a procedimentos tecnológicos utilizados para diagnósticos e tratamentos. Tampouco deve ser confundida com medicina "simplista" conforme é explicitado no depoimento:

Quanto à questão de prevenção, eles querem mais é remédio, querem o tratamento na hora, querem um resultado imediato e o PSF não é resultado imediato é um programa a longo prazo. (Enfermeiro 10)

Outra questão que demanda do profissional adequação no programa refere-se ao trabalho em equipe, um dos pressupostos mais importantes do PSF, que requer o estabelecimento de respeito profissional muito grande entre todos os membros.

Quando a equipe é multiprofissional, há que se considerar as interfaces existentes entre as intervenções técnicas peculiares de cada profissional, bem como a preservação das respectivas especificidade. A integração da equipe demanda simultaneamente preservar as diferenças técnicas e flexibilizar as fronteiras entre as áreas profissionais. A complexa conjugação entre especificidade, flexibilidade e articulação torna-se ainda mais desafiadora à medida que, para além das diferenças técnicas entre as distintas áreas profissionais, expressa desigualdade entre os trabalhos especializados.

É importante que ocorra interação entre os profissionais que formam a equipe visando o desenvolvimento de um objetivo comum.

Trabalhar em equipe foi um desafio porque cada um tem uma cabeça, cada um pensa de forma diferente mas, quando a gente senta e tem um diálogo com a equipe o trabalho fica melhor, flui melhor só conversando e dialogando para dar certo em uma equipe. (Enfermeiro 14)

O maior desafio dos profissionais que compõem o PSF é a mudança de abordagem, principalmente de médicos e enfermeiros no trabalho diário das equipes. Não basta ser generalista, a grande mudança, a que realmente importa, está na forma de atender, de conversar com as pessoas. A idéia de equipe não tem que ser de complementação de papéis, mas de integração de responsabilidade(15). Os depoimentos abaixo retratam a dificuldade do trabalho em equipe e como as diferenças individuais podem gerar tensão e conflito se não forem evitadas.

Trabalhar em equipe não é fácil, é super difícil, você está lidando com várias pessoas, cada um tem um temperamento diferente. (Enfermeiro 11)

É difícil trabalhar em equipe e você tem que tentar levar da melhor maneira possível, mas não é fácil. (Enfermeiro 8)

É necessário construir consensos sobre um plano de ação para que a equipe partilhe valores éticos comuns, além de um novo enfoque, capaz de preparar profissionais habilitados para trabalhar em nível individual e coletivo a fim de formar profissionais conscientes de sua cidadania e de seu direito em suas próprias relações cotidianas de trabalho. Também é preciso profissionalizar enfermeiros tecnicamente capacitados, que estejam inseridos em seu contexto, exercendo e fazendo exercer o controle social sobre as prioridades que a população elege. Estes profissionais devem estar voltados para o interesse da comunidade, como elemento indissociável de sua prática.

A experiência brasileira com o modelo de atenção voltado para a Saúde da Família tem proporcionado mudanças positivas na relação entre os profissionais e a população, bem como na estruturação dos serviços e no padrão de assistência oferecida à população pelo sistema público de saúde(8).

Assim, o PSF elege como ponto central o estabelecimento de vínculos e a criação de laços de compromisso e de co-responsabilidade entre os profissionais de saúde e a população(7).

A maioria dos profissionais entrevistados relatou sua satisfação de trabalhar no PSF, colocando em prática o conhecimento adquirido na graduação, demonstrado no relato que se segue: O PSF é o melhor programa que caracteriza a prevenção e a promoção da saúde, um programa novo, diferente. É um programa pelo qual eu sou apaixonada. (Enfermeiro 6)

A multiprofissionalidade e interdisciplinaridade são componentes fundamentais para a formação dos trabalhadores de saúde e implantação do PSF. Vivenciar estes componentes no cotidiano durante a formação acadêmica aproxima e mescla o "saber e fazer", possibilitando a ampliação do conhecimento e a visão do outro integrante da equipe profissional. Assistência domiciliar é uma ferramenta que exige uma permanente reflexão, pois toca em questões de cunhos ético, cognitivo, do contexto social e da infra-estrutura familiar(16).

Os profissionais que receberam durante a graduação um preparo para o trabalho em equipe, com a comunidade, dentro dos princípios do SUS, demostraram maior segurança e preparo para trabalhar no PSF, uma vez que as pessoas tiveram a oportunidade de desenvolver suas aptidões num contexto previamente conhecido.

6 Considerações finais

O Brasil de hoje é, sem dúvida, diferente do país de apenas duas décadas atrás. Mudanças internas, associadas à globalização, que envolvem todos os países do mundo, criaram uma nova realidade política e econômica, que se reflete nas condições de vida e de saúde da população. Paralelamente, observa-se uma maior consciência quanto aos valores sociais e entende-se que mudanças expressivas só ocorrerão com um forte engajamento do governo e da sociedade civil na construção de uma democracia na qual combata, de maneira vigorosa, as intensas desigualdades sociais que ainda persistem e dificultam uma considerável parcela dos brasileiros a ter acesso a instrumentos sociais que lhes permitam viver com dignidade.

A experiência destes primeiros anos de PSF mostrou, entretanto, que existe uma dificuldade de se arregimentar enfermeiros com o devido preparo para as abrangentes funções por eles desempenhadas. No presente estudo, os enfermeiros sentem-se satisfeitos com a proposta do PSF, pois diante dos profissionais que compõem a equipe mínima, o enfermeiro recebe uma formação generalista. Porém reconhecem as dificuldades enfrentadas devido à abordagem fragmentada trabalhada na graduação. Embora pólos de capacitação estejam sendo instalados em todo o país para treinar os profissionais que atuam no PSF, ressente-se da falta de material instrucional para auxiliá-los no processo decisório do dia-a-dia. Uma vez que se trata de mudança de paradigma assistencial, faz-se necessário também que os próprios professores e instrutores já estejam imbuídos da nova concepção de assistência requerida para o PSF.

É necessário reforçar o perfil do enfermeiro contemplando a competência técnica comprometida com a ética da responsabilidade e a ética da solidariedade, engajando-se nos processos de transformação da realidade e rompendo com a herança de uma prática subordinada aos interesses institucionais, ou ainda, a outras práticas profissionais(17).

Considerando-se o processo de formação, verifica-se a necessidade da construção de um profissional dotado de competências, fornecendo conhecimentos, habilidades e atitudes que possibilitem a compreensão do trabalho em saúde, autonomia, a iniciativa, a capacidade de resolver problemas, trabalhar em equipe multiprofissional, aprender continuamente e pautar-se pelos princípios éticos.

Data de recebimento: 22/09/2002

Data de aprovação: 26/06/2003

E-mail do autor: malves@ih.com.br

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    Trabalho apresentado no 54º Congresso Brasileiro de Enfermagem na forma de Comunicação Oral.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2003

    Histórico

    • Recebido
      22 Set 2002
    • Aceito
      26 Jun 2003
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