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Sob o “melhor interesse”! O ‘homoafetivo’ e a criança nos processos de adoção

Under the “Best Interest”! The Homoaffectives and the Child in Adoption Procedures

Resumo:

O presente trabalho versa sobre o lugar da sexualidade quando um requerente à adoção é identificado como “homoafetivo” e quais diferenças emergem entre ser “homoafetivo gay” e “homoafetivo lésbica”. O objeto de análise são processos e habilitações de adoção “homoafetiva” conjunta, pleiteados no município do Rio de Janeiro. Na análise, intentou-se apreender a forma em que a homossexualidade tem sido compreendida quando há uma relação com a família e a parentalidade. Considerando as estruturas sociais, ao interpretar os processos, foram levadas em conta questões como: De que forma integrantes das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso pensam a adoção e homossexualidade? Que noções de família e sexualidades produzem ao conduzirem os processos? De que forma o princípio do “melhor interesse da criança” tem sido interpretado quando os requerentes são “homoafetivos”?

Palavras-chave:
Adoção; Sexualidade; Homoafetividade; Melhor interesse da criança; Direitos

Abstract:

This paper discusses about the local of sexuality when an applicant for adoption is identified as homoaffective, and what differences emerge between being gay and lesbian homoaffective. The object of analysis are processes and qualifications of homoaffective joint adoption required in the city of Rio de Janeiro. In the analysis the intention was understand the meaning about homossexuality in the connection between family and kinship. Embased on the social structure, to interpret the processes, was considered the following questions: How the members of court of Childhood, Young and Elderly think the relation between adoption and homossexuality? What the idea about family and sexualities are produced to construe the processes? In what way the principle of “the best interest of child” is utilized in homoaffective processes?

Key words:
Adoption; Sexuality; Homoaffective; Best interest of child; Rights

Introdução

A parentalidade de gays e lésbicas, também conhecida como homoparentalidade (Anna Paula UZIEL, 2007______. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.), tem sido alvo de controvérsias no Brasil, como em outras sociedades ocidentais. Como um fenômeno que vem ampliando sua representação, sobretudo a partir de meados da década de 1990, a homoparentalidade põe em cena os receios sobre a imagem construída do homossexual.

Desde o projeto de Parceria Civil Registrada,1 1 O projeto de Lei n.º 1.151/95 encontra-se disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16329. ,2 2 Este projeto faz parte de um conjunto maior de reivindicação nacional e internacional dos movimentos gays, que tem sua principal aparição após o surgimento da Aids, na década de 1980. Luiz MELLO (2005) indica que, inicialmente, o movimento pautava-se em busca por direitos patrimoniais, visto que a relação homossexual não era reconhecida sob o status da família. Em seguida, a pauta do movimento se amplia, exigindo reconhecimento pela conjugalidade de gays e lésbicas. Atualmente, um dos motes das reivindicações é pelo reconhecimento da afetividade nos relacionamentos entre pares do mesmo sexo, semelhante às relações heterossexuais. Sobre a atuação do movimento homossexual no Brasil, ver Regina FACCHINI (2003). proposto pela então deputada Marta SUPLICY em 1995SUPLICY, Marta. Projeto de Lei n.º 1151, de 26 de outubro de 1995. “Projetos de lei e outras proposições”. Câmara dos Deputados. Brasília, 1995. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16329.
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até os dias atuais, a discussão sobre a parentalidade e conjugalidade de gays e lésbicas feita pelo Poder Legislativo tem sido pautada por moralidades e religiosidades.

Recentemente, no cenário político, questões em torno dos direitos reprodutivos e sexuais têm sido freadas nas pautas legislativas. A representação de políticos evangélicos na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e na Presidência da Câmara dos Deputados, por exemplo, indica a composição desse cenário.

O âmbito jurídico, ainda que característico por uma posição de vanguarda nesta discussão, também tem sido permeado por contestações no que se refere a esta temática. À luz desses posicionamentos legislativos e jurídicos estão as estruturas sociais hegemonizadas, as quais reificam, a cada geração, a concepção de família a partir do par heterossexual e da parentalidade procriativa.

É o que Michel FOUCAULT (1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) chamou atenção acerca do status de verdade que o sexo e a dimensão da sexualidade incidiram sobre o sujeito a partir da modernidade. Tal “dispositivo da sexualidade” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) desenvolveu toda uma técnica de controle sobre corpos e práticas sexuais cuja finalidade tem sido a de normatizar condutas sexuais (e sociais), corroborando uma estratificação e hierarquização não só das práticas em si, mas dos sujeitos praticantes. Assim, diferentemente daquele que tem práticas sexuais procriativas, restritas ao par conjugal e dentro de casa, está o homossexual, fetichizado a partir de noções de desvio como o praticante de atos libidinosos, promíscuos e não procriativos.

Dessa forma, o sexo não é mais tido como interditado. Ao contrário, este se torna passível de formas de regulação por meio de um discurso especializado, produzindo uma “scientia sexualis” que foca nos dissidentes/desviantes (FOUCAULT, 1998). Tal perspectiva aloca a heterossexualidade como “norma”, vista como dentro da lógica social e “natural”. Produz-se, assim, sujeitos normatizados dentro das lógicas de poder, tendo o corpo como alvo principal para o exercício de tal controle.

Na esteira dessas questões, faz-se necessário atentar à forma como os discursos sobre o sexo - e, no caso deste artigo, sobre a homossexualidade - se entrecruzam e produzem hierarquias oriundas das relações de poder. Some-se a isso a incursão da infância, vista como algo que deve ser mantido distante do sexo e, consequentemente, dos homossexuais.

A pesquisa com os processos e o “valor” das peças

A análise aqui apresentada é desdobramento de uma pesquisa de mestrado que procurou identificar os sentidos produzidos por técnicos (psicólogos e assistentes sociais) e operadores do Direito (promotores, juízes, desembargadores) nas adoções movidas por gays e lésbicas no município do Rio de Janeiro.3 3 Tal pesquisa foi decorrente de um projeto mais amplo, desenvolvido a partir da pesquisa “A adoção em seus múltiplos sentidos”, sob apoio da FAPERJ e coordenada pela Profa. Dra. Alessandra Andrade Rinaldi no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que teve como objetivo compreender os sentidos que estão sendo dados à filiação adotiva, por aqueles que a fazem via Poder Judicial e por vínculos socioafetivos. Nesse sentido, observamos que a adoção tida como “homoafetiva”4 4 Usaremos o conceito “homoafetivo” apenas em caso de (i) discurso nativo ou (ii) quando houver referência imediatamente relacionada a tal conceito. Compreendemos esse neologismo como uma linguagem jurídica circunscrita numa concepção de “docilização” da figura do gay, que procura romper com o estigma associado a esse como um sujeito hipersexualizado, mas, que, por outro lado, o faz nos termos da lógica discursiva hegemônica. O “homoafetivo” surge, assim, como uma categoria que tende a aproximar o homossexual às relações sociais, familiares e morais. Sua produção advém de um contexto político na busca por garantia de direitos e ressignificação do homossexual no imaginário social. Nesse sentido, quando não for em relação às duas situações acima descritas, optaremos pelo termo “gay” e “lésbica”, ainda que considerando que estes também sejam produzidos historicamente. A diferença se dá, no entanto, na amplitude conceitual e na especificidade identitária que estes últimos abrangem em relação ao primeiro. Para ver mais discussão sobre esse conceito, ver, por exemplo, Ricardo Andrade COITINHO FILHO (2014; 2015). era discutida nos processos, ora sob um prisma positivo/solucionador, ora vista com receios/problemática.

De uma forma geral, a pesquisa pela qual este trabalho foi desenvolvido se desdobrou a partir da análise de cinco processos de adoção e três habilitações5 5 Todas as citações que constam nestes documentos – habilitação e processo – não serão acompanhadas de referência, visto que os mesmos correm em segredo de justiça. A autorização para a análise, restrita a fins científicos, procura, desta forma, garantir a ética na pesquisa e o sigilo requerido na qualidade deste material. pleiteadas por gays e lésbicas, tidas como “homoafetivos” nos requerimentos.6 6 Os processos e habilitações foram coletados em duas fases de uma pesquisa, sendo a primeira entre 2009 a 2011 e a segunda entre 2011 a 2013. Os processos e habilitações coletadas na primeira fase foram ajuizadas até a data de 2009. Já os processos e habilitações coletadas na segunda fase foram ajuizadas após 2009. Com isso, procurou-se identificar se a promulgação da Lei n.º 12010/09 alterou a cultura da adoção, as razões que levam a esta e o procedimento adotivo. Esses documentos analisados são oriundos da 1° Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (1°VIJI) regional de Madureira, da 2° Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (2°VIJI) regional de Santa Cruz e da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital. Dentre esse material, a análise que se fará neste artigo dedica-se a três processos, sendo um envolvendo um casal gay e outros dois lésbicos, na qualidade de pretendentes à adoção.7 7 Em ambas as pesquisas acima mencionadas, foram coletados processos e habilitações para adoção tanto de homens e mulheres solteiros, quanto de casais heterossexuais e “homoafetivos”. No entanto, em virtude da escolha analítica para este artigo, os processos e habilitações movidos por casais heterossexuais só serão utilizados como perspectiva geral de análise comparativa e não em específico, como os demais em questão. O mote central envolve a interpretação do princípio do “melhor interesse da criança e do adolescente” quando o requerente é identificado como “homoafetivo”. Neste sentido, os processos e habilitações elucidam a forma em que os discursos “peritos” são constituídos.

Contextualmente, faz-se necessário identificar de que modo as modificações legislativas corroboraram a prática adotiva possível a um casal de homens ou de mulheres identificados como “homoafetivos”.

De acordo com a Lei n.º 12.010/09BRASIL. Lei n.º 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis n.ºs 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 2009. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm . Acesso em: 06/08/2012.
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, para a adoção, é preciso que o(s) candidato(s) se habilite(m). Essa habilitação pode ser individual, no caso de adoções unilaterais e adoções monoparentais, ou por dois requerentes, em relação às adoções conjuntas. Esse procedimento foi padronizado a partir da promulgação da referida lei como etapa prévia ao processo de adoção.

Após a parte documental inicial, o(s) requerente(s) passa(m) por um estudo psicossocial. Esse estudo - cujo objetivo é o de perceber a capacidade e o preparo dos postulantes ao exercício da paternidade ou maternidade responsável - é feito por psicólogos e assistentes sociais da Vara.

Assim, como indica Sávio BITTENCOURT (2010BITTENCOURT, Sávio. A nova Lei de Adoção: do abandono à garantia do direito à convivência familiar e comunitária. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.), o objetivo deste procedimento é verificar as

condições objetivas e subjetivas dos postulantes, a probabilidade de sucesso de uma paternidade socioafetiva e sua compatibilidade com o perfil da criança desejada. [...] Trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, com dois objetivos: averiguar se os postulantes serão pais adequados para a criança ou adolescente e prepará-los para a compreensão das peculiaridades da paternidade adotiva (p. 127).

Em que termos, segundo tal perspectiva acima descrita, pode haver implicação no requerimento de um postulante quando este é identificado como “homoafetivo”? Cada “peça” que compõe um “auto” representa uma versão distinta, marcada pela posição de poder que seu autor ocupa. No entanto, é no estudo psicossocial que recai maior atenção, que se utiliza das informações dos postulantes e da criança e/ou adolescente pretendido. Neste, psicólogos e assistentes sociais procuram identificar a motivação para filiação e condições psicológicas do postulante para o cuidado de uma criança ou adolescente, segundo seus “conhecimentos peritos”.

Além disso, são analisadas as condições sociais e afetivas para receber uma criança ou adolescente e poder lhe conferir um lar. Por fim, estes registram um parecer final, que representa suas reflexões, a partir das investigações feitas, posicionando-se favoráveis ou desfavoráveis à habilitação do referido postulante. Esse estudo é central para a decisão do juiz. Esta será, portanto, a parte de maior dedicação dessa análise.

Assim, em termos metodológicos, esses documentos foram lidos como uma realidade construída (Alessandra de Andrade RINALDI, 2014RINALDI, Alessandra de Andrade. “A arte de lutar contra a natureza”. In: LADVOCAT, Cinthia; DIUANA, Solange (Orgs.). Guia de adoção: no jurídico, no social, no psicológico e na terapia familiar. São Paulo: Roca, 2014.), segundo “verdades” socialmente produzidas, que são permeadas por relações de poder (Michel FOUCAULT, 2003______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.). De igual forma à proposta por Foucault (2003______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003.), as diferentes versões são vistas como um espaço de conflito, mas perpetrado conforme mecanismos, procedimentos, legislações e técnicas institucionalizadas. Desta forma, tanto os pareceres psicossociais quanto os jurídico-legislativos presentes nas habilitações e processos de adoção representam um saber-poder legitimado que é imposto de modo coercitivo por meio das relações de poder. Tal perspectiva evoca o estranhamento destes, de modo a pôr em xeque o modo pelo qual as “verdades” sobre a relação entre família, parentesco e homossexualidade têm sido construídas.

Família, parentesco e a homossexualidade frente à norma

Segundo a antropóloga Gayle RUBIN ([s.d.]), o mundo ocidental traça um limite do que considera, em termos de sexualidades, “sexo bom” e “sexo ruim”. Dito de outra forma, há uma hierarquização de práticas sexuais “boas”, aceitas e toleradas, e as consideradas desprezíveis, que não se enquadram no padrão imposto e hegemonicamente estabelecido. Dessa forma, são produzidas formas de preconceito, discriminação e violência aos que não enquadram suas práticas sexuais nos modelos hegemonicamente estabelecidos a partir de uma moralidade sexual. Essa linha tênue delimita, portanto, o que está na ordem social do que representa a sua obstrução.8 8 Rubin ([s.d.]) aponta, ainda, que o estabelecimento do “bom sexo” decorre de uma concepção essencialista de sexualidade que crê que esta seja produto de uma dimensão corporal, proveniente de algo “natural” do corpo de homens e mulheres.

Instituições como a escola e a família têm tido papel fundamental no desempenho dos imperativos de normalizar (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) a forma como meninos e meninas irão se comportar sexualmente. Assim, as diversas formas de expressão da sexualidade humana têm encontrado obstáculos devido ao caráter compulsório da heterossexualidade (Judith BUTLER, 2003BUTLER, Judith. “O parentesco é sempre tido como heterossexual?” Cadernos Pagu, n. 21, p. 219-260, 2003.), que freia outras possibilidades concebidas como desviantes ou anormais.9 9 A heteronormatividade estabelece relações de poder ao privilegiar apenas uma dentre as várias formas de expressão sexual humana. É por meio das relações sociais cotidianas que o intuito das relações de poder se configura e se naturaliza. Além da discriminação contra pessoas que não se enquadram no perfil da heterossexualidade compulsória, a heteronormatividade contribui para a reprodução sexista, desvalorizando e estigmatizando não só a homossexualidade, como também o feminino (Guacira LOURO, 1999).

A partir da produção de dispositivos de sexualidade e discursos de verdade (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) sobre homossexualidades nos dias atuais, têm sido produzidas indagações, tais como: podem estes casar e adotar? A forma como configuram as suas conjugalidades e parentalidades pode ser concebida como família? Como ficarão as crianças criadas por gays e lésbicas? Irão se tornar gays e lésbicas também? Serão pervertidas ou terão outros problemas psicológicos?

Tais questões refletem a construção histórica das homossexualidades, tidas como uma ameaça ao status quo (Richard MISKOLCI, 2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.). Isso se dá em relação à forma como são constituídas visões estereotipadas da homossexualidade adulta em funções de referência como a paternidade e a maternidade para com as crianças e, principalmente, em relação a gays, o temor de uma possível pedofilia. Mas também em relação ao exercício da própria sexualidade, que tem sido permeado por estigmas e preconceitos associados ao caráter desviante da norma heterossexual, e, sobretudo, após o advento da AIDS, diretamente relacionado a noções de promiscuidade.

Na esteira dessa perspectiva histórica, desde a construção das categorias sodomita e homossexual, evidencia-se a necessidade social de nomeação desse sujeito, visto como possuidor de uma natureza degenerada contra os costumes e a moral. Sobretudo em relação à configuração desta última, Miskolci (2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.) atentou à concepção biológica e determinista que essencializou uma multiplicidade de vivências a uma categoria social. Como reação a tal caracterização, surge o “gay”, que, apropriando-se do estigma ao termo relacionado, assumia, de modo estratégico, uma identidade disforme à ordem sexual vigente (cf. MISKOLCI, 2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.). Um rompimento com os padrões normativos e, por que não dizer, heteronormativos.

No entanto, tal perspectiva radical não conseguiu dissociar da figura do homossexual, e, especialmente, à do gay, o estigma da promiscuidade sexual e a associação à pedofilia. É nesse sentido que Miskolci (2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.) aponta à forma como são gerados “pânicos morais” que emergem a partir do temor às mudanças sociais. Por meio da instauração destes, são utilizados mecanismos diversos que reproduzem a ordem moral vigente.

Nesse sentido, a discussão sobre conjugalidade e parentalidade de gays e lésbicas insere-se em meio a uma busca por direitos civis, mas tendo, como pano de fundo, no imaginário social, um clima de suspeita para com estes.

Tal suspeita é resultado imediato dos diferentes dispositivos da sexualidade aos quais gays e lésbicas têm sido alvo na contemporaneidade sob formas de normatização das condutas sexuais. A própria produção do sujeito homossexual como indivíduo patológico, constituído em detrimento ao que depois veio a ser considerado como heterossexual, revela tanto o controle e a regulamentação daqueles considerados desviantes, quanto a produção de uma hierarquia social que vai corroborar o cerceamento do exercício da cidadania destes, como a questão da adoção - diferentemente de casais heterossexuais, cuja sexualidade nunca foi apontada em nenhum dos processos analisados como algo impeditivo, conforme veremos adiante. De modo que a vida familiar toma-se por dimensões de biopoder (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.) em que são instaurados mecanismos de regulação e dispositivos de controle sobre a vida, tanto em nível individual quanto coletivo. Esses mecanismos e dispositivos, por sua vez, ao serem introduzidos, postulam as compreensões do que pode ser concebido como família, dos que podem fazer parte dela e na forma como deve ser apresentada.

Dessa forma, o que se pode perceber é a maneira como as ações de biopoder reproduzem relações de poder. Demonstram, também, que questões como sexualidade e família vêm sendo modeladas a partir de um padrão do que é moral e cientificamente aceitável, e produzem modos de viver segundo um modelo hegemonicamente estabelecido (Marilyn STRATHERN, 1995STRATHERN, Marilyn. “Necessidade de pais, necessidade de mães”. Revista Estudos Feministas , n. 2, 1995.).10 10 Tal concepção desconsidera a diversidade em que as sociedades criam os seus mecanismos próprios para inventar e pensar os dados biológicos e construir formas de conceber família e as relações de parentesco. Alguns estudos etnográficos fazem esse exercício relativista, como os apresentados por Françoise HÉRITIER (2000) sobre os Haya e os Nuer estudados por Edward EVANS-PRITCHARD (1978).

Como resultado desses modelos, a parentalidade homossexual no Brasil tem se tornado alvo de diferentes fundamentos acusatórios, acionados - por representantes políticos e religiosos - sob o título de proteção da família e da criança frente à parentalidade homossexual. Mas não só destes.

Durante a pesquisa de campo, feita no cartório de uma das Varas mencionadas, conheci uma funcionária que se prontificou em colaborar com a pesquisa, identificando os processos de adoção “homoafetiva”. Logo, afirmou ser favorável à adoção por gays. Muito curiosa, perguntou a minha sexualidade. Como estava sendo auxiliado por uma bolsista de Iniciação Científica, também perguntou a dela. Após nos identificarmos sexualmente, “à boca miúda”, levantou a seguinte questão:

Vem aqui, escuta só! Você acha que um cara que quer adotar, sozinho (frisou ela), um menino de 13 anos, quer o quê? Vocês acham que ele tem boas intenções? Pelo atendimento no telefone eu já percebi que ele era gay. Pelo jeito mesmo dele falar, sabe como? Mas eu não tenho preconceito não. Só que uma pessoa dessas não tem boas intenções, senão ele iria querer adotar outro tipo de criança, não é?

A questão acima apresentada exprime as representações sociais em torno da homossexualidade e a direta relação desta à pedofilia. Esse tipo de discurso materializa a ótica inatista de que gays não teriam condições de constituir a personalidade de filhos de acordo com os valores morais vigentes.

Que fatores, no entanto, contribuíram para que a questão da adoção movida por gays e lésbicas pudesse ser possível? De que forma, nos processos, é constituída a argumentação referente à adoção “homoafetiva”? De que forma, em um cenário atual de garantia de direitos, se estabelece a relação entre parentesco e homossexualidade?

O cenário da adoção e a garantia de direitos

No início do período republicano brasileiro, com a busca de uma identidade nacional, foram instituídas políticas públicas que vinculassem o país a uma “boa imagem”. Nesse cenário, a infância torna-se alvo de políticas do Estado como um de seus principais instrumentos de intervenção na família, com o objetivo de garantir a saúde do corpo social (Irene RIZZINI, 2008RIZZINI, Irene. O século perdido: raízes históricas das políticas públicas para a infância no Brasil. 2.ed. São Paulo: Cortez, 2008.).

Decorrente, também, de mudanças econômicas, políticas e sociais no século XIX, o infante passa, portanto, a ser de responsabilidade administrativa do Estado, e não mais de objeto privado da família. Manter a ordem e garantir o futuro da nação passa a ser associada à forma como o Estado “cuida” desses seres. Todo esse cuidado, na realidade, se devia a evitar o desvio do infante, como projeto de intervenção eugênica.11 11 Foucault (2001) comenta sobre o poder disciplinar a que a criança deveria ser submetida, a fim de que se tornasse dócil, de modo que a delinquência fosse evitada. Essa disciplina produziria pequenos indivíduos adequados ao desejo do Estado. Escolas e orfanatos representavam um grande mecanismo de controle. Patrice SCHUCH (2009) argumenta sobre as políticas estatais destinadas à juventude como forma de perceber as preocupações com a “delinquência”, insegurança pública, desenvolvimento industrial e urbanização.

Domingos ABREU (2002ABREU, Domingos. No bico da cegonha: histórias de adoção e da adoção internacional no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, Núcleo de Antropologia da Política, 2002.), ao refletir sobre a trajetória social das legislações sobre adoção, assinala a modificação na compreensão da infância e da juventude como campo de intervenção social. A adoção tem sua primeira aparição com a promulgação do Código Civil de 1916 e, até o ano de 1979 - momento em que o segundo Código de Menores entra em vigência -, esta foi a única legislação que regulava a adoção por meio dos artigos 368 a 378.

Anterior a esse processo, a posse da criança era regulamentada em cartório, sem interferência judicial, da mesma forma como a regulamentação de um bem ou imóvel qualquer (Claudia FONSECA, 2002FONSECA, Claudia. “A vingança de Capitu: DNA, escolha e destino na família brasileira”. In: BRUSCHINI, Cristina; UNBEHAUM, Sandra (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Editora 34, 2002.). Nesse momento, essa forma de filiação era compreendida como sendo do âmbito do direito privado. Na vigência desse Código, a adoção era realizada para encontrar “uma criança para uma família e não uma família para uma criança” (FONSECA, 2002).

É somente com a elaboração da Constituição Federal, em 1988, que começa a haver uma significativa mudança em relação às políticas da infância e juventude no Brasil, conforme as angústias de agentes sociais que lidavam diretamente com esse público e apontavam o caráter opressor da categoria “menor”.12 12 Para uma análise das modificações em relação à legislação brasileira voltadas para a infância e juventude, ver Patrice SCHUCH (2009).

Por influência da “doutrina da proteção integral” estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), a criança e o adolescente passaram da condição de “objeto de intervenção” estatal para “sujeito de direito” e, por isso, a ter amparo por medidas de “proteção especial” do Estado. Essas novas medidas, ancoradas pela construção dessa nova concepção da criança e do adolescente como “sujeitos de direito” (Patrice SCHUCH, 2009SCHUCH, Patrice. Práticas de Justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: EDUFRGS, 2009.), é resultado de processos amplos e diversos, de tecnologias do saber e poder (FOUCAULT, 2001______. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.) que resultaram numa esteira de garantia de direitos de novos sujeitos sociais.

A Constituição Federal corroborou a consolidação e legitimação dessa nova representação da criança (Ângela PINHEIRO, 2001PINHEIRO, Ângela. “A criança e o adolescente como sujeitos de direitos: emergência e consolidação de uma representação social no Brasil”. In: CASTRO, Lucia Rabelo de. Crianças e jovens na construção da cultura. 1.ed. Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ, 2001.). Essa legitimidade foi garantida à luz da “doutrina de proteção integral” como forma de garantia de seus direitos (João Clemente de Souza NETO, 2006NETO, João Clemente de Souza. “Apontamentos para reflexão sobre as concepções das práticas de atendimento à criança e ao adolescente”. In: NETO, João Clemente de Souza; NASCIMENTO, Maria Letícia B. P. Infância: violência, instituições e políticas públicas. São Paulo: Expressão e Arte, 2006.).

Como desdobramento do princípio constitucional, indicado no artigo 22713 13 Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988). da Constituição Federal, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n° 8.060/90. Em termos formais, passou-se a garantir a igualdade de direitos a todas as crianças e adolescentes, descriminalizando-as e, ao mesmo tempo, considerando-as como alvo de proteção e cuidado.

Essa medida foi nodal, visto que a noção de proteção integral se tornou a base do âmbito jurídico-estatal da infância e juventude no Brasil (SCHUCH, 2009SCHUCH, Patrice. Práticas de Justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: EDUFRGS, 2009.), conforme as orientações e legislações internacionais.14 14 Essa normativa se adequou às normativas de infância e juventude internacionais, ao reconhecimento dos direitos humanos e ao processo de redemocratização do Brasil. E, no que diz respeito ao tema da adoção, essa Lei revogou as anteriores, passando a ser previsto somente por meio do ECA.15 15 Segundo Abreu (2002), a alteração de grande relevância foi o fato de não ser mais a pobreza razão para infantes e jovens serem conduzidos às famílias substitutas. Sendo assim, após o ECA, a perda de “poder familiar” não pode estar fundamentada na “situação irregular” de meninos e meninas em razão da impossibilidade de pais manterem a subsistência de seus filhos. É nesse mesmo contexto constitucional que a adoção tem sua prática modificada. Como um produto histórico e social relativo à condição da criança, a representação da adoção tem seus sentidos ressignificados ao longo dos séculos XX e XXI.16 16 Para conferir as principais alterações sobre a adoção feita pelo Estatuto, ver Leila DUTRA DE PAIVA (2004).

Em 2009, com a promulgação da Lei n.° 12010/09, estabeleceram-se novas diretrizes referentes à prática adotiva. O mote principal dessa alteração diz respeito à garantia de convívio da criança e do adolescente em seus núcleos familiares de origem. Somente depois de esgotadas as possibilidades de reintegração familiar é que a adoção, tutela ou guarda passam a ser utilizadas como um subsídio possível. No entanto, apesar de recente, e celebrada por diversos operadores do direito e por representantes do movimento pró-adoção, por exemplo, a nova legislação não se deteve à questão da filiação homoparental.

Quando o requerente é homoafetivo

Apesar das significativas mudanças na prática adotiva, em termos legais, o pleito movido por gays e lésbicas à filiação continuava fadado ao entendimento do juiz. Isto é, o deferimento do pleito estava condicionado à interpretação de cada juiz, bem como de suas moralidades em torno das questões da homossexualidade. Além disso, somente um dos parceiros poderia pleitear a adoção, ainda que sob suspeita ou confirmação da equipe técnica em relação a uma conjugalidade homossexual.

De acordo com Henrique,17 17 Os nomes serão modificados para preservar a identidade dos entrevistados e dos requerentes aos processos, como quesito ético. um técnico atuante na Vara da Infância e da Juventude no Rio de Janeiro, que foi entrevistado sobre as adoções “homoafetivas”,

em muitos casos a equipe identifica logo que são gays ou lésbicas e que convivem juntos. Mesmo em casos em que a pessoa tenta esconder, com medo de não ser contemplada com o seu sonho de adotar, a gente sempre sabe. É uma foto na casa, um guarda-roupas compartilhado, utensílios pessoais etc. Principalmente quando é um homem querendo adotar sozinho, ou uma mulher que de repente menciona uma amiga, a gente “saca” logo. Mas isso não é impedimento para ele ou ela adotar. Inclusive, já temos muitos casos de adoções conjuntas desde antes desta abertura do Supremo Tribunal Federal. Mas, infelizmente, ainda tem que ser assim, sem maior alarde.

Nesse sentido, é importante ressaltar que, apesar do silenciamento legislativo em torno da adoção homoparental, tal prática tem sido entendida como possível por alguns juízes.18 18 Como exemplo, há a decisão, pelo Superior Tribunal de Justiça, acerca do recurso especial n. 889852-RS (2006/0209137-4). Trata-se da possibilidade de pessoa que mantém união “homoafetiva” adotar duas crianças (irmãos biológicos) já perfilhadas por sua companheira. Consideramos que este silenciamento seja referente aos pânicos morais (MISKOLCI, 2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.) construídos em torno da associação entre família e homossexualidade já discutidos no início deste artigo, como da representação moral e religiosa dos legisladores.

No entanto, a partir de 2011, a questão dos direitos sexuais de gays e lésbicas, no Brasil, ganha notoriedade. Isso porque o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF - 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI - 4277, reconhece as famílias “homoafetivas”.19 19 Para uma análise mais detalhada sobre essa decisão, ver Coitinho Filho (2014). Segundo Paulo Roberto VECCHIATTI (2012VECCHIATTI, Paulo Roberto. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.), essa decisão foi interpretada a partir dos artigos 226 § 3º20 20 Artigo 226 § 3 – “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”. e do art. 1723 do Código CivilBRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. TÍTULO III. DA UNIÃO ESTÁVEL. Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Brasília, 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
21 21 Artigo 1723 do Código Civil de 2002 – “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. e foi reconhecida de forma análoga à união estável. Por se tratar de uma ADI, a decisão teve “efeito vinculante” aos demais órgãos do Poder Judiciário e da administração pública.

Conforme analisado por Ricardo Andrade COITINHO FILHO (2014COITINHO FILHO, Ricardo Andrade. Que ousadia é essa? A adoção “homoafetiva” e seus múltiplos sentidos. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; 2015______. “O lugar do afeto na produção do “homoafetivo”: sobre aproximações ao familismo e à aceitabilidade moral”. Revista Ártemis, v. XIX, p. 168-178, 2015.), essa interpretação do Supremo Tribunal Federal reconheceu um quarto modelo de família. A Constituição previa três enquadramentos: a família constituída por meio do casamento, a união estável e a entidade monoparental (composta por uma pessoa e sua prole). No entanto, após essa decisão, que, segundo os ministros, não se enquadrava em nenhuma das acima referidas, devido à sua especificidade, passou a haver um quarto modelo de família: a união “homoafetiva”.

No que se refere à adoção, a decisão do Supremo Tribunal Federal alterou a prática adotiva. Isso porque, de acordo com o art. 39, § 2º, da lei n.º 12010/09, só poderiam adotar conjuntamente aqueles que fossem casados civilmente ou que mantivessem união estável “comprovada a estabilidade da família”. Desse modo, na medida em que a união “homoafetiva” equiparou-se à união estável, gays e lésbicas passaram a poder adotar de forma conjunta, gerando o que se denominou juridicamente como “adoção homoafetiva”.

Assim, embora tal prática já fosse possível segundo o entendimento do juiz, por meio do reconhecimento das uniões “homoafetivas” mudou-se a representação não só jurídica, como, também, a representação simbólica da família. Além disso, o silenciamento legislativo deu lugar à visibilidade das famílias constituídas por gays e lésbicas, apesar de ainda não haver uma legislação que ampare tal decisão jurídica.

Considerando a possibilidade do pleito e do seu deferimento, insta analisar: como o sujeito “homoafetivo” aparece no processo? Há alguma diferença entre ser “homoafetivo gay” e “homoafetivo lésbica” na forma como são conduzidos os processos? De que forma os técnicos e operadores do direito pensam o lugar da criança nesse (novo) modelo de família? De que forma a garantia de direitos (de ambos) é engendrada?

Para responder a essas questões, iremos nos basear na análise dos processos mencionados, tendo como eixo norteador a relação entre a sexualidade do postulante e a garantia do melhor interesse da criança.

O “homoafetivo”, a criança e um princípio balizador

A decisão do juiz nos processos analisados resultou no deferimento das adoções “homoafetivas”. Em conformidade à versão dos técnicos, presentes nos laudos analisados, gays e lésbicas podem adotar, sem, no entanto, causar qualquer tipo de “prejuízo” ou “distúrbio” à criança.22 22 Nas versões psicossociais, as discussões “peritas” oriundas da área “psi” eram utilizadas como forma de validação da inexistência de comprovação de influência da homossexualidade adulta sobre a personalidade infantil/juvenil. No entanto, ainda que consideremos positivamente a utilização dessas teorias, como forma de garantia do direito ao exercício da parentalidade adotiva por gays e lésbicas, não se pode desconsiderar o efeito regulador e disciplinador ao qual está enredado. Tal discurso pressupõe o estabelecimento de limites x possibilidades, a partir do binarismo no qual as identidades sexuais estão alocadas. No entanto, em que circunstâncias uma adoção movida por pessoas de declarada orientação homossexual tem sido percebida como favorável?

Conforme já mencionado, a noção de proteção integral se tornou a base do âmbito jurídico-estatal da infância e juventude no Brasil. Nesse sentido, as adoções procuram se basear pelo princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Tal posicionamento encontra-se em três artigos, sendo um na Constituição Federal e os demais no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O primeiro refere-se à adequação da legislação brasileira às convenções internacionais de compreensão da criança e do adolescente enquanto sujeitos de direitos.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, Constituição Federal).

O segundo e terceiro artigos elucidam a forma como esses direitos, ora garantidos, devem ser conduzidos. Logo em seu primeiro artigo, é definida a finalidade principal desta Lei, que “dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. Em seguida, no que se refere, especificamente, à adoção, o texto apregoa, em seu artigo 43º: “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”.

Assim, as decisões judiciais envolvendo a destituição de poder familiar (DPF) e a colocação em família substituta - por meio da adoção, dentre outras formas possíveis - têm sido movidas pela compreensão do que atende ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.

Dessa forma, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente resulta do entendimento do juiz, dos membros da equipe técnica psicossocial e demais operadores do direito acerca de cada caso em sua especificidade. Nesse sentido, pode-se apontar que, nos processos analisados, esse princípio era visto ora como favorável à adoção “homoafetiva”, ora problematizava as dimensões da homoparentalidade. Três processos, dentre os analisados, ressaltam bem essa questão.

Márcia e Lídia indicaram à equipe técnica que mantinham o sonho de serem mães. Era um desejo presente nas duas e, por isso, procuraram uma Vara da Infância e da Juventude a fim de se habilitarem à adoção. Após habilitadas, conheceram Caíque - um menino negro de nove anos de idade e destituído do poder familiar - em um abrigo fora do estado do Rio de Janeiro e “sentiram um forte desejo de adotá-lo”.

Na sentença delas, em 2011, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente foi indicado como referência para o deferimento:

O princípio do melhor interesse da criança é hoje identificado como um princípio constitucional por força da ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (ONU/89) por meio do Decreto 99710/90, sendo, portanto, um princípio em vigor no nosso sistema jurídico, haja vista o art. 5º, parágrafo 2º, da Constituição Federal, devendo ser a premissa em todas as ações concernentes à população infanto-juvenil nas relações familiares e institucionais.

Em seguida, afirmou:

O cordão umbilical que liga a criança aos requerentes é o cordão da alma, do cuidado, do carinho, do afeto, da vontade e certeza de exercer a parentalidade. A criança, por vontade própria, passou a chamar as requerentes de mães. Como interessadas, única e exclusivamente na criança, e em seu melhor interesse, no bem-estar físico e mental, na sua saúde, na sua integridade psicológica, as requerentes reiteram o amor pela criança. Assim, a situação que se verifica com a criança: o melhor interesse da criança é ser adotada pelos requerentes, pessoas que reúnem condições de exercer a parentalidade responsável. A proteção da criança no processo de adoção e a consecução de seu direito de convivência familiar é o objeto finalístico de presente ação. [...] A adoção, seja ela homoafetiva ou não, visa atender ao melhor interesse da criança. Os Magistrados do estado do Rio de Janeiro fazem escolha com uma visão despida de preconceito e lotada do que realmente interessa em termos de criança e juventude: o respeito ao seu melhor interesse. São inúmeras as sentenças em primeiro grau que tratam da matéria.

Nesse sentido, podemos perceber que, por meio de um parecer favorável à adoção dessa criança pelo casal “homoafetivo”, a questão da sexualidade dos postulantes foi tornada secundária. Essa questão ficou explícita e relacionada ao princípio do melhor interesse ao ser mencionado que “a adoção, seja ela homoafetiva ou não, visa atender ao melhor interesse da criança”.

Mariana, outra requerente à adoção, propôs uma ação diferente em relação à Márcia e Lídia. Em seu processo, informou que vivia em uma união estável com sua companheira há 11 anos. Ambas nutriam o desejo de ter um filho. No entanto, apesar de ser um projeto em comum, apenas Maria, sua companheira, realizou-o. Esta se habilitou e adotou Renan, que estava abrigado em uma instituição no Rio de Janeiro, visitada por ambas. Maria conta que sua companheira se afeiçoou ao menino desde que o conheceu. Juntas criam Renan, que as reconhece como mães, “sendo a referência familiar cumprida igualmente por ambas as companheiras”.

Tomando conhecimento da decisão do Supremo Tribunal Federal em relação ao reconhecimento das “uniões homoafetivas” e seu efeito em relação à adoção, Mariana entrou com pedido de adoção unilateral, cujo intuito fora o de perfilhar o filho de sua companheira. Afirmando ter demonstrado funções parentais para com Renan desde a sua chegada, o que propunha era “formalizar uma situação que já existe e que é comum para o pequeno”. Nesse sentido, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente foi utilizado da seguinte forma:

Da adoção homoafetiva: A adoção por casais homoafetivos é uma realidade no Brasil e em todo mundo, sendo concedida sempre que verificado o atendimento ao melhor interesse da criança. Cabe lembrar que a adoção é um instituto com forte caráter de ficção jurídica, pelo qual se cria um vínculo parental que não corresponde à realidade biológica, sendo que, ao decidir sobre uma possível adoção, o juiz deve levar em conta as reais vantagens para a criança que poderão advir da adoção, que deverá fundar em motivos legítimos decidindo sempre pelo bem-estar da criança.

Em seu processo, foi utilizada uma jurisprudência referente à outra adoção conjunta entre pares homossexuais. Por meio da analogia, o intuito fora o de garantir o deferimento do requerimento.

A 4ª Turma Superior do Tribunal de Justiça em recente julgamento de Resp. 889.852-RS se manifestou sobre a possibilidade de adoção de crianças por pessoas que mantêm união homoafetiva, conforme publicado no informativo n.º 0432, da seguinte forma: MENORES. ADOÇÃO. UNIÃO HOMOAFETIVA. Cuida-se da possibilidade de pessoa que mantém união homoafetiva adotar duas crianças (irmãos biológicos) já perfilhadas por sua companheira. É certo que o art. 1º da Lei n.º 12.010/2009 e o art. 43 do ECA deixam claro que todas as crianças e adolescentes têm a garantia do direito à convivência familiar e comunitária e que a adoção fundada em motivos legítimos pode ser deferida somente quando apresentar reais vantagens a eles. Anote-se, então, ser imprescindível, na adoção, a prevalência dos interesses dos menores sobre quaisquer outros, até porque se discute o próprio direito de filiação, como consequências que se estendem por toda a vida. Decorre daí que, também no campo da adoção na união homoafetiva, a qual, como realidade fenomênica, o judiciário não pode desprezar, há que se verificar qual melhor solução a privilegiar a proteção aos direitos da criança. Frise-se inexistir aqui expressa previsão legal a permitir também a inclusão, como adotante, do nome da companheira de igual sexo nos registros de nascimento das crianças, o que já é aceito em vários países.

Ainda se utilizando da sentença de adoção unilateral movida por Mariana, considera-se o caso de perfilhação utilizado como jurisprudência:

Frise-se, por último, que, segundo estatística do Conselho Nacional de Justiça, ao consultar-se o Cadastro Nacional de Adoção, poucos são os casos de perfilhação de dois irmãos biológicos, pois há preferência por adotar apenas uma criança. Assim, por qualquer ângulo que se analise a questão, chega-se à conclusão de que, na hipótese, a adoção proporciona mais vantagens aos menores (art. 43 do ECA) e seu indeferimento resultaria verdadeiro prejuízo a eles.

Nesse caso, o princípio do melhor interesse da criança também foi utilizado como argumentação favorável ao pleito movido por pessoas declaradamente homossexuais. Podemos identificar que a adoção foi tida como a melhor solução, independentemente da orientação sexual do postulante.

Qual a similaridade entre os processos acima mencionados?

Ambos, ao retratarem o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, procuraram evidenciar que a sexualidade do requerente não seria impeditiva, visto que a necessidade de se encontrar uma família para aquela criança era maior. Ou, em outras palavras, esse tipo de adoção representava “reais vantagens” ao adotando.

Não se pode desconsiderar também que, nos casos citados, os adotantes faziam parte de um perfil de crianças identificadas como “dificilmente adotáveis”. A primeira era negra, do sexo masculino e com nove anos de idade. A segunda era referente a uma adoção de dois irmãos.

O perfil tido como preferencial - quase padrão - nas habilitações dos requerentes brasileiros é composto por preferência a meninas, de pele branca, com até dois anos de idade, sem irmãos, sem qualquer tipo de doença crônica etc. Os Grupos de Apoio à Adoção têm feito um trabalho pedagógico acerca da realidade das crianças que estão em condições legais de serem adotadas. Adoções com esse perfil são as chamadas adoções necessárias.23 23 Para reverter esse quadro, utilizam-se estratégias de sensibilização, por meio de mecanismos de reflexividade, em que se alega questões como: o tempo que irá ficar na fila para encontrar uma criança de até dois anos de idade; a necessidade de crianças encontrarem um lar; crianças maiores dão menos trabalho; toda criança fica doente, sendo ela crônica ou não; a “índole” não é genética, mas de acordo com a criação que os pais dão etc.

Assim, nesses casos, a questão da adoção “homoafetiva” pareceu indicar, também, uma forma de garantir que crianças dificilmente adotáveis pudessem ser adotadas. É o que Uziel (2012______. “O melhor interesse da criança e o “mal menor”: quando os requerentes são gays”. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, v. XVI, n. 395, mar. 2012.) chamou de “mal menor”. Em sua pesquisa com adoções movidas por gays e lésbicas, a autora identificou que essa questão aparece como uma espécie de salvação das crianças cujos destinos seriam ainda piores. Nesse caso, crianças serem adotadas por gays ou lésbicas seria considerado como uma situação “menos pior” do que permanecerem em instituições. No entanto, essa questão é controversa. Tanto membros dos Grupos de Apoio à Adoção, voltados à adoção “homoafetiva”, como pais e mães de orientação homossexual, indicaram não concordar com o levantamento dessa hipótese.

Certa vez, ao participar de uma mesa sobre “família, adoção e homossexualidade”, uma mãe adotiva e declaradamente lésbica se mostrou indignada com a suposição levantada pelos palestrantes sobre esse aspecto “solucionista” em relação às adoções “homoafetivas”. Naquela, foi suposto que as adoções “homoafetivas” poderiam estar sendo deferidas como forma de facilitar que crianças com perfis dificilmente adotáveis tivessem maiores chances de serem adotadas, sendo, inclusive, o alvo preferencial das adoções “homoafetivas”.24 24 Ao ser indagada sobre esta questão, por participar da mesa, e se mostrar reflexiva quanto a esta mesma suposição e, consequentemente, favorável à interpretação, esta mãe – inicialmente uma informante-chave na minha pesquisa de campo – passou a me evitar nos eventos da pesquisa de campo, chegando a me bloquear das suas redes sociais.

No entanto, em outro momento da etnografia, ao participar de uma das reuniões mensais de um grupo de apoio à adoção (GAA) voltado prioritariamente para pais e mães “homoafetivos” no município do Rio de Janeiro, essa mesma mãe - em nota mencionada - convidava os presentes a serem mais “sensíveis” aos perfis das crianças. Em sua fala, disse que “nós homossexuais sabemos bem como é ser discriminado, rejeitado”. E que, por isso, “devemos ser mais solidários às crianças que também são discriminadas por não corresponderem ao perfil dos adotantes brasileiros: meninas, brancas, com até dois anos de idade e sem doenças”.

Diferentemente das habilitações e processos de adoção movidos por pessoas heterossexuais, a questão do melhor interesse da criança e do adolescente é conduzida apenas para indicar se o postulante tem condições psicossociais para receber uma criança e dar-lhe oportunidade de ter uma família. A questão das adoções necessárias também aparece nas habilitações e processos movidos por pessoas heterossexuais. No entanto, a diferenciação consiste em não associar a sexualidade do postulante como forma positivada de alternativa para um “problema social”.

Não consideramos, com isso, que haja uma vitimização dos postulantes frente aos mecanismos de sensibilização do Judiciário. Ao contrário, tal postura parece mais indicar uma estratégia para a efetivação do projeto da parentalidade adotiva. A despeito disso, é necessário compreender a forma como esses discursos podem estar (re)definindo os perfis desejados pelos postulantes, por meio de uma linguagem emotiva. Além disso, os termos de exclusão e desigualdade podem, também, estar sendo apropriados de forma análoga à trajetória pessoal de muitos gays e lésbicas, apenas como meio de corroborar a maior efetivação das “adoções necessárias”, ainda que por meios discursivos institucionalizados.

A segunda questão percebida nesse lócus da interpretação do melhor interesse da criança e do adolescente pode ser compreendida a partir da habilitação e do processo de adoção movidos por Carlos e Henrique. Na habilitação,25 25 É importante mencionar que a habilitação foi feita em outro estado, e somente recebida na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso no Rio de Janeiro em 2011. iniciada em 2005, o casal informou que vivia em um relacionamento estável há seis anos. Ambos ressaltaram possuir forte desejo de se tornarem pais. Juntos, militam nos direitos LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e apontaram que suas funções na militância “possibilitou-os se tornarem pessoas melhores, mais sensíveis, despertando em si o interesse em constituir uma família com filhos”. Aos técnicos reconheceram que a homossexualidade representa preconceitos e discriminações e, por isso, indicaram estar se preparando para “transpor as barreiras para exercerem com amor o papel paterno”. Indicaram, ainda, contar com a ajuda de madrinhas e amigas “para suprir de forma saudável suas funções”.

Ao se habilitarem, indicaram o perfil de até duas crianças, sendo uma de cada gênero, de cor indiferente, podendo uma ser portadora do vírus HIV, com a idade entre zero e cinco anos.26 26 A questão do perfil faz parte do desejo do postulante, podendo ser alterado por este ao longo de todo o processo pré-adotivo. Conforme já mencionado, é nesse sentido que os Grupos de Apoio à Adoção fazem um trabalho pedagógico acerca das “adoções necessárias”, visando a que um maior número de crianças possa ter o direito a uma família.

Todavia, o caso de Carlos e Henrique foi tratado de forma diferente, conforme sentença abaixo:

Ante o exposto e o mais que dos autos consta, visando ao melhor interesse da criança e adolescente como fundamento principal em uma adoção, julgo procedente o pedido de inscrição para adoção formulada por Carlos e Henrique, com fundamento no artigo 50, parágrafos 1º e 2º, do diploma legal supracitado, que estarão habilitados a adotar crianças ou adolescentes do sexo feminino na faixa etária a partir dos 10 anos de idade.

Conforme indicado, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente foi conduzido de forma diferente em relação aos demais processos “homoafetivos”. Nesse sentido, a restrição a uma criança maior de 10 anos e do gênero feminino, determinada para um casal gay, parece supor que a decisão se baseou na, já mencionada, concepção historicamente vinculada a homossexuais masculinos como possivelmente pedófilos. Nessa medida, supõe-se que a decisão em restringir que tipo de crianças eles poderiam adotar tenha como caráter principal “protegê-las” dessa possível ameaça.

Diante disso, foi destacado, pelo advogado dos requerentes, que o perfil desejado não foi respeitado. A alteração restringiu-os à questão de gênero e idade da criança a ser pleiteada. Em sua argumentação, apontou:

Os requerentes interpuseram recurso de apelação buscando reformar parcialmente a sentença notadamente quanto à delimitação do sexo e da idade do adotando, vez que restou fartamente demonstrado nos autos, devidamente corroborado por parecer da equipe técnica daquela vara e por manifestação favorável do Parquet, a capacidade e a legitimidade dos requerentes em adotar uma criança. A sentença [...] deixou transparecer um resquício de discriminação e preconceito quando impôs que o adotando teria que ser necessariamente criança ou adolescente do sexo feminino na faixa etária a partir dos 10 anos de idade. Ocorre que, se não há restrição legal para que casais homoafetivos adotem, também não deve haver delimitações específicas quanto ao sexo e à idade do menor.

Ainda em seu recurso, o advogado do casal alegou que tal delimitação consistia em afronta aos direitos de isonomia, igualdade e liberdade. Mediante isso, afirmou que “não pode ser admitida uma imposição de regras não previstas em lei, que, ao contrário, afronta os princípios constitucionais”. Em suas palavras, indicou que tal restrição seria “criminosa” e “desumana”.

Por meio do recurso, o Ministério Público foi convocado para dar o seu parecer. Favorável à apelação, seu representante decidiu por “aumentar de 10 para 12 anos a idade limitada na sentença e excluir a limitação relativa ao sexo”. Em suas palavras:

Não é possível que nos dias de hoje, quando se luta tanto pelo direito das minorias, nos autorizemos a nos esquecer do direito da infância e juventude em detrimento do direito do adulto, quando a regra e a lógica dizem justamente ao contrário. Primeiro o direito da infância. Depois o direito do adulto. Não podemos sacrificar o direito da infância para garantir o direito do adulto a qualquer preço. Não obstante, não estamos aqui diante de direitos opostos, estamos, sem dúvidas, diante de direitos ora diversos, ora coincidentes. Diversos porque se trata de um recurso de apelação, onde os insurgentes procuram seus direitos, sem mencionar, nunca em nenhum momento, o real interesse da criança. Coincidentes, porque querem adotar e há infantes que querem ser adotados. [...] O medo de ser taxado de preconceituoso não pode conduzir as decisões dos operadores do direito, principalmente quando o direito de um (requerentes) difere do outro (população infanto-juvenil). Estamos aqui a enfrentar situação de exceção que tal deve ser tratada, sem nunca nos esquecermos de traçarmos o aspecto de hierarquia de valores que encerra a presente questão [grifos nossos].

Dessa forma, o que ficou explícito em sua fala é que, à luz do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, a decisão em delimitar a idade da criança - e agora não mais o gênero - seria a forma de garantir direitos a elas. Mas a que direitos se refere o representante do Ministério Público ao determinar que “homoafetivos” só podem adotar crianças acima de 12 anos? Qual a base para tal delimitação?

O representante do Ministério Público argumenta acerca do caráter restritivo da sentença:

A limitação da idade proclamada na sentença vem ao encontro dos interesses das crianças sem rechaçar a pretensão dos apelantes. [...] Não se trata aqui de preconceito em relação aos apelantes, por não apresentarem uma família com contornos tradicionais. Trata-se apenas de precaução em relação ao adotando. [...] A sentença atacada limitou a idade em 10 anos. Nosso entendimento é no sentido de que a idade mínima deveria ser 12 anos, que é a idade que o Estatuto obriga a oitiva do adolescente. [...] Buscou-se uma idade na qual a manipulação fosse mais difícil e a consciência mais evidenciada [grifos nossos].

Nesse momento, a argumentação de garantia do melhor interesse da criança e do adolescente muda completamente de foco. Em suas palavras, o representante do Ministério Público ressalta “preocupação em relação ao adotando”. Assim, conduzia esse princípio numa interpretação onde visava a que “a manipulação fosse mais difícil e a consciência mais evidenciada”.

Tal sentença reforça o caráter atribuído à homossexualidade como potencialmente ameaçadora, principalmente para o convívio com crianças. Além disso, reforçava o caráter perigoso, aberrante e anormal associado historicamente à homossexualidade (UZIEL, 2004UZIEL, Anna Paula. “Homossexualidade e parentalidade: ecos de uma conjugação”. In: HEILBORN, Maria Luiza (Org.). Família e sexualidade. Rio de Janeiro: EDUFGV, 2004.).

Para além da oitiva obrigatória mencionada pelo Ministério Público, parece haver certa coadunação, na restrição ao perfil requerido, de teorias psicológicas que relacionam a idade de 12 anos (i) como uma fase em que a criança parece demonstrar um despertar da consciência, o que geraria melhores condições de (livre) escolha e (ii) maior desenvolvimento da sexualidade. Nesse sentido, em sua determinação, corroboram a reprodução do dispositivo heteronormativo da sexualidade, instituído por meio de uma noção biologizante que preconiza o desenvolvimento humano em termos essencializados de personalidade já formada e identidade sexual definida. Assim, na argumentação do Ministério Público, a ideia de que aos 12 anos uma criança é mais dificilmente manipulada baseia-se em “verdades científicas” que desconsideram os avanços teóricos oriundos de críticas feministas e dos enfrentamentos feitos pelo movimento LGBT como a própria evidência da homofobia27 27 Tal questão será analiticamente discutida nas considerações finais. institucional.28 28 Durante a fase final da pesquisa, esse processo ainda se encontrava em aberto. Por isso, não foi possível identificar que questões poderiam ser elencadas na oitiva no que se refere à intersecção entre paternidade, homossexualidade e escolha da criança. O distanciamento da concepção da homossexualidade em relação às relações de parentesco e de formação familiar vem se materializando por meio de sutis formas de regulação da sexualidade.

Como vimos no processo de adoção unilateral movido por Mariana, indicou-se que gays e lésbicas podem adotar quando for para atender às necessidades de uma criança ou adolescente. No entanto, pelo conjunto dos fatos, e em consonância ao parecer do Ministério Público, não é qualquer criança. Mas também não parece ser qualquer postulante. Em relação ao infante, o deferimento parece ser mais favorável àqueles que possam se defender das possíveis “manipulações” às quais possam ser (sexualmente) induzidos, ou para aqueles que se encontram marginalizados e em menores condições de serem adotados. Já em relação aos postulantes, homens gays parecem ser mais visivelmente relacionados a estereótipos da pedofilia,29 29 A utilização de argumentos que indicavam a presença feminina para o cuidado da criança, no caso da habilitação de Carlos e Henrique, parece supor uma espécie de “compensação de gênero” no exercício dos “papéis” socialmente estabelecidos, como também a “garantia” de uma improvável prática de pedofilia. sobretudo em termos historicamente produzidos das homossexualidades, ao passo que as mulheres, ainda que lésbicas, parecem ser biologicamente relacionadas à natureza do cuidado e a um instinto materno.

Assim, se - num primeiro momento - o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente foi sendo argumentado favoravelmente às adoções “homoafetivas”, em outro, foi utilizado como forma de “proteção” das crianças e adolescentes em relação a estes.

Considerações finais

A principal questão a que este trabalho se dedicou foi a de compreender como o princípio do “melhor interesse da criança e do adolescente”, ao ser utilizado como central para o deferimento ou não de um procedimento adotivo, tem sido conduzido em relação ao pleito de gays e lésbicas.

Como vimos, a modificação do cenário adotivo e o posicionamento do Supremo Tribunal Federal corroboraram para que gays e lésbicas pudessem, de forma estratégica, ter direito à homoparentalidade de forma mais visibilizada. Isto é, a configuração da adoção “homoafetiva” ampliou o escopo de direitos civis, antes negado a uma população marginalizada, considerada desviante da norma heterossexual.

Conforme se pode constatar, apesar do deferimento dos processos “homoafetivos”, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente foi utilizado de forma dual: (i) era necessário representar “reais” vantagens para crianças serem adotadas, (ii) ainda que visto de forma “cautelosa” frente à possibilidade da pedofilia. No entanto, processos e habilitações movidos por requerentes heterossexuais são “naturalmente” percebidos como garantia do princípio supracitado, visto que a sexualidade destes não é nem mesmo posta em questão para interpretação.30 30 Conforme já mencionado, durante a pesquisa, também foram coletados processos movidos por pessoas heterossexuais. No entanto, em nenhum deles a questão da sexualidade de qualquer um dos requerentes – homens ou mulheres – foi posta em questão.

Entendemos, dessa forma, que o acionamento de um conjunto de saberes “peritos” se deu devido à construção histórica das homossexualidades, relacionadas ao caráter desviante, perigoso e estereotipado. Ainda que deferidos, os processos passam por triagens que revelam que, embora a “adoção homoafetiva” represente uma nova interpretação da lei, sobretudo devido aos avanços das pautas dos Direitos Humanos e do próprio movimento social LGBT, ainda não há uma aceitação plena entre os membros do Judiciário. Tal questão é tornada sob maior suspeição quando os postulantes são gays, ao passo que parece haver uma biologização do cuidado para com as mulheres, ainda que estas se identifiquem como lésbicas. Recobra-se, assim, a discussão interseccional que aponta na forma em que, contextualmente, são produzidas diferenças relacionadas na enunciação articulada entre (homo)(s)sexualidade e gênero.

Esses pânicos morais acionados, como já atentou Miskolci (2007MISKOLCI, Richard. “Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay”. Cadernos Pagu, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero Pagu UNICAMP, n. 28, p. 101-128, janeiro-junho, 2007.), marcam a criação da homofobia contemporânea. Nesse sentido, parece pertinente agregar à discussão a dimensão do conceito homofobia. No entanto, tal perspectiva analítica se dá de forma semelhante à proposta por Rogério Diniz JUNQUEIRA (2007JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas”. Bogoas - estudos gays: gênero e sexualidade, v. 1, n.1, p. 1-22, 2007.). O autor salienta que, embora tal conceito seja entendido como “grave problema social”, não existe uma convergência acerca do seu uso.

A partir da noção bourdiana de “campo”, o autor mostra como o conceito de homofobia tem sido alvo de disputas de forma relacional e constituído em meio a tensões internas, como desdobramento dos conflitos sociais, simbólicos e políticos, tanto internos quanto externos aos grupos que fazem uso deste. Em meio à retórica acerca da (ainda) utilidade da noção de homofobia hoje, atenta que tal conceito apresenta certas limitações, sobretudo na forma como se utiliza de termos clínicos e medicalizantes para configurar as práticas tidas como homofóbicas, como sentimentos de ódio, desprezo, aversão etc.

No entanto, ainda que passível de muitas críticas, o autor recobra o caráter da denúncia, reflexiva e crítica, contra comportamentos e situações que, ao serem alocadas ao campo institucional, como o caso em tela discutido, corrobora para perceber, na prática homofóbica, não só atos de violência física, como também práticas de discriminação, preconceito e cerceamento de direitos à cidadania.

A homofobia fica ainda mais evidente quando se contextualiza o dispositivo da sexualidade presente em nossa sociedade, que evoca um sistema normalizador e disciplinador de (re)produção da heteronormatividade, alocada como a forma correta de se viver. Na produção e regulação das subjetividades, a construção do sujeito homossexual, em oposição, tem sido hierarquizada a partir de noções de desvio e perversão que refletem as relações de poder e os processos de diferenciação frente à norma.

Assim, na discussão proposta neste artigo, pode-se observar a forma como foram instrumentalizados mecanismos institucionais na prática homofóbica. O Judiciário, como parte de um corpo social, reproduziu noções estereotipadas que serviram como base para ações essencializantes e discriminatórias na condução do processo.

Consideramos os discursos e decisões psicossociais e jurídicos descritos como uma significação da diferença que se articula à supremacia hegemonicamente estabelecida, sobretudo no que tange a questões de gênero e sexualidade, frente aos modelos de masculinidade e feminilidade que definiriam os papéis dos requerentes no exercício da paternidade ou maternidade “homoafetiva”.

Agradecimento

Gostaria de agradecer às pesquisadoras Juliana Borges, Thainá Freitas e Lívia Salgado, à época bolsistas de Iniciação Científica, pelas trocas e reflexões ao longo da minha pesquisa, bem como à professora Alessandra Rinaldi, à época minha orientadora no Mestrado em Ciências Sociais no âmbito do PPGCS/UFRRJ, pelas críticas construtivas e apoio em todas as etapas durante o curso e além dele

Referências

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  • VECCHIATTI, Paulo Roberto. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012.
  • 1
    O projeto de Lei n.º 1.151/95 encontra-se disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=16329.
  • 2
    Este projeto faz parte de um conjunto maior de reivindicação nacional e internacional dos movimentos gays, que tem sua principal aparição após o surgimento da Aids, na década de 1980. Luiz MELLO (2005MELLO, Luiz. Novas famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamound, 2005.) indica que, inicialmente, o movimento pautava-se em busca por direitos patrimoniais, visto que a relação homossexual não era reconhecida sob o status da família. Em seguida, a pauta do movimento se amplia, exigindo reconhecimento pela conjugalidade de gays e lésbicas. Atualmente, um dos motes das reivindicações é pelo reconhecimento da afetividade nos relacionamentos entre pares do mesmo sexo, semelhante às relações heterossexuais. Sobre a atuação do movimento homossexual no Brasil, ver Regina FACCHINI (2003FACCHINI, Regina. “Movimento homossexual no Brasil: recompondo um histórico”. In: GREEN, James; MALUF, Sônia (Eds.). Cadernos AEL: homossexualidade, sociedade, movimento e lutas, v. 10, n. 18-19, 2003.).
  • 3
    Tal pesquisa foi decorrente de um projeto mais amplo, desenvolvido a partir da pesquisa “A adoção em seus múltiplos sentidos”, sob apoio da FAPERJ e coordenada pela Profa. Dra. Alessandra Andrade Rinaldi no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que teve como objetivo compreender os sentidos que estão sendo dados à filiação adotiva, por aqueles que a fazem via Poder Judicial e por vínculos socioafetivos.
  • 4
    Usaremos o conceito “homoafetivo” apenas em caso de (i) discurso nativo ou (ii) quando houver referência imediatamente relacionada a tal conceito. Compreendemos esse neologismo como uma linguagem jurídica circunscrita numa concepção de “docilização” da figura do gay, que procura romper com o estigma associado a esse como um sujeito hipersexualizado, mas, que, por outro lado, o faz nos termos da lógica discursiva hegemônica. O “homoafetivo” surge, assim, como uma categoria que tende a aproximar o homossexual às relações sociais, familiares e morais. Sua produção advém de um contexto político na busca por garantia de direitos e ressignificação do homossexual no imaginário social. Nesse sentido, quando não for em relação às duas situações acima descritas, optaremos pelo termo “gay” e “lésbica”, ainda que considerando que estes também sejam produzidos historicamente. A diferença se dá, no entanto, na amplitude conceitual e na especificidade identitária que estes últimos abrangem em relação ao primeiro. Para ver mais discussão sobre esse conceito, ver, por exemplo, Ricardo Andrade COITINHO FILHO (2014; 2015).
  • 5
    Todas as citações que constam nestes documentos – habilitação e processo – não serão acompanhadas de referência, visto que os mesmos correm em segredo de justiça. A autorização para a análise, restrita a fins científicos, procura, desta forma, garantir a ética na pesquisa e o sigilo requerido na qualidade deste material.
  • 6
    Os processos e habilitações foram coletados em duas fases de uma pesquisa, sendo a primeira entre 2009 a 2011 e a segunda entre 2011 a 2013. Os processos e habilitações coletadas na primeira fase foram ajuizadas até a data de 2009. Já os processos e habilitações coletadas na segunda fase foram ajuizadas após 2009. Com isso, procurou-se identificar se a promulgação da Lei n.º 12010/09 alterou a cultura da adoção, as razões que levam a esta e o procedimento adotivo. Esses documentos analisados são oriundos da 1° Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (1°VIJI) regional de Madureira, da 2° Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (2°VIJI) regional de Santa Cruz e da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital.
  • 7
    Em ambas as pesquisas acima mencionadas, foram coletados processos e habilitações para adoção tanto de homens e mulheres solteiros, quanto de casais heterossexuais e “homoafetivos”. No entanto, em virtude da escolha analítica para este artigo, os processos e habilitações movidos por casais heterossexuais só serão utilizados como perspectiva geral de análise comparativa e não em específico, como os demais em questão.
  • 8
    Rubin ([s.d.]RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Disponível em: Disponível em: http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br/pdf/gaylerubin.pdf . Acesso em: 3/05/2012.
    http://www.miriamgrossi.cfh.prof.ufsc.br...
    ) aponta, ainda, que o estabelecimento do “bom sexo” decorre de uma concepção essencialista de sexualidade que crê que esta seja produto de uma dimensão corporal, proveniente de algo “natural” do corpo de homens e mulheres.
  • 9
    A heteronormatividade estabelece relações de poder ao privilegiar apenas uma dentre as várias formas de expressão sexual humana. É por meio das relações sociais cotidianas que o intuito das relações de poder se configura e se naturaliza. Além da discriminação contra pessoas que não se enquadram no perfil da heterossexualidade compulsória, a heteronormatividade contribui para a reprodução sexista, desvalorizando e estigmatizando não só a homossexualidade, como também o feminino (Guacira LOURO, 1999LOURO, Guacira Lopes. “Pedagogias da sexualidade”. In: ______ (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.).
  • 10
    Tal concepção desconsidera a diversidade em que as sociedades criam os seus mecanismos próprios para inventar e pensar os dados biológicos e construir formas de conceber família e as relações de parentesco. Alguns estudos etnográficos fazem esse exercício relativista, como os apresentados por Françoise HÉRITIER (2000HÉRITIER, Françoise. “A coxa de Júpiter. Reflexões sobre os novos modos de procriação”. Revista Estudos Feministas, ano 8, 2000.) sobre os Haya e os Nuer estudados por Edward EVANS-PRITCHARD (1978EVANS-PRITCHARD, Edward. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978.).
  • 11
    Foucault (2001) comenta sobre o poder disciplinar a que a criança deveria ser submetida, a fim de que se tornasse dócil, de modo que a delinquência fosse evitada. Essa disciplina produziria pequenos indivíduos adequados ao desejo do Estado. Escolas e orfanatos representavam um grande mecanismo de controle. Patrice SCHUCH (2009) argumenta sobre as políticas estatais destinadas à juventude como forma de perceber as preocupações com a “delinquência”, insegurança pública, desenvolvimento industrial e urbanização.
  • 12
    Para uma análise das modificações em relação à legislação brasileira voltadas para a infância e juventude, ver Patrice SCHUCH (2009).
  • 13
    Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988BRASIL, Constituição Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
    ).
  • 14
    Essa normativa se adequou às normativas de infância e juventude internacionais, ao reconhecimento dos direitos humanos e ao processo de redemocratização do Brasil.
  • 15
    Segundo Abreu (2002), a alteração de grande relevância foi o fato de não ser mais a pobreza razão para infantes e jovens serem conduzidos às famílias substitutas. Sendo assim, após o ECA, a perda de “poder familiar” não pode estar fundamentada na “situação irregular” de meninos e meninas em razão da impossibilidade de pais manterem a subsistência de seus filhos.
  • 16
    Para conferir as principais alterações sobre a adoção feita pelo Estatuto, ver Leila DUTRA DE PAIVA (2004DUTRA DE PAIVA, Leila. Adoção: significados e possibilidades. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.).
  • 17
    Os nomes serão modificados para preservar a identidade dos entrevistados e dos requerentes aos processos, como quesito ético.
  • 18
    Como exemplo, há a decisão, pelo Superior Tribunal de JustiçaSTJ - Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 889852-RS (2006/0209137-4). Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Rio Grande do Sul, 2006. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/16839762/recurso-especial-resp-889852-rs-2006-0209137-4/inteiro-teor-16839763.
    https://stj.jusbrasil.com.br/jurispruden...
    , acerca do recurso especial n. 889852-RS (2006/0209137-4). Trata-se da possibilidade de pessoa que mantém união homoafetiva” adotar duas crianças (irmãos biológicos) já perfilhadas por sua companheira.
  • 19
    Para uma análise mais detalhada sobre essa decisão, ver Coitinho Filho (2014).
  • 20
    Artigo 226 § 3 – “para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”.
  • 21
    Artigo 1723 do Código Civil de 2002 – “é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
  • 22
    Nas versões psicossociais, as discussões “peritas” oriundas da área “psi” eram utilizadas como forma de validação da inexistência de comprovação de influência da homossexualidade adulta sobre a personalidade infantil/juvenil. No entanto, ainda que consideremos positivamente a utilização dessas teorias, como forma de garantia do direito ao exercício da parentalidade adotiva por gays e lésbicas, não se pode desconsiderar o efeito regulador e disciplinador ao qual está enredado. Tal discurso pressupõe o estabelecimento de limites x possibilidades, a partir do binarismo no qual as identidades sexuais estão alocadas.
  • 23
    Para reverter esse quadro, utilizam-se estratégias de sensibilização, por meio de mecanismos de reflexividade, em que se alega questões como: o tempo que irá ficar na fila para encontrar uma criança de até dois anos de idade; a necessidade de crianças encontrarem um lar; crianças maiores dão menos trabalho; toda criança fica doente, sendo ela crônica ou não; a “índole” não é genética, mas de acordo com a criação que os pais dão etc.
  • 24
    Ao ser indagada sobre esta questão, por participar da mesa, e se mostrar reflexiva quanto a esta mesma suposição e, consequentemente, favorável à interpretação, esta mãe – inicialmente uma informante-chave na minha pesquisa de campo – passou a me evitar nos eventos da pesquisa de campo, chegando a me bloquear das suas redes sociais.
  • 25
    É importante mencionar que a habilitação foi feita em outro estado, e somente recebida na Vara da Infância, da Juventude e do Idoso no Rio de Janeiro em 2011.
  • 26
    A questão do perfil faz parte do desejo do postulante, podendo ser alterado por este ao longo de todo o processo pré-adotivo. Conforme já mencionado, é nesse sentido que os Grupos de Apoio à Adoção fazem um trabalho pedagógico acerca das “adoções necessárias”, visando a que um maior número de crianças possa ter o direito a uma família.
  • 27
    Tal questão será analiticamente discutida nas considerações finais.
  • 28
    Durante a fase final da pesquisa, esse processo ainda se encontrava em aberto. Por isso, não foi possível identificar que questões poderiam ser elencadas na oitiva no que se refere à intersecção entre paternidade, homossexualidade e escolha da criança.
  • 29
    A utilização de argumentos que indicavam a presença feminina para o cuidado da criança, no caso da habilitação de Carlos e Henrique, parece supor uma espécie de “compensação de gênero” no exercício dos “papéis” socialmente estabelecidos, como também a “garantia” de uma improvável prática de pedofilia.
  • 30
    Conforme já mencionado, durante a pesquisa, também foram coletados processos movidos por pessoas heterossexuais. No entanto, em nenhum deles a questão da sexualidade de qualquer um dos requerentes – homens ou mulheres – foi posta em questão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2015
  • Revisado
    24 Jul 2016
  • Aceito
    26 Ago 2016
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
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