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Guerras, histerias e mobilidades

Wars, hysterias and mobilities

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, havia uma convicção que orientava o espírito de cada ser humano: “guerras: nunca mais!”. O surgimento da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no fundo, visavam justamente evitar que novos conflitos armados pudessem assolar o planeta e violentar seus habitantes. Havia sobretudo a consciência de que a guerra não pudesse mais ser interpretada como um instrumento político para solucionar disputas, na lógica clausewitziana. Após séculos debatendo sobre guerras justas ou sagradas, percebeu-se que não era suficiente rechaçar os “crimes de guerra”, pois “a guerra é um crime”. O surgimento de figuras proféticas como Gandhi, Mandela e Martin Luther King, entre outras, reforçou ainda mais a convicção da existência de outros caminhos para solucionar disputas, inclusive no caso de graves formas de opressão e injustiça.

Apesar disso, nas últimas décadas, a amnésia parecer ter tomado o lugar da memória. Uma sorte de negacionismo histórico está ressuscitando o que parecia ter sido banido de forma definitiva. Guerras e outros conflitos armados estão se tornando cada vez mais comuns; a corrida armamentista está retomando fôlego; o espectro de um conflito nuclear, que parecia definitivamente superado, volta a assombrar. Mas, principalmente, assusta o recrudescimento da ideia de que a violência bélica possa ser uma opção mais ou menos ordinária para solucionar disputas e, inclusive, para pavimentar o caminho da paz e da justiça. Vamos, a seguir, apontar algumas reflexões sobre esse assunto para depois focar a relação entre conflitos armados e mobilidade humana, tema do dossiê do número 68 da Revista REMHU.

De bello

Experiências milenares atestam como a violência tende à reprodução e à intensificação, a assim chamada escalada da violência. No passado, houve tentativas para controlar esse processo: a bárbara “Lei do talião” (olho por olho, dente por dente) era uma maneira para delimitar e controlar a vingança; os próprios “duelos”, no fundo, tinham a mesma finalidade. A violência, de fato, tende a desenvolver dinâmicas miméticas, como comprovado por Girard (2004GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.), e, sobretudo, se alimenta de processos de inimização ou de demonização do adversário, mediante narrativas que desumanizam o outro. A violência dos exércitos é sempre precedida pela “propaganda de guerra”, ou seja, pela agressividade e o maniqueísmo da linguagem e dos símbolos (Pace, 2004PACE, Enzo. Perché le religioni scendono in guerra? Milano: Laterza, 2006.). Privado de sua humanidade, o inimigo perde seus direitos e poderá tranquilamente ser violentado sem nenhum escrúpulo de consciência. “Baratas”, “infiéis”, “comunistas”, “deicidas” e “fundamentalistas” podem e merecem ser exterminados. Nos conflitos bélicos, o homicídio é substituído pelo “malicídio”, ou seja, ao se matar o inimigo, mata-se o mal.

O drama é que essas dinâmicas tendem a afetar todos os envolvidos nos conflitos. Todos eles podem demonizar e ser demonizados, embarcando numa “histeria de guerra” que, nas palavras de Edgar Morin (2023MORIN, Edgar. Di guerra in guerra. Dal 1940 all’Ucraina invasa. Raffaello Cortina Editore, 2023.), significa “a conversão de um sintoma mental ou imaginário em um sintoma da realidade” (p. 14, tradução própria): o delírio típico dessa histeria implica “a atribuição de uma responsabilidade coletiva e, pior, de uma criminalidade coletiva” (Morin, 2023MORIN, Edgar. Di guerra in guerra. Dal 1940 all’Ucraina invasa. Raffaello Cortina Editore, 2023., p. 18, tradução própria). Dessa forma, atribui-se genericamente determinadas características perversas a todos os membros de uma nação ou de um grupo étnico: “são todos nazistas”, “todos comunistas”, “todos fundamentalistas” etc. Isso pode abarcar inclusive a criminalização da história, da religião e da própria cultura do povo inimigo (um exemplo é a recente proibição, em alguns países, da literatura russa, como se Dostoiévski ou Tolstói tivessem algo a ver com a invasão da Ucrania).

Se a demonização e criminalização do inimigo visam eliminar qualquer tipo de empatia, há também outras armas de guerras, como a educação à obediência cega às autoridades (Semelin, 1985SÉMELIN, Jacques. Per uscire dalla violenza. Torino: Gruppo Abele, 1985.), que suprime a responsabilidade diante dos crimes cometidos - o nazismo docet -, a utilização do medo generalizado - na lógica do mors tua, vita mea -, e sobretudo a arma da mentira, como sublinhado recentemente por Edgar Morin (2023MORIN, Edgar. Di guerra in guerra. Dal 1940 all’Ucraina invasa. Raffaello Cortina Editore, 2023.): raramente, na atualidade, um conflito se apresenta como uma guerra de agressão ou movida por interesses econômicos ou geopolíticos; há sempre a invenção de uma motivação “defensiva”, “protetiva” ou “preventiva” que justifica o recurso à violência armada (o caso mais emblemático, com certeza, é a segunda guerra contra o Iraque (2003), motivada oficialmente pelas “inexistentes” armas de destruição maciça que Saddam Hussein estaria construindo. No conflito foram assassinadas mais de 100 mil pessoas).

A gravidade dos conflitos bélicos, no entanto, está relacionada, principalmente, com as consequências humanas, sobretudo para os civis. As últimas guerras são marcadas pelo expressivo aumento das mortes da população em geral. São as chamadas, eufemisticamente, “baixas colaterais”. Há evidências, contudo, que em alguns casos essa matança se torne não apenas “efeito colateral”, mas “objetivo estratégico” do próprio conflito. Principalmente em contextos em que o alvo específico é formado por pequenos grupos armados escondidos em centros urbanos, o propósito dos bombardeios é atingir a população em geral a fim de gerar hostilidade contra esses grupos. Mas o caso mais grave é constituído, sem dúvida, pelas “limpezas étnicas” e, de forma específica, pelo estupro sistemático como etnocídio, talvez a maior evidência do processo de “desumanização” do outro.

Ademais, as consequências para os civis não podem ser medidas apenas pelos decessos, pois os impactos em termos psicofísicos, sociais, econômicos, políticos e demográficos vão afetar a população por numerosos anos, até por gerações. Sem contar os deslocamentos forçados, dos quais vamos falar mais adiante e, em um mundo cada vez mais conectado, os impactos que envolvem também populações geograficamente distantes: um caso recente é constituído pela crise de fornecimento de alimentos em nível mundial em decorrência do conflito na Ucrania. De fato, a insegurança alimentar é utilizada como “arma de guerra”.

Quando falamos em civis, entretanto, é necessário fazer uma ulterior distinção. Os conflitos armados do século XX - e não só - mostraram de forma contundente como, na grande maioria dos casos, existe um claro viés classista: quem combate e morre, na maioria dos casos, são pessoas pertencentes aos segmentos sociais mais baixos, obrigados a hostilizar homólogos do outro exército, para defender algo - riquezas e terras - que nunca possuíram e não vão possuir. Como denunciava o italiano Lorenzo Milani (1965MILANI, Lorenzo. Lettera ai giudici. 1965.): o que as pessoas pobres defendem servindo o exército nas guerras? Os privilégios de uma oligarquia? A soberania (nacional) de uma classe social? A integridade territorial de um país cujas fronteiras estão constantemente em movimento? Cabe refletir sobre essa dimensão profundamente classista dos conflitos armados e como direitos humanos, como a vida e a liberdade, são frequentemente menosprezados em nome da defesa de privilégios de oligarquias ou dos supostos direitos do Pátria.

Por fim, cabe destacar que os conflitos armados tendem a ser o ponto de chegada de uma escalada de violências. A guerra atual na Ucrânia não começou em 2022 (Chomsky, 2022CHOMSKY, Noam. Perché l’Ucrania? Milano: Adriano Salani Editore, 2022.), assim como o recente conflito armado no Niger não começou em 2023. Com muita frequência, há uma acumulação de agressões, hostilidades e abusos que desencadeiam em embates cada vez mais violentos, até a utilização de armamentos. O que quero dizer é que as violências do dia a dia, os abusos e as violações de direitos nos períodos de “não-guerra” são a terra fértil no surgimento de conflitos armados. Lutar pelos direitos humanos e pelos direitos dos povos, assim como os direitos do meio-ambiente, é a forma mais radical para evitar o futuro surgimento de guerras.

Guerras, mobilidades, muros e histerias

Ao tema da fuga de conflitos armados é dedicado o dossiê da REMHU 68. Mas qual é a relação entre mobilidades e guerras? Vou destacar alguns elementos. Antes de tudo, os conflitos armados tendem a gerar a fuga de pessoas que se tornam solicitantes de refúgio ou deslocados internos. Geralmente, essa é a consequência mais imediata da eclosão de conflitos. Muitas vezes, não são apenas deslocamentos forçados, mas também deslocamentos não ou pouco planejados, sobretudo para as populações diretamente afetadas, e deslocamentos massivos, o que acarreta também um conjunto de dificuldades para as ações de acolhimento e de proteção por parte dos países de chegada ou dos organismos internacionais. Com frequências, as pessoas que fogem de conflitos são emergencialmente “empilhadas” em “campos de refugiados” (Bauman, 2004BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2004., p. 98). Há uma ampla literatura sobre os aspectos positivos e negativos desses espaços permanentemente temporários, que garantem a sobrevivência biológica, mas raramente uma existência digna e, sobretudo, perspectivas de futuro.

Isso nos remete a um segundo aspecto a ser sublinhado: os impactos psicofísicos da fuga de conflitos armados. Os traumas podem ser tanto físicos como psíquicos, envolvendo o próprio migrante ou pessoas próximas. Se as travessias de qualquer migrante, por assim dizer, “indocumentado” são marcadas por riscos de violências, abusos e envolvimento em tráfico de pessoas (trafficking), no caso de deslocamentos não planejados e em contextos de conflitos bélicos, esses riscos se amplificam, sobretudo para mulheres e crianças. As fugas repentinas e caóticas favorecem também o desaparecimento de pessoas, multiplicando assim a presença de menores não acompanhados, que se acrescentam ao número de órfãos por consequência do conflito. Não raramente, a fuga pode ser interpretada como uma forma de deserção: nestes casos, pode ocorrer também a violência por parte de grupos supostamente amigos ou aliados. Sem querer “patologizar” a fuga, não há dúvida de que para quem foge de guerras e outros conflitos armados os riscos de impactos psicofísicos são muito altos, o que terá consequências nos processos de inserção no lugar de chegada e de reconstrução da própria existência.

Essa última reflexão nos leva a um terceiro elemento de destaque: a estigmatização da pessoa que foge de conflitos. Cabe citar, neste caso, um texto de Bauman: “os refugiados (...) trazem os distantes ruídos da guerra e o mau cheiro de lares pilhados e aldeias incendiadas que não podem deixar de nos fazer lembrar como é fácil invadir ou esmagar o casulo de sua rotina segura e familiar (...), e como pode ser ilusória a segurança de sua posição” (2004BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2004., p. 85). Refugiados e deslocados internos se tornam “arautos das más notícias” (ibidem) e, por isso, presença não desejada.

Ademais, quem foge da guerra é frequentemente responsabilizado por trazer “problemas”, obrigando o Estado receptor a cuidar de seus possíveis traumas psicofísicos. Numa lógica interseccional, essas questões se sobrepõem a outros marcadores, como a xenofobia, o etnocentrismo e o racismo. Prova disso é o diferente tratamento reservado a refugiados oriundos de diferentes países e conflitos. Um exemplo é a incondicionada recepção de cidadãos ucranianos por parte da Polônia - o que é, com certeza, algo positivo -, enquanto era barrada, na mesma fronteira, de acordo com relatos, a entrada de estrangeiros residentes na Ucrania. Outro exemplo terrivelmente embaraçoso é representado pelo recentíssimo memorandum assinado entre União Europeia e Tunísia para controlar (barrar) o trânsito de migrantes e refugiados. Ao que tudo indica, há uma hierarquização entre os que fogem de conflitos armados. Por alguma razão, uns são desejáveis, outros não. À “seletividade” das políticas migratórias se soma a “seletividade” do acolhimento de quem foge de conflitos armados.

Mas a estigmatização das pessoas que fogem de conflitos está relacionada também a diversas formas de essencialização de sua condição: por exemplo, os supracitados riscos de traumas psicofísicos podem alimentar uma visão por vezes demasiado assistencialista, uma patologização generalizada, que nem sempre corresponde à realidade dos casos individuais. Nessa perspectiva, é sempre fundamental priorizar a agency e a autonomia dos sujeitos migrantes.

Por fim, há um último aspecto que aproxima guerras e mobilidades: as atuais políticas migratórias securitárias são políticas de inimização. A construção de muros e outras barreiras, as políticas de externalização, a militarização das fronteiras, assim como as detenções administrativas e as deportações podem ser interpretadas numa ótica bélica, pois visam defender o país de uma invasão estrangeira e, de fato, “inventam” um inimigo. É o que Massey, Pren e Durand não tem temor em chamar de “guerra antiimigrante” (2009MASSEY, Douglas S.; PREN, Karen A.; DURAND, Jorge. Nuevos escenarios de la migración México-Estados Unidos: Las consecuencias de la guerra antiinmigrante. Papeles de población, v. 15, n. 61, p. 101-128, sept. 2009. ). A utilização de um léxico de guerra, ao tratar de questões migratórias, é uma confirmação disso (Manieri, 2009MANIERI, Marcello. I media e la guerra alle migrazioni. In: PALIDDA, Salvatore (a cura di). Razzismo democratico. La persecuzione degli stranieri in Europa. Milano: Agenzia X, 2009, p. 66-87.). A mensagem contida nas políticas securitárias é clara: os que querem entrar no país são inimigos da nação - ainda que desarmados, terrivelmente vulneráveis, famintos e, por vezes, menores de idade. Mesmo assim são inimigos: comunistas - na Guerra Fria -, terroristas - após o 11 de setembro -, ladrões de empregos - em tempos de crise econômico-financeira - e vetores de doenças - durante a pandemia. Esses estigmas impactam não apenas aqueles que tentam entrar, mas também os não-nacionais que já estão presentes e residem no território. Em resumo, a histeria de guerra, da qual fala Morin (2023MORIN, Edgar. Di guerra in guerra. Dal 1940 all’Ucraina invasa. Raffaello Cortina Editore, 2023.), parece estar presente também na guerra contra os inimigos migrantes e refugiados (histeria anti-imigratória), com todas as implicações - apresentadas acima - que isso comporta, sendo, talvez, a crescente indiferença diante das mortes, das violências e dos sofrimentos de pessoas migrantes sua prova mais contundente.

Contra a histeria de guerra

É inegável que na atualidade, como no passado, existam graves injustiças e violências que exigem respostas firmes. Populações são agredidas e violentadas por exércitos ou grupos paramilitares. Por vezes, é necessário optar pelo mal menor. Isso vale tanto no caso da escolha dos caminhos de solução de conflitos armados, quanto das negociações de acordos diplomáticos de paz. Ainda assim, cabe salientar que toda resposta “violenta” (inclusive a construção de muros) acarreta necessariamente a histeria de guerra e alimenta a espiral da violência com todas as consequências supracitas. Alguns resultados positivos imediatos podem, a médio e longo prazo, pavimentar o caminho para graves males. Além disso, ao optar pelo mal menor, precisa esclarecer se, de fato, é um mal menor e, sobretudo, para quem é um mal menor: para as populações envolvidas, para os interesses das oligarquias, para a “pátria” ou para “outras pátrias”? E, sobretudo, cabe se perguntar: permaneceremos “humanos” ao legitimar a violência ou o assassinato - por ação ou omissão - de outros seres humanos?

A opção pela não-violência - não por razões religiosas ou ideológicas, mas pela memória histórica das dinâmicas perversas da espiral da violência - visa minimizar a utilização de recursos violentos, mantendo o foco do conflito no objeto em disputa e não no antagonismo crescente entre os oponentes (Semelin, 1985SÉMELIN, Jacques. Per uscire dalla violenza. Torino: Gruppo Abele, 1985.). E, sobretudo, nos períodos de “não-guerra”, é opção preventiva pelo enfrentamento de abusos e violações de direitos de indivíduos, de povos e, inclusive, do planeta Terra que, como afirmamos, são a terra fértil no surgimento de futuros conflitos armados.

As contribuições do dossiê

O primeiro artigo do dossiê, elaborado por Ivana Belén Ruiz-Estramil, focaliza as políticas imigratórias da União Europeia em relação aos solicitantes de refúgio, com foco específico no Novo Pacto sobre Migração e Asilo e na política de terceirização dos controles fronteiriços. Conforme a autora, há uma evidente tendência em limitar o acesso ao asilo e ao refúgio, dificultando a entrada e, sobretudo, terceirizando a responsabilidade de controlar e conter os deslocamentos. A UE quer reduzir a chegada de solicitantes de refúgio, mas sem perder o capital simbólico de região comprometida com os padrões internacionais de proteção e defensa dos direitos humanos. Na realidade, as políticas possuem um claro viés euro e etnocêntrico, menosprezado as causas dos deslocamentos forçados - inclusive as responsabilidades dos países da UE - e visando controlar seus efeitos com a “corresponsabilização” dos países terceiros. Mesmo reconhecendo que não é apenas uma política da União Europeia, é sintomático que a região que historicamente mais sofreu os dramas da II Guerra Mundial, hoje, ergueu uma verdadeira fortaleza contra quem foge de conflitos armados, pelo menos daqueles que fogem do assim chamado Sul Global.

Sempre focando o tema das políticas migratórias, sobretudo no que diz respeito ao acolhimento e à inserção cidadã de pessoas refugiadas, Diana Ortiz e Mauricio Viloria se debruçam sobre a gestão e as repostas às migrações forçadas no interior do continente latino-americano, a partir da avaliação do Plano de Ação Brasil (2014-2024), tendo como foco específico, mas não exclusivo, o deslocamento forçado de pessoas colombianas. O texto realça a debilidade das repostas duradouras, prejudicadas, em parte, pela pandemia e pelo intenso deslocamento venezuelano. Entre as reflexões do texto que mais contribuem para o tema do dossiê cabe destacar a importância de “ouvir” os sujeitos deslocados em decorrência de conflitos armados: de fato, a invisiblilização dessas pessoas “deja por fuera una voz fundamental en el diagnóstico, en la formulación de recomendaciones y marginaliza sus procesos en la construcción de respuestas y alternativas”, sobretudo no que diz respeito ao complexo e multifacetado processo de inserção no novo território, que implica o acesso à educação, saúde, alimentação, moradia, trabalho, entre outros aspectos.

A sociedade civil organizada também pode contribuir ao processo de inserção de pessoas que fogem de conflitos. O artigo de Luan do Nascimento Silva reflete sobre o trabalho de Payasos Sin Fronteras (PSF), uma organização nascida na Espanha e hoje presente em numerosos países com o objetivo de “oferecer alegria e risos para aliviar o sofrimento de todas as pessoas, especialmente crianças, que vivem em áreas de crise, incluindo campos de refugiados, zonas de conflito e territórios em situações de emergência”. O texto realça a potencialidade do lúdico, do riso e da tragicomédia como caminhos de reconstrução e de fortalecimento da esperança, sobretudo quando essa ação é complementada por percursos psicoterapêuticos específicos. Destaca-se, portanto, o potencial “subversivo” do Cômico, tanto como crítica às políticas securitárias, quanto como caminho para “considerar” e valorizar as crianças enquanto sujeitos.

Essa preocupação com a agency das pessoas que fogem de conflitos armados, já presente nos dois textos anteriores, é especificamente desenvolvida por Irene Tuzi, que se debruça sobre um aspecto pouco aprofundado nas pesquisas sobre refúgio: a questão da intimidade emotiva e sexual, ou melhor, como o deslocamento forçado acaba interferindo na intimidade das famílias em fuga. A autora tem como foco uma pesquisa realizada no Líbano, entre 2017 e 2019, junto a famílias sírias. No caso específico, o “espaço” de intimidade é profundamente afetado pela extrema precariedade da moradia de uma família síria: uma tenda, um ambiente único, para cinco pessoas. A agency do casal em questão permite, mediante a modificação do espaço físico da tenda, a reconstrução, ainda que parcial, de relações de intimidade. O texto, além das estratégias de superação das adversidades dos sujeitos refugiados, nos remete para a dificuldade de gerenciar a “sobrevivência” em campos de refugiados ou em outros espaços “emergenciais”.

Permanecendo no âmbito do deslocamento forçado de sírios, Gabriela Viol Valle, Mariana Bonomo e Julia Alves Brasil se debruçam sobre a acolhida e inserção no Brasil. A pesquisa foca especificamente as relações interpessoais, o trabalho, a religião e a experiência de discriminação. Cabe destacar a interrupção das relações familiares em decorrência do conflito, uma interrupção só parcialmente amenizada pelos contatos on-line ou compensada pelas relações de amizade ou amorosas construídas no Brasil. De fato, por fugirem de uma guerra e serem muçulmanos, os refugiados sírios em tela são acompanhados por estigmas. Paradoxalmente, pessoas vítimas de guerra ou que tiveram o próprio país reiteradamente bombardeado acabam sendo rotuladas como “homens-bomba”. É mais uma evidência da estigmatização sofrida por refugiados muçulmanos que fogem de conflitos armados.

María Margarita Echeverry Buriticá e Carolina Morales Arias analisam e sistematizam o processo de implementação da Comisión para el Esclarecimiento de la Verdad, la Convivencia y la No Repetición de Colombia no exílio, ou seja, junto a colombianos e colombianas que fugiram para o exterior em decorrência do conflito armado. Queremos destacar três pontos do texto: o reconhecimento do exílio como violação de direitos humanos e, sobretudo, das pessoas exiladas como vítimas do conflito armado, superando sua invisibilização; a criação, mediante a Comissão em tela, de redes de confiança e de um processo narrativo/testemunhal enquanto caminho reparador das fraturas - subjetivas, interpessoais e sociais - geradas pelo conflito; as pessoas exiladas como sujeitos e agentes de transformação em prol do processo de paz na Colômbia. O artigo, no fundo, aponta a gravidade e a persistência das violações produzidas pelo conflito, bem como a complexidade e os desafios de um processo reparador.

O último artigo do dossiê foca um dos conflitos mais recentes: a fuga de ucranianos. Elisa De Carvalho, Klarissa Valero Ribeiro Saes e Maria Lucia Figueiredo Gomes de Meza refletem sobre o Programa de Acolhida a Cientistas Ucranianos, promovidos por universidades do Estado do Paraná, no Sul do Brasil. O texto visa aprofundar o processo de acolhimento de acadêmicos ucranianos, focando sobretudo as motivações das universidades e dos cientistas, bem como as externalizações resultantes. As universidades mediante o acolhimento ganham com a internacionalização, a diversificação do corpo docente, o diálogo intercultural e a formação de parcerias; já os acadêmicos ucranianos recebem segurança, continuidade no próprio trabalho, o conhecimento de uma nova cultura e, sobretudo, a possibilidade de testemunhar o drama vivido e, dessa forma, de alguma maneira, contribuir com o fim do conflito. Trata-se de uma prática que merece ser aprofundada e repetida em outros lugares e contextos, pensando, inclusive, na reconstrução do país ucraniano no pós-guerra.

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Na seção “Artigos”, o texto de Mohammed ElHajji e João Paulo Rossini Teixeira Coelho investiga, a partir da teoria da comunicação, o papel da philia na integração de migrantes e no sucesso de seus projetos migratórios. O campo dessa pesquisa foi realizado em uma escola de idiomas no Rio de Janeiro, Brasil, com pessoas migrantes que compõem o quadro de professores. Entre outros aspectos, o estudo busca repensar os critérios de avaliação dos processos integrativos, levando em conta a questão relacional, a philia, as trocas intersubjetivas, assim como a comunicação intercultural.

Pedro Henrique Conte Gil e Adolfo Pizzinato abordam as experiências psicossociais dos processos migratórios de haitianos(nas) para o Rio Grande do Sul, Brasil. Os autores partiram de uma perspectiva que buscou interseccionar raça-etnia, gênero e idade, no sentido de ampliar a compreensão das experiências psicossociais das pessoas migrantes. A análise dos dados da pesquisa colocou em relevo temas importantes para entender os processos vivenciados por esses migrantes: destacamos a questão de gênero e a falta de rede de apoio, principalmente para as mulheres, além das experiências de xenofobia racializada.

A partir dos desafios migratórios enfrentados pelos migrantes haitianos no Chile, Cristián Felipe Orrego Rivera analisa como a religião, no caso o vodu, é acionada pelos migrantes como forma de proteção e elemento capaz de promover laços comunitários, apesar do estigma e preconceitos enfrentados pelos seus praticantes. O autor nos fornece elementos para compreender o vodu de maneira muito além da visão religiosa, mas como parte de uma cosmologia haitiana, demonstrando que os haitianos da diáspora são capazes de acionar as redes pentecostais e ao mesmo tempo as entidades vodus para melhorarem suas condições de vida na sociedade de acolhida.

Tendo como ponto de partida a análise do romance “O Quinze”, da autora modernista Raquel de Queiroz, Mariana Augusto Bandeira e Matheus Silva Vieira buscaram por meio da teoria crítica do direito tecer uma discussão, mesclando fatos históricos e uma perspectiva teórico jurídica sobre a seca que assolou o Ceará nos anos 1930 e a migração forçada da população pobre e rural para os campos de concentração criados pelo governo. O texto sublinha a importância de resgatar a memória desses “campos” cearenses, não apenas por uma questão histórica, mas sobretudo visando compreender e questionar a atual criação de “campos” para migrantes e refugiados.

A pandemia de Covid-19 provocou o aumento nas desigualdades sociais, principalmente nos grupos mais vulneráveis, como as pessoas migrantes, população considerada no estuVierido de Mariá Lanzotti Sampaio, Alexandra Cristina Gomes de Almeida, Cássio Silveira, Regina Yoshie Matsue e Denise Martin. Fruto de um levantamento bibliográfico, o estudo destaca, a partir dos artigos analisados, que a população migrante encontrou dificuldades nas medidas de proteção sanitárias e de cuidado, enfrentaram situações de discriminação e xenofobia, além de imobilidade forçada com o fechamento das fronteiras. O artigo buscou demonstrar uma intersecção possível entre a pandemia de Covid-19 e a condição específica de ser estrangeiro, colocando em relevo o sofrimento e as estruturas de violência e produção de desigualdade.

Sylvia Contreras-Salinas e Mónica Ramírez-Pavelic apresentam em seu artigo alguns saberes de mulheres migrantes no Chile a respeito da educação e criação de seus filhos. A pesquisa elencou três tropos que enunciam esses saberes: “que los hijos aprendan que las cosas cuestan”, “saberse comportar”, “uno cría a sus hijos para que no se sientan menos que nadie”. A partir desses três tropos as autoras analisam as premissas culturais que instituem práticas de educação/criação/aprendizagem e as tensões que esses processos geram a partir da experiência de ser migrante.

O artigo de Alex Guedes Brum recupera o interesse da Turquia em criar políticas de vinculação da diáspora emigrante no período de 2003 a 2014, durante o governo do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan. O autor analisa a temática levando em conta uma abordagem holítica que combina fatores domésticos, transnacionais e internacionais. O artigo conclui que a chegada do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) ao poder na Turquia mudou a percepção do Estado sobre a diáspora, agora entendida como uma oportunidade de crescimento e de lobby para promover a adesão do país à União Europeia.

A resenha de Lady Junek Vargas León sobre o livro “Movilidades extracontinentales. Personas de origen africano y asiático en tránsito por la frontera sur de México”, de Jaime Horacio Cinta Cruz, encerra o número da revista.

Desejamos uma boa leitura a todas e todos!

Referências bibliográficas

  • BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
  • CHOMSKY, Noam. Perché l’Ucrania? Milano: Adriano Salani Editore, 2022.
  • GIRARD, René. O bode expiatório São Paulo: Paulus, 2004.
  • MANIERI, Marcello. I media e la guerra alle migrazioni. In: PALIDDA, Salvatore (a cura di). Razzismo democratico La persecuzione degli stranieri in Europa. Milano: Agenzia X, 2009, p. 66-87.
  • MASSEY, Douglas S.; PREN, Karen A.; DURAND, Jorge. Nuevos escenarios de la migración México-Estados Unidos: Las consecuencias de la guerra antiinmigrante. Papeles de población, v. 15, n. 61, p. 101-128, sept. 2009.
  • MILANI, Lorenzo. Lettera ai giudici 1965.
  • MORIN, Edgar. Di guerra in guerra Dal 1940 all’Ucraina invasa. Raffaello Cortina Editore, 2023.
  • PACE, Enzo. Perché le religioni scendono in guerra? Milano: Laterza, 2006.
  • SÉMELIN, Jacques. Per uscire dalla violenza Torino: Gruppo Abele, 1985.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023
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